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Pesquisa participante, representações sociais e psicossociologia: diálogos possíveis na escola

Participant research, social representations and psychosociology: an important school dialogue

Investigación participativa, representaciones sociales y psicosociología: posibles diálogos en la escuela

Resumo

O objetivo deste ensaio é refletir sobre a Pesquisa Participante como momento de construção de novas representações sociais em pesquisas no campo escolar. A inserção do pesquisador de modo não hierarquizado, a reflexão e a construção coletiva são premissas básicas que inserem esse modelo no rol da psicossociologia e se adaptam aos pressupostos inerentes à Teoria das Representações Sociais de Moscovici e ao modelo participativo de pesquisa. Ao final dessa reflexão, será apresentada uma proposta de pesquisa unindo essas duas vertentes - Pesquisa Participante e Teoria das Representações Sociais. Serge Moscovici, Pedro Demo e Nasciutti foram os autores de referência usados para o delineamento do presente trabalho. Como resultado, mostra-se a perfeita adequação desses modelos e a relevância desse modo de fazer pesquisa para a construção de espaços mais democráticos no ambiente escolar, ou seja, espaços estes que propiciem a construção de identidades legitimadas socialmente.

Palavras-chave:
pesquisa participante; representações sociais; psicossociologia; planejamento participativo

Abstract

This essay reflects on the the Participant Research as a moment of construction of new social representations in researches at school. The insertion of the researcher in a non hierarchical way, reflection and collective construction are basic premises that insert this model in the role of psychosociology and fit the assumptions inherent in the Theory of Social Representations of Moscovici and the participatory model of research. At the end of this reflection, a research proposal will be presented joining the Participant Research and Theory of Social Representations. Serge Moscovici, Pedro Demo and Nasciutti were the reference authors used for the design of the present work. As a result, it is shown the perfect adequacy of these models and the relevance of this way of doing research for the construction of more democratic spaces in the school environment, that propitiate the construction of socially legitimized identities.

Keywords:
participant research; social representations; psychosociology; participatory planning

Resumen

El objetivo de este ensayo es reflexionar sobre la Investigación Participante como un momento para construir nuevas representaciones sociales en la investigación en el ámbito escolar. La inserción del investigador de forma no jerárquica, la reflexión y la construcción colectiva son premisas básicas que sitúan a este modelo en el rol de psicosociología y se adaptan a los supuestos inherentes a la Teoría de las Representaciones Sociales de Moscovici y al modelo de investigación participativa. Al final de esta reflexión, se presentará una propuesta de investigación que une estas dos vertientes: Investigación participante y Teoría de las representaciones sociales. Serge Moscovici, Pedro Demo y Nasciutti fueron los autores de referencia utilizados para delinear este trabajo. Como resultado, muestra la perfecta adecuación de estos modelos y la relevancia de esta forma de hacer investigación para la construcción de espacios más democráticos en el ámbito escolar, es decir, espacios que favorezcan la construcción de identidades socialmente legitimadas.

Palabras clave:
investigación participante; representaciones sociales; psicosociología; planificación participativa

Introdução

O objetivo deste ensaio teórico é propor uma reflexão sobre a tese de que o processo da pesquisa participante seria um meio de promover a construção de novas representações sociais sobre o fenômeno pesquisado. Sendo assim, como resultado desta reflexão, será delineado um modelo de intervenção em escola, tendo como base a teoria das representações sociais e a metodologia participativa de pesquisa, pois mostra-se como um espaço privilegiado de (re) construção de saberes. Estudar e criar, pesquisar e agir são elementos inerentes a esse contexto e ao modelo de pesquisa aqui apresentado.

O planejamento participativo e a teoria das representações sociais como suporte teórico-metodológico inscrevem as pesquisas no rol da psicossociologia, cujas contribuições oferecem novos olhares sobre o objeto de pesquisa. A lente da psicossociologia revela o modo como o pesquisador se relaciona com seu campo e foco, pois, em sua posição epistemológica, não há hierarquização de saberes ou de conhecimento. Tal proposta se afina com os estudos de Serge Moscovici (2005MOSCOVICI, Serge. As representações sociais : investigação em Psicologia Social. Petrópolis: Vozes, 2005.) sobre as representações sociais.

A partir de uma busca de artigos sobre o tema, percebe-se que a inclusão da pesquisa participante como metodologia em psicossociologia aparece como um relevante caminho. No entanto, no que diz respeito aos estudos em representações sociais associados a essa forma de pesquisa, observou-se que tal possibilidade aparece de modo tímido na literatura, não sendo, portanto, algo comum ou frequentemente utilizado. Neste sentido, a presente discussão poderá contribuir no sentido de instigar essa comunhão de saberes. Individual e coletivo, sociologia e psicologia, são interseções possíveis, tanto para a teoria de Moscovici quanto para a psicossociologia, bem como para a perspectiva participativa de pesquisa. Neste sentido, teoria, método e técnica se unem delineando novas formas de se compreender o Homem.

A Psicossociologia como método de pesquisa

A psicossociologia contém pressupostos que a tornam mais do que um conjunto de metodologias. Suas bases são posturas epistemológicas, visões de mundo, posições frente ao modo de se conhecer os fenômenos. Sendo assim, ela delineia toda uma lógica da relação entre o pesquisador e seu campo. A psicossociologia quebra a dualidade entre pesquisador-pesquisado, pois indica que, se, por um lado, o pesquisador tem um conhecimento importante inerente à sua formação, cada membro do grupo também possui saberes que devem ser vistos como relevantes. Além disso, os fenômenos em psicossociologia são considerados na comunhão entre o psicológico e o sociológico.

Maisonneuve (1977MAISONNEUVE, Jean. Introdução à Psicossociologia. São Paulo: Nacional; Edusp, 1977.) descreve o termo psicossociologia como mais apropriado do que psicologia social, pois, naquela, não há uma primazia de um saber sobre o outro: social e psicológico. O próprio princípio da psicossociologia estaria na dificuldade (incapacidade, segundo o autor) da sociologia e da psicologia, isoladas, explicarem as condutas concretas humanas. A psicossociologia surge, portanto, na interação desses conhecimentos.

Moscovici (2005MOSCOVICI, Serge. As representações sociais : investigação em Psicologia Social. Petrópolis: Vozes, 2005.) também aborda a questão, ao apresentar a teoria das representações sociais no rol da psicossociologia. O autor destaca a interseção entre psicologia social e sociologia e a importância de se estudar o fenômeno de construção de representações sociais como elaborações coletivas inscritas no encontro dessas duas disciplinas. O autor discorda da separação entre individual e coletivo, pois, para ele, o sujeito está imerso em uma sociedade que possui representações. Não há como falar de individual sem considerar o coletivo como parte de sua formação. Sendo assim, individual e coletivo se misturam.

De igual modo, Nasciutti (2000NASCIUTTI, Jacyara. C. Rochael. Participação comunitária para uma melhor qualidade de vida. Documenta EICOS, Rio de Janeiro, v. 8, n. 11, p. 01-22, 2000.) ressalta que, na perspectiva da psicossociologia, os processos sociais e os processos conscientes e inconscientes individuais são considerados com o mesmo peso, sem hierarquização de conhecimento ou abordagem. Citando Maisonneuve (1977MAISONNEUVE, Jean. Introdução à Psicossociologia. São Paulo: Nacional; Edusp, 1977.), a autora reafirma essa interação entre o que é do ponto de vista psicológico e o que é inerente à dimensão social, como pressuposto da psicossociologia. Faz-se importante ressaltar que, segundo a autora, considera-se social tudo o que é coletivamente organizado e, como psicológico, os processos conscientes e inconscientes.

Percebe-se que, para os três autores, um dos polos nesse encontro seria ocupado pela sociologia, mas, em relação ao outro espaço, cada um apresenta sua especificidade. Para Moscovici, estaria a psicologia social, para Nasciutti, seriam os processos conscientes (psicologia) e inconscientes (psicanálise), e, para Maisonneuve, o lugar seria ocupado pela psicologia, numa perspectiva mais ampla. No entanto, apesar dessas diferentes perspectivas, todos apontam para o que é pessoal, individual, particular, de um lado, dialogando com o que é coletivo, do grupo, social, de outro.

Em síntese, pode-se afirmar que o sujeito se constitui socialmente a partir da interação de seu conteúdo psíquico, da cultura na qual está inserido e das relações interpessoais que mantém ao longo da vida. Olhar o ser humano pela lente da psicossociologia é compreendê-lo em todas essas dimensões e sendo constituído por elas. Nesse sentido, o sujeito da psicossociologia seria aquele cuja marca da cultura se faz presente e está em constante interação com suas construções psíquicas internas, sua vida social, em um determinado momento histórico, dentro de certas circunstâncias. Esse sujeito aparece nas construções sociais que estabelece, como no caso das instituições que cria e que acabam instituindo sua própria existência. Nesta dinâmica, ele cria e é criado, constantemente. O sujeito da psicossociologia é, portanto, dinâmico, plural, instituído e instituinte, como apresenta Nasciutti (2000NASCIUTTI, Jacyara. C. Rochael. Participação comunitária para uma melhor qualidade de vida. Documenta EICOS, Rio de Janeiro, v. 8, n. 11, p. 01-22, 2000.).

Nesse ponto, salta aos olhos a relevância do estudo das instituições pela psicossociologia, já que são construções sociais e refletem as concepções de mundo dos grupos que as constituem. Neste sentido, a instituição escolar torna-se um espaço privilegiado de pesquisa em psicossociologia. Na escola, as identidades são formadas e reforçadas. Por meio da interação, das trocas discursivas, são delineados conhecimentos sobre si mesmo e sobre o outro.

No que diz respeito à construção das identidades, Woodward (2000WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórico e conceitual. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes , 2000. p. 7-72.) destaca que é por meio da linguagem que os sentidos são formados, constituindo sistemas simbólicos que, por sua vez, caracterizam as identidades. Nesse jogo, diferenças são marcadas e os sujeitos são incluídos em certos grupos predefinidos, com características específicas e que marcam o “ser” e o “não ser”. Agindo de forma simbólica para classificar o mundo e as relações, está a representação. No que se refere à relação entre identidade e representação no âmbito da cultura, Woodward (2000)WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórico e conceitual. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes , 2000. p. 7-72. destaca que a representação, como processo cultural, cria identidades coletivas e individuais. A todo momento são produzidos significados que são intrínsecos às relações sociais e que constituem os papéis sociais. Nessas relações, as práticas de significação são marcadas por jogos de poder que tentam buscar na perspectiva essencialista de identidade suas origens biológicas, imutáveis, de modo a sedimentá-la e mantê-la distante de qualquer reflexão. Em contrapartida, a perspectiva não essencialista reafirma a construção de identidades como projeto político, histórico e, consequentemente, passível de transformação.

Contribuir para o estudo das identidades culturais é, portanto, identificar que forças de poder estão no manejo da construção de conceitos que segregam e discriminam as pessoas. Conhecer as representações sobre os fenômenos contribui para que se revelem discursos que reforçam identidades que são incluídas na perspectiva do “ser” e do “não ser”, dos que são incluídos e dos que são mantidos à margem da sociedade. As construções simbólicas marcam o sistema social, estabelecendo regras para a natureza dos vínculos e permanência dos sujeitos em espaços predefinidos. Refletir sobre a escola é, portanto, ter como foco a identificação e a transformação dessas representações, desses conceitos e, consequentemente, dessas manipulações excludentes e dessas identidades que são constituídas, de modo a torná-las socialmente legítimas.

A Teoria das Representações Sociais: breve histórico e relevância para compreender a escola

Os estudos em torno da dinâmica do homem em relação ao meio e as consequências dessa interação são de interesse da psicologia, em especial, da psicologia social. A teoria das representações sociais de Serge Moscovici (2005MOSCOVICI, Serge. As representações sociais : investigação em Psicologia Social. Petrópolis: Vozes, 2005., p. 9) pode ser considerada uma “psicologia social do conhecimento, [pois] está interessada nos processos através dos quais o comportamento é gerado e projetado no mundo social”. Num encontro com a sociologia, Moscovoci procurou trazer, aos estudos da psicologia, o caráter dinâmico dos processos sociais.

A teoria de Moscovici propõe entender o modo como os grupos se apropriam de um conhecimento ainda não dominado por eles e como criam teorias sobre ele, de modo a torná-lo familiar. Inicialmente, Moscovici queria compreender como a psicanálise se popularizou na França, já que conceitos ligados à área passaram a fazer parte do cotidiano das pessoas comuns e recebiam concepções diferentes de seus conceitos academicamente delineados. Esse estudo deu origem ao seu primeiro trabalho, publicado em 1961: La Psychanalyse, son image et son public.

As representações sociais, segundo o autor, surgem como consequência da necessidade de a sociedade moderna dar conta do desconhecido. Trata-se, portanto, de “processos sociais” (MOSCOVICI, 2005MOSCOVICI, Serge. As representações sociais : investigação em Psicologia Social. Petrópolis: Vozes, 2005., p. 16). Os grupos sociais se movimentam no sentido de tentar entender algo novo que causa desconforto, justamente por ser desconhecido. Esse sentimento leva a trocas discursivas que promovem a criação de definições, versões sobre o objeto em questão, muitas vezes bem distantes de seu sentido stricto sensu. Essas versões formam as representações sociais desse grupo social sobre um fenômeno específico. De acordo com Moscovici (2005MOSCOVICI, Serge. As representações sociais : investigação em Psicologia Social. Petrópolis: Vozes, 2005., p. 16), elas são heterogêneas, ou seja, possuem elementos específicos de diferentes grupos sociais, e são construídas num momento de “tensão [...] onde o não familiar aparece”, modificam-se nas interações que se estabelecem, por meio da comunicação inerente a esse processo relacional.

Durante o processo de compreensão, de dar sentido ao não familiar, os grupos sociais constroem o que Moscovici (2005MOSCOVICI, Serge. As representações sociais : investigação em Psicologia Social. Petrópolis: Vozes, 2005.) definiu como “teorias do senso comum”. Elas estão presentes na sociedade, pois são inerentes à interação social. A escola, espaço que inclui a vivência individual de seus membros e, consequentemente, os decorrentes dessa dinâmica, aparece como um ambiente propício para a construção de representações sociais. Além da própria complexidade nas relações ali estabelecidas, também recebe, a todo momento, ideias, diretrizes, inovações, por meio de certos dispositivos, como o currículo e as práticas que dele são produzidas. Cada elemento novo provoca debates, e novas representações são construídas, pois a cada mudança os sujeitos tentam se organizar externa e internamente, utilizando recursos que já possuem, pessoais e coletivos.

No entanto, as representações que emergem podem expressar modelos arraigados de visões de mundo que acabam reproduzindo valores antigos, pois as representações são ancoradas em conteúdos já existentes, como a memória coletiva, por exemplo (ABRIC, 2001ABRIC, Jean Claude. O estudo experimental das representações sociais. In: JODELET, Denise. (Org.). As representações sociais. Rio de Janeiro: EdUerj, 2001. p. 155-171.). É neste sentido que conhecer as representações sociais de um grupo social é ponto de partida, essencial, para intervenções relevantes e que caracterizem uma mudança efetiva de pensamento.

De acordo com Moscovici (2005MOSCOVICI, Serge. As representações sociais : investigação em Psicologia Social. Petrópolis: Vozes, 2005.), as representações sociais ditam comportamentos. Esses comportamentos podem se expressar por meio da discriminação, de preconceitos, da influência social coercitiva, de atitudes agressivas e estereotipadas de certos grupos sobre outros, mantendo graves conflitos sociais. No entanto, se algo novo chega acompanhado de reflexão, caminhos novos podem ser construídos. Mas como fazer isso? Como identificar e, ao mesmo tempo, desconstruir concepções arraigadas nos grupos sociais que marcam diferenças que segregam, excluem e discriminam?

Como proposta, pode-se pensar em um tipo de pesquisa que favoreça essas mudanças de posicionamentos. Neste sentido, Nasciutti (2000NASCIUTTI, Jacyara. C. Rochael. Participação comunitária para uma melhor qualidade de vida. Documenta EICOS, Rio de Janeiro, v. 8, n. 11, p. 01-22, 2000.), ao discutir o método interdisciplinar em psicossociologia, apresenta a pesquisa-ação como metodologia mais utilizada entre os pesquisadores da área. Partindo da interação entre o conhecimento acadêmico e o conhecimento popular, a pesquisa-ação une saber e fazer, considerando as relações entre o Homem, a cultura e o ambiente. Esse tipo de pesquisa tem como proposta epistemológica o avesso da pesquisa tradicional, experimental, quantitativa, com base positivista. Não há neutralidade do cientista, não se busca uma “verdade” generalizável, não se separa pesquisador-objeto de pesquisa. Sua base está na interação, na democratização de saberes, no olhar aprofundado, na diversidade.

Tendo como referencial esse modo de fazer pesquisa, pode-se pensar em outro modelo qualitativo cuja proposta se insere nesses mesmos pressupostos. Trata-se da pesquisa participante, ou pesquisa participativa.

A Pesquisa Participante: pressupostos básicos e pontos relevantes para a Teoria das Representações Sociais e para os estudos no campo escolar

O modelo participativo insere o pesquisador como um dos atores no campo, sem hierarquias de função em relação ao grupo pesquisado. Seu conhecimento acadêmico/teórico/metodológico, somado aos saberes diversificados dos membros do grupo, facilita a compreensão dos processos de construção das representações sociais, pois dele fará parte. Sua perspectiva será a partir do centro, mas, inserido no grupo de forma democrática, o pesquisador, como parte dele, incentiva a participação ativa dos sujeitos que mostram seus impasses e seus pontos de vista (MOSCOVICI, 2005MOSCOVICI, Serge. As representações sociais : investigação em Psicologia Social. Petrópolis: Vozes, 2005.). O caráter participativo da pesquisa indica uma atuação linear entre os sujeitos. O conhecimento de cada um é importante para as trocas que se estabelecem a fim de se atingirem alguns objetivos. Neste sentido, todos aparecem em cena, todos tem voz. Essa dinâmica, além de possibilitar a aproximação do pesquisador dessas expectativas, angústias, sucessos, fracassos, histórias e projetos de vida, serve de base para o questionamento dessas “verdades” estabelecidas, naturalizadas, tidas como imutáveis.

O modelo de pesquisa participante coloca o pesquisador em um desafio: pesquisar e participar. Participando, o pesquisador assume outro lugar, torna-se parte de construção das representações sociais e tem a possibilidade de observar esse processo em sua formação. Ele considera o pesquisador como um dos agentes que, além de levar algo novo ao grupo, interage com ele em uma busca, conjunta, de novos caminhos, novas possibilidades, novas posturas, novos comportamentos, por meio de decisões coletivas, reflexões e do estabelecimento conjunto de metas a serem atingidas. Ele entende que os integrantes do grupo também trazem o novo, e todos devem ser considerados relevantes para esse processo.

Demo (1995DEMO, Pedro. Metodologia científica em ciências sociais. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Atlas, 1995.) apresenta três momentos para o planejamento participativo; são eles: autodiagnóstico, estratégias de enfrentamento prático e necessidade de organização política da comunidade. Em linhas gerais, o autor ressalta que o autodiagnóstico torna possível a convergência do conhecimento científico com o conhecimento popular, oriundo do grupo, criando uma efetiva utilidade (pode-se pensar em um “sentido”) para o trabalho proposto. A partir desse conhecimento conjunto, o grupo consegue estabelecer estratégias de enfrentamento para os problemas práticos, organizando-se politicamente.

Torna-se adequado unir, aqui, o “pesquisar e participar” de Demo (1995DEMO, Pedro. Metodologia científica em ciências sociais. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Atlas, 1995.) e o “saber e fazer” de Nasciutti (2000NASCIUTTI, Jacyara. C. Rochael. Participação comunitária para uma melhor qualidade de vida. Documenta EICOS, Rio de Janeiro, v. 8, n. 11, p. 01-22, 2000.). A pesquisa, dentro dessa perspectiva, indica que, ao pesquisar, o pesquisador direciona seu saber para a prática, para a participação coletiva, para a construção conjunta. Sendo assim, a pesquisa participante surge, portanto, como possibilidade metodológica em psicossociologia e aparece como recurso valioso em representações sociais. Pode-se inferir que, com essa estratégia, o grupo constrói novos conceitos em torno de suas questões e surgem novas possibilidades de ação e, consequentemente, novas representações sociais. Por sua vez, essas representações servirão de base para novas condutas.

Sendo o pesquisador parte integrante do grupo, estabelece com este trocas discursivas sobre o objeto em questão. Neste sentido, participa, ativamente, da reflexão e, consequentemente, da construção de novas concepções sobre esse objeto, sobre esse fenômeno. Assim, se o grupo constrói coletivamente na perspectiva da pesquisa participante e, se é na interação para a compreensão de um fenômeno que as representações sociais são construídas, a própria pesquisa sobre esse fenômeno se torna espaço de ressignificação dos discursos que ali surgem. Ao pensar sobre os passos da pesquisa, sobre como cada um percebe o objeto/fenômeno estudado e como este pode ser abordado, o grupo já está modificando sua percepção sobre ele. Tendo oportunidade de refletirem sobre esse processo, acabam por construir novas representações e, consequentemente, novos comportamentos, novas formas de interação.

O ambiente escolar reproduz os discursos hegemônicos instituídos na sociedade, construídos por grupos que se mantém no poder e tentam monopolizar suas “verdades”. Em contrapartida, alunos, professores, diretores, pais de alunos e outros tantos atores compartilham suas expectativas, angústias, sucessos, fracassos, histórias e projetos de vida. Por meio dessas interações, movimentos contra-hegemônicos surgem pedindo espaço. A pesquisa participante aliada às representações sociais proporciona esses espaços contra-hegemônicos.

A partir dessa reflexão e dos conceitos de Demo (1995DEMO, Pedro. Metodologia científica em ciências sociais. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Atlas, 1995.) sobre planejamento participativo, será esboçada, a seguir, uma proposta de pesquisa participante na escola que possibilite a revisão de posturas por meio da construção de novas representações sociais sobre os dispositivos estudados.

Uma proposta de pesquisa: participação-construção de representações sociais

Tendo como campo a escola, como recurso a pesquisa participante e como suporte teórico e metodológico a teoria das representações sociais de Moscovici, alguns passos foram delineados de modo a sugerir o planejamento de um modelo de pesquisa que possa transformar ao mesmo tempo em que investiga. Esse modelo será apresentado a seguir.

1º - Aproximação do campo - Observação Participante

Em um momento inicial, seria de extrema relevância fazer uma observação participante como estratégia de conhecimento do campo e perceber o não dito, o espontâneo, trazendo os pressupostos da Antropologia, área na qual a observação participante se inscreve como recurso. Não se pode falar em cultura sem considerar a disciplina que a tem como conceito central. Assim como apresenta Dias-Duarte (2004)DIAS-DUARTE, Luiz Fernando. A pulsão romântica e as ciências. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 19, n. 55, p. 5-19, jun. 2004. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/GP39m4swhrzTxZtKXkvk5BJ/?lang=pt&format=pdf . Acesso em: 13 abr. 2020.
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, o antropólogo busca a compreensão da experiência humana em seu sentido e significado por meio da cultura. Estudar o modelo monocultural da Educação brasileira e suas possíveis consequências negativas é, em primeiro lugar, situá-lo dentro da cultura, conhecer seu sentido, regras, valores. Além disso, a utilização da técnica de observação participante possibilitará uma aproximação com o campo, com os sujeitos e com o objeto de forma mais aprofundada. Essa aproximação dará ao pesquisador um conhecimento inicial valioso. Diferente da entrevista e dos grupos, essa técnica possibilita observar sem fazer perguntas, sem direcionar e perceber algo não dito, espontâneo. O pesquisador utiliza seus sentidos para captar o ambiente e conhecê-lo em sua totalidade, em sua própria dinâmica, respeitando suas características, seus valores.

2º - Mapeamento das representações sociais - técnica da Associação Livre

A tarefa de evocação livre, que tem como base a abordagem estrutural de Jean Claude Abric, utiliza um termo indutor, com o objetivo de observar as representações sociais do grupo e a estrutura dessas representações, destacando os elementos que compõem o núcleo central e o sistema periférico das representações. O pesquisador, após escolher um objeto de estudo dentro das possibilidades relacionadas à escola, aplica a técnica da associação livre, individualmente, de modo a construir o sistema de representação desse grupo social específico.

Como apresentado acima, Abric (2001ABRIC, Jean Claude. O estudo experimental das representações sociais. In: JODELET, Denise. (Org.). As representações sociais. Rio de Janeiro: EdUerj, 2001. p. 155-171.) propôs a abordagem estrutural das representações sociais. Nesta, as opiniões, atitudes, crenças e as informações sobre um fenômeno interagem e são determinadas pelo sujeito, pelo sistema social e natureza dos vínculos. Segundo o autor, as representações sociais apresentam um núcleo central, que dá significação e organização a elas. Trata-se de um núcleo estruturante, determinado por dois fatores: pela natureza do objeto da representação e pela relação que o sujeito estabelece com esse objeto. O núcleo central e o sistema periférico caracterizam-se como um sistema sociocognitivo da representação.

3º - Autodiagnóstico sobre a prática

Nesse momento, já com o conhecimento das representações sociais do grupo sobre determinado fenômeno do universo escolar, o pesquisador propõe grupos de reflexão sobre as práticas escolares e sobre o objeto escolhido. Com isso, além de facilitar a elaboração participativa de um diagnóstico sobre tais práticas, proporciona a compreensão de sua eficácia e relevância para o grupo. Os grupos de reflexão também contribuem para o planejamento dos passos seguintes da pesquisa, de modo a possibilitar a construção de conhecimento e a consolidação de uma consciência crítica, bem como agregar novos elementos às representações sociais do grupo.

4º - Planejamento e delineamento dos passos da pesquisa a partir desse autodiagnóstico

O grupo participa, coletivamente, de modo ativo, na construção dos passos do processo de pesquisa, cronograma, logística, etc.

5º - Efetivação dessas metas

O processo de pesquisa construído com a participação do grupo é implementado, seguindo as etapas, cronograma e logística delineados.

6º - Reflexões sobre o caminho percorrido durante as metas

Manutenção de grupos de reflexão ao longo da pesquisa de modo a (re)avaliar o caminho percorrido.

7º - Análise sobre os resultados obtidos em grupo

De modo conjunto, a avaliação sobre as observações e resultados coletados é de suma importância. Nesse momento, também se torna relevante uma nova coleta de representações sociais sobre o objeto estudado de modo a comparar com o início do processo de pesquisa. Esses dois conjuntos de “versões” propiciam a constatação da transitoriedade das nossas concepções sobre os fenômenos e a desconstrução de posições que naturalizam o que, na verdade, é algo construído, historicamente, por um grupo, num determinado espaço geográfico, sob determinadas condições.

8º - Construção do relatório

Esse momento é essencial para unir teoria e prática, para condensar as informações obtidas ao longo da pesquisa e documentar as análises das observações.

Considerações finais

A proposta aqui apresentada dialoga com posições que buscam estudar o modelo cultural hegemônico que ainda marca a Educação brasileira com um método de pesquisa qualitativo, delineamento característico dos estudos em psicossociologia. A teoria das representações sociais sinaliza a diversidade de saberes que atravessam o objeto. Caracterizada por Moscovici (2005MOSCOVICI, Serge. As representações sociais : investigação em Psicologia Social. Petrópolis: Vozes, 2005.) como uma teoria mista, que se inscreve na interseção entre a sociologia e a psicologia social, a teoria das representações sociais estabelece uma comunhão entre essas áreas. A pesquisa participante agrega uma postura não hierarquizada dos sujeitos nela envolvidos e, ao propor uma relação de cooperação, passa a informação de que todos os saberes ali incluídos pelo grupo são relevantes, todos podem contribuir, juntos, para a criação de novas possibilidades sociais, pois cada um possui uma especificidade que contribui para o conjunto. Nessa direção, é possível levar, para dentro da escola, posturas mais democráticas de se relacionar e de se pensar questões sérias que atravessam e, por vezes, atropelam as práticas pedagógicas, produzindo falta de motivação e adoecimento nos sujeitos nelas envolvidos. Trata-se, portanto, de uma postura ética de se fazer pesquisa.

A questão da ética aqui destacada surge, portanto, em observar o sujeito e considerá-lo em seus padrões culturais, crenças e opiniões, dentro de uma proposta que traz o desafio de um processo coletivo e democrático.

Referências

  • ABRIC, Jean Claude. O estudo experimental das representações sociais. In: JODELET, Denise. (Org.). As representações sociais. Rio de Janeiro: EdUerj, 2001. p. 155-171.
  • DEMO, Pedro. Metodologia científica em ciências sociais. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Atlas, 1995.
  • DIAS-DUARTE, Luiz Fernando. A pulsão romântica e as ciências. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 19, n. 55, p. 5-19, jun. 2004. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/GP39m4swhrzTxZtKXkvk5BJ/?lang=pt&format=pdf Acesso em: 13 abr. 2020.
    » https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/GP39m4swhrzTxZtKXkvk5BJ/?lang=pt&format=pdf
  • MAISONNEUVE, Jean. Introdução à Psicossociologia. São Paulo: Nacional; Edusp, 1977.
  • MOSCOVICI, Serge. As representações sociais : investigação em Psicologia Social. Petrópolis: Vozes, 2005.
  • NASCIUTTI, Jacyara. C. Rochael. Participação comunitária para uma melhor qualidade de vida. Documenta EICOS, Rio de Janeiro, v. 8, n. 11, p. 01-22, 2000.
  • WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórico e conceitual. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes , 2000. p. 7-72.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Out 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    07 Dez 2017
  • Revisado
    02 Abr 2021
  • Revisado
    07 Maio 2021
  • Aceito
    31 Maio 2021
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