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A ética protestante e o reencantamento do mundo na sociedade do trabalho: notas a partir de Max Weber

The Protestant Ethics and the re-enchantment of the world in a society of labor: notes from Max Weber

RESUMO

Este artigo pretende investigar, partindo das ideias de A Ética Protestante e o “Espírito” do Capitalismo, de Max Weber, a relação entre o desencantamento do mundo e a Reforma Protestante, bem como a hipótese de que o desencantamento gerou, ao mesmo tempo, um novo encantamento no capitalismo e em sua nascente sociedade do trabalho. Segundo Weber, à medida que o cotidiano, na modernidade, foi tomado por uma racionalização cultural e social, dissolveram-se também as formas de vida tradicionais. Na ética protestante, a salvação vincula-se à vocação intramundana e à santificação da vida cotidiana por meio do trabalho. Daí, falarmos de um desencantamento, como Weber conceitua, e, ao mesmo tempo, de um reencantamento à luz de uma nova religiosidade atuante no mundo do trabalho capitalista. É justamente esse processo que permitiu Walter Benjamin, por sua vez, considerar o capitalismo como uma religião, com seus cultos, ritos e símbolos, levando a análise weberiana adiante, enfatizando o capitalismo como religião. Almejamos, assim, investigar a hipótese de que a tese weberiana do desencantamento do mundo igualmente culmina em sua inversão, ao falarmos de um reencantamento do mundo, agora sob a égide do trabalho capitalista e de sua racionalização econômica.

Palavras-chave:
Weber; desencantamento; ética protestante; reencantamento

ABSTRACT

This article aims to investigate, based on the ideas of Max Weber’s Protestant Ethics and the “Spirit” of Capitalism, the relationship between the disenchantment of the world and the Protestant Reformation, as well as the hypothesis that disenchantment generated, at the same time, a new enchantment in capitalism and its nascent labor society. According to Weber, as the daily life, in modern times, was taken over by a cultural and social rationalization, traditional forms of life also dissolved. In Protestant ethics, salvation is linked to the intramundane vocation and the sanctification of everyday life through work. Hence, we speak of a disenchantment, as Weber conceptualizes, and at the same time, a re-enchantment in light of a new religiosity active in the world of capitalist labor. It is precisely this process that allowed Walter Benjamin, in turn, to consider capitalism as a religion, with its cults, rites and symbols, taking the Weberian analysis forward, emphasizing capitalism as a religion. We aim thus to investigate the hypothesis that Weber’s thesis of the disenchantment of the world also culminates in its reversal, when we speak of a re-enchantment of the world, now under the umbrella of the capitalist labor and its economic rationalization.

Keywords:
Weber; disenchantment; protestant ethics; re-enchantment

Introdução

Jürgen Habermas (2012HABERMAS, J. 2012a. Teoria do Agir Comunicativo 1: racionalidade da ação e racionalização social. São Paulo, Martins Fontes .a) argumenta que Max Weber, ao lado de grandes teóricos sociais como Marx, Durkheim e Mead, continua sendo nosso contemporâneo. A análise weberiana é fundamental para o entendimento da gênese moderna e sua relação com o protestantismo (Berger, 2018BERGER, P. 2018. Rumor de Anjos: a sociedade moderna e a redescoberta do sobrenatural. 2.ed. Petrópolis, Vozes.). A perspectiva de que a ética protestante desempenhou um papel particular no estabelecimento do mundo moderno tem sido assunto de um amplo debate entre estudiosos (Berger, 1985BENJAMIN, W. 2013. O capitalismo como religião. In: W. BENJAMIN, O capitalismo como religião. São Paulo, Boitempo, p. 21-25.). Este artigo pretende investigar, a partir das ideias de A Ética Protestante e o “Espírito” do Capitalismo, a relação entre o desencantamento do mundo e a Reforma Protestante, bem como a hipótese de que o desencantamento gerou, por conseguinte, um novo encantamento no capitalismo e em sua nascente sociedade do trabalho.

Tal perspectiva de algum modo já está presente em Weber, quando o pensador alemão fala de uma “cosmologia capitalista”. Todavia, Walter Benjamin (2013BENJAMIN, W. 2013. O capitalismo como religião. In: W. BENJAMIN, O capitalismo como religião. São Paulo, Boitempo, p. 21-25.), num pequeno texto chamado “O capitalismo como religião” é que, como justifica Michael Löwy (2013LÖWY, M. 2013. Prefácio: Walter Benjamin crítico da civilização. In: W. BENJAMIN. O capitalismo como religião. São Paulo, Boitempo Editorial, p. 7-19.), levará a análise weberiana adiante, ao enfatizar o capitalismo como uma religião. Almejamos, assim, investigar a hipótese de que a tese weberiana do desencantamento do mundo igualmente culmina em sua inversão dialética, ao falarmos de um reencantamento do mundo, agora sob a égide do trabalho capitalista e de sua racionalização econômica.

A obra A Ética Protestante e o “Espírito” do Capitalismo1 1 Ver em: PIERUCCI, A. Apresentação. In: WEBER, M. A Ética Protestante e o “Espírito” do Capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 7-15. apareceu pela primeira vez em 1904, trazendo em seu título aspas na palavra “espírito”: aspas de cautela e, ao mesmo tempo, de ênfase. O objeto weberiano de análise não era tão somente o capitalismo como sistema econômico ou modo de produção, e sim o capitalismo enquanto “espírito”, isto é, cultura - a cultura capitalista moderna, ou seja, o capitalismo vivenciado pelas pessoas na condução metódica da vida de todo dia. Melhor dizendo, o “espírito” do capitalismo como conduta de vida. A Ética Protestante e o “Espírito” do Capitalismo foi publicada entre 1904 e 1905; e uma outra edição em 1920. A palavra “espírito” recupera as aspas que o próprio Weber havia cortado na segunda edição de 1920.

Weber não tem no capitalismo apenas um modo de produção ou sistema econômico, e sim, também, um “espírito”, isto é, uma cultura capitalista moderna. Podemos falar de um “espírito” do capitalismo enquanto conduta de vida, um capitalismo vivenciado pelas pessoas na condução metódica do cotidiano. Weber enfatiza que não pretende “valorar o conteúdo conceitual da Reforma, seja em que sentido for, político-social ou religioso” (Weber, 2004WEBER, M. 2004. A Ética Protestante e o “Espírito” do Capitalismo. São Paulo, Companhia das Letras ., p. 82). Ele diz que objetiva escapar de qualquer perspectiva que deduza a Reforma unicamente das transformações econômicas, como algo necessário em termos de desenvolvimento histórico.

Em Weber, nem a perspectiva economicista nem a espiritualista podem sozinhas explicar a relação entre a ética protestante e o “espírito” do capitalismo: “Ambas são igualmente possíveis, mas uma e outra, se tivessem a pretensão de ser, não a etapa preliminar, mas a conclusão da pesquisa, igualmente pouco servem à verdade histórica” (Weber, 2004WEBER, M. 2004. A Ética Protestante e o “Espírito” do Capitalismo. São Paulo, Companhia das Letras ., p. 167). Weber, como veremos, utiliza a ideia daquilo que denomina de “afinidades eletivas”, tal qual uma complexidade de fatores que proporcionaram uma relação entre a ética protestante e o “espírito” do capitalismo, bem como o desencantamento do mundo e, a nosso ver, seu reencantamento na então nascente sociedade do trabalho capitalista, ideia posteriormente aprofundada por Benjamin que se remete também a Weber. Almejamos, assim, investigar a hipótese de que a tese weberiana do desencantamento do mundo igualmente culmina em sua inversão dialética, ao falarmos de um reencantamento do mundo, agora sob a égide do trabalho capitalista e de sua racionalização econômica.

A Reforma Protestante e o Capitalismo

Weber, em A Ética Protestante e o “Espírito” do Capitalismo, destaca o caráter predominantemente protestante dos proprietários do capital e empresários, bem como o das camadas superiores da mão de obra qualificada nas empresas modernas. Weber explicita os vínculos existentes entre a racionalidade econômica capitalista e o puritanismo, à luz das afinidades entre o protestantismo e o espírito empresarial (Willaime, 2012WILLAIME, J. 2012. Sociologia das Religiões. São Paulo, Unesp .). Não se trata de uma relação economicista e causal entre capitalismo e Reforma, e sim, como destaca Weber (2004WEBER, M. 2004. A Ética Protestante e o “Espírito” do Capitalismo. São Paulo, Companhia das Letras ., p. 83), de “afinidades eletivas”, tal qual uma complexidade de fatores que proporcionaram uma relação entre a ética protestante e o “espírito” do capitalismo. Na esteira de Paul Ricoeur, podemos dizer que:

(...) a nossa análise do modelo conceitual de Weber faz que, a meu ver, a questão da causa inicial não seja uma boa questão. Perguntar se a ética produziu o espírito do capitalismo ou vice-versa, é permanecer num esquema inapropriado. Seria melhor dizer que a ética fornece a estrutura simbólica no seio da qual operam certas forças econômicas ( Ricoeur, 2015 RICOEUR, P. 2015. A Ideologia e a utopia. Belo Horizonte, Autêntica editora. , p.251).

Com o conceito de “afinidades eletivas”, como explica Löwy (2014LÖWY, M. 2014. A Jaula de Aço: Max Weber e o marxismo weberiano. São Paulo, Boitempo Editorial.), podemos falar, em Weber, de uma existência de elementos convergentes e análogos entre uma ética religiosa e um comportamento econômico, a saber: o ascetismo puritano e a economia do capital, a ética protestante do trabalho e sua disciplina burguesa, a valorização calvinista do ofício virtuoso e o ethos do empreendimento burguês racional, a concepção ascética do uso utilitário das riquezas e a acumulação produtiva do capital, bem como a exigência puritana da vida metódica e sistemática, com a busca racional do lucro capitalista:

Designamos por “afinidades eletivas” um tipo muito particular de relação dialética que se estabelece entre duas configurações sociais ou culturais, não redutível à determinação causal direta ou à “influência” no sentido tradicional. Trata-se, a partir de uma certa analogia estrutural, de um movimento de convergência, de atração recíproca, de confluência ativa, de combinação capaz de chegar até a fusão. Em nossa opinião, seria interessante tentar fundar o estatuto metodológico desse conceito, como instrumento de pesquisa interdisciplinar que permita enriquecer, nuançar e tornamais dinâmica a análise das relações entre fenômenos econômicos, políticos, religiosos e culturais ( Löwy, 1989 LÖWY, M. 1989. Redenção e Utopia: o judaísmo libertário na Europa Central. São Paulo, Companhia das Letras. , p.13).

Nesse contexto, Weber observa que a presença de bacharéis católicos no ensino superior e humanístico era bem maior que a de protestantes. Estes, ao contrário, orientavam-se pelo ensino técnico, profissões comerciais e industriais, isto é, “para a vida burguesa dos negócios” (Weber, 2004WEBER, M. 2004. A Ética Protestante e o “Espírito” do Capitalismo. São Paulo, Companhia das Letras ., p. 32). Os católicos, ao contrário, tinham um interesse reduzido pela aquisição capitalista. Weber pontua a diminuta participação dos católicos entre o operariado qualificado da grande indústria moderna. Ele ressalta que os protestantes, seja como camada dominante ou dominada, seja como maioria ou minoria, mostravam uma inclinação específica para o racionalismo econômico, algo que não poderia ser dito em relação aos católicos.

Weber define a ordem econômica capitalista como um “imenso cosmos em que o indivíduo já nasce dentro e que para ele, ao menos enquanto indivíduo, se dá como um fato, uma crosta que ele não pode alterar e dentro da qual tem que viver” (2004WEBER, M. 2004. A Ética Protestante e o “Espírito” do Capitalismo. São Paulo, Companhia das Letras ., p. 48). Esse cosmos impõe ao indivíduo, preso nas redes do mercado, as normas de ação econômica. Nessa racionalização, “somos forçados a tomar posição ante o mundo e dar sentido a este” (Schluchter, 2011SCHLUCHTER, W. 2011. Paradoxos da modernidade: cultura e conduta na teoria de Max Weber. São Paulo, Unesp., p. 98). O adversário, diz Weber, com o qual teve de lutar o “espírito” do capitalismo, no sentido de um determinado estilo de vida, na nascente sociedade do trabalho capitalista, foi o tradicionalismo.

Eis um exemplo da atitude que deve, para Weber, ser chamada de tradicionalista: o ser humano não quer “por natureza” ganhar dinheiro e sempre mais dinheiro, porém simplesmente viver do modo como está habituado a viver e ganhar o necessário para tanto. Onde quer que o capitalismo moderno tenha acontecido, incrementando a “produtividade” do trabalho humano pelo aumento de sua intensidade, ele se chocou com a resistência da economia pré-capitalista, “e choca-se ainda hoje por toda parte, tanto mais quanto mais “atrasada” (do ponto de vista capitalista) é a mão de obra da qual se vê depender” (Weber, 2004WEBER, M. 2004. A Ética Protestante e o “Espírito” do Capitalismo. São Paulo, Companhia das Letras ., p. 53).

O aumento da produtividade do trabalho, no capitalismo moderno, com a racionalidade econômica, no plano da técnica e da economia, condicionou uma parcela importante dos “ideais de vida” da moderna sociedade burguesa:

E com igual clareza é uma das qualidades fundamentais da economia privada capitalista ser racionalizada com base no cálculo aritmético rigoroso, ser gerida de forma planejada e sóbria para o almejado sucesso econômico, contrariamente à existência do camponês, o qual leva a vida da mão para a boca, à rotina privilegiada do artesão das antigas corporações [e ao “capitalismo aventureiro”, orientado pelo oportunismo político e pela especulação irracional] (Weber, 2004WEBER, M. 2004. A Ética Protestante e o “Espírito” do Capitalismo. São Paulo, Companhia das Letras ., p. 67).

Segundo Habermas (2002HABERMAS, J. 2002. O Discurso Filosófico da Modernidade. São Paulo, Martins Fontes.), o que Weber descreve do ponto de vista da racionalização não é apenas a profanação da cultura ocidental, mas, sobretudo, o desenvolvimento das sociedades modernas e de seus imperativos econômicos: “Weber entende esse processo como a institucionalização de uma ação econômica e administrativa racional com relação a fins” (Habermas, 2002HABERMAS, J. 2002. O Discurso Filosófico da Modernidade. São Paulo, Martins Fontes., p. 4). As dimensões da racionalidade técnica e instrumental são marcas dessa modernidade que corre sempre o risco de submeter tudo à lógica dos imperativos sistêmicos do poder e do dinheiro. Não por acaso, como contextualiza Flickinger (2016FLICKINGER, H. 2016. A Filosofia Política na Sombra da Secularização. São Leopoldo, UNISINOS.), a sociedade moderna ganhou o status de uma sociedade do trabalho.

De acordo com Weber, à medida que o cotidiano, na modernidade, foi tomado por essa racionalização cultural e social, dissolveram-se também as formas de vida tradicionais. Weber fala acerca de afinidades eletivas entre a modernidade capitalista e o ethos da Reforma, proporcionando uma teologia que santificou o trabalho temporal e capitalista, organizando uma ascese no mundo e vinculando a glória de Deus à inserção dos homens no mundo do trabalho, como veremos a seguir.

Da contemplação divina aos deveres intramundanos

Weber argumenta que algo da ética protestante era novo no contexto da modernidade capitalista, ao contrário do catolicismo, a saber: a valorização do cumprimento do dever no âmbito das profissões mundanas como o mais elevado conteúdo que a autorrealização moral é capaz de assumir. Isso, segundo Weber, gerou uma significação religiosa do trabalho mundano de todo dia. O calvinismo, nesse sentido, defende a necessidade de uma comprovação da fé na vida profissional mundana. Na ética protestante, o único meio de viver que agrada a Deus não está em suplantar a moralidade intramundana pela ascese monástica, mas sim, exclusivamente, em cumprir com os deveres intramundanos, tal como decorrem da posição do indivíduo na vida, a qual por isso mesmo se torna a sua “vocação profissional”. Nas palavras de Lutero, “Esta é a liberdade cristã, nossa fé, que não faz que sejamos ociosos ou vivamos mal” (Lutero, 2019LUTERO, M. 2019. Escritos Seletos. Petrópolis, Vozes ., p. 14). O cumprimento dos deveres intramundanos é a única via de agradar a Deus em todas as situações, “que esta e somente esta é a vontade de Deus, e por isso toda profissão lícita simplesmente vale muito e vale igual perante Deus” (Weber, 2004WEBER, M. 2004. A Ética Protestante e o “Espírito” do Capitalismo. São Paulo, Companhia das Letras ., p.73). Daí, como nos lembra Habermas, na ótica weberiana:

(...) a ética religiosa e o mundo se interpenetram na conduta de vida racional-metódica das camadas portadoras das sociedades do capitalismo inicial; e essa “interpenetração” provoca uma configuração ética do agir cotidiano, atingindo todas as esferas da vida, bem como a institucionalização do agir econômico e do agir administrativo, racionais em termos teleológicos ( Habermas, 2012 HABERMAS, J. 2012b. Teoria do Agir Comunicativo 2: sobre a crítica da razão funcionalista. São Paulo, Martins Fontes . b, p. 535).

Weber considera o feito da Reforma, ao contrário da concepção católica, a ênfase moral para o trabalho intramundano no quadro das profissões, havendo um crescente apreço pela significação do trabalho profissional. A profissão concreta do indivíduo é tida, agora, como uma ordem de Deus para ocupar na vida esta posição que lhe reservou o desígnio divino. Na Reforma Protestante, tal qual demonstra Ernst Cassirer, a transformação do mundo “deve realizar-se pelo trabalho no seio da profissão, na ação exercida no âmbito da ordem social secular” (Cassirer, 1997CASSIRER, E. 1997. A Filosofia do Iluminismo. 3.ed. Campinas, Editora da UNICAMP. , p. 195). O indivíduo deve permanecer na profissão e no estamento em que Deus o colocou, mantendo sua ambição terrena dentro dos limites dessa posição na vida que lhe foi dada.

A vocação, em Lutero, por exemplo, como explica Weber, é aquilo que o ser humano tem de aceitar como desígnio divino, ao qual tem de “se dobrar”. Nas palavras de Peter Berger (2018BERGER, P. 2018. Rumor de Anjos: a sociedade moderna e a redescoberta do sobrenatural. 2.ed. Petrópolis, Vozes., p. 203), “A vocação é uma ocupação para a qual se é chamado - por Deus, pelo destino, pelas circunstâncias, talvez pela necessidade interior”. Daí, podemos dizer, tal qual sugere Weber, que o trabalho profissional seria uma missão, ou seja, a missão dada por Deus, um chamado. A valoração da vida intramundana como missão, explica Weber, seria impossível na pena de um escritor medieval. Lutero tem, por assim dizer, um parentesco íntimo e, ao mesmo tempo, um antagonismo com o catolicismo. Há, ao mesmo tempo, uma racionalização da conduta de vida no mundo, mas de olho no outro mundo, resultando na concepção de profissão do protestantismo.

No catolicismo, ao contrário, a vida santa consistia em suplantar a moralidade intramundana; já no protestantismo a ética almejava seu oposto, ou seja, num adentrar na vida cotidiana, na moderna ordem capitalista e no mundo do trabalho empresarial: “O radical desencantamento do mundo não deixava interiormente outro caminho a seguir a não ser a ascese intramundana” (Weber, 2004WEBER, M. 2004. A Ética Protestante e o “Espírito” do Capitalismo. São Paulo, Companhia das Letras ., p.135). Em Lutero, estava fora de cogitação caminhar para a forma monástica de ascese extramundana:

A ascese cristã, que de início fugira do mundo para se retirar na solidão, a partir do claustro havia dominado eclesiasticamente o mundo, enquanto a ele renunciava. Ao fazer isso, no entanto, deixou de modo geral intacta a vida cotidiana no mundo com seu caráter naturalmente espontâneo. Agora ela ingressa no mercado da vida, fecha atrás de si as portas do mosteiro e se põe a impregnar com sua metódica justamente a vida mundana de todo dia, a transformá-la numa vida racional no mundo ( Weber, 2004 WEBER, M. 2004. A Ética Protestante e o “Espírito” do Capitalismo. São Paulo, Companhia das Letras . , p. 139).

A perda de tempo, por exemplo, diz Weber, é o primeiro e o mais grave de todos os pecados no protestantismo. Assim afirma Lutero: “jejuará, vigiará e trabalhará tanto quanto julgar suficiente para reprimir a lascívia e a concupiscência do corpo” (Lutero, 2019LUTERO, M. 2019. Escritos Seletos. Petrópolis, Vozes ., p. 27). Perder tempo com sociabilidades desnecessárias, com “conversa mole”, com o sono além do necessário à saúde, é absolutamente condenável em termos morais. O tempo é infinitamente valioso, porque cada hora perdida é trabalho subtraído ao serviço da glória de Deus. Como explica Weber, o trabalho, na doutrina medieval, era necessário apenas enquanto razão natural para a manutenção da vida do indivíduo e da coletividade. Na falta desse fim, cessa também a validade do preceito. O trabalho, na tradição, dizia respeito à espécie, e não a cada indivíduo. A forma de produtividade dos monges, ao contrário dos puritanos, consistia exclusivamente na multiplicação do tesouro da Igreja pela oração e pelo canto coral. Com a Reforma, nem mesmo a riqueza é dispensada desse preceito incondicional do trabalho na ordem capitalista:

No ascetismo intramundano é a vida diária o âmbito no qual o homem religiosamente dotado mostra sua graça e seu estado excepcional. Claro que não na vida diária tal como se dá, mas em atividades rotineiras disciplinadas e racionalizadas dentro da vida diária colocadas ao serviço do Senhor. A conduta diária, racionalmente elevada à categoria de vocação, torna-se o âmbito no qual se mostra o próprio estado de graça ( Weber, 2010 WEBER, M. 2010. Sociologia das Religiões. São Paulo, Ícone editora. , p. 35-6).

Em Lutero, a inserção dos homens nas profissões diz respeito a uma emanação da vontade divina, tornando-se uma obrigação religiosa para o indivíduo permanecer na posição social e nos limites que Deus o confinou. Deus exige não o trabalho em si, mas o trabalho profissional racional:

Para estarem seguros quanto à sua salvação, ricos e pobres deveriam trabalhar sem descanso, “trabalhar o dia todo em favor do que lhes foi destinado” pela vontade de Deus e glorificá-lo por meio de suas atividades produtivas. Estas tinham se tornado um dever a ser metodicamente executado, possuindo um fim em si mesmas. (...) Um dos resultados dessa ética eram operários disciplinados “que se aferravam ao trabalho como a uma finalidade de vida desejada por Deus ( Quintaneiro et al., 1995 QUINTANEIRO, T; BARBOSA, M; OLIVEIRA, M. 1995. Um Toque de Clássicos: Durkheim, Marx e Weber. Belo Horizonte, Editora UFMG. , p. 131-2).

A riqueza, por exemplo, no protestantismo, é reprovável apenas se fizer com que os indivíduos vivam em ócio, na preguiça ou no pecaminoso gozo da vida. Quando, porém, a riqueza advém enquanto desempenho do dever vocacional, ela é, sobretudo, um mandamento. Sobre isso, diz Weber:

Querer ser pobre, costumava-se argumentar, era o mesmo que querer ser um doente, seria condenável na categoria de santificação pelas obras, nocivo portanto à glória de Deus. E, ainda por cima, quem pede esmola estando apto ao trabalho não só comete o pecado da preguiça, como também afronta o amor ao próximo, diz a palavra do apóstolo ( Weber, 2004 WEBER, M. 2004. A Ética Protestante e o “Espírito” do Capitalismo. São Paulo, Companhia das Letras . , p. 148).

Weber enfatiza que o puritanismo porta em si o ethos da empresa racional burguesa e da organização racional do trabalho. Há a valorização religiosa do trabalho profissional mundano, sem descanso, continuado, sistemático, tal qual uma comprovação visível da regeneração de um ser humano e da autenticidade de sua fé. Weber fala de uma aspiração pelo reino do céu pela atividade lucrativa do trabalho empresarial. Esse estado de espírito favorecia o acúmulo capitalista e o desenvolvimento de uma economia racional, o que não significa, em Weber, uma mera relação causal e economicista, e sim afinidades eletivas entre o protestantismo e o capitalismo:

Seria, efetivamente, a racionalidade que diferenciaria o capitalismo ocidental de outras formas de capitalismo. Considerar o trabalho como um dever religioso, praticar o despojamento intramundos e se comportar racionalmente, esses constituem os elementos de éthos puritano que teriam proporcionado, juntamente com outros fatores, o desenvolvimento do capitalismo ocidental ( Willaime, 2012 WILLAIME, J. 2012. Sociologia das Religiões. São Paulo, Unesp . , p. 58).

O desencantamento do mundo significou, como veremos a seguir, o despojamento da pura magia, ou seja, uma desmagificação da atitude ou mentalidade religiosa tradicional (Pierucci, 2013PIERUCCI, A. 2013. O Desencantamento do Mundo: Todos os passos do conceito em Max Weber. 3.ed. São Paulo, Editora 34.). Enquanto o confucionismo deixava intacta a magia na sua significação positiva de salvação, “aqui toda a magia tornou-se demoníaca e apenas tinha valor religioso o racionalmente ético (Weber, 1986WEBER, M. 1986. Religião e racionalidade econômica. In: G. COHN (Org.). Weber: sociologia. 3. ed. São Paulo, Ática, p. 142-159., p.152). Segundo Weber, o desencantamento do mundo teve início com as profecias do judaísmo antigo, em conjunto com o pensamento científico helênico, que repudiava a superstição e o sacrilégio, como meios mágicos de busca da salvação. Por conseguinte, para Weber, o desencantamento do mundo encontrou, no protestantismo, sua conclusão, uma vez que o puritanismo adentrava na esfera da racionalidade econômica e no trabalho capitalista como condição necessária de acesso ao sagrado, tal qual uma teologia da vida cotidiana, havendo, ao mesmo tempo, um desencantamento do mundo e, dialeticamente, um novo encantamento à luz da sociedade capitalista e de seu mundo do trabalho.

Desencantamento e reencantamento do mundo: capitalismo como religião

Falar em desencantamento do mundo (Entzauberung der Welt), no sentido weberiano, significa dizer que o mundo se encontrava outrora encantado. O mundo de deuses e mitos foi despovoado, e sua magia substituída pelo conhecimento científico e pelo desenvolvimento de formas de organização racionais e burocratizadas (Quintaneiro et al., 1995QUINTANEIRO, T; BARBOSA, M; OLIVEIRA, M. 1995. Um Toque de Clássicos: Durkheim, Marx e Weber. Belo Horizonte, Editora UFMG.). O desencantamento se processa com uma vitória do racional sobre o mágico, no contexto do capitalismo moderno. A anterior primazia do religioso dá lugar à do econômico. Na caracterização típico-ideal weberiana, “o mundo mágico é um “jardim encantado”, em que os processos naturais têm sentido intrínseco e imanente” (Nobre, 2008NOBRE, M. 2008. Weber: racionalização e desencantamento do mundo. In: M. NOBRE (Org.). Curso livre de teoria crítica. Campinas, Papirus, p. 286-290., p. 287).

No protestantismo, com o desencantamento do mundo, o grau de racionalização é medido pelo distanciamento da magia, no sentido de uma desmagificação (Pierucci, 2013PIERUCCI, A. 2013. O Desencantamento do Mundo: Todos os passos do conceito em Max Weber. 3.ed. São Paulo, Editora 34.). Nas religiões tradicionais, não se trata de modificar o mundo, mas de retirar-se dele. Na ética protestante, ao contrário, a salvação vincula-se à vocação intramundana, isto é, à santificação da vida por meio do trabalho e da racionalização econômica. Há, nesse contexto, uma moralização religiosa do cotidiano e da conduta da vida prática, ou seja, uma ética intramundana que faz incidir o valor religioso na organização racional do trabalho (Pierucci, 2013PIERUCCI, A. 2013. O Desencantamento do Mundo: Todos os passos do conceito em Max Weber. 3.ed. São Paulo, Editora 34.). Daí, falarmos, ao mesmo tempo, de um reencantamento do mundo, agora na sociedade do trabalho capitalista.

Como Charles Taylor observa, a Reforma realizou, por assim dizer, uma afirmação da vida cotidiana. A vida humana, agora, “é definida em termos de trabalho e produção” (Taylor, 2013TAYLOR, C. 2013. As Fontes do Self: a constituição da identidade moderna. 4.ed. São Paulo, Edições Loyola., p. 276). Segundo Weber, o puritanismo imprimia a tudo um cunho objetivo, dissolvendo tudo em “empresas” racionais e relações “comerciais”, ao invés da tradição e da magia de outrora. O protestantismo opera dentro do mundo por meio do trabalho: “Tal ascetismo contrasta radicalmente com o misticismo, se este se inclina para a fuga do mundo (fuga contemplativa do mundo)” (Weber, 1980WEBER, M. 1980. Rejeições Religiosas do Mundo e suas Direções. In: M. WEBER. Os Pensadores. 2.ed. São Paulo, Abril Cultural., p. 241). Para o místico, o que importa é a compreensão do significado último, através da experiência mística. Esta requer uma humildade específica, uma minimização da ação, “uma espécie de existência religiosa incógnita no mundo” (Weber, 1980WEBER, M. 1980. Rejeições Religiosas do Mundo e suas Direções. In: M. WEBER. Os Pensadores. 2.ed. São Paulo, Abril Cultural., p. 241).

O catolicismo e as religiões orientais (as religiões da fraternidade, como denomina Weber) cultivavam uma ética voltada para a comunidade ou para o espírito da “vizinhança”, em que o indivíduo é apenas uma parte de um grande todo, e não uma instância originária e determinante como no puritanismo. As religiões da fraternidade tiveram cada vez mais dificuldade com o desdobramento das forças econômicas do capitalismo, numa tensão permanente: “as advertências contra o apego ao dinheiro e aos bens levaram-nos ao auge do tabu” (Weber, 1980WEBER, M. 1980. Rejeições Religiosas do Mundo e suas Direções. In: M. WEBER. Os Pensadores. 2.ed. São Paulo, Abril Cultural., p. 246). O protestantismo, ao contrário, racionalizou o trabalho neste mundo, como sendo uma graça de Deus. O desencantamento diz respeito, sobretudo, a um processo de racionalização religiosa, à medida que elimina a magia como caminho de salvação (Schluchter, 2014SCHLUCHTER, W. 2014. O desencantamento do mundo: seis estudos sobre Max Weber. Rio de Janeiro, Editora UFRJ.). O desencantamento do mundo, na modernidade capitalista, enquanto eliminação da magia como meio de salvação, não foi realizado na piedade católica com as mesmas consequências que na religiosidade puritana:

(...) o protestantismo poderá ser descrito como uma imensa redução do âmbito do sagrado na realidade, comparado com seu adversário católico. (...) Desaparece também o milagre da missa. Milagres menos rotineiros, embora não sejam completamente negados, perdem todo o significado real para a vida religiosa. Desaparece também a imensa rede de intercessão que une os católicos neste mundo com os santos e, até mesmo, com todas as almas. (...) o protestantismo despiu-se tanto quanto possível dos três mais antigos e poderosos elementos concomitantes ao sagrado: o mistério, o milagre e a magia. Esse processo foi agudamente captado na expressão “desencantamento do mundo” Berger, 1985 BERGER, P. 1985. O Dossel Sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo, Paulus. , p. 149-150).

Como defende Marcos Nobre, o resultado do processo de racionalização da religião e da conduta de vida é paradoxal, “porque leva a uma destruição do próprio postulado religioso que o moveu” (Nobre, 2008NOBRE, M. 2008. Weber: racionalização e desencantamento do mundo. In: M. NOBRE (Org.). Curso livre de teoria crítica. Campinas, Papirus, p. 286-290., p. 290). Michael Sandel observa que a ética protestante resultou numa ética meritocrática do trabalho capitalista, antes inexistente no próprio protestantismo originário: “O mérito expulsa a graça, ou a reformula à sua própria imagem” (Sandel, 2020SANDEL, M. 2020. A Tirania do Mérito: o que aconteceu com o bem comum? Rio de Janeiro, Civilização Brasileira., p. 79). Podemos observar, diante disso, uma interpenetração entre o sagrado e o profano na ética protestante. O desencantamento do mundo, em Weber, nunca significou o fim da religião em si, como muitas vezes se diz do pensador alemão, e sim a intrusão da racionalidade econômica, agora no âmbito da ética protestante, que, em parte, rompeu com visões anteriores, significando, todavia, uma continuação de toda a dimensão religiosa, mas à luz da racionalização econômica e da santificação do trabalho mundano e capitalista:

É como se o desencantamento significasse justamente o contrário do que dele se esperava, a saber, a saída de um mundo incapaz de sentido e o ingresso num universo significativamente ordenado pelas ideias religiosas e, com isso, tornando ele próprio pleno de sentido. (...) Faz sentido isto, pensar como desencantamento justamente o entrar para um mundo cheio de sentido? Para Weber, faz ( Pierucci, 2013 PIERUCCI, A. 2013. O Desencantamento do Mundo: Todos os passos do conceito em Max Weber. 3.ed. São Paulo, Editora 34. , p. 88).

Daí, falarmos de um desencantamento, como Weber conceitua, e, dialeticamente, de um reencantamento e de uma nova religiosidade no universo mundano do trabalho capitalista, como uma teologia da vida cotidiana, uma moralização da vida prática. As doutrinas protestantes rejeitaram a vocação especial para a vida monástica, afirmando o valor espiritual da vida leiga. Ao negar qualquer forma especial de vida como um locus privilegiado do sagrado, negaram a própria distinção entre sagrado e profano e, assim, afirmaram sua interpenetração: “O repúdio à vida monástica foi uma reafirmação da vida leiga como um locus central para a realização dos propósitos de Deus” (Taylor, 2013TAYLOR, C. 2013. As Fontes do Self: a constituição da identidade moderna. 4.ed. São Paulo, Edições Loyola., p. 282). Taylor, seguindo as intuições weberianas, enfatiza que a Reforma santificou o cotidiano; o sagrado se manifesta no interior da própria vida cotidiana pelo trabalho e racionalização econômica, tal qual um chamado de Deus, algo bem diferente das visões tradicionais religiosas: “A afirmação da vida ordinária é o fundo do lugar central da economia nas nossas vidas” (Taylor, 2010TAYLOR, C. 2010. Imaginários Sociais Modernos. Lisboa, Edições Texto & Grafia., p. 78). A Reforma dessacralizou a magia dos tempos antigos para, em seguida, reafirmá-la no cotidiano do mundo moderno, por meio do trabalho capitalista tal qual um chamado divino. Como argumenta Jean-Paul Willaime (2005WILLAIME, J. 2005. As reformas protestantes e a valorização religiosa do trabalho. In: D. MERCURE; J. SOURK (Orgs.). O Trabalho na História do Pensamento Ocidental. Petrópolis, Editora Vozes ., p. 65), os reformadores valorizam mais “a santidade no mundo do que a santidade fora do mundo”, tal qual uma vocação religiosa exercida no mundo secular. Já Hans-Peter Müller (2005MÜLLER, H. 2005. Trabalho, Profissão e “Vocação”: o conceito de trabalho em Max Weber. In: D. MERCURE; J. SOURK (Orgs). O Trabalho na História do Pensamento Ocidental. Petrópolis, Editora Vozes.) afirma que Lutero restabeleceu, por isso, a simetria entre a vita contemplativa e a vita activa.

Em suma, a vida cotidiana, com a Reforma, é elevada à dimensão divina, não havendo uma separação rigorosa entre o sagrado e o profano, uma vez que o próprio universo do profano é elevado ao divino, com a manifestação do sagrado pelo trabalho capitalista. Se, primeiramente, o desencantamento do mundo dizia respeito ao afastamento da magia à medida que o capitalismo triunfava na modernidade, submetendo tudo à lógica do mercado, por outro lado, há também uma inserção do sagrado no cotidiano pela racionalidade econômica e o trabalho capitalista, em que a ideia de Deus passa a agir através da ordem econômica.

Há, portanto, uma interseção entre o sagrado e o profano, configurada através da ética protestante e o espírito do capitalismo, como defende Weber. É justamente esse processo que permitiu Walter Benjamin (2013BENJAMIN, W. 2013. O capitalismo como religião. In: W. BENJAMIN, O capitalismo como religião. São Paulo, Boitempo, p. 21-25.) considerar o capitalismo como propriamente uma religião. Ele, num pequeno texto chamado “O capitalismo como religião”, como defende Michael Löwy (2013LÖWY, M. 2013. Prefácio: Walter Benjamin crítico da civilização. In: W. BENJAMIN. O capitalismo como religião. São Paulo, Boitempo Editorial, p. 7-19.), levará a análise weberiana adiante, enfatizando o capitalismo como religião.

“O capitalismo como religião” é radicalmente anticapitalista (Löwy, 2013LÖWY, M. 2013. Prefácio: Walter Benjamin crítico da civilização. In: W. BENJAMIN. O capitalismo como religião. São Paulo, Boitempo Editorial, p. 7-19.). Em 1921, Benjamin redige tal fragmento, inspirado pelo livro de Ernst Bloch sobre Thomas Münzer, publicado nesse mesmo ano. A reflexão mais impressionante sobre os desdobramentos da temática weberiana, como defende Löwy, é justamente a de Benjamin: “trata-se de uma tese claramente mais radical que a de Weber, apesar de se apoiar em muitos dos elementos da análise weberiana” (Löwy, 2014LÖWY, M. 2014. A Jaula de Aço: Max Weber e o marxismo weberiano. São Paulo, Boitempo Editorial., p. 98). Em “O capitalismo como religião”, Benjamin tematiza o capitalismo como uma condição religiosa. Ou seja, o capitalismo não é apenas condicionado pela religião, mas um fenômeno essencialmente religioso:

O capitalismo deve ser visto como uma religião, isto é, o capitalismo está essencialmente a serviço da resolução das mesmas preocupações, aflições e inquietações a que outrora as assim chamadas religiões quiseram oferecer resposta. A demonstração da estrutura religiosa do capitalismo, que não é só uma formulação condicionada pela religião, como pensou Weber, mas um fenômeno essencialmente religioso ( Benjamin, 2013 BENJAMIN, W. 2013. O capitalismo como religião. In: W. BENJAMIN, O capitalismo como religião. São Paulo, Boitempo, p. 21-25. , p. 21).

Para Benjamin, o capitalismo é uma religião puramente cultual; todas as coisas só adquirem significado na relação imediata com o culto e sua duração permanente, como em qualquer outra religião. Para o capitalismo, não há dias normais; não há dia que não seja festivo; ele igualmente é um sistema culpabilizador. O capitalismo, diz Benjamin (2013BENJAMIN, W. 2013. O capitalismo como religião. In: W. BENJAMIN, O capitalismo como religião. São Paulo, Boitempo, p. 21-25., p. 22), é portador de uma “monstruosa consciência de culpa”. Benjamin (2013BENJAMIN, W. 2013. O capitalismo como religião. In: W. BENJAMIN, O capitalismo como religião. São Paulo, Boitempo, p. 21-25., p. 22) segue a perspectiva weberiana do desencantamento do mundo, porém indo além dela, afirmando que “a transcendência de Deus ruiu. Mas o sagrado não está morto; ele foi incluído no destino humano”. Benjamin compara as imagens dos santos das religiões, com as cédulas bancárias de diversos Estados. Na época da Reforma, diz Benjamin, o cristianismo não favoreceu o surgimento do capitalismo, mas se transformou no próprio capitalismo, com seus ritos, cultos e mitos; daí Benjamin denominar o capitalismo como religião. Ele está essencialmente a serviço da resolução das mesmas preocupações, aflições e inquietações a que outrora as religiões tradicionais quiseram oferecer resposta.

Nesse contexto, segundo Löwy (2005LÖWY, M. 2005. Walter Benjamin: aviso de incêndio: uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. São Paulo, Boitempo Editorial.), há, em Benjamin, uma dialética do material e do espiritual, que vai além do modelo mecanicista da infra e da superestrutura. O que está em jogo é material, mas “a motivação dos atores é espiritual” (Löwy, 2005LÖWY, M. 2005. Walter Benjamin: aviso de incêndio: uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. São Paulo, Boitempo Editorial., p. 59). Todavia, segundo Byung-Chul Han (2020HAN, B. 2020. La desaparición de los rituales: uma topologia del presente. Barcelona, Herder Editorial.), o capitalismo não pode ser visto como uma religião. Han opõe-se à perspectiva do capitalismo como religião. Esta, segundo ele, conservaria elementos incompatíveis com o capitalismo, como a valorização da comunidade, da contemplação ao sagrado, do tempo não acelerado e da fuga do mundo do trabalho, através de seus rituais que, de acordo com Han, não podem ser colocados, por isso, na lógica do capitalismo, sendo, em realidade, a antítese do capital e de seu mundo do trabalho.

Contudo, em sua análise, Han se limita à reflexão do ethos católico pré-moderno e das religiões orientais, não mencionando, na modernidade, a mudança de paradigma da Reforma. Esta, como vimos, realiza um tipo de interseção entre o sagrado e o profano, à medida que sua teologia se funda justamente na ideia do trabalho tal qual uma condição essencial da religiosidade protestante. Han trabalha numa relação dicotômica entre o sagrado e o profano, não mencionando ou refletindo a particularidade do ethos protestante que conciliou ambas as dimensões em sua teologia. Han (2020HAN, B. 2020. La desaparición de los rituales: uma topologia del presente. Barcelona, Herder Editorial.) enfatiza que o trabalho é uma atividade profana, argumentando que o repouso e o trabalho, para as religiões de um modo geral, representam formas fundamentalmente distintas da existência, havendo, em ambos, uma diferença ontológica, melhor dizendo, uma diferença teológica, não conciliável.

Porém, a salvação, no capitalismo, ocorre no mundo do trabalho que, com a Reforma, tem seu cotidiano santificado e abençoado por Deus, não havendo salvação fora dessa esfera. O próprio Weber, como vimos, menciona acerca de uma “cosmologia capitalista”. A santificação ocorre, com a Reforma, no próprio mundo do trabalho cotidiano, haja vista que o sagrado entra na esfera profana da economia capitalista, à medida que, ao mesmo tempo, há um reencantamento do mundo à luz das novas estruturas sociais e econômicas do capitalismo que, por sua vez, estrutura-se como uma religião, tal qual defende Benjamin, com seus ritos, cultos e dogmas.

Em Weber, o processo de desencantamento do mundo e seu contínuo reencantamento permanecem entrelaçados: “(...) o desencantamento e o reencantamento estimulam-se mutuamente” (Schluchter, 2014SCHLUCHTER, W. 2014. O desencantamento do mundo: seis estudos sobre Max Weber. Rio de Janeiro, Editora UFRJ., p.46). O cotidiano do trabalho é reencantado no ethos do protestantismo, que concilia, ao contrário das religiões tradicionais, a graça de Deus com a dimensão profana do trabalho, tal qual uma condição fundamental de sua teologia.

Considerações Finais

Na esteira de Weber, podemos dizer que o desencantamento significou, primeiramente, a saída da magia, em contraposição à entrada do trabalho capitalista e da racionalidade econômica pela ética protestante que, num segundo momento, santificou a dimensão do profano, teologizando a própria vida cotidiana, haja vista que a salvação e a graça ocorrem por meio da entrada do trabalho capitalista. De acordo com Weber, à medida que o cotidiano, na modernidade, foi tomado por uma racionalização cultural e social, dissolveram-se as formas de vida tradicionais.

Há, como vimos, afinidades eletivas entre a modernidade capitalista e o ethos da Reforma, proporcionando uma teologia que santificou o trabalho temporal e capitalista, organizando uma ascese no mundo e vinculando a glória de Deus à inserção dos homens no mundo do trabalho. No protestantismo, Deus exige não o trabalho em si, mas o trabalho profissional racional. O desencantamento do mundo significou o despojamento da pura magia, enquanto as religiões tradicionais deixavam intacta a magia na sua significação positiva de salvação; já no protestantismo toda a magia tornou-se demoníaca, apenas tendo valor religioso o racionalmente ético.

Há, portanto, uma moralização religiosa do cotidiano e da conduta da vida prática, isto é, uma ética intramundana que faz incidir o valor religioso na organização racional do trabalho. Posto isso, podemos falar de um desencantamento como Weber diagnosticou e, ao mesmo tempo, um reencantamento do mundo, agora na sociedade do trabalho capitalista. Numa palavra, a vida cotidiana, com a Reforma, é elevada à dimensão divina, não havendo uma separação rigorosa entre o sagrado e o profano, uma vez que o próprio âmbito do profano é elevado ao divino, com a manifestação do sagrado pelo trabalho capitalista.

De um desencantamento, como Weber conceitua, passamos, dialeticamente, para um reencantamento, haja vista uma nova teologia da vida cotidiana, uma moralização da vida prática. Isto, por conseguinte, é radicalizado em Benjamin, ao tratar o capitalismo enquanto religião. Há, nesse sentido, em Weber, uma relação dialética entre desencantamento e reencantamento do mundo, aprofundada também por Benjamin ao conceituar o capitalismo como religião.

Referências

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    Ver em: PIERUCCI, A. Apresentação. In: WEBER, M. A Ética Protestante e o “Espírito” do Capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004PIERUCCI, A. 2004. Apresentação. In: M. WEBER. A Ética Protestante e o “Espírito” do Capitalismo. São Paulo, Companhia das Letras , p. 7-15., p. 7-15.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Set 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    01 Maio 2021
  • Aceito
    10 Nov 2021
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