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PEREZ, Léa Freitas. Viagens textuais: da escritura da experiência na experiência da escritura. Porto Alegre: Medianiz, 2016. 256 p.

PEREZ, Léa Freitas. . Viagens textuais: da escritura da experiência na experiência da escritura. Porto Alegre: Medianiz, 2016. 256 p.

O princípio norteador das Viagens textuais se assenta no incontornável tema da escritura, elemento que conforma a tradição intelectual ocidental e que se encontra nas bases de constituição da própria antropologia moderna enquanto disciplina. É propriamente através da escritura que uma intrincada cartografia de palavras, de textos, de livros e de discursos é delineada pela autora durante seu percurso.

Em dois eixos que se articulam, o livro trata da escritura de si e do outro, cujo movimento é o da escritura da experiência na experiência da escritura. De tal modo que, em um primeiro plano, o que sobrevém é um tom declaradamente confessional, que mescla memória, lugares, perspectivas e amizades. Nesse sentido, a autora situa o ato de escrever na ordem do sagrado, ao mesmo tempo em que opera, seguindo a proposta de Giorgio Agamben, um exercício de profanação da “atividade mesma do autor, ou seja, ‘transformando o ato mesmo de conhecer e de escrever em paródia da vida mesma’” (p. 18).

Já o segundo plano é constituído por textos cuja matéria de reflexão se funda em outros textos perfazendo distintas camadas de autores e de obras que demarcam a trajetória intelectual e de vida da autora: Darcy Ribeiro, Pierre Sanchis, Jacques Derrida, James Clifford, Max Weber, os pensadores da Escola de Chicago, Claude Lévi-Strauss, Gianni Vattimo e Gil Vicente. A estrutura do livro se funda, portanto, a partir de uma escritura com tais textos e através deles.

A apresentação que a abre as Viagens textuais enuncia, por Bruno Reinhardt, que a escritura de Perez é “uma etnografia sobre a vida dos textos, guiada por um determinado estilo de escritura dotado de uma ética e de uma temporalidade específicas: o que eu chamaria de uma forma festiva de luto” (p. 12). Assim dito, o livro expõe a relação intrínseca que há entre morte e escritura, seguindo o pensamento derridiano. Nessa relação, grosso modo, o texto uma vez produzido, passa a subsistir ao próprio autor, tornando-se recurso por meio do qual a linguagem se faz presente.

O próprio nascimento do campo disciplinar da antropologia está ancorado nessa questão, ao assentar-se no resgate escrito da cultura oral de outros povos frente ao contexto de ampliação dos domínios coloniais. Contudo, ao tomar para si a autoridade discursiva da cultura do outro através do texto, no que Clifford denominou de alegoria do resgate, a antropologia obtém dela apenas os retalhos.

De modo distinto àquela operada pelo resgate, a perspectiva que Perez busca imprimir em sua obra vai ao encontro, nos rastros de Marcel Mauss, a uma “escritura dadivosa”, optando, “ao invés de meramente resgatar fragmentos pertencentes a outros tempos, trazê-los à vida, ao centro da vida do Ocidente, uma estratégia transgressora” (p. 14).

Antes de adentrar propriamente nos capítulos, a autora procede com uma nota de advertência ao leitor, sempre chamado à participação ao longo da obra, a respeito do conteúdo e da forma que orientam a produção textual, por exemplo, através do uso de galicismos, das longas notas de pé de página e das citações livres e diretas dos autores com os quais dialoga. É com essas técnicas, portanto, que Perez diz bordar seu lencinho de amor, em referência ao chamado lenço dos namorados, um artefato da cultura portuguesa produzido a partir de tecido de linho ou algodão e ricamente bordado em estilo livre com versos de amor.

Constituído por textos apresentados sob a forma de palestras, de mesas-redondas ou de artigos publicados em periódicos, as Viagens textuais abarcam um total de sete capítulos. O capítulo 1 se desdobra no diálogo com a escritura de Darcy Ribeiro, notadamente de sua obra O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil (Ribeiro, 1995RIBEIRO, D. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.), tratando “o material tal como ele se apresenta ao longo do livro” (p. 30), ou seja, examinando-o como múltiplos livros dentro de apenas um, sendo a uma só vez um panorama sobre a formação e configuração do povo brasileiro, uma declaração política e um legado intelectual (p. 30-31).

O capítulo 2, produzido em coautoria com André Tavares dos Santos, é composto de uma escritura que busca percorrer em profundidade a escritura de Pierre Sanchis, através da sua tese de doutorado, o clássico Arraial, festa de um povo: as romarias portuguesas (Sanchis, 1983SANCHIS, P. Arraial, festa de um povo: as romarias portuguesas. Lisboa: Dom Quixote, 1983.), obra fundante de sua antropologia, e ponto de partida para pensar questões centrais da disciplina tais como: permanência e mudança, tradição e modernidade, estrutura e história, através da análise das festas de romaria.

A escritura do terceiro capítulo do livro propõe refletir sobre dois horizontes analíticos a respeito do fenômeno urbano no Ocidente moderno, a partir das proposições de Max Weber e dos pensadores da Escola de Chicago. Tal enfoque, que compõe as argumentações teóricas da tese de doutorado da autora, é tratado “enquanto duas possibilidades analíticas e interpretativas de abordar a cidade, nas quais a sociologia e a história se encontram de um modo admirável” (p. 65).

Sendo um texto produzido junto a Bruno Reinhardt, o capítulo 4 é o que aborda mais propriamente a temática da escritura ao estabelecer como questão o foco que é conferido ao caráter escritural da etnografia nos debates antropológicos contemporâneos. Para tecer tal discussão, os autores se sustentam, então, em dois autores cujas considerações sobre o tema são exemplares: James Clifford e Jacques Derrida; sendo a explanação fundamentada a partir da abordagem deste último autor sobre o texto “Lição de escritura” de Lévi-Strauss.

Lévi-Strauss volta a ser objeto de reflexão no quinto capítulo, onde Perez desdobra sua escritura sobre o texto O suplício de Papai Noel (Lévi-Strauss, 2008LÉVI-STRAUSS, C. O suplício de Papai Noel. São Paulo: Cosac Naify, 2008.), colocando o foco “na textualidade própria do texto seguindo os passos de sua construção e de sua argumentação” (p. 114), que se assenta na análise dessa festividade natalina, especialmente no contexto do pós-guerra francês, no qual sobrevieram inevitáveis mudanças nos costumes.

Por sua vez, o capítulo 6 é dedicado à escritura do filósofo Gianni Vattimo, especialmente de sua obra Acreditar em acreditar (Vattimo, 1988VATTIMO, G. Acreditar em acreditar. Lisboa: Relógio D’Água, 1988.), na qual Perez expõe o argumento do autor a respeito da religião na contemporaneidade que, em linhas bastante gerais, gira em torno da ideia da existência de uma ligação intrínseca entre a finitude da metafísica e o princípio cristão da kenosis - a encarnação de Deus em Cristo - que conduz a um processo de enfraquecimento (secularização) (p. 131, 139, 141).

Sendo o único texto inédito da publicação, o sétimo e último capítulo é aquele de maior acento pessoal e versa sobre o Breve sumário da história de Deus, da autoria de Gil Vicente, com o qual a autora se deparou após assistir a uma montagem teatral desse autor natalino durante sua estadia em Lisboa no ano de 2010. Os elementos que demarcam essa reflexão sobre o texto vicentino se fundam, portanto, na experiência de si, no espetáculo e na vida, além da própria Súmula da programação do Teatro Nacional D. Maria II, “uma espécie de breve curriculum vitae de cada personagem e do ator que a encarna; provocando um belo efeito de indiscernibilidade ator-personagem” (p. 166).

Ao fim do trajeto das Viagens textuais fica manifesto, através de uma escritura de forte cariz festivo, logo viva, de Léa Perez, que “o mundo nunca esteve atrás das palavras, o mundo foi e é constituído pelas palavras, afinal no princípio era o verbo” (p. 184); e que o texto, apenas aparentemente morto, nunca esgota completamente sua capacidade de com ele aprender e por ele ser apreendido.

E findo o percurso, nada mais vívido para o leitor do que ser convidado a compartilhar com a autora, já nas derradeiras páginas da obra, de seu “Da Vírgula e suas versões”; uma história de família que compõe suas reminiscências infantis, e que desvela uma narrativa que atravessa, tal como uma viagem, diferentes gerações e glosas.

Referências

  • LÉVI-STRAUSS, C. O suplício de Papai Noel São Paulo: Cosac Naify, 2008.
  • RIBEIRO, D. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
  • SANCHIS, P. Arraial, festa de um povo: as romarias portuguesas. Lisboa: Dom Quixote, 1983.
  • VATTIMO, G. Acreditar em acreditar Lisboa: Relógio D’Água, 1988.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2017
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