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Lines: a brief history

RESENHAS

Rafael Henrique Teixeira* * Doutorando em Antropologia Social.

Universidade Federal de São Carlos – Brasil

INGOLD, Tim. Lines: a brief history. London: Routledge, 2007. 188 p.

A leitura de Lines: a brief history traz em seu bojo a necessidade de um esforço de descentramento. Recorrendo a modos de agir e pensar os mais distantes e variados, é acima de tudo a alguns de nossos hábitos e concepções mais arraigados que Tim Ingold se dirige.

O livro se inicia com uma questão que anuncia a amplitude da temática abordada. "O que caminhar, tecer, observar, cantar, contar uma história, desenhar e escrever tem em comum? A resposta é que procedem ao longo de linhas de um tipo ou outro" (p. 1).1 1 Todas as citações diretas de Ingold têm tradução minha. O objetivo de Ingold é o estabelecimento de uma história das linhas, na medida em que o ato de fabricá-las subsumiria todos os aspectos da vida cotidiana: "a vida [ ] não é confinada no interior de pontos, procede ao longo de linhas" (p. 104).

No entanto, foi exatamente na contramão desse imperativo da atividade humana e não-humana – da atividade vital de modo geral – que se deram as transformações de que o livro trata.

A linha, no curso da história, foi fragmentada em relação ao movimento contínuo que lhe dá origem, seja esse qual for: um gesto, o trajeto de um viajante, ou a evolução da vida. Ela passa a existir somente enquanto um canal de pontos conectados, composição que possibilita, num processo que vai da geometria euclidiana à arquitetura renascentista, que a linha se torne reta. "Nas sociedades ocidentais, linhas retas são onipresentes [ ] ícone virtual da modernidade, índice do triunfo do racional e de um projeto intencional sobre as vicissitudes da natureza" (p. 152). Não menos importante ao desenvolvimento da exposição do que a constatação da generalidade das linhas e da natureza das transformações pelas quais passou, é a impossibilidade de separar uma história das linhas das transformações correlatas pelas quais passou a relação entre linhas e superfícies.

Com esses objetivos em mente, Ingold leva adiante sua investigação, recorrendo a uma miríade de temáticas e paisagens etnográficas "ocidentais" e "não-ocidentais", bem como a um grande número de elementos visuais que se prestam à argumentação.

Começando pela escrita, Ingold mostra que a leitura, da Antiguidade Grega à Idade Média, voltada a um texto que repousava sobre o desenho de linhas, consistia em seguir um gesto deixado pela mão. No entanto, com o surgimento das modernas tecnologias de impressão, não há mais traços a seguir na página impressa. "O olho do leitor observa a página [ ] mas não a habita" (p. 29). Contemplando a página, ele agrupa os fragmentos, letras em palavras, palavras em frases, frases em uma composição completa. Elementos reunidos de modo a formar um traçado, mas cujas linhas resultantes são conectoras. Portanto, "não é a própria escrita que faz a diferença. É mais o que acontece com ela quando a linha da letra que flui do manuscrito é substituída pelas linhas que conectam um plano pré-composto" (p. 91).

Transformação correlata teria ocorrido nos modos de habitar a superfície do mundo. A vida é vivida ao longo de trajetórias, e trajetórias dão origem a linhas. Contudo, a prática do transporte converte cada linha de movimento num equivalente de uma linha ponteada. Para o viajante, as paradas que ligam destinos sucessivos não são traços de movimento, mas conectores de ponto a ponto. "Ir ao longo de, contudo, é tecer um caminho através do mundo mais do que dirigir-se de ponto a ponto através da superfície" (p. 79).

Afirmações aparentemente inocentes, não fosse o fato de que o "transporte é distinguido não pelo emprego de meios mecânicos, mas pela dissolução da íntima ligação que, na caminhada, liga locomoção e percepção" (p. 78). O viajante transportado se torna um passageiro, não se move, é movido de um lugar a outro. Ele é dissociado do processo de autoconstituição inerente ao movimento, bem como do ordenamento progressivo da realidade sensitória ao longo do trajeto percorrido. A fragmentação das linhas de movimento resulta num conceito de lugar como o terreno no interior do qual toda a vida seria contida, suprimindo toda experiência incorporada no movimento.

Ingold prossegue afirmando que aquilo que o pensamento moderno fez com a noção de lugar, o evolucionismo darwiniano fez com a vida. "Cada organismo em uma linha existe unicamente por si mesmo, para preencher um projeto coincidente com os limites de sua própria existência [ ] essa concepção darwiniana não é absolutamente um processo vital." (p. 114). A vida, nos moldes concebidos por Ingold, é um tornar-se. Traçando seus caminhos pelo emaranhado do mundo, humanos e não-humanos criam-se e recriam-se a si mesmos na imanência de suas mútuas relações, bem como contribuem com seus movimentos ao envolvente tecido em que se encontram inseridos.

"[ ] nosso entendimento da evolução poderia ser irrevogavelmente alterado. Isso poderia nos levar a uma ilimitada visão do processo evolucionário, e de nossa própria história em seu interior, na qual habitantes, através de suas próprias atividades, continuamente forjam as condições de suas próprias vidas mutuamente" (p. 3). Nessa altura da exposição, Ingold realiza um paralelo com a teoria antropológica. Se Darwin insere a vida no interior de pontos, antropólogos fariam o mesmo ao desenharem diagramas de parentesco e descendência. As linhas do parentesco reúnem e conectam, mas, como no modelo darwiniano, não exprimem a linha da vida.

Dessa maneira, Ingold mostra o modo como o "Ocidente" moderno chega ao termo da circunscrição da vida no interior de pontos. As linhas de transporte, acima mencionadas, conectam pontos no espaço sobre algum território arbitrariamente delimitado; enquanto linhas de transmissão (como figuram na biologia darwiniana ou uma sequencia parental ancestral-descendente) conectam indivíduos numa sequencia diacrônica.

Em um nível mais geral, a linearidade da linha, resultado último de uma fragmentação que lhe fornece as condições de possibilidade, passa a ser associada com a cultura em detrimento da natureza. "No lugar de uma infinita variedade de linhas – e vidas – que nos são apresentadas na experiência fenomenal, fomos deixados com apenas duas grandes classes: linhas que são retas e linhas que não são. As primeiras são associadas com a humanidade e a cultura, a segunda com a animalidade e a natureza" (p. 155). Mas, de todas as linhas resultantes das atividades de humanos e de não-humanos, apenas uma minoria delas possui o caráter linear que as imagens do pensamento "ocidental" nos faria supor. A hegemonia das linhas retas é um fenômeno da modernidade, não da vida em geral, tendo, por isso, alguma coisa de fundamentalmente artificial quando afirma sua generalidade.

O trabalho empreendido por Ingold se insere no movimento de uma antropologia contemporânea que visa, pelo recurso à alteridade, realizar uma antropologia de nós mesmos. A história das linhas por ele empreendida não possui tom evolucionista ou teleológico, tampouco reforça distinções categóricas entre "Nós" versus "Eles". As linhas resultantes de nossas próprias práticas cotidianas de habitar o mundo conservam ainda seu aspecto dinâmico e ilimitado, pouco afeitas que permanecem à fragmentação que hábitos e pensamentos modernos lhe impõem: "[ ] como a vida, a linha não tem fim. E como na vida, o que importa não é o destino final, mas todas as coisas interessantes que ocorrem ao longo do caminho" (p. 170).

Eis que o trabalho empreendido por Ingold cumpre uma dupla tarefa: através do argumento da generalidade das linhas, rompe com distinções como "Nós" versus "Eles"; e circunscrevendo o processo de fragmentação e linearização da linha à história do pensamento "Ocidental", mostra a história do que podemos chamar de uma moderna educação dos sentidos. Mostra, além disso, que as coisas não são apenas aquilo que parecem ser. A linearidade e fragmentação não esgotam o caráter das linhas que resultam e constituem as atividades de humanos e não-humanos, bem como não dá conta de pôr fim a uma linha que não é linear, a linha na qual prossegue a vida e na qual se desenvolvem e realizam os mais distintos "Outros" que o livro nos apresenta.

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    Doutorando em Antropologia Social.
  • 1
    Todas as citações diretas de Ingold têm tradução minha.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Jun 2009
    • Data do Fascículo
      Jun 2009
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