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Ética e epidemiologia

Ethics and epidemiology

Resumos

As ações humanas acontecem na confluência de circunstâncias em meio às quais é preciso discernir o modo correto de agir. A ética situa-se no campo do saber prático, do conhecimento acerca do que é contingente. A ética é do domínio dos juízos morais ou juízos de valor. O desencantamento do mundo contemporâneo tem sua contrapartida no esforço para recompor o interesse pela ética. As relações entre saúde pública e direitos humanos são principalmente de três ordens: a busca do equilíbrio entre o bem coletivo e os direitos individuais; os métodos e técnicas para identificar as violações aos direitos humanos e avaliar seu impacto negativo; e, a vinculação entre proteção dos direitos humanos e promoção da saúde. As relações entre ética e epidemiologia vão além dos aspectos éticos relacionados à pesquisa em seres humanos. Desdobram-se em compromissos políticos, práticas nos serviços de saúde e produção de conhecimentos.

ética; saber prático; epidemiologia; direitos humanos


Human actions take place at the confluence of circumstances that require us to discern the proper way to act. Ethics falls within the terrain of practical knowledge, of knowledge about what is contingent. It belongs to the domain of moral judgments or value judgments. The counterpart of disenchantment with our contemporary world lies in an effort to re-establish an interest in ethics. There are basically three orders of relations between public health and human rights: the quest for balance between the collective good and individual rights; methods and techniques for identifying human rights violations and assessing their negative impact; and the tie between protecting individual rights and promoting health. The relationship between ethics and epidemiology goes beyond the ethical aspects involving research on human beings to encompass political commitments, practices within health services, and the production of knowledge.

ethics; practical knowledge; epidemiology; bioethics


ANÁLISE

Ética e epidemiologia

Ethics and epidemiology

Rita Barradas Barata

Departamento de Medicina Social Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo Rua Dr. Cesário Motta Jr. 61 5º andar 01221-020 São Paulo – SP – Brasil rita.barata@fcmscsp.edu.br

RESUMO

As ações humanas acontecem na confluência de circunstâncias em meio às quais é preciso discernir o modo correto de agir. A ética situa-se no campo do saber prático, do conhecimento acerca do que é contingente. A ética é do domínio dos juízos morais ou juízos de valor. O desencantamento do mundo contemporâneo tem sua contrapartida no esforço para recompor o interesse pela ética. As relações entre saúde pública e direitos humanos são principalmente de três ordens: a busca do equilíbrio entre o bem coletivo e os direitos individuais; os métodos e técnicas para identificar as violações aos direitos humanos e avaliar seu impacto negativo; e, a vinculação entre proteção dos direitos humanos e promoção da saúde. As relações entre ética e epidemiologia vão além dos aspectos éticos relacionados à pesquisa em seres humanos. Desdobram-se em compromissos políticos, práticas nos serviços de saúde e produção de conhecimentos.

Palavras-chave: ética; saber prático; epidemiologia; direitos humanos.

ABSTRACT

Human actions take place at the confluence of circumstances that require us to discern the proper way to act. Ethics falls within the terrain of practical knowledge, of knowledge about what is contingent. It belongs to the domain of moral judgments or value judgments. The counterpart of disenchantment with our contemporary world lies in an effort to re-establish an interest in ethics. There are basically three orders of relations between public health and human rights: the quest for balance between the collective good and individual rights; methods and techniques for identifying human rights violations and assessing their negative impact; and the tie between protecting individual rights and promoting health. The relationship between ethics and epidemiology goes beyond the ethical aspects involving research on human beings to encompass political commitments, practices within health services, and the production of knowledge.

Keywords: ethics; practical knowledge; epidemiology; bioethics.

Antecedentes históricos

A reflexão sobre a Ética, no mundo ocidental, tem início na Grécia, por volta do século V a.C., coincidindo com a crise das cidades-Estado gregas. No auge da democracia ateniense, durante o governo de Péricles, a reflexão sobre a ética não era necessária porque os valores comunitários coincidiam com os valores individuais. Assim sendo, a moralidade e a legalidade se confundiam, não havendo necessidade da mediação ética (Heller, 1983).

Sócrates será um dos primeiros filósofos gregos a refletir sobre os problemas éticos. A consciência da crise da democracia ateniense e a recusa do filósofo em aceitar a separação entre os interesses individuais e os interesses da sociedade o levarão a formular essas questões da perspectiva de um "dever ser" baseado na moralidade abstrata. Da abstração das condições objetivas, da negação da complexidade do psiquismo humano e da desconsideração da relatividade intrínseca nas escolhas morais resulta a formulação abstrata dos valores morais. Por isso, a reflexão socrática será conhecida como racionalismo ético (Heller, 1983).

Platão, diante da contradição entre a ética social, que nesse período, na sociedade ateniense é caracterizada pelo cinismo, e a sua concepção da existência de valores absolutos, como o Bem, na esfera transcendental das idéias, acaba por postular a noção de uma moralidade subjetiva oposta à legalidade vigente. Se a sociedade, por culpa da crise e do mau governo dos Trinta tiranos, desviou-se da realização dos ideais que a haviam sustentado no seu período de ouro, resta aos sábios a defesa de uma moralidade subjetiva, individual, ainda que contrária aos valores coletivos. Como o bem é tomado como coisa em si, a ética é vista como pertencendo à ordem supra-terrena, ou seja, externa à vida cotidiana (Heller, 1983).

Somente com Aristóteles a ética será tratada como pertencendo à ordem do cotidiano. O bem é um fim que o homem pretende realizar em seus atos. O homem aristotélico não é um homem moral em estado puro, mas um homem concreto que na diversidade de seus atos opera algumas vezes bem e, outras vezes, mal. Posto que o bem é sempre uma ação orientada para um fim, é preciso, a cada vez, avaliar sua factibilidade. A ética agora pertence ao campo da práxis, da experiência humana, ao mundo da atividade prática (Heller, 1983).

Para situar a ética entre as dimensões da existência é necessário compreender a que conjunto de ações ou fenômenos ela faz referência. As ações humanas acontecem na confluência complexa de circunstâncias em meio às quais é preciso discernir o modo correto de agir. As ações humanas não estão, a priori, sujeitas a determinações estritas, muito embora a busca do modo correto de agir implique estabelecer alguma forma de normatividade (Silva, 1998).

A ética situa-se no campo do saber prático, do conhecimento acerca do que é contingente. A ética é do domínio dos juízos morais ou juízos de valor, sensíveis à persuasão, sujeitos à influência das emoções, suscetíveis aos preconceitos e submetidos à complexidade de interesses (Heller, 1983).

O saber prático não é simplesmente a resultante da aplicação do saber teórico; é um outro saber. Portanto, a ética "não é um conhecimento de segundo grau, uma ciência incompleta ou um tipo de certeza flutuante" (Silva, 1998). A práxis humana se diferencia do restante da natureza exatamente pela presença do valor. Os juízos de valor caracterizam-se por referirem-se a escolhas, isto é, ações nas quais estão implícitos: o exercício da vontade, da autonomia e da liberdade (Silva, 1998).

A ética, segundo Agnes Heller (1983), constitui uma relação social, relação de mediação entre os imperativos exteriores – representados pelos costumes, sistema de normas concretas e abstratas, opinião pública, que compõem a esfera da legalidade – e a adesão ou rechaço do indivíduo aos conteúdos morais desse sistema de legalidade, que constitui a esfera da moralidade. As ações ou julgamentos éticos resultam das relações que se estabelecem entre situações sociais objetivas, a vontade subjetiva dos sujeitos envolvidos na ação e a liberdade de escolha desses mesmos sujeitos.

Com a dissolução da comunidade primitiva, as normas concretas se diferenciam progressivamente das normas abstratas, e nesse processo surgem os interesses particulares havendo assim a necessidade de mediação pela ética para a formulação de juízos morais. A dificuldade está justamente no estabelecimento de parâmetros para as ações que envolvem a atribuição de valor, pois tais atividades são contingentes, estão sujeitas aos efeitos da persuasão, se deixam influenciar pelas emoções, sendo completamente impossível demonstrar que estão corretas.

A ética busca introduzir normatividade naquilo que é circunstancial, através da mediação entre o bem absoluto, ou melhor, a idéia do bem, e as ações concretas particulares. Sua principal faculdade, nessa tarefa, é o discernimento ou a capacidade de distinção entre o bem e o mal (Silva, 1998).

No século XVII, sob a influência da perspectiva racionalista, a integração entre o saber teórico e o saber prático se faz graças à subordinação do segundo ao primeiro, isto é, a práxis passa a ser vista como o campo de aplicação do conhecimento teórico, submetendo-se à racionalidade técnica. Nesse contexto, a ética volta a ser pensada apenas do ponto de vista teórico e racional, afastando-se da vida cotidiana (Silva, 1998).

O iluminismo, no século XVIII, separa, uma vez mais, a esfera pública da esfera teórica. Kant formula as regras para os dois tipos de razão: a razão pura e a razão prática. Para ele, as escolhas éticas ocorrem no espaço de relação entre essas duas esferas. No âmbito da razão pura, o reino do entendimento, predomina como princípio regulador a idéia de humanidade, da qual a liberdade é o elemento constitutivo decisivo. O indivíduo é tanto mais livre quanto menos individualista, ou seja, quanto mais se aproxima da realização dos valores da espécie. Portanto, a atividade é tanto mais moral quanto mais a motivação das suas ações se aproxima dos valores gerais (Heller, 1984).

Na esfera da razão pura somos todos iguais e, portanto, a lei moral se dirige ao que é comum a todos os homens: sua humanidade. O homem tem a liberdade de observar as leis formuladas pela própria espécie e de atuar com boa vontade. Daí decorrem as quatro fórmulas do imperativo categórico kantiano que orientam a razão prática:

Atua de tal maneira que a máxima que orienta a sua vontade possa ser sempre tomada como princípio para as leis de caráter geral;

Atua somente conforme aquelas máximas que você desejaria ver convertidas em leis gerais;

Atua como se a máxima que orienta sua ação tivesse que se converter, por sua vontade, em lei geral;

Atua de tal forma que sua ação trate a humanidade, tanto em sua própria pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e em todo momento, como um fim e nunca como simples meio. (Heller, 1984, p. 56)

O aprofundamento das características seculares e laicas do capitalismo, no século XIX, acaba por modificar a relação entre razão e práxis, mais uma vez, conferindo maior relevância a esta última. A filosofia do utilitarismo reflete essa tendência e substitui a idéia reguladora – humanidade – pela máxima da sobrevivência baseada na sociabilidade, cooperação e coesão, cujo elemento constitutivo passa a ser, ao invés da liberdade, a adaptação. A razão instrumental ou razão técnica vai progressivamente deslocando o humanismo. Paulatinamente, os meios vão se sobrepondo aos fins, e praticamente desaparece o espaço para a decisão ética. Não são mais os valores morais, nem as idéias gerais, os elementos envolvidos nas escolhas práticas da vida cotidiana. A ação passa a ser conduzida por considerações acerca da utilidade prática. A técnica se contrapõe ao valor levando a uma recusa da ética (Silva, 1998).

A subordinação da ética ao processo de especialização e fragmentação do saber técnico faz surgir um conjunto amplo de éticas aplicadas, entre as quais a bioética. O próprio termo 'bioética' sugere a subordinação da ética aos aspectos técnicos de um campo particular de saberes, o campo dos fenômenos e processos ligados à vida, sendo designada por meio de sua característica mais natural, a composição orgânica dos seres vivos. A designação bioética deixa completamente de lado a essência do problema: a dignidade humana ameaçada pela ausência de preocupação ética e pela permanente transgressão das fronteiras entre humano e inumano, características da organização social capitalista contemporânea (Silva, 1998).

Em uma sociedade na qual a liberdade é traduzida como livre comércio; em que as coisas e as pessoas são valiosas apenas se forem lucrativas e tiverem valor de troca no mercado; e, na qual as pessoas valem pelo que têm e não pelo que são, há pouco ou nenhum espaço para a ética, entendida como discernimento capaz de fazer a mediação entre os valores morais individuais e a legalidade social. As éticas aplicadas correm o risco de se tornarem meros exercícios de formalismo tal qual ocorreu ao longo da história, em todas as ocasiões em que os valores sociais concretos encontraram-se em franca contradição com os ideais genéricos da espécie humana. (Berman, 2001)

O desencantamento do mundo contemporâneo, a ruptura radical entre conhecimento e valor, tem sua contrapartida no esforço para recompor o interesse pela ética. No século XX, diferentes tentativas foram feitas para recolocar a reflexão ética entre as questões filosóficas relevantes. O existencialismo recolocou a liberdade como o principal elemento constitutivo da humanidade, trazendo-a para o cotidiano. Na visão existencialista, a liberdade é a forma de o homem existir. Cada um é aquilo que faz de si. Não há nada fora do mundo humano com que o homem possa contar. Para cada ato cotidiano, o valor a partir do qual o homem faz sua escolha tem de ser novamente inventado (Silva, 1998).

Para um certo marxismo romântico, a necessidade humana mais radical é a construção de um mundo no qual o homem possa se realizar com os outros e por intermédio uns dos outros; no qual a liberdade seja a possibilidade de regular conscientemente a própria vida e onde predomine a capacidade de reconhecer e respeitar a existência de diferentes orientações; com as pessoas tomando as rédeas da própria vida para construir um destino comum, uma sociedade baseada na liberdade e na igualdade (Berman, 2001).

Seja qual for o mundo que sejamos capazes de construir, a saúde será sempre uma dimensão fundamental da vida. A relevância social e política das decisões no âmbito da saúde e a importância intrínseca que ela tem para todos os homens fazem com que a discussão ética tenha que se dar da forma mais abrangente, ultrapassando os limites estreitos de uma ética aplicada (Dallari, 1994).

Ética e saúde

A saúde constitui âmbito estratégico para a luta pela recuperação e transformação do Estado e de suas relações com a sociedade. São requisitos básicos nessa tarefa o desenvolvimento de conhecimentos intersetoriais que façam frente à complexidade dos determinantes da saúde; a responsabilidade setorial com a melhoria das condições de vida; a capacidade transformadora para articular os interesses gerais e particulares respeitando as diferenças; o diálogo como forma privilegiada da construção de consensos e a democratização da cultura possibilitando a participação social ampla na definição das prioridades, na avaliação das políticas e na reivindicação da eqüidade (Rodrigues, 1994; Sabroza et al., 1992).

A crise da razão instrumental e o questionamento da onipotência das explicações científicas propiciam o contexto para o revigoramento da reflexão ética, no final do século XX. No âmbito da saúde, as questões éticas relacionam-se diretamente com a problemática dos direitos humanos.

A formulação da Declaração Universal dos Direitos do Homem sinaliza o esforço feito para estabelecer uma relação adequada entre meios e fins na sociedade contemporânea. Está baseada na suposição de que há uma medida humana para avaliar os custos do progresso técnico e científico. Os direitos humanos, colocados acima de qualquer outro interesse, significam que o destinatário do progresso é o homem e que, portanto, ele não pode ser tomado apenas como meio. A dignidade humana impõe a necessidade de que o homem seja tratado sempre como fim (Silva, 1998).

Os direitos humanos incluem uma gama ampla de direitos progressivamente conquistados pela humanidade: os direitos civis, os políticos, os sociais e os econômicos. Todos eles têm como princípios essenciais o fato de que são inerentemente humanos, inalienáveis, universais, possuídos individualmente por todos os homens, invioláveis e não hierarquizáveis (Mann, 1996).

As relações entre saúde pública e direitos humanos são principalmente de três ordens: as políticas, os programas e as práticas da saúde pública, da ótica dos direitos humanos, buscam o equilíbrio entre o bem coletivo e os direitos individuais; os métodos e técnicas da saúde pública são instrumentos úteis para identificar as violações aos direitos humanos e avaliar seu impacto negativo; e, a promoção e a proteção à saúde vinculam-se à proteção dos direitos humanos (Mann, 1996).

Nos estados democráticos os direitos humanos tendem a substituir, no plano da moralidade, as ideologias religiosas e os ideais liberais, prevalecendo a tolerância ao pluralismo de idéias e atitudes e a busca da eqüidade como encarnação do bem comum (Berlinguer, 1999). O princípio da eqüidade substitui a noção de justiça formal do ideário liberal, segundo a qual, todas as regras devem ser aplicadas a todos os membros do grupo igualmente.

Para Marx, dado que todas as pessoas são únicas e, portanto, diferentes e desiguais, se as mesmas regras forem aplicadas a todos, o resultado será necessariamente injusto. Daí a formulação de sua máxima para a justiça eqüitativa: "a cada um segundo suas necessidades" (citado em Heller, 1984, p. 231).

Sob o princípio da eqüidade, todos deveriam ter oportunidades de alcançar seu próprio potencial na vida e ninguém deveria estar em situação de desvantagem sempre que isso pudesse ser evitado. As necessidades são sempre individuais, porém os modos de vida configuram as escolhas individuais na hierarquização dessas necessidades e também na seleção dos meios para satisfazê-las. Todas as necessidades devem ser igualmente reconhecidas, entretanto, como a sociedade geralmente não dispõe dos meios para a satisfação simultânea de todas elas, torna-se necessário tomar decisões sociais sobre prioridades e é aí que o princípio da eqüidade deve intervir, regulando a distribuição (Heller, 1984).

Freqüentemente, no campo da formulação das políticas sociais, o substituto para as escolhas conscientes acaba sendo o preconceito. Onde há preconceito, as políticas sociais são substituídas pela retórica, pelo clientelismo e pela demagogia. As políticas de saúde orientadas pelo princípio da eqüidade devem pautar-se pela universalidade, contar com a participação social ativa e ter responsabilidade para com as futuras gerações (Berlinguer, 1999).

O direito à saúde é uma exigência primária do direito à vida e não pode ser confundido apenas com o direito à assistência médica ou sanitária. (Garrafa et al., 1997). Nas sociedades contemporâneas, dado o predomínio da lógica economicista e da escassez crônica de recursos para as políticas sociais, esse direito fundamental vê-se permanentemente ameaçado. A enorme valorização que o mundo atual confere aos poderes da técnica tem se traduzido na incorporação de tecnologias, muitas vezes, sem a mínima avaliação de eficácia, eficiência, benefícios potenciais e prejuízos potenciais (Penchaszadeh, 1999). Os direitos de cidadania tendem a ser transformados em direitos do consumidor e as lutas políticas, mesmo dos segmentos mais participativos e organizados da sociedade, tendem a se concentrar na discussão da garantia do acesso e do consumo de bens e serviços.

A questão da eqüidade nas políticas de saúde tem se reduzido ao acesso universal e à alocação equilibrada ou igualitária dos recursos financeiros, afastando-se assim da discussão referente ao atendimento diferencial das necessidades.

No plano da reflexão teórica, vários autores que discutem a ética na saúde, ou a bioética, apontam uma contradição entre o princípio da eqüidade ou da justiça, que seria o mais importante do ponto de vista da saúde pública, e o princípio da autonomia, um dos três princípios da bioética (Penchaszadeh, 1999; Schramm, 1998; Schramm & Kohow, 2001). Eles apontam para a impossibilidade de reconciliar a autonomia individual e a necessária subordinação dessa autonomia com vistas à produção do bem comum, isto é, a realização da justiça eqüitativa.

Trata-se, ao meu modo de ver, de uma falsa questão. A aparente oposição entre autonomia e justiça só se mantém se a autonomia for entendida no diapasão do individualismo. Se a autonomia for sinônimo da imposição do egoísmo, da solidão, da angústia característica do 'homem desditado' da perspectiva niilista, realmente ela será irreconciliável com a idéia de solidariedade presente no princípio da distribuição eqüitativa. Entretanto, se ao invés do individualismo, desse 'homem lobo do homem', prevalecer o indivíduo rico em necessidades, produto da vida em comunidade, comprometido com a solidariedade e a busca da felicidade de todo o gênero humano, não haverá nenhuma contradição entre o exercício da autonomia e o valor da eqüidade.

O exercício da autonomia enquanto autodeterminação, liberdade de escolha consciente e liberdade de ação será verdadeiramente possível apenas em uma sociedade na qual a iniqüidade não seja a regra.

Epidemiologia e ética

A epidemiologia, disciplina científica do campo da saúde coletiva, cujas funções políticas são a melhoria da qualidade de vida e a busca da eqüidade em saúde; e, cujas funções científicas principais são: fornecer bases científicas para a prevenção de problemas de saúde; determinar a importância relativa dos fatores e circunstâncias que produzem as doenças e os danos à saúde, identificar situações de risco e vulnerabilidade aos agravos à saúde e avaliar a efetividade de programas, produtos e práticas na promoção, proteção e recuperação da saúde, apresenta uma série de dimensões nas quais as questões éticas estão presentes (Marques, 1998).

As relações entre ética e epidemiologia vão muito além da consideração apenas dos aspectos éticos relacionados com a prática de pesquisa em seres humanos. Elas se desdobram em diferentes planos que vão do compromisso político às práticas nos serviços de saúde, passando pela produção de conhecimentos.

No plano do compromisso político ou da relevância social dos conhecimentos e intervenções produzidos pela saúde coletiva em geral, e pela epidemiologia em particular, a principal questão ética relaciona-se justamente com a necessidade de eleger prioridades entre as inúmeras necessidades dos indivíduos na sociedade. Essa escolha será informada por diferentes valores e crenças acerca da justiça distributiva.

Em termos concretos podem ser contrapostas as abordagens dos problemas ou necessidades de saúde como fenômenos de massa e que, portanto, necessitam de intervenções com caráter universal, como por exemplo, a extensão da rede de água e esgotos tratados para todos os habitantes de um país como garantia de um nível de higiene adequado para a promoção da saúde; e, a abordagem dos problemas de saúde como fenômenos individuais que podem ou não demandar a intervenção do Estado no sentido de garantir as condições para que os indivíduos, a partir de suas necessidades, busquem a solução para seus problemas. Isso se traduz, por exemplo, na oferta de meios diagnósticos e terapêuticos para o controle da tuberculose nos serviços de assistência primária à saúde, cujo uso estará na dependência da procura pelos indivíduos que deles necessitem. Este segundo modelo, geralmente, acaba por reproduzir, no âmbito do uso de serviços de saúde, as desigualdades existentes na organização social, com os indivíduos mais necessitados, freqüentemente aqueles socialmente excluídos, não conseguindo efetivamente aceder aos bens e serviços disponíveis.

Se a máxima moral da política de saúde for a eqüidade, então, as escolhas terão de ser feitas tendo em vista não apenas as características técnicas dos problemas e necessidades de saúde, mas também, o objetivo de através da política de saúde buscar compensar as desvantagens inevitáveis e anular as desvantagens evitáveis.

No plano da produção dos conhecimentos epidemiológicos, duas ordens de questão parecem importantes na relação entre ética e epidemiologia: os problemas relativos à ética nas pesquisas envolvendo seres humanos e o significado social do risco e da vulnerabilidade, categoriais explicativas centrais para a epidemiologia.

Os esforços feitos pelo país, com a criação da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) e dos Comitês de Ética em Pesquisa (CEPs) nas instituições que desenvolvem pesquisas com seres humanos, significaram um enorme avanço no sentido de preservar a dignidade humana nas condições de pesquisa. Porém, o descompasso entre os valores – ou a ausência deles – vigentes na sociedade brasileira, e a defesa de princípios morais que tentam colocar o homem e a sua dignidade no centro das preocupações éticas, pode significar uma ameaça ao exercício concreto de opções éticas por parte dos pesquisadores. A necessidade de normalizar e controlar situações conjunturais traz em si o risco de formalização, isto é, de que os juízos morais ou valorativos se vejam, na prática, substituídos por procedimentos formais, mero cumprimento de determinações burocráticas desprovidas de reflexão e escolha consciente.

Do ponto de vista da pesquisa epidemiológica há ainda algumas particularidades e dificuldades que as resoluções emanadas da Conep ignoram. Apenas para citar as mais flagrantes podemos mencionar a imposição do consentimento informado, necessariamente assinado pela pessoa entrevistada e aplicável aos inquéritos domiciliares, e a proibição do uso de material biológico estocado para a realização de provas laboratoriais sem a prévia autorização dos doadores. No primeiro caso, apenas aqueles com experiência em inquéritos domiciliares parecem se dar conta do exagero e da dificuldade contida na exigência da resolução normativa 196. É evidente que em sua própria casa, o indivíduo só concederá uma entrevista se estiver de acordo com a sua realização. A situação é bastante diversa da realização de uma entrevista no próprio serviço de saúde, onde o entrevistado pode se sentir ameaçado de perda do atendimento em caso de não cooperação. Além disso, a população brasileira, especialmente a mais pobre e com baixa escolaridade, tem muito receio em assinar documentos, pois sua pequena habilidade de leitura e vasta experiência com aproveitadores geram o medo de colocar a assinatura em um documento cujo uso nem sempre lhe parece claro. Quanto ao uso das chamadas sorotecas ou bancos de tecidos, é por demais conhecida a contribuição que o exame de material biológico estocado tem dado ao esclarecimento etiológico de doenças novas, como por exemplo, a Aids, para considerar que a proibição de seu uso pelas normas brasileiras é excessivo e prejudicial. Além disso, a questão principal que é a garantia da confidencialidade, isto é, a proibição de quebra da privacidade dos sujeitos doadores, está prevista no Código Civil brasileiro, dando assim aos indivíduos instrumentos de defesa em face de possíveis abusos.

Por serem preferencialmente baseadas em métodos observacionais, as pesquisas epidemiológicas estão menos sujeitas a situações nas quais o limite entre humano e inumano possa ser ultrapassado. Parte considerável da investigação epidemiológica baseia-se na observação dos fatos. O controle das variáveis e fatores intervenientes é feito no plano racional, pela manipulação das informações disponíveis, sem que se criem condições artificiais reais para facilitar a explicitação das relações entre essas variáveis (Barata, 1996). O aprimoramento e fortalecimento metodológico dos estudos observacionais são estratégias potencialmente úteis para que a produção de novos conhecimentos epidemiológicos possa prescindir de desenhos experimentais em que os riscos de infração à dignidade humana estão mais presentes.

Quanto mais os desenhos se aproximam das condições experimentais, maiores são os problemas relativos à ética. O dilema geralmente se coloca entre o conhecimento mais exato e preciso dos fenômenos estudados e submeter as pessoas a situações não totalmente isentas de prejuízos, seja pelo caráter potencialmente deletério das intervenções, seja pela negação de possíveis benefícios (Barata, 1996).

Escolhas sensatas nos estudos de intervenção também fazem parte desse esforço por cumprir com os mandamentos éticos nas pesquisas com seres humanos. A recente discussão entre pesquisadores britânicos e norte-americanos sobre a conveniência de interromper os grandes ensaios clínicos referentes à reposição hormonal com produtos combinados de estrógeno e progesterona é exemplar com relação a esse ponto. O estudo conduzido nos Estados Unidos, contando com um grupo externo de avaliadores, resolveu pela interrupção ao verificar que os riscos para desfechos como câncer de mama, doença isquêmica do coração, trombose venosa profunda e acidentes vasculares cerebrais vinham aumentando ao longo dos anos de seguimento, entre as mulheres que pertenciam ao grupo tratado. Além disso, tais riscos suplantavam os benefícios obtidos pela redução das fraturas de quadril e câncer de colo e reto. Os pesquisadores britânicos, entretanto, argüiram a significância estatística dos riscos aferidos no estudo norte-americano e decidiram continuar o seu próprio experimento. Qual das condutas foi mais sensata tendo em vista a saúde das mulheres pesquisadas? Não faltarão cientistas para defender a continuidade do estudo, por um período suficiente, para que os resultados forneçam evidências claras e irrefutáveis sobre a segurança ou não da reposição hormonal. Entretanto, do ponto de vista ético, seria justificável arriscar a saúde dessas mulheres? Dado o caráter permanentemente mutável do conhecimento científico e o comportamento probabilístico dos fenômenos biológicos, é possível esperar obter uma certeza definitiva?

Desde a consolidação das correntes positivistas no pensamento filosófico ocidental, o realismo ingênuo, que caracteriza boa parte das investigações científicas, tem provocado o abandono da interpretação e compreensão mais ampla dos processos, substituindo-as pelas manipulações técnicas dos dados, através das ferramentas fornecidas pela estatística. Esse processo de tecnificação crescente da investigação acompanha-se do empobrecimento teórico das disciplinas científicas da área da saúde, especialmente no campo biomédico, mas também na epidemiologia, reforçando a impessoalidade na condução das investigações. Tal impessoalidade, que do ponto de vista estritamente metodológico pode ser desejável, de certo modo pode favorecer a transgressão de princípios éticos uma vez que o pesquisador não se sente envolvido pessoalmente com a pesquisa que está conduzindo. A razão instrumental tende a solapar qualquer vínculo ou compromisso ético com a realização de investigações que respeitem a essência do humano, em nome da melhor e maior adequação técnica entre meios e fins (Barata, 1996).

O mito de que o grau de cientificidade das disciplinas científicas depende da medida em que seus métodos se aproximam daqueles usados pelas chamadas "ciências duras" e do caráter lógico-formal de suas proposições tem favorecido o crescimento das pesquisas experimentais com pessoas, nas quais, as normas formais do bom comportamento são sempre seguidas, embora a "moralidade", em seu sentido amplo, nem sempre entre em consideração (Barata, 1996).

No plano dos serviços de saúde há inúmeras situações em que o conhecimento epidemiológico é utilizado para a tomada de decisões, aparecendo, por ocasião de cada uma dessas escolhas, brechas para a penetração de questões de cunho ético nesse espaço técnico e político, por excelência. Há pelo menos quatro grandes questões para as quais a reflexão ética se torna uma necessidade evidente: a alocação dos recursos, o acesso aos serviços, a incorporação de tecnologia e a avaliação do impacto das intervenções.

A alocação de recursos, um dos aspectos do financiamento do sistema de saúde, segundo definição da lei orgânica deve estar orientada por critérios epidemiológicos, vale dizer, por critérios que supostamente seriam construídos a partir da aferição das necessidades de saúde das pessoas e grupos sociais. Embora tal formulação possa ser tomada em caráter estritamente técnico, a presença das necessidades sociais, na base do critério, implica reconhecer e atribuir valor às diferentes necessidades, uma vez que não há a possibilidade concreta de atender a todas elas simultaneamente.

A conciliação dos princípios da universalidade, integralidade e eqüidade não é tarefa fácil. As escolhas no campo prático tornam-se ainda mais difíceis e embaralhadas do ponto de vista moral, diante da reivindicação que diferentes correntes de pensamento político fazem a esses mesmos conceitos. As propostas liberais reinterpretam a universalidade e a eqüidade segundo sua conveniência considerando que um sistema de saúde que garanta o consumo de um pacote mínimo de bens e serviços a toda a população está cumprindo esses princípios. A eqüidade é traduzida em igualdade de consumo de um elenco mínimo de ações de saúde estendido a todos. Para identificar a composição desses pacotes preconiza-se a adoção de indicadores, pretensamente técnicos, como a carga da doença. Essa é uma construção fortemente ideológica, na qual a metodologia prefigura os resultados, baseada na suposição de que o valor maior a ser tomado em conta é a utilidade econômica dos indivíduos e o custo-efetividade das intervenções.

Como mecanismo de imposição da lógica e da racionalidade economicista alguns organismos internacionais, como o Banco Mundial, têm condicionado seus empréstimos aos países em desenvolvimento à realização de estudos da carga da doença, como instrumentos técnicos para direcionar a alocação de recursos. Essas imposições são aceitas, geralmente, sem nenhuma reflexão ética.

Outra questão freqüentemente debatida tem sido a do acesso eqüitativo aos bens e serviços de saúde. Da perspectiva da epidemiologia, a demanda deveria ser orientada pelo uso de tecnologias de organização dos serviços tais como a programação, garantindo assim que as necessidades consideradas epidemiologicamente mais relevantes recebessem atendimento. Entretanto, seria justo privilegiar a visão técnica em vez da percepção da necessidade pela própria clientela? Em que condições poderia estar justificada a precedência da visão técnica? Como articular o atendimento universal a procedimentos de discriminação positiva destinados a reduzir as iniqüidades sociais em saúde?

A incorporação acelerada de novas tecnologias materiais aos serviços de saúde tem sido um dos componentes do crescimento exponencial dos custos desses serviços. A necessidade de estender universalmente o atendimento e garantir a integralidade das ações coloca a questão da efetividade dessas tecnologias no centro das preocupações dos gestores de sistemas de saúde. Os recursos gastos com a aquisição de equipamentos de diagnóstico e terapêutica resultam em melhoria das condições de saúde e de vida dos pacientes? Em que medida as avaliações epidemiológicas podem responder a estas perguntas? Se tecnologia for entendida de maneira ampla, incluindo não apenas produtos ou equipamentos, mas abarcando também modos de fazer, as questões se multiplicam. A realização de mamografias anuais reduz a morbimortalidade por câncer de mama? Os rastreamentos para câncer de próstata ajudam a população masculina a viver mais e melhor? A vacinação dos idosos contra a influenza é custo-efetiva? Estas são algumas das perguntas que a epidemiologia é chamada a responder.

Para além das questões técnicas, estão em jogo também diferentes valores. Toda atividade de prevenção específica, de aplicação individual tende a ser mais cara quando comparada a intervenções curativas tendo em vista as quantidades de indivíduos envolvidos. Por exemplo, a realização da campanha de rastreamento para o câncer de colo uterino, ainda que cada exame de Papanicolau custe muito pouco, envolve um montante considerável de recursos, visto que existem milhões de mulheres nas faixas etárias alvo da campanha. Certamente, o tratamento dos casos diagnosticados de câncer de colo uterino, por serem em número muito menor, custará menos aos orçamentos da saúde. Assim, se o valor que orienta a escolha política for o econômico, jamais serão adotadas medidas de prevenção. Entretanto, se o valor maior for a preservação da saúde, esses gastos, ainda que maiores, encontrarão justificativa.

Tendo em vista a complexidade dos fenômenos envolvidos na produção da saúde e da doença, a questão do impacto das intervenções de saúde constitui um desafio ao conhecimento epidemiológico nas práticas de saúde. É geralmente difícil isolar o efeito que pode ser atribuído às intervenções dos serviços de saúde daquele provocado pelos mais diversos elementos que entram na composição da saúde de um grupo de indivíduos ou de uma população. Embora a questão pareça eminentemente técnica, ela envolve uma dose não desprezível de questões éticas. O gasto de recursos materiais, humanos e financeiros para a realização de atividades de saúde sem que haja o correspondente impacto em termos de melhoria das condições de vida é eticamente injustificável.

As ações de controle de doenças, que são mais freqüentemente identificadas com as atividades de epidemiologia nos serviços de saúde, provocam várias escolhas envolvendo o discernimento ético. No âmbito das ações de controle, e particularmente da vigilância epidemiológica, a oposição entre interesses coletivos e interesses individuais é constante. Freqüentemente as situações envolvem o choque entre a autodeterminação dos sujeitos e o bem público. Há situações em que os comportamentos individuais representam maior suscetibilidade para os próprios indivíduos, como por exemplo, a recusa ou simulação no uso de cintos de segurança em veículos automotores, não acarretando danos aos demais. Mesmo assim, em nome da saúde pública, a legislação institui multa monetária aos infratores. A justificativa moral para impor uma conduta de prevenção específica visando a redução da morbidade e da mortalidade em acidentes de trânsito, desconsiderando a autodeterminação do sujeito e sua capacidade de exercer uma escolha consciente entre adotar ou não tal procedimento, apóia-se no argumento econômico de que toda a sociedade, através dos impostos, acaba por arcar com os custos do atendimento aos acidentados, ou pelo menos, com a maior parte deles.

Outras vezes, os programas de controle deparam com situações que implicam riscos coletivos. Por exemplo, a epidemia de cólera ocorrida em Paranaguá foi provavelmente provocada pela liberação de água de lastro de navios, sem o tratamento de desinfecção obrigatório, no porto. A irresponsabilidade dos comandantes de navios perante a saúde das populações de zonas portuárias os leva a priorizar a economia em seus custos de operação, independentemente dos agravos à saúde dessas populações. Outro exemplo de conflito entre valores que interferem na condução de programas de controle é dado pelo aumento de casos de febre amarela associado a práticas de turismo ecológico. A simples exigência, pelas agências de turismo, de que os viajantes se vacinassem antes de dirigir-se a áreas com potencial risco de transmissão poderia ter sido suficiente para evitar a ocorrência de casos. Entretanto, o interesse comercial se sobrepôs à necessidade da preservação da saúde.

Além dos aspectos já considerados nas relações entre ética e epidemiologia, resta analisar a incorporação dos conhecimentos epidemiológicos por parte da sociedade, ou melhor, as circunstâncias que envolvem a divulgação do conhecimento epidemiológico para o público leigo.

O principal conceito presente na transmissão do saber epidemiológico é o conceito de risco. Todas as verdades desse conhecimento são elaboradas e transmitidas em termos de proposições probabilísticas. O forte peso do determinismo mecanicista na constituição da racionalidade ocidental representa um impedimento concreto à compreensão do caráter probabilístico do risco. A tendência na população tem oscilado entre considerar as situações ou os fatores de risco como indicativos do problema de saúde ao qual estão associados, como se tivessem o mesmo valor que um sinal ou sintoma clínico, e a incredulidade, ou seja, a negação do teor probabilístico calcado em experiências pessoais e conhecimento de casos que contradizem a associação apontada.

A divulgação que os meios de comunicação de massas, especialmente a mídia televisiva, fazem dos resultados de estudos epidemiológicos acaba por reforçar esses estereótipos. Os resultados são apresentados, via de regra, como afirmações com caráter absoluto, totalmente independentes das condições em que foram produzidos. As contradições, aparentes ou reais, entre resultados de investigações conduzidas com metodologias diversas entre populações também distintas acabam por confundir as pessoas e diminuir a crença na utilidade dessas informações para a vida cotidiana.

Erros de interpretação podem levar, não apenas a reduzir o impacto desses conhecimentos na melhoria das condições de saúde, mas também a provocar compreensões parciais dos problemas que muitas vezes resultam no desenvolvimento ou solidificação de preconceitos. A identificação de grupos de risco ou de indivíduos sob risco freqüentemente dá lugar a atitudes de discriminação calcadas na ignorância. É responsabilidade dos produtores de conhecimentos epidemiológicos evitar que os resultados de suas investigações possam gerar atitudes de discriminação, agravando ainda mais as condições de saúde dos indivíduos ou grupos sociais acometidos ou sob risco para o desenvolvimento de determinados problemas de saúde. Talvez o caso exemplar desse tipo de situação esteja na indicação de 'ser haitiano' como uma das categorias de risco para a infecção pelo HIV nos primórdios da epidemia de Aids. Do ponto de vista operacional, para instrumentalizar as atividades de busca de casos pelos funcionários dos Control of Disease and Prevention Centers (CDC) ou dos departamentos de saúde, talvez essa fosse uma categoria útil, entretanto usá-la em publicações científicas e na divulgação para leigos só poderia resultar em incentivo a comportamentos de discriminação, especialmente tendo-se em vista a gravidade da doença e a tendência histórica de atribuir aos estrangeiros a 'culpa' pela ocorrência de qualquer epidemia.

A substituição do conceito de risco pelo conceito de vulnerabilidade talvez forneça à epidemiologia um recurso de comunicação menos contaminado por noções de senso comum com conotações negativas. Ao invés do referente risco–perigo, a epidemiologia poderia utilizar a idéia de vulnerabilidade–fragilidade para fazer a sociedade compreender que determinadas conjunções de situações ou fatores podem acarretar maior probabilidade de adoecimento ou menor possibilidade de manutenção ou recuperação da saúde.

A vulnerabilidade entendida como o resultado da combinação entre déficits normativos externos, decorrentes da organização social, e déficits normativos internos, decorrentes das características psico-sócio-culturais individuais, tornando as pessoas ou grupos sociais suscetíveis a agravos à saúde pode representar uma categoria explicativa mais adequada aos propósitos da epidemiologia (Spieri, 2000). A idéia de risco–perigo mostra-se mais propícia a desencadear comportamentos de rechaço e evitação, enquanto a idéia de vulnerabilidade–fragilidade parece mais propícia a desencadear reações de solidariedade ou compaixão. Recorrendo ainda ao exemplo da epidemia de Aids, é possível assinalar que atualmente a situação de vulnerabilidade dos povos africanos tem sido mais mobilizadora de atitudes de preocupação e compaixão do que de rechaço e isolamento, tal qual ocorreu em relação aos haitianos no início do processo epidêmico.

O conceito de vulnerabilidade não prescinde das medidas do risco, mas fornece uma possibilidade de contextualização do risco em uma perspectiva mais abrangente e complexa, articulando as diferentes dimensões da vida humana. Suas possibilidades no campo das escolhas éticas também parecem ser mais promissoras do que aquelas associadas ao conceito de risco.

Considerações finais

As pretensões dessas reflexões podem ser resumidas em dois pontos principais: mostrar a presença constante de situações que exigem um discernimento de caráter ético na prática cotidiana dos profissionais de saúde e ressaltar a impossibilidade de formular um conjunto de regras infalíveis para fazer frente a essas questões.

A prática de ações de saúde, assim como a prática de pesquisa, compartilham a característica de serem ambas marcadas pela presença de inúmeras situações envolvendo escolhas éticas. Portanto, não será um conjunto de determinações formais que dará aos profissionais e pesquisadores os instrumentos suficientes para assegurar escolhas corretas. Como ficou dito no início destas reflexões, não é possível na dimensão prática da vida dispor dos mesmos mecanismos e instrumentos de demonstração de verdades de que se dispõe no campo teórico. A escolha correta está sujeita a inúmeras injunções, dentre as quais se destacam as exigências éticas sempre que tais escolhas incluírem entre suas metas a realização do bem comum.

As regras formais, embora possam ajudar a pautar o comportamento profissional, não garantem uma conduta eticamente orientada. O desacordo entre os valores de uma sociedade capitalista predadora, egoísta, individualista e movida apenas pelo intuito de acumulação vertiginosa do lucro e pela realização de ganhos imediatos sem qualquer consideração sobre o futuro, e os valores morais ligados à idéia de humanidade e aos princípios de autonomia, liberdade e responsabilidade, colocará problemas éticos freqüentes para a práxis cotidiana, especialmente no campo da saúde considerada como um corolário do direito fundamental à vida. Só uma prática crítica, construída e reconstruída cotidianamente a partir da compreensão consciente dos processos que geram a doença e ameaçam a preservação da saúde, possibilitará aos profissionais do setor e aos pesquisadores o desempenho de suas funções dentro de um marco ético.

O caráter contingente, isto é, circunstancial das ações práticas impede o estabelecimento de normas rígidas de conduta. Cada situação singular exige uma reflexão específica e pede um discernimento entre correto e incorreto, bem e mal, que não podem ser facilmente generalizáveis. A mesma decisão pode ter conseqüências bastante diversas em distintas situações, mostrando-se adequada para um caso e inadequada para outro. O formalismo da justiça cega não nos basta. No campo da saúde, se quisermos ser justos precisamos lançar mão de todos os nossos sentidos, além de nosso entendimento racional e de nossa intuição.

O excesso de questões sem respostas aqui apresentadas pretende reforçar essa crença de que no plano do discernimento, das escolhas éticas, não há receitas prontas. Entretanto, esse caráter contingente não deve ser tomado como indicativo de relativismo absoluto, sob o qual tudo é permitido, nem de ceticismo cínico associado ao abandono a qualquer valor. A autonomia do homem perante os condicionamentos de sua vida concreta se expressa na liberdade para fazer escolhas, mas também na responsabilidade pelas conseqüências provocadas pelas escolhas feitas.

Eduardo Galeano em seu Livro dos abraços conta a história de um colombiano que subiu ao céu, contemplou de lá a vida humana e, ao voltar, contou:

o mundo é isso ... Um montão de gente, um mar de fogueirinhas. Cada pessoa brilha com luz própria entre todas as outras. Não existem duas fogueiras iguais. Existem fogueiras grandes e fogueiras pequenas e fogueiras de todas as cores. Existe gente de fogo sereno, que nem percebe o vento, gente de fogo louco que enche o ar de chispas. Alguns fogos, fogos bobos, não alumiam nem queimam; mas outros, incendeiam a vida com tamanha vontade que é impossível olhar para eles sem pestanejar, e quem chegar perto pega fogo. (1991, p. 13)

A ética, como a vida, tem essas múltiplas aparências, mas sua essência é sempre a mesma: um espaço de relação entre os valores morais humanos e as regras de funcionamento da sociedade na qual os homens vivem. Por isso, não parece haver razão para o desenvolvimento de éticas aplicadas como a bioética, buscando especializar o comprometimento das ações humanas com princípios preestabelecidos em determinados campos. As máximas para a ação moral são sempre as mesmas, independentemente do campo da ação prática. A adoção de normas e orientações morais distintas para cada tipo de objeto da ação humana pode acabar redundando em condutas oportunistas, negando assim, no plano concreto, a importância da ética.

Recebido para publicação em outubro de 2002.

Aprovado para publicação em abril de 2005.

Conferência apresentada no II Congresso Mineiro de Epidemiologia e Saúde Pública. Associação Mineira de Epidemiologia. Belo Horizonte, 31 de agosto a 4 de setembro de 2002.

Prof. Adjunto do Departamento de Medicina Social da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, pesquisadora Id do CNPq.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Jan 2007
  • Data do Fascículo
    Dez 2005

Histórico

  • Recebido
    Out 2002
  • Aceito
    Abr 2005
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