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Cartas

CARTAS

São Paulo, 20 de março de 2004

Prezado dr. Benchimol,

Fui mestrando em história da ciência na PUC de São Paulo, em 1998, onde pretendia escrever a dissertação Darwinismo em questão: ciência ou ideologia? O modus operandi da nomenklatura científica. Era sobre como o establishment científico lida com as graves dificuldades teórico-empíricas do darwinismo, e o que isso poderia representar em termos epistemológicos — uma mudança paradigmática à la Kuhn? Infelizmente, razões econômicas me impediram de continuar o mestrado. Li e reli, cum granum salis, há três anos, o artigo 'De Darwin, de caixas-pretas e do surpreendente retorno do 'criacionismo', do dr. Maurício Vieira, publicado nesta renomada e abalizada publicação científica brasileira História, Ciências, Saúde — Manguinhos (vol. VIII(3): 739-56, set.-dez. 2001 ou www.coc.fiocruz.br/hscience/vol8n3/sumv8n3_port.htm). Na ocasião, fiquei muito preocupado, não com o que foi escrito, mas como o artigo foi escrito. Muito mais preocu-pado fiquei pelo fato de artigos científicos como o de Vieira serem submetidos ao exame por pares (peer review) para posterior publicação. Como alguém que vinha sendo educado em historiografia e epistemologia científicas, percebi que o ponto de partida do artigo de Vieira — "a equiparação, no segundo semestre de 1999, da teoria da evolução de Darwin ao texto bíblico do Gênese nos currículos escolares de um estado norte-americano" — era documentalmente infundado e distorcia a realidade daqueles parâmetros, assim como a decisão do Conselho do estado de Kansas: não houve a disparatada equiparação. O que aquele Conselho decidiu foi a não avaliação dos alunos nas áreas onde as opiniões dos mais abalizados especialistas são divergentes. Uma leitura atenta e isenta demonstrará que, em relação aos parâmetros anteriores, houve na verdade um aumento de 5% na cobertura da teoria da evolução.

Por que aqueles parâmetros não constaram da bibliografia do autor? Os peer reviewers tiveram acesso a eles? Creio que não. O exame crítico desta fonte original derruba o 'gancho' norteador da resenha do livro A caixa preta de Darwin, de Michael Behe, feita por Vieira e, por tabela, compromete seriamente a objetividade científica do discurso científico do artigo, ao afirmar que "a emergência de uma produção acadêmica especializada" é exclusivamente de fundo religioso e funciona "como base conceitual que dá suporte a tal tipo de decisão". A realidade é outra, muito diferente. Na dissertação que pretendia elaborar na PUC de SP, eu destacava pequena bibliografia de autores evolucionistas que questionam a capacidade criativa do processo evolutivo (mutações + seleção natural + tempo) para explicar toda a diversidade e complexidade biológica. [Foi esta bibliografia] que deu suporte à decisão daquele Conselho, não por razões 'religiosas', mas 'científicas'. Chamo esses autores de 'darwinistas agnósticos': Evolution: a theory in crisis (1986), de Michael Denton; Darwinism: the refutation of a myth (1987), de Sören Loventrup; The origins of order (1993), de Stuart A. Kauffman; How the leopard changed its spots (1994), de Brian C. Goodwin; Reinventing Darwin (1995), de Niles Eldredge; The shape of life (1996), de Rudolf A. Raff; The origin of animal body plans (1997), de Wallace Arthur; Sudden origins: fossils, genes and the emergence of species (1999), de Jeffrey H. Schwartz. As críticas ao darwinismo não são feitas unicamente por 'crentes da terra quadrada', nem por 'fundamentalistas religiosos', mas por cientistas sérios que aceitaram o desafio feito por Darwin de examinar sua teoria e as evidências na natureza. As evidências cada vez mais denunciam a falência epistêmica da teoria geral da evolução. O artigo de Vieira foi uma tentativa panfletária de identificar os proponentes teóricos do design inteligente como 'criacionistas', polarizando o tema em 'ciência versus religião', quando o que estava em debate era uma questão científica levantada por Behe — "Como explicar a complexidade irredutível de determinados sistemas biológicos através de processos darwinistas graduais diretos ou indiretos?" Até hoje, na literatura especializada, ninguém refutou a tese de Behe exposta em seu livro A caixa preta de Darwin.

A revista História, Ciências, Saúde — Manguinhos aceitaria artigos sobre este crescente "desencantamento" e "desconstrução" científica da teoria da evolução de Darwin, [mostrando] que a teoria do design inteligente apresenta-se como a melhor inferência científica [derivada das] evidências encontradas na natureza?

Pelo estabelecimento da verdade pro bonum Scientia, despeço-me mui atenciosamente,

Enézio E. de Almeida Filho

Coordenador do Núcleo Brasileiro de Design Inteligente (em organização) Campinas - SP neddy@uol.com.br

Rio de Janeiro, 6 de abril de 2004

Em atenção aos leitores da Revista Manguinhos, e para que a minha resposta às "acusações" do sr. Enézio não dependa apenas da minha palavra, creio que o melhor que posso fazer é indicar o texto do professor Orlando Tambosi, disponível em http://www.jornalismo.cce.ufsc.br/darwin.html. Aí, o pro fessor Tambosi faz minudente histórico da questão judicial mobilizada pelos criacionistas norte-americanos contra as teorias de Charles Darwin. A leitura deste material, instrutivo sob vários aspectos, mostra que, de minha parte, não cometi erro algum. Pelo contrário, usei corretamente a querela judicial que vem ocorrendo na América, sobretudo como pontapé inicial para o verdadeiro objeto do meu artigo: a análise da articulação existente entre o livro de M. Behe, A caixa preta de Darwin, e um processo social mais amplo, que vem sendo conceituado como o "reencantamento do mundo" (atingindo inclusive nomes da comunidade acadêmica). Sobre este núcleo temático, o sr. Enézio não tem rigorosamente nada a dizer.

Quanto à posição que meu crítico defende, ela atende pelo nome de intelligent design e busca de todas as formas invalidar o pensamento de Darwin. (No fundo, meu crítico tem problemas é com o darwinismo, como teoria explicativa; eu entro no episódio apenas como alguém que lhe interessa desqualificar, como estudioso em nosso país de certas repercussões sociológicas desta teoria). Ora, precisamente M. Behe vem a ser um dos representantes mais em evidência do intelligent design. O artigo que publiquei em Manguinhos incide sobre o referido livro de Behe. E o que mostro, através de uma análise textual do seu argumento, é que o intelligent design (ou planejamento inteligente, na tradução brasileira) é apenas um nome mais sofisticado — em aliança com certos grupos religiosos que procuram ganhar foros de cientificidade — para criacionismo. Deus é o designer inteligente.

Por fim, cabe lembrar aos leitores da Manguinhos que este contexto cultural aparentemente distante do Brasil chega por vias indiretas a nosso país (sintoma da globalização?). Em nosso Rio de Janeiro, onde há carência de professores de física e química, o atual governo estadual abre concurso público para professores de religião, e o edital exige credenciamento de cada um por uma autoridade confessional! Passaremos a ter pregação religiosa também nas escolas públicas, em flagrante desrespeito à Lei de Diretrizes e Bases. Felizmente, o Ministério Público vem lutando bravamente contra isso.

Aproveito para parabenizar a revista Manguinhos por seu trabalho de produção e divulgação de uma ciência laica, por mais que isso incomode certo tipo de obscurantismo que, infelizmente, vem crescendo mundo afora.

Cordialmente,

Maurício Vieira Martins

Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito Universidade Federal Fluminense mvm@unisys.com.br ou avieira@unisys.com.br

Rio de Janeiro, 19 de abril de 2004

Ao que parece, de tempos em tempos, as baterias criacionistas se recarregam e voltam-se contra importantes lacunas de teorias verdadeiramente científicas, e por isso mesmo abertas à crítica. Um alvo predileto é a teoria da evolução por seleção natural, conhecida, muitas vezes, pelo nome de darwinismo. O darwinismo nem sempre, ou quase nunca, é satisfatoriamente delimitado pelos criacionistas que o atacam; o que torna estes golpes aparentemente convincentes, pois sua retórica bombástica substitui o argumento apoiado em evidências empíricas, aceitas intersubjetivamente. A meu ver, é esse o contexto em que se dá a crítica de Enézio E. de Almeida Filho ao artigo de Maurício Vieira Martins, publicada na revista Manguinhos, em dezembro de 2001. O sr. Enézio de Almeida Filho se auto-intitula coordenador de um núcleo brasileiro de design inteligente, ainda em construção. Deus nos livre!

O artigo de Maurício Martins é sobre o polêmico livro A caixa preta de Darwin, do bioquímico Michael Behe. Na verdade, sua proposta foi partir do texto de Behe para chegar à questão do "reencantamento do mundo". Este conceito — que vem sendo discutido nas ciências sociais e envolve a análise de processos macro-sociais mais abrangentes —, ocupa a parte mais substantiva de seu artigo. Enézio Filho tenta refutar Maurício Martins argumentando que o autor se apóia em informação falsa, que serviria de ponte para intenções panfletárias. A polêmica gira em torno da notícia que chegou às páginas dos jornais de todo mundo no segundo semestre de 1999. Enézio Filho afirma que não houve a alegada equiparação entre doutrinas evolutivas e religiosas, e sim a determinação de não avaliar os alunos "onde as opiniões dos mais abalizados especialistas são divergentes". Ele ataca os pareceristas do artigo de Martins, afirmando que não tiveram acesso aos parâmetros educacionais do estado do Kansas. Enézio Filho parece concordar que não haveria nada de grave em não avaliar os alunos a respeito da teoria da evolução. Assinala, ainda, que houve aumento de 5% no tempo dado ao ensino de evolução.

Como se vê, o debate tem um contexto histórico específico. Em 1998, a Junta Estadual de Educação do Kansas pediu a um comitê de cientistas que revisasse os padrões pelos quais os alunos de ensino fundamental são avaliados. Note-se que os padrões vigentes vinham sendo aceitos pela Junta até então. Em maio de 1999, o comitê apresentou os novos padrões solicitados, baseando-se, ao contrário do que sugere Enézio Filho, no mais recente consenso entre os cientistas de disciplinas as mais diversas, que vão da astronomia à ecologia. Entre outras coisas, os novos padrões exigiam que os estudantes compreendessem os fundamentos da evolução: como as linhagens se adaptam a seu ambiente, e como os biólogos usam a teoria da evolução para explicar a diversidade de espécies vivas e extintas. Entretanto, um dos membros da junta apresentou um conjunto diferente de padrões, o qual, como se descobriu mais tarde, fora escrito por uma organização criacionista baseada no Missouri. Isso tudo o sr. Enézio Filho omite (ou desconhece). A partir daí, houve verdadeiro conflito entre os atos da junta e a posição do comitê de cientistas. Por fim a junta decidiu que os exames estaduais não testariam os conhecimentos dos estudantes sobre evolução, ou mesmo sobre deriva continental, a idade da terra ou o Big Bang. A junta aprovou os novos padrões por seis votos a quatro. Os jornalistas logo ficaram sabendo do conflito, que rapidamente chegou ao Brasil.

Nos meses seguintes, ganhou força a oposição aos padrões aprovados pela junta do Kansas. Nas eleições para a junta escolar, em 2000, o bloco criacionista sofreu pesadas baixas. Dois membros foram derrotados por republicanos moderados. Em fevereiro de 2001, a junta finalmente aprovou os padrões originais, estipulados consensualmente pelo comitê de cientistas, restituindo às salas de aula, intacto, o ensino da evolução (para maiores detalhes sobre esse debate ver O livro de ouro da evolução, de Carl Zimmer, com introdução de Stephen Jay Gould).

Enézio Filho afirma que não houve a tentativa de equiparação de Darwin ao texto bíblico do Gênesis, e procura desarticular o argumento de Martins acusando-o de panfletário e contrário aos cânones de objetividade do discurso crítico-científico. Com esse golpe, Enézio Filho procura atingir não só o artigo de Martins como os pareceristas que o aprovaram. Ocorre que o artigo foi submetido em dezembro de 2000 e aceito para publicação em junho de 2001 (aquele número da revista circulou em dezembro). Nesse mesmo período, em fevereiro de 2001, deu-se o recuo da junta estadual do Kansas, e o restabelecimento do ensino da evolução. Certamente, essa informação não pôde ser introduzida no artigo de Vieira Martins. Enézio Filho, que levou três anos para perceber essa importantíssima lacuna histórica, quer condenar o argumento de Martins para sustentar que está morta a teoria da evolução darwinista — leia-se teoria sintética da evolução, que meu adversário reduz ao singelo esquema 'mutação+seleção natural+tempo').

A meu ver, a importante controvérsia sobre o lugar da teoria da evolução nos currículos escolares é apenas um pretexto para o Sr. Enézio Filho defender o design inteligente, como teoria que teria superado o darwinsimo. O problema maior, ao meu ver, é que Enézio Filho não assume os importantes vínculos da teoria que defende com a do criacionismo. Senão, aqui seria o lugar para a pergunta: em que se diferencia o design inteligente do criacionismo? Para serem levados a sério, cientifica e filosoficamente falando, tanto Enézio Filho como Michael Behe, devem ser capazes de dizer, com todas as letras, o nome do projetista ou desenhista que falseia a teoria da seleção natural. Em ultima instância, ambos atribuem, como causa final, todas as mudanças (e permanências históricas) das espécies sobre o planeta ao poder desse suposto desenhista ou projetista inteligente.

Enézio Filho afirma que, até hoje, na literatura especializada, ninguém refutou a tese de Behe exposta no livro A caixa preta de Darwin. Afirma também que a teoria do design inteligente apresenta-se como a melhor inferência científica a partir das evidências encontradas na natureza. São afirmações falsas: há grande número de críticas detalhadas e arrasadoras ao livro de Behe e ao Projeto (ou Design) Inteligente. Muitas dessas críticas podem ser acessadas na Internet em:

http://www.world-of-dawkins.com/Catalano/box/behe.shtml

http://www.talkorigins.org/faqs/behe.html

http://www.talkdesign.org/

http://www.talkorigins.org/origins/faqs-creationists.html

http://www.talkorigins.org/

Merece atenção especial o excelente artigo de H. Allen Orr rebatendo com detalhes o livro de Behe, em http://www.bostonreview.net/br21.6/orr.html

Entre os livros com críticas ao projeto inteligente, destaco O livro de ouro da evolução: o triunfo de uma idéia, de C. Zimmer (Rio de Janeiro, Ediouro, 2003); Finding Darwin's God: a scientist's search for common ground between God and evolution, de K. R. Miller (New York, Cliff Streed Books, 1999) e Tower of Babel: the evidence against the new creationism, de R. T. Pennock (Cambridge, MIT Press, 2000). Todavia, contrariamente ao que afirma Enézio Filho, os sites e os livros mencionados mostram que há uma estreita união entre criacionistas e o projeto inteligente.

Pelo lado pessoal, intriga-me uma coincidência que emerge da leitura do texto de Enézio Filho. Ele informa que foi mestrando em história da ciência, na PUC de São Paulo, em 1998, onde pretendia escrever a dissertação Darwinismo em questão. Ciência ou Ideologia? O modus operandi da nomenklatura científica. Ocorre que, em meados de 1999, coordenei um curso de extensão no departamento de pesquisa da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, chamado "O darwinismo em questão". Em realidade, "O darwinismo em questão" foi o título de meu projeto para um pedido de bolsa de pesquisador recém-doutor, submetido ao CNPq justamente em setembro de 1998 (e aprovado em dezembro do mesmo ano).

Finalmente, Enézio Filho omite o dado de que o artigo de Maurício Vieira Martins foi publicado no Dossiê Darwinismo, ao lado de outros seis artigos de filósofos e biólogos de distintas formações tratando de diferentes aspectos, limites e perspectivas do darwinismo. Um desses artigos é de autoria de um teólogo, o dr. Eduardo Cruz, da PUC de SP. O que mostra que a Revista Manguinhos é fiel ao compromisso de oferecer uma pluralidade de pontos de vista científicos a seus leitores, e não quer doutriná-los com concepções que glorificam o mistério e a perfeição de um desenhista/projetista. Este insiste em sobreviver na mente de muitos que não suportariam olhar cientificamente a grande lacuna que existe no sentido da vida.

Ricardo Waizbort

Biólogo, doutor em semiologia, pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz ricw@coc.fiocruz.br

Rio de Janeiro, 13 de abril 2004

É surpreendente que nunca tenha ocorrido um questionamento [em dez anos de publicação da revista], pois há visões diferentes e cada grupo procura defender a sua visão. No caso da evolução ou da teoria neodarwinista existe toda uma história de mais de cento e cinqüenta anos de verdadeiros conflitos entre cientista X cientistas, criacionista X cientistas, filósofos X cientistas. Esse é um assunto tremendamente polêmico e cada grupo defende suas teses de forma veemente. Não me lembro do artigo, contudo a carta do Enézio E. de Almeida Filho deve ser respondida pelo autor do artigo e caso ele reconheça que os comentários do Enézio tenham algum valor para esclarecer as diferentes visões à revista. Depois de consultar um ou dois consultores, poderia publicar algum tipo de esclarecimento ou dar espaço para Enézio mostrar sua opinião. Creio que o ponto central do Enézio é a defesa do livro A caixa preta de Darwin que, em minha opinião, não apresenta nada de novo, pois faz referência a algo que o próprio Darwin tinha ciência e já comentava em 1859. Além disso, o livro defende de forma semi-oculta (indireta) a idéia de que existe um demiurgo (ou Deus) que participa na criação das espécies. Esse aspecto do livro, na minha opinião, é muito ruim pois não coloca claramente a posição do autor. Estou à disposição para acompanhar os desdobramentos do caso, que me parece muito interessante.

Ricardo Iglesias Rios

Departamento de Ecologia Instituto de Biologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro rir@biologia.ufrj.br

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Out 2004
  • Data do Fascículo
    Ago 2004
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