Resumo
Este trabalho consiste em um duplo esforço analítico: definicional, por um lado, quanto à unidade do campo das ciências históricas; e propositivo, por outro, buscando demonstrar vantagens epistêmicas para a historiografia quando dimensiona seus objetos no tempo histórico profundo e faz pesquisa interdisciplinar em ciências históricas (Historiografia, Paleontologia e Geologia, entre outras) para o fornecimento de descrições mais detalhadas e novas hipóteses para explicações históricas. Tal análise está disposta em três partes: (1) a definição de ciências históricas; (2) a definição de Tempo Histórico Profundo e sua recepção nessas ciências; e (3) o estudo de três situações na Historiografia em que é relevante a interdisciplinaridade de outras ciências históricas ou ao menos a exploração de fenômenos no passado profundo.
Palavras-chave
Tempo Histórico; Teoria e História da Historiografia; Ciências Naturais
Abstract
This work consists in a double analytical effort: definitional, on the one hand, regarding the unity of the Historical Sciences’ field; and propositive, on the other, seeking to demonstrate epistemic advantages for historiography when dimensioning its objects in Deep Historical Time and making interdisciplinary research in historical sciences (Historiography, Paleontology and Geology, among others) providing more detailed descriptions and new hypothesis for historical explanations. Such analysis is structured in three parts: (1) the definition of Historical Sciences; (2) the definition of Deep Historical Time and its receptions in these sciences; and (3) the study of three Historiographical situations which emphasize the interdisciplinarity with other historical sciences or at least the exploration of phenomena in the deep past.
Keywords
Historical Time; Theory and History of Historiography; Natural Sciences
Este trabalho vincula-se à filosofia analítica da história (Megill, 2016MEGILL, Allan. Historiologia/filosofia da escrita histórica. In: MALERBA, Jurandir. História & Narrativa: a Ciência e a Arte da escrita histórica. Petrópolis: Vozes, 2016. , p. 38-39); tendo por fim estudar problemas linguísticos e epistêmicos relacionados à Historiografia. Mas como também trataremos de outras ciências, este trabalho se insere na tradição analítica de Filosofia da Ciência, especialmente em uma abordagem comum à escola brasileira, na qual modelos lógico-matemáticos são empregados para a compreensão de problemas da filosofia da ciência. Nesse sentido, embora não apresentemos um sistema formal para a resolução de nossas questões, assumimos uma caracterização lógica para o tempo histórico/cronológico (cf. Goranko; Rumberg, 2023GORANKO, Valentin; RUMBERG, Antlje. “Temporal Logic”. In: ZALTA, Edward N. (org.). Stanford Encyclopedia of Philosophy, [s.l.], Center for the Study of Language and Information (CSLI), 2023. ) para a demarcação das ciências históricas e empregamos análise conceitual e vocabulários da Filosofia da Ciência e da Lógica, tanto quanto possível acompanhados de explicações e indicações.
Quanto ao âmbito da teoria da história, Simon ( 2019SIMON, Zoltan. B. Do Theorists of History Have a Theory of History? Reflections on a Non-Discipline. História da Historiografia: International Journal of Theory and History of Historiography, Ouro Preto, v. 12, n. 29, 2019. ) propôs dividi-la entre teorias na história (teorias aplicadas a subcampos da Historiografia) e teorias sobre a história (teorias que tocam em pontos basilares para a disciplina, podendo envolver tanto a escrita quanto o curso da história). Seguindo essa perspectiva, a proposta deste artigo se apresenta como uma teoria sobre a história, já que iremos debater sobre a coerência da prática das ciências históricas e seus fundamentos, particularmente seus objetos no tempo histórico. Conjuntamente a Simon, acreditamos que “teorias sobre a história podem mudar a autoimagem de toda a disciplina e, então, orientá-la em sua relação externa com outras disciplinas” (Simon, 2019SIMON, Zoltan. B. Do Theorists of History Have a Theory of History? Reflections on a Non-Discipline. História da Historiografia: International Journal of Theory and History of Historiography, Ouro Preto, v. 12, n. 29, 2019. , p. 60-61). No nosso caso, pretendemos relacionar a atual Historiografia às demais ciências históricas classificadas por William Whewell (Laudan, 1992LAUDAN, R. What’s so Special about the Past?. In: NITECKI, M.H.; NITECKI, D.V. (eds.). History and Evolution. New York: SUNY Press, 1992. , p. 58) no século XIX: Geologia, Paleontologia, Cosmologia, Arqueologia e Filologia (hoje, Linguística Histórica), além da recente Psicologia do desenvolvimento. Uma forma didática (e aproximada) de apresentar essas disciplinas é através das escalas temporais nas quais geralmente se encontram seus respectivos objetos de estudo (Kastens, 2011 KARSTENS, Kim. Seeking Kosmos. Earth and Mind: the blog, [s.l.], 18, nov., 2011. Disponível em: https://serc.carleton.edu/earthandmind/posts/cosmos.html . Acesso em: 22 nov. 2023.
https://serc.carleton.edu/earthandmind/p...
):
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Anos e décadas: Psicologia do Desenvolvimento
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Décadas e séculos: História e Linguística Histórica
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Séculos e milhares de anos: Arqueologia
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Milhares e milhões de anos: Geologia e Paleontologia
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Milhões e bilhões de anos: Cosmologia
Quanto ao nosso objetivo, trata-se de oferecer razões epistêmicas para a aproximação entre as ciências históricas, a fim de enriquecer oportunamente a descrição dos fenômenos no tempo histórico. Embora haja um conjunto de ciências históricas, a especialização dessas diferentes ciências tem tornado o termo, em sentido amplo, quase que arcaico. Ademais, essas ciências têm se distanciado por se distinguirem quanto aos métodos empregados e por objetivarem explicar e descrever fenômenos ontologicamente distintos. Contudo, floresceram pesquisas interdisciplinares sobre fenômenos no tempo histórico, como aquelas oferecidas pela Big History e pela Deep History , com procedimentos quantitativos e qualitativos aplicáveis a várias ciências históricas. Em consonância a esses empreendimentos empíricos interdisciplinares, o livro Scientific Knowledge and the Deep Past: history matters , de Adrian Currie ( 2019CURRIE, Adrian. Scientific Knowledge and the Deep Past: history matters. Cambridge: Cambridge University Press, 2019. ) chamou a atenção para problemas característicos desse conjunto de ciências e para a particularidade comum de como progridem e explicam em suas narrativas. Tal assunto fora tratado por um artigo anterior de Currie ( 2014CURRIE, Adrian. Narratives, mechanisms and progress in historical science. Synthese, [s.l.] v. 191, n. 6, p. 1163-1183, 2014. ). Nesse contexto, ofereceremos uma definição mais precisa de “ciências históricas” e demonstraremos vantagens na interdisciplinaridade entre essas ciências, especialmente em fenômenos que emergem entre o passado recente e o passado profundo (como definiremos).
É recente o uso de “ciências históricas” e “Historiografia” enquanto equivalentes, ou como se “ciências históricas” englobasse apenas “áreas auxiliares da Historiografia”, tais como a numismática e a cronologia. Na Antiguidade, porém, o termo “história”, que denominava um tipo de investigação, foi empregado em História dos Animais ( Tn perì tà zia historin ), de Aristóteles, décadas após ser utilizado por Heródoto em Histórias ( Historíai ), e tornou-se também influente em um sentido amplo, inclusive na tradição latina, como na Naturalis Historia , de Plínio, o Velho.
Tal influência, na Idade Média e na Modernidade, passou para as línguas românticas, e outras, como o alemão; daí porque Johann Droysen no século XIX precisou caracterizar a particularidade do objeto da Historiografia ( Geschichte ) em oposição à História Natural ( Naturgeschichte ) de Darwin, Haeckel e outros (Droysen, 1983DROYSEN, Johann G. Histórica: Lecciones sobre la Enciclopedia y metodologia de la historia. Barcelona: Editorial Alfa, 1983. , p. 31). A matéria de sua investigação, afinal, é o humano; não em sua parte animal, mas em sua contraparte moral/cultural, fundada na linguagem (Droysen, 1983DROYSEN, Johann G. Histórica: Lecciones sobre la Enciclopedia y metodologia de la historia. Barcelona: Editorial Alfa, 1983. , p. 12; 31). Essa noção se tornou comum na segunda metade do século XIX. Analogamente, a terminologia de “ciências morais” (distinguindo de “ciências naturais”) foi defendida na Inglaterra por Stuart Mill em The Logic of the Moral Sciences ( 1988MILL, Stuart. The Logic of the Moral Sciences. Chicago: Open Court Publishing, 1988. [1872]).
Impressiona a atualidade das justificativas de Droysen e desses outros autores. Por um lado, o autor destaca a linguagem humana como essencialmente diferente da comunicação de outros animais (Droysen, 1983DROYSEN, Johann G. Histórica: Lecciones sobre la Enciclopedia y metodologia de la historia. Barcelona: Editorial Alfa, 1983. , p. 31-32); por outro, retorna ao De Anima de Aristóteles e contrasta o fato de que os animais (incluindo a parte animal do humano) reproduz-se periodicamente dentro das características do gênero a que pertence e só muito lentamente – considerando a teoria evolutiva – tal gênero transforma-se, enquanto a parte cultural/moral do humano não possui um gênero comum e tampouco uma reprodução natural. Para além de uma característica “genérica”, a parte cultural/moral do humano possui “sempre um aumento progressivo”, e apenas nesse aspecto “a expressão história é utilizada” ( wird der Ausdruck Geschichte angewandt ), em um sentido próximo ao que conhecemos hoje (Droysen, 1983DROYSEN, Johann G. Histórica: Lecciones sobre la Enciclopedia y metodologia de la historia. Barcelona: Editorial Alfa, 1983. , p. 12-13).
A atualidade dessas justificações é flagrante em livros introdutórios sobre História, Antropologia e Linguística, áreas que frequentemente demarcam uma fronteira entre fenômenos naturais e fenômenos socioculturais. É comum remontar-se a estudos antropológicos e sociológicos sobre as formas com as quais o humano reproduz sua cultura e laços sociais. A partir da Sociobiologia (Wilson, 2000WILSON, Edward. O. Sociobiology: the new synthesis. 25th anniversary ed. Cambridge, Mass: Belknap Press of Harvard University Press, 2000. [1975]; Levallois, 2018LEVALLOIS, Clement. The Development of Sociobiology in Relation to Animal Behavior Studies, 1946-1975. Journal of the History of Biology, [s.l.] v. 51, n. 3, p. 419-444, 2018. ), Latour reconhece a amplitude da capacidade de gerar um mundo social a partir do entrelaçamento de micro-organismos, plantas e animais (Latour, 2005LATOUR, Bruno. Reassembling the social: an introduction to actor-network-theory. Oxford; New York: Oxford University Press, 2005. , p. 7), mas diferencia a capacidade humana de manter estruturas sociais e fluxos de poder a partir da sua habilidade de gerir redes de objetos, seres vivos e tecnologias que materializam e fixam essas relações e hierarquias, as quais não estão disponíveis a outras espécies, precisando de um esforço constante para refazer seus laços sociais (Latour, 2005LATOUR, Bruno. Reassembling the social: an introduction to actor-network-theory. Oxford; New York: Oxford University Press, 2005. , p. 69-71 e p. 199). Já no domínio da Linguística, vemos estudos como de Émile Benveniste ( 1985BENVENISTE, Émile. Problemas de lingüistica general. v. I. Madrid: Siglo veintiuno de españa editores, 1985. ), que compara a altamente descritiva e efetiva comunicação das abelhas com peculiaridades únicas da linguagem humana, como de poder ter suas partículas destacadas e analisadas funcionalmente (como em verbo, predicado etc.).
Todavia, ainda que haja razões ontológicas para a distinção do que é próprio dos humanos, parece-nos haver também razões epistemológicas para se preferir que a investigação histórica opere para além do domínio cultural da espécie humana; daí porque, ao final deste trabalho, argumentaremos que os fenômenos históricos tanto naturais quanto humanos podem ser agrupados. O que mostraremos é que estas razões (epistemológicas) são preferíveis àquelas (ontológicas) para se justificar uma noção mais ampla de ciência histórica no emprego de um tempo histórico profundo, como abordaremos a seguir.
A formulação da caracterização e da consistência dos princípios comuns às áreas históricas ocupará o primeiro tópico. No tópico seguinte, consideraremos a profundidade dos fenômenos no tempo histórico e, no tópico final, examinaremos a pertinência do “tempo profundo” em uma investigação histórica interdisciplinar.
Ciências históricas
Há dois diferentes modos para se definir um sentido amplo de “ciências históricas” ou “ciências genéticas”. O primeiro modo consiste em utilizar a noção de explicação genética , de Gallie ( 1964GALLIE, Walter. B. Explicações em História e as Ciências Genéticas. In: GARDINER, Patrick (org.). Teorias da História. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1964 [1955], p. 472-493. [1955]). Uma explicação desse tipo seria comum a várias ciências além da Historiografia. De modo geral, Gallie sugere que grande parte da Biologia, da Geologia, das Ciências Sociais e da Psicologia explicam seus fenômenos não por causas suficientes , mas por causas necessárias , i.e., as condições sem as quais não haveria tais fenômenos no tempo histórico. Isso demarca uma dependência genética de certos eventos prévios dentro de um processo maior para se explicar eventos posteriores (Gallie, 1964GALLIE, Walter. B. Explicações em História e as Ciências Genéticas. In: GARDINER, Patrick (org.). Teorias da História. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1964 [1955], p. 472-493. , p. 480). Como ele argumenta, parece haver semelhanças metodológicas entre explicações de diferentes disciplinas chamadas “históricas”. Contudo, é possível caracterizar as ciências históricas em sentido amplo ao apenas considerarmos a natureza temporal e epistêmica comum às suas descrições (sem especificar sua natureza explicativa) pela seguinte definição:
Definição 1 (Ciências históricas). Uma ciência é histórica quando: (I) suas proposições correspondem a prováveis fatos em um tempo histórico e (II) adquire conhecimento acerca desses fatos considerando ao menos o princípio do atualismo histórico.
No tocante ao tempo das ciências históricas (requisito (I)), há um trecho de Marc Bloch ( 2001BLOCH, Marc. Apologia da História ou O Ofício do Historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2001 [1949]. [1949], p. 55) que está entre os mais citados da história da historiografia; especialmente usada por autores como Paul Ricoeur ( 2012RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa: 3. O tempo narrado. São Paulo: Martins Fontes, 2021., p. 238-239, n. 4) para caracterizar a Historiografia como “a ciência que estuda os homens no tempo”, mas é pouco lembrada a sequência desse trecho, no qual Bloch reconhece outras disciplinas como históricas devido à relevância epistêmica do tempo histórico. Em suas palavras:
Realidade concreta e viva, submetida à irreversibilidade de seu impulso, o tempo da história, ao contrário [do tempo de outras ciências], é o próprio plasma em que se engastam os fenômenos e como o lugar de sua inteligibilidade. O número dos segundos, anos ou séculos que um corpo radioativo exige para se transformar em outros corpos é, para a atomística, um dado fundamental. Mas que esta ou aquela dessas metamorfoses tenha ocorrido há mil anos, ontem ou hoje ou que deva se produzir amanhã, sem dúvida tal consideração interessaria ao geólogo, porque a geologia é, à sua maneira, uma disciplina histórica; ela deixa o físico frio como o gelo.
No trecho acima, Bloch não se refere ao “tempo histórico” em uma dimensão fenomenológica, ou seja, à experiência humana do tempo histórico. Em vez disso, o tempo histórico está sendo pensado como uma dimensão lógica na qual se pode localizar proposições, ou seja, localizar quando uma proposição é verdadeira ou falsa. Por exemplo: quando é verdadeiro que “o Vesúvio entrou pela primeira vez em erupção”. Seguindo esse raciocínio, podemos afirmar que o tempo histórico é o que permite algo ser “inteligível” às ciências históricas.
Uma maneira simples de visualizar nossa delimitação é por meio das diferentes questões levantadas por historiadores, classificadas por Daniel Little ( 2010LITTLE, Daniel. New Contributions to the Philosophy of History. New York: Springer, 2010. , p. 5-6) como “questões-como” ( how-questions ), “questões-porquê” ( why-questions ), “questões-(o)-quê” ( what-questions ) e “questões-quando” ( when-questions ). Embora tais perguntas cruzem-se na epistemologia historiográfica, tal como os procedimentos nomotético e idiográfico (Currie, 2019CURRIE, Adrian. Scientific Knowledge and the Deep Past: history matters. Cambridge: Cambridge University Press, 2019. , p. 62), oferecemos uma delimitação minimalista para as ciências históricas com base em suas respostas para questões-(o)-quê e questões-quando. Pelo que possíveis áreas do conhecimento que não sejam “estritamente” explicativas ou preditivas ainda assim possam se encaixar dentro das ciências históricas. Como exemplo: um catálogo com um fim puramente descritivo de moedas do Império Romano.
Como uma “definição minimalista” para as ciências históricas, estamos adaptando a definição minimal de “historiador” de Arthur Danto ( 2007DANTO, Arthur. Narration and knowledge: including the integral text of Analytical philosophy of history. New York: Columbia University Press, 2007. , p. 25), que não se trata de uma condição suficiente , mas apenas necessária , para ser historiador, a saber: enunciar descritivamente sentenças verdadeiras no tempo cronológico (ou seja, de o-que ocorreu e de quando ocorreu). Essa condição captura minimamente a atividade descritiva do historiador, embora não tenha a pretensão de assumir que o historiador apenas descreve eventos , mas que no mínimo os descreve 1 1 Para uma definição mais ampla (não minimal), considerando também a metodologia do trabalho do historiador, conferir Estevão Martins ( 2011 , p. 295-296). .
Com efeito, tratamos de respostas a perguntas do tipo “O que ocorreu no final do período Cretáceo?” (exemplo de questão-o-que) ou “Quando ocorreu a extinção dos dinossauros (não aviários)?” (exemplo de questão-quando). Em ambos os casos pressupõe-se um tempo histórico, no sentido de Bloch, com ao menos três características esquematizadas abaixo:
Definição 2 (Tempo histórico). Um tempo é histórico quando: (i) é não relativístico, i.e., semanticamente independente de uma estrutura de espaço; (ii) é ordenado em uma sucessão de instantes/eventos ou intervalos/períodos temporais; e (iii) é terminal, i.e., a sucessão de eventos ou períodos vai do passado mais distante até um dado instante ou período chamado “presente”.
Em suma, o tempo histórico é (i) não relativo , (ii) extensionalmente ordenado e (iii) final/terminal (no presente). Por (i) determina-se que não estamos pressupondo um tempo-espaço einsteiniano. Por (ii), evitamos a confusão de tempo histórico com historicidade e nos limitamos ao sentido da dimensão lógica/cronológica da passagem de Bloch sobre o tempo histórico, enquanto um conjunto não vazio ordenado de instantes t 1 , t 2 ,...,t n (seja n um número natural) ou períodos de tempo (cf. Van Benthem, 1983VAN BENTHEM, Johan van. The Logic of Time: a model-theoretic investigation into the varieties of temporal ontology and temporal discourse. London: Springer, 1983. ). 2 2 Em lógicas temporais de instantes: história ( history ) é um par ⟨ Ω,R ⟩ em que Ω é um conjunto não vazio de instantes e R é uma relação de ordenação entre eles. Em cada instante t elemento de Ω , pode haver proposições verdadeiras ou falsas (cf. McArthur, 1976 , p. 9). Como um termo mais “neutro” no debate ontológico sobre instantes/pontos ou períodos/intervalos de tempo, doravante empregaremos o termo “momentos”. Por (iii), salientamos que o tempo histórico precisa demarcar um presente (relativo) em constante mudança, sob o qual se baseia o princípio do atualismo histórico , o que afirma que toda história é uma história a partir de um presente. Essa dimensão nada mais é que o “terceiro tempo”, “tempo do calendário” ou “tempo crônico” que satisfaz as condições de Benveniste apud Ricoeur ( 2007RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. São Paulo: Unicamp, 2007. , p. 163):
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1)
referência de todos os acontecimentos a um acontecimento fundador que define o eixo do tempo;
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2)
possibilidade de percorrer os momentos segundo as duas orientações opostas da anterioridade e da posteridade com relação à data zero;
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3)
constituição de um repertório de unidades que servem para denominar os momentos recorrentes: dia, mês, ano etc.
Passemos agora ao item (II) da Definição 1 (doravante, Def. 1) O princípio epistêmico do atualismo foi proposto por um dos fundadores da Geologia, Charles Lyell ( 1837LYELL, Charles. Principles of Geology: Being an Inquiry How Far the Former Changes of the Earth’s Surface are Referable to Causes Now in Operation. v. 1. Philadelphia: J. Kay, Jun, Brother, 1837. ), junto do princípio do gradualismo . A união desses dois princípios (embora com variações) forma a doutrina do uniformitarismo, a qual caracteriza a Geologia, e foi posteriormente utilizada na História Natural, na Linguística Histórica (Geric, 2013GERIC, Michelle. Tennyson’s “Maud” (1855) and the “unmeaning of names’: Geology, Language Theory, and Dialogics. Victorian Poetry, [s.l.], v. 51, n. 1, 2013, p. 37-62. , p. 38; Walkden, 2019WALKDEN, George, Walkden. The many faces of uniformitarianism in linguistics. Glossa: A Journal of General Linguistics. v. 4, n 1, p. 52, 2019. ) e, ultimamente, nas ciências históricas em sentido amplo (Currie, 2019CURRIE, Adrian. Scientific Knowledge and the Deep Past: history matters. Cambridge: Cambridge University Press, 2019. , p. 5-6).
Parece-nos, porém, como também a Currie ( 2019CURRIE, Adrian. Scientific Knowledge and the Deep Past: history matters. Cambridge: Cambridge University Press, 2019. , p. 6), que o princípio do gradualismo é mais heurístico do que algo necessário a toda pesquisa histórica. A ideia do gradualismo consiste em afirmar que grandes mudanças ao longo do tempo histórico não surgem abruptamente, mas, de modo incremental, ao longo de um processo que se distribui no tempo (como também no espaço). Nesse sentido, podemos afirmar que normalmente não é esperado que se forme uma montanha repentinamente, que uma especiação ocorra na passagem de apenas uma geração para outra ou que uma mudança de mentalidade seja alterada de um dia para o outro. Todas essas situações não são impossíveis, mas pouco plausíveis.
Apresentaremos o princípio do atualismo em uma versão metodológica, menos comprometedora entre as outras versões possíveis (Oldroyd, 2003OLDROYD, David R. Four. The Earth Sciences. In: CAHAN, David (org.). From Natural Philosophy to the Sciences: Writing the History of Nineteenth-Century Science. Chicago: The University of Chicago Press, 2003, p. 88-128. , p. 96). O atualismo metodológico consiste em afirmar que as hipóteses apropriadas para descrever o passado geológico são aquelas passíveis de analogias com fenômenos atuais conhecidos. Em termos mais gerais, aplicando tal princípio às demais ciências históricas, detalharemos o atualismo metodológico enriquecendo-o com apontamentos epistemológicos de Currie ( 2019CURRIE, Adrian. Scientific Knowledge and the Deep Past: history matters. Cambridge: Cambridge University Press, 2019. , p. 5-7) sobre a relação entre fatos e evidências.
Definição 3 (Atualismo histórico). Uma ciência assume o princípio epistêmico de atualismo histórico quando: (1) descreve fatos presentes ou pretéritos dentro do tempo histórico; (2) os fatos referidos são, para a comunidade científica, epistemicamente acessíveis por objetos presentes/atuais; e (3) toda hipótese provável formulada para reconstruir cognitivamente o que ocorreu é análoga a algum fato atual conhecido.
Em suma, atualismo histórico envolve (1) descritibilidade histórica , (2) acessibilidade histórica e (3) atualismo metodológico . De forma metafórica, pode-se dizer que o atualismo histórico consiste em declarar que “o presente é a chave para conhecer o passado”. A instanciação dos fatos no tempo histórico – conforme (1) – e a acessibilidade do passado através de objetos presentes – seguindo (2) – garantem a possibilidade de basear hipóteses em fontes históricas , ou, no caso da ausência de fontes suficientes, de formular hipóteses com base em fenômenos análogos no presente – como previsto em (3).
Evidentemente, o princípio que enunciamos é fraco para caracterizar um “paradigma” kuhniano das ciências históricas, mesmo porque nosso princípio nada informa sobre o que há no passado e não instrui como explicar fenômenos históricos (Kuhn, 1998KUHN, Thomas S. A estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo: Editora Perspectiva, 1998. , p. 46-48). Como já mencionado, não pretendemos oferecer uma teoria na história sobre um fenômeno básico que poderia servir de modelo explicativo para outros, tal qual a teoria newtoniana da gravitação como paradigma para outros fenômenos em física clássica. Diversamente, abordaremos uma teoria da história em uma unidade epistêmica mínima para um conjunto de ciências chamadas “ciências históricas”. Dentro dessas ciências históricas (vide Def. 1), por comodidade à convenção de Droysen 3 3 Para uma introdução à teoria da história de Droysen, situando-o no debate entre explicação e compreensão (e não apenas no âmbito descritivo), ver Bentivoglio, 2009 . Para um exemplo de desdobramento recente das ideias de Droysen, ver Rüsen, 2013 . , estabeleceremos os seguintes termos:
Definição 1.1 (historiografia). Chamamos de historiografia a parte das ciências históricas que se ocupa de compreender/explicar e/ou descrever fenômenos tipicamente humanos; por extensão, historiador é quem se ocupa das historiografias.
Definição 1.2 (história natural). Chamamos de História Natural a parte das ciências históricas que se ocupa de fenômenos naturais tipicamente não exclusivos dos humanos; por extensão, naturalista 4 4 Não confundir com o sentido técnico-filosófico do termo em que Quine, Searle e outros filósofos se enquadram como naturalistas. Particularmente sobre naturalismo em epistemologia e filosofia da ciência, ver Dutra, 2009 , p. 193-210. é quem se ocupa da história natural.
Veremos como em ambos os domínios de objetos (do humano e do natural) é desejável uma complementaridade interdisciplinar para uma adequada reconstrução hipotética de fenômenos do passado. Convém observar que o grande campo das ciências históricas, tal qual o da Historiografia, estudado em suas subdivisões por José D’Assunção Barros ( 2004BARROS, José D’Assunção. O Campo da História. Petrópolis: Vozes, 2004. , p. 15-22), possui: domínios , que levam a vários “tipos de histórias” (i.e., história de determinado objeto x ); e modalidades , no sentido de se articular em diferentes dimensões (ambiental, econômica, política, cultural etc.) e segundo diferentes abordagens (conforme a perspectiva ou o tipo de fonte).
Há duas abordagens (“modos de fazer história”) recentes e promissoras nas ciências históricas por requisitarem a interdisciplinaridade para desenvolver um conhecimento histórico profundo a respeito de fenômenos históricos. Essas abordagens são as da Big History e da Deep History. Essas abordagens não diferem necessariamente quanto à fonte empregada, mas sim quanto à perspectiva temporal, remetendo ao que denominaremos passado profundo.
Todavia, antes de seguirmos para o próximo tópico, convém algumas observações sobre a Def. 3. Cumpre destacar que (1) pressupõe a Def. 2 de tempo histórico e os itens (2) e (3) especialmente requerem a característica (iii) do tempo histórico. Ademais, de um lado, o critério (1) define o objeto epistêmico das ciências históricas; por outro lado, (2) e (3) definem a probabilidade histórica , ou seja, como as hipóteses prováveis sobre o que ocorreu são construídas. Esse critério possibilita subdeterminação de hipóteses históricas, i.e., diferentes hipóteses (passados prováveis) cujas evidências empíricas não são suficientes para determinar a escolha de uma em detrimento das demais. Tal critério não implica na falta de avanço do conhecimento, tendo em vista que novos métodos, tecnologias, teorias e novas evidências podem vir a testar hipóteses antes subdeterminadas (Currie, 2014CURRIE, Adrian. Narratives, mechanisms and progress in historical science. Synthese, [s.l.] v. 191, n. 6, p. 1163-1183, 2014. , p. 1175-1176; Currie, 2019CURRIE, Adrian. Scientific Knowledge and the Deep Past: history matters. Cambridge: Cambridge University Press, 2019. , p. 4; e Costa, 2019COSTA, Vítor M. Necessidade e possibilidade nas ciências históricas: Resultados semânticos de uma tradução modal contradiodoreana e de uma lógica temporal occasmista para o passado. Princípios: Revista de Filosofia, Natal, v. 26, n. 51, p. 235-256, 2019. ). Tal procedimento é válido tanto para hipóteses genéticas quanto para documentais, as quais trataremos agora com um detalhamento maior seguido de exemplos sobre (2) e (3).
Com a condição (2), cientistas históricos consideram provável que tal ou qual fato ocorreu quando uma hipótese é bem fundamentada em fontes históricas . Não nos cabe analisar quando uma hipótese está suficientemente fundamentada, mas podemos observar os tipos de fontes históricas utilizados por historiadores e naturalistas. As fontes históricas em Historiografia são testemunhos ou indícios , com base nos paradigmas historiográficos de Bloch e Ginzburg. Esses dois tipos de fontes históricas são complementares, como percebe Paul Ricoeur ( 2007RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. São Paulo: Unicamp, 2007. , p. 185), “o indício é referenciado e decifrado; o testemunho é dado e criticado”, continua:
A semiologia indiciária exerce seu papel de complemento, de controle, de corroboração em relação ao testemunho oral ou escrito, na medida mesma em que os signos que ela decifra não são de ordem verbal: impressões digitais, arquivos fotográficos e, hoje em dia, exames de DNA – essa assinatura biológica do ser vivo – “testemunham” por seu mutismo. Os discursos diferem entre si de maneira diferente que os lóbulos das orelhas.
Embora possa ser questionável a fronteira rígida entre testemunho-indício, um correlato dessa diferença pode ser encontrado na História Natural pela distinção entre “fóssil” e o que chamaremos de “ quasi- testemunho”. Fósseis são usualmente divididos entre restos (ou somatofósseis ) e vestígios (ou icnofósseis ); isso deixando de lado pseudofósseis e dubiofósseis (Cassab 2010CASSAB, Rita de Cassia Tardin. Objetivos e Princípios. In: CARVALHO, Ismar de Souza (org.). Paleontologia: conceitos e métodos. v. 1. Rio de Janeiro: Interciência, 2010. , p. 11). Dizemos que resto é um tipo de fóssil relativo a alguma parte do ser vivo preservada (i.e., evidências diretas dos seres vivos, como fósseis de dentes, de folhas e de conchas). Vestígio , por outro lado, é um tipo de fóssil relativo a evidências indiretas dos seres vivos, isto é, resultam de suas atividades biológicas: como estromatólitos, fósseis de pegadas, de marcas de mordidas, de excrementos (os coprólitos), secreções urinárias (urólitos)e túneis.
Quanto aos quasi -testemunhos, como sugere a expressão em latim quasi , são “ como se fossem testemunhos”, no sentido de serem objetos presentes/atuais que não são sobras/restos do passado e vestígios, pois não são “efeitos” desses objetos deixados no presente. O quasi -testemunho da História Natural trata-se principalmente do DNA, o que Richard Dawkins ( 2009DAWKINS, Richard. A grande história da evolução: Na trilha dos nossos ancestrais. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. , p. 30), de maneira mais didática, chama de “relíquias renovadas”, enquanto “registros” que, apesar de não serem eles próprios antigos, contêm ou incorporam uma cópia ou representação do que existiu em um passado longínquo. “Essas relíquias, na história humana, são”, compara Dawkins, grosso modo , como “relatos escritos ou orais que foram transmitidos, repetidos, reimpressos ou de alguma outra forma reproduzidos do passado para o presente”.
Tal como a complementaridade entre indício e testemunho na historiografia, Adrian Currie ( 2019CURRIE, Adrian. Scientific Knowledge and the Deep Past: history matters. Cambridge: Cambridge University Press, 2019. , p. 8) nota que a relação estabelecida entre o DNA e os fósseis na Biologia do passado profundo é semelhante à relação mostrada por Christopher Hawkes ( 1954HAWKES, Christopher. Wenner-Gren Foundation Supper Conference: Archeological Theory and Method: Some Suggestions from the Old World. American anthropologist, [s.l.], v. 56, n. 2, p. 155-168, 1954. , p. 160) entre os textos e os indícios materiais para a arqueologia, na medida em que os primeiros, enquanto testemunhos, são geralmente utilizados como pontos de referência para a interpretação dos segundos, os indícios.
Contudo, devemos ressalvar: os testemunhos históricos (orais ou escritos) podem conter informações falsas (intencionalmente ou não) e, por esse e outros aspectos próprios das línguas naturais e da retórica discursiva, a abordagem metodológica e crítica dos testemunhos propriamente ditos é totalmente diferente da abordagem requisitada ao naturalista que cruze seus fósseis com a decodificação do DNA. Não obstante, podemos facilmente encontrar exemplos paralelos de consensos para respostas a questões-(o)-quê em História Natural e Historiografia a partir de tais tipos de fontes:
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Sabemos, tendo por base o DNA, que o Smilodon (popularmente conhecido como dente-de-sabre) não é um felino ( Felinae ), mas faz parte de outra subfamília, a saber, Machairodontinae ;
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Sabemos, por registros da época (como de Plutarco), que provavelmente Júlio César morreu em 15 de março de 44 antes da Era Comum (AEC);
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Sabemos, por vários indícios materiais preservados, que muito provavelmente a erupção do vulcão Vesúvio destruiu a cidade de Pompeia em 79 da Era Comum (EC);
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Sabemos, por uma farta base de restos, que muitos dinossauros tinham penas.
Os dois primeiros itens acima são casos de conhecimento baseado em testemunho ou quasi -testemunho; os dois últimos, casos de conhecimento por indícios ou fósseis. Observando que em todos os casos não se trata de um conhecimento totalmente seguro (como esperado de qualquer ciência empírica), mas que pode ser entendido, conforme a abordagem de Henri Poincaré ( 1902POINCARÉ, Henry. La science et l’hypothese. Paris: Print, 1902. , p. 5) – a qual inspirou Marc Bloch ( 2001BLOCH, Marc. Apologia da História ou O Ofício do Historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2001 [1949]. [1949], p. 27) – como um conhecimento de base hipotética enriquecido de evidências empíricas. No caso das ciências históricas, essas evidências são constituídas por indícios e testemunhos.
Ocorre que, além de hipóteses documentais , como podemos nos referir aos quatro exemplos acima, também devemos considerar hipóteses genéticas: aquelas formuladas muitas vezes na ausência de fontes históricas diretas, mas que geralmente são tão prováveis quanto hipóteses documentais, e igualmente falseáveis por novas informações que venham a ser obtidas pela comunidade científica. Daremos três exemplos de hipóteses genéticas advindos da Linguística Histórica, da Antropologia Histórica e dos estudos clássicos.
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Devido a uma vasta semelhança linguística (fonética, morfológica, sintática, verbal e semântica) entre as línguas modernas indo-europeias, muito provavelmente existiu uma língua ancestral comum a todas elas, o proto-indo-europeu (Benveniste, 1985BENVENISTE, Émile. Problemas de lingüistica general. v. I. Madrid: Siglo veintiuno de españa editores, 1985. , p. 100-101);
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Os estudos comparativos em diferentes sociedades de caçadores-coletores atuais oferecem ricas evidências indiretas para sociedades antigas não agrícolas do pleistoceno e holoceno, em que, levando em conta as diferenças atuais climáticas, tecnológicas e ecológicas, ainda é o tipo de evidência mais significativo para se formular hipóteses sobre a evolução comportamental humana (Marlowe, 2005MARLOWE, Frank. W. Hunter-gatherers and human evolution. Evolutionary Anthropology: Issues, News and Reviews, [s.l.] v. 14, n. 2, p. 54-67, 2005. ).
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Através dos estudos etnográficos usados para compreender a composição das canções dos atuais bardos dos Balcãs, formulam-se hipóteses sobre os aedos da Grécia Homérica e Arcaica, inferindo modos de composição improvisados nas performances orais dos textos homéricos, os quais são baseados em fórmulas e epítetos prévios como táticas mnemônicas (West, 2011WEST, Martin. The Homeric Question Today. Proceedings of the American Philosophical Society, v. 155, n. 4, p. 383-393, 2011. , p. 390-391).
Em todos os casos temos pouca ou nenhuma fonte histórica que sustente tais hipóteses, mas uma comparação sistemática de fenômenos análogos no presente suporta hipóteses prováveis. Seria possível dizer o mesmo de hipóteses genéticas em outras áreas das ciências históricas: mesmo sem nenhum fóssil, por exemplo, muito se pode inferir sobre a história da evolução apenas com uma comparação sistemática das espécies atualmente vivas (Dawkins, 2009DAWKINS, Richard. A grande história da evolução: Na trilha dos nossos ancestrais. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. , p. 31). Repare que nenhuma dessas hipóteses seria considerada provável sem o item (3) do critério de atualismo histórico.
Ciências históricas no tempo histórico profundo
Concluído nosso esforço inicial de delimitação das ciências históricas, abordaremos como essas disciplinas podem empregar o que definiremos como “passado profundo”, dentro do tempo histórico (vide Def. 2), possibilitando uma “história profunda”. Seguiremos três tópicos:
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Como o tempo profundo foi concebido na Geologia;
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O que historiadores e naturalistas chamam de história/tempo profundo(a);
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A apropriação desse tempo na historiografia através de duas abordagens historiográficas ( Deep History e Big History ).
John McPhee, no livro Basin and Range ( 2000McPHEE, John. Basin and Range. New York: Noonday Press, 2000 [1981]. [1981]), descreve a concepção do tempo geológico como a descoberta de um tempo profundo. Essa descoberta suscitou um grande debate nas ciências históricas sobre a formação da terra durante o final do século XVIII e ao longo do século XIX. A visão predominante até então era a de que a Terra teria 6000 anos de idade (criada em 4004 antes da Era Comum), segundo a contagem do arcebispo James Ussher no seu livro The Annals of the World ( 1658USSHER, James. The Annals of the World. Green Forest, AR: Master Books, 2007 [1658].), seguindo as genealogias bíblicas (Caxito, 2018, p. 236). Essa cronologia bíblica, segundo Daniel Smail ( 2008SMAIL, Daniel L. On deep history and the brain. Berkeley: University of California Press, 2008. , p. 21), dava suporte às teorias geológicas catastrofistas, as quais concebiam a formação terrestre a partir de grandes eventos extraordinários e não recorrentes, como dilúvios ou atividades vulcânicas. Essas visões foram, em parte, desafiadas por James Hutton, que, através de uma perspectiva mecanicista, sustentou que a Terra havia se formado por ações regulares em um longo período, a partir de leis naturais, sem deixar indícios de um começo ou um possível fim (Gould 2007GOULD, Stephen J. Time’s arrow, time’s cycle: myth and metaphor in the discovery of geological time. Massachusetts: Harvard University Press, 2007. , p. 64). Caxito (2018, p. 238) afirma que, no modelo de Hutton, podemos identificar a base do uniformitarismo e de seus dois princípios: o atualismo e o gradualismo (discutidos na primeira parte do artigo – Def. 3). Os princípios do uniformitarismo nos levam a uma oposição tanto às teorias catastrofistas quanto à cronologia de Ussher, demandando um tempo mais profundo para acomodar o processo de formação geológica.
Hutton, porém, não rompeu totalmente com a visão teológica e a datação tradicional, à medida que evitava a questão da origem humana e tinha uma posição cética sobre a possibilidade de uma datação precisa da Terra (Smail, 2008SMAIL, Daniel L. On deep history and the brain. Berkeley: University of California Press, 2008. , p. 24). Ambas as questões foram debatidas e desenvolvidas ao longo do século XIX, a partir de estudos da cronologia terrestre baseados na sucessão de estratos, desde o livro Principles of Geology , de Lyell ( 1837LYELL, Charles. Principles of Geology: Being an Inquiry How Far the Former Changes of the Earth’s Surface are Referable to Causes Now in Operation. v. 1. Philadelphia: J. Kay, Jun, Brother, 1837. ).
Quanto à origem antropológica, inicialmente Lyell mostrou resistência à associação entre o tempo geológico e a antiguidade humana, ignorando as descobertas de antiquários nas escavações de estratos, onde foram achados animais extintos ao lado de ferramentas humanas (Smail, 2008SMAIL, Daniel L. On deep history and the brain. Berkeley: University of California Press, 2008. , p. 25). A barreira que impedia a relação entre o tempo geológico e o humano só mudou com os debates na segunda metade do século XIX, envolvendo tanto a Antropologia pré-histórica (com o estudo do Paleolítico e do Neolítico por John Lubbock) quanto a História Natural, a partir da teoria da evolução de Darwin e Wallace (Smail, 2008SMAIL, Daniel L. On deep history and the brain. Berkeley: University of California Press, 2008. , p. 26). Esses dois autores chegaram a conclusões semelhantes sobre o papel da seleção natural, contrapondo teorias evolucionistas concorrentes (como de Lamarck) e a perspectiva predominante da divisão entre espécies como tipos criados (e suas modificações entre subespécies como desvios desse tipo). Tal feito foi possível com a ajuda da teoria do uniformitarismo de Lyell, dando a noção de um tempo profundo no qual seja plausível pensar sucessivas pequenas mudanças que causam diferenciações não só entre subespécies, mas também entre espécies (Bowler, 2003BOWLER, Peter J. Evolution: the history of an idea. 3rd ed., completely rev. and expanded ed. Berkeley: University of California Press, 2003. , p. 21 e p. 129-140). Por sua vez, Darwin (como Lyell) inicialmente evitou tratar da questão da antiguidade humana dentro de sua teoria em seu livro de 1859, mas, depois, em The Descent of Man, and Selection in Relation to Sex (1871), expôs uma diferença quantitativa, e não qualitativa, entre a “mente” humana e a de outros grandes primatas (Bowler, 2003BOWLER, Peter J. Evolution: the history of an idea. 3rd ed., completely rev. and expanded ed. Berkeley: University of California Press, 2003. , p. 207-208).
Dessa forma, o tempo profundo também abarca a Paleontologia, tendo como consequência não só a aceitação mais geral desse tempo nas ciências históricas, mas a formação de um tempo único, não mais dividido em geológico e biológico, e nem entre natural e humano, tal como antes fora assumido por Lyell, ao supor que o humano foi “uma adição de Deus no último momento” (Gould, 2007GOULD, Stephen J. Time’s arrow, time’s cycle: myth and metaphor in the discovery of geological time. Massachusetts: Harvard University Press, 2007. , p. 168).
A Historiografia apresenta uma resistência maior para enxergar o seu objeto em uma cronologia profunda, mesmo durante o século XX. Smail ( 2008SMAIL, Daniel L. On deep history and the brain. Berkeley: University of California Press, 2008. , p. 4) sugere três marcos recorrentes nos livros de história geral para delimitar um “começo da história” por volta do quarto e do sexto milênios AEC:
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o surgimento de documentos escritos (assim, sendo os indícios materiais preteridos aos testemunhos);
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o surgimento de nações;
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o surgimento de uma cultura mais dinâmica que se sobrepõe à stasis do Paleolítico.
Assim, os historiadores tendem a não englobar o passado profundo em seus estudos, mas demarcam uma ruptura que fundamenta uma divisão entre o estudo da humanidade em uma cronologia reduzida e o estudo do Homo sapiens (em sentido amplo) no tempo profundo. A Historiografia, então, perpetua uma versão secular da cronologia de Ussher, sendo 4004 AEC o marco do nascimento não do humano, mas da civilização na Mesopotâmia, o novo “Jardim do Éden” (Smail, 2008SMAIL, Daniel L. On deep history and the brain. Berkeley: University of California Press, 2008. , p. 13).
Em contraposição, se quisermos inserir um nível profundo no tempo histórico, podemos implementá-lo pelas seguintes definições:
Definição 4 (Tempo histórico profundo). Uma estrutura temporal histórica é profunda quando: é histórica (conforme Def. 2); e quando contém alguma proposição relativa a um fato relevante em um momento anterior à Revolução Neolítica .
Definição 4.1 (Passado profundo). Passado profundo (em oposição ao passado recente) é qualquer período histórico que compreenda momentos anteriores à Revolução Neolítica 5 5 O termo “Revolução Neolítica” refere-se às mudanças qualitativas e quantitativas (c. 10 a 5 mil AEC) nas práticas agrícolas sedentárias e na domesticação de novas espécies de plantas e animais (Earle; Gamble; Poinar, 2011 , p. 192-219). .
Observação (Marco da Revolução Neolítica). Note que na Def. 4.1 o conceito de “passado recente” é definível pela relação inversa estabelecida a partir da Revolução Neolítica para se definir “passado profundo”. Além disso, a Def. 4 é um caso particular/especial da Def. 2. Nas definições acima (Def. 4 e Def. 4.1) empregamos um evento histórico, no lugar de uma data fixa, para introduzir o passado profundo, tendo em vista que a Def. 2 não obriga que o tempo histórico tenha uma métrica (em horas, em dias, em anos etc.); além disso, qualquer tentativa de demarcação por data seria ainda mais imprecisa e facilmente falseável por futuras evidências. Razões como aquelas acima indicadas por Smail ( 2008SMAIL, Daniel L. On deep history and the brain. Berkeley: University of California Press, 2008. , p. 4) servem como um critério para usar a Revolução Neolítica para delimitar a fronteira entre o passado profundo e aquele já habitualmente investigado por historiadores.
Apesar das justificativas de Smail, frequentes na Historiografia até hoje, Scott ( 2017SCOTT, James. C. Against the grain: a deep history of the earliest states. New Haven: Yale University Press, 2017. , p. 5) aponta que a escola dos Annales lançou os conceitos e questões basilares para historiadores utilizarem a história profunda, principalmente através da sua demanda pela longa duração. Como um passo inicial para a inclusão do tempo profundo na Historiografia, Fernand Braudel expõe o ganho epistêmico das investigações de longa duração já no seu artigo sobre a geo-história, escrito em 1945 (Ribeiro, 2015RIBEIRO, Guilherme. A arte de conjugar tempo e espaço: Fernand Braudel, a geo-história e a longa duração. Hist. cienc. saúde, Manguinhos. vol. 22, n.2, p. 605-611, 2015. ), e no seu livro O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico na época de Felipe II (1949). Contudo, suas ideias sobre a longa duração são mais bem sistematizadas no artigo História e Ciências Sociais: A longa duração , de 1958, no qual Braudel busca responder aos argumentos de Lévi-Strauss sobre a divisão entre a Historiografia (que estaria presa a eventos contingentes) e a etnologia, que utiliza uma análise sincrônica para desvendar uma estrutura profunda, imóvel e inconsciente (Rodrigues, 2009RODRIGUES, Henrique. E. Lévi-Strauss, Braudel e o tempo dos historiadores. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 29, n. 57, p. 165-186, 2009. ). Braudel chama a atenção para diferentes ritmos e durações dos fenômenos históricos, como ciclos econômicos, mentalidades, processos geo-históricos 6 6 A geo-história pode ser compreendida em uma dimensão ativa e passiva: no primeiro caso, a história do ambiente tal como foi alterada pelo humano; no segundo caso, a história das limitações ambientais dos hábitos humanos (Ribeiro, 2015 , p. 630). e a história demográfica (Braudel, 2009BRAUDEL, Ferdinand. Escritos sobre a história. São Paulo: Perspectiva, 2009. , p. 48). Tais ritmos e durações frequentemente requerem uma visão mais ampla do tempo histórico. Nesse contexto, Braudel utiliza muitas vezes o adjetivo “profundo” para caracterizar o tempo que envolve esses fenômenos, como as descentragens e recentragens das economias-mundo (Braudel, 1987BRAUDEL, Ferdinand. A dinâmica do capitalismo. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. , p. 55), as quais, vistas à luz de eventos e conjunturas, pareceriam estruturas imóveis.
No seu artigo sobre a geo-história, Braudel expõe a impossibilidade de barcos a remo e vela navegarem durante o inverno mediterrânico, devido às depressões de origem atlântica que mantinham ondas desordenadas. Contudo, em meados do século XV, um navio robusto denominado Kogge foi introduzido ao Mediterrâneo, capaz de vencer as ondas invernais, favorecendo, assim, o comércio no Renascimento (Ribeiro, 2015RIBEIRO, Guilherme. A arte de conjugar tempo e espaço: Fernand Braudel, a geo-história e a longa duração. Hist. cienc. saúde, Manguinhos. vol. 22, n.2, p. 605-611, 2015. , p. 630-631). Utilizando exemplos como esse, Braudel demonstra a mutabilidade das estruturas que condicionam as ações humanas.
Ao mostrar a importância da longa duração, Braudel não quis apenas introduzir o conceito de estrutura na Historiografia, mas demonstrar a sua temporalidade para os sociólogos e antropólogos. Braudel faz isso advogando a favor de uma visão estrutural da longa duração capaz de representar a complementaridade dessas disciplinas, já que, em suas palavras, “todas as ciências do homem, inclusive a história, estão contaminadas umas pelas outras” (Braudel, 2009BRAUDEL, Ferdinand. Escritos sobre a história. São Paulo: Perspectiva, 2009. , p. 54). Curiosamente, se considerarmos a longa duração como fornecendo as bases para a Historiografia aderir ao tempo histórico profundo, ela não só incentivou a relação com as ciências humanas, mas com as ciências naturais.
No final do último século, o reconhecimento dos ganhos epistêmicos da longa duração 7 7 Interpretamos a “longa duração” pela definição de “duração” de Espinosa (Ricoeur, 2007 , p. 25) enquanto “continuação da existência”. Assim, um processo de longa duração é um fenômeno que perdura por mais tempo do que a média dos fenômenos históricos humanos. rendeu um envolvimento mais intenso com a história profunda, formando duas vertentes historiográficas que podem retroceder milhões de anos, incluindo o historiador no tempo que os naturalistas já utilizavam desde o século XIX. Para tal, essas duas vertentes praticam o que podemos chamar de “pesquisa interdisciplinar”:
Definição 5 (pesquisa interdisciplinar). Uma pesquisa interdisciplinar é aquela que objetiva oferecer resoluções a problemas acerca de fenômenos que estão além do escopo de uma disciplina, necessitando engajar-se com metodologias, conceitos, teorias e informações de duas ou mais disciplinas
(National Academies, 2005NATIONAL ACADEMIES (org.). Facilitating Interdisciplinary Research. Washington: The National Academies Press, 2005. , p. 2).
As duas abordagens que analisaremos produzem pesquisas interdisciplinares não apenas do ponto de vista metodológico, mas por tratarem de objetos em comum, particularmente, considerando as Def. 1.1 (de Historiografia) e Def. 1.2 (de História Natural), tanto de áreas que estudam fenômenos naturais como de áreas que estudam fenômenos tipicamente humanos; ambos no tempo histórico (vide Def. 2), mediante o princípio do atualismo histórico (Def. 3).
A primeira abordagem historiográfica de pesquisa interdisciplinar dentro do grande campo das ciências históricas é a da Deep History , motivada a dissolver no tempo histórico profundo uma visão segundo a qual a história começaria com a formação das cidades e da escrita. Para tal, os autores dessa abordagem buscam destacar as continuidades em longa duração entre o passado profundo e o recente, pensando a história da humanidade não a partir do advento da civilização, mas a partir das condições (geológicas, biológicas etc.) para sua especiação (Smail, 2008SMAIL, Daniel L. On deep history and the brain. Berkeley: University of California Press, 2008. ).
Um exemplo dessa abordagem está no livro de Alfred Crosby, Imperialismo Ecológico ( 2011CROSBY, Alfred. W. Imperialismo ecológico: a expansão biológica na Europa 900-1900. São Paulo: Companhia de Bolso, 2011 [1986]. [1986]), começando sua narrativa pela formação dos continentes conjuntamente com sua fauna e flora; fatores que continuam influenciando a humanidade até hoje. O naturalista Jared Diamond tem uma perspectiva semelhante em seu livro, Armas, germes e aço – O destino das sociedades humanas ( 2017DIAMOND, Jared M. Guns, germs, and steel: the fates of human societies. 20th Anniversary edition. New York: Norton, 2017 [1997]. [1997]), adentrando o campo historiográfico e arqueológico para explicar o que gerou a diversidade cultural e social que existe hoje entre os humanos (Diamond 2017DIAMOND, Jared M. Guns, germs, and steel: the fates of human societies. 20th Anniversary edition. New York: Norton, 2017 [1997]. [1997]). Para tal, o autor se propõe a investigar variáveis biológicas, epidemiológicas e geológicas que expliquem fatores culturais. Recentemente, James Scott, em Against the Grain – A Deep History of the Earliest States ( 2017SCOTT, James. C. Against the grain: a deep history of the earliest states. New Haven: Yale University Press, 2017. ), estuda a influência dos contatos entre sociedades agrícolas e de caçadores-coletores para a formação dos primeiros estados. O autor considera tanto aspectos biológicos (para a análise do processo de domesticação de plantas e animais) quanto geológicos (para a capacidade do gênero Homo de moldar o ambiente à sua volta).
Por outro lado, uma segunda abordagem historiográfica de pesquisa interdisciplinar que lida com o tempo histórico profundo é a da Big History , formada, no final da década de 1980, por David Christian, como uma proposta narrativa além dos limites da Deep History . Nesse sentido, o objetivo da Big History é fazer uma “história universal”; não no sentido em que esse termo é empregado em filosofias especulativas da história, mas no sentido de uma macro-narrativa 8 8 Esse conceito, dentro da Big History, pode ser entendido como uma expansão do conceito de macro-história característico do uso do escopo em grande-escala da Deep History e da World History (Little, 2010 , p. 16-17). que começaria a partir do Big Bang. Essa abordagem tem uma formação interdisciplinar que inclui historiadores, físicos, biólogos, cosmólogos, geólogos, antropólogos, entre outros (Collado-Ruano, 2018COLLADO-RUANO, Javier. Co-evolution in Big History: A Transdisciplinary and Biomimetic Approach to the Sustainable Development Goals. Social Evolution & History, Vologrado, v. 17, p. 27-41, 2018. ). Willian McNeill, um dos grandes nomes da World History 9 9 Uma abordagem historiográfica que lida com uma macro-história, no sentido espacial, mas que geralmente não abrange o passado profundo. , assume o projeto com entusiasmo, escrevendo no prefácio do livro de referência da área, Maps of Time ( 2011CHRISTIAN, David G. Maps of time: an introduction to big history. Prefácio de William McNeil ed. Berkeley, Calif London: University of California Press, 2011. ), sobre sua capacidade de unir “a história natural e a história humana em uma única e grande narrativa inteligível [...] comparável ao feito de Darwin no século XIX, unindo a espécie humana e outras formas de vida em um mesmo processo evolucionário” (Christian, 2011CHRISTIAN, David G. Maps of time: an introduction to big history. Prefácio de William McNeil ed. Berkeley, Calif London: University of California Press, 2011. , prefácio, não paginado 10 10 Doravante ‘NP’. ).
Convém destacar que a Big History é um campo multidisciplinar mais abrangente do que a Deep History , definindo objetivos, abordagens e conceitos em comum para estudos em ainda maior escala. Quanto aos objetivos em comum, McNeill salienta o da unificação de certos aspectos das ciências humanas e naturais. Um bom exemplo de objetivo em comum é o de incluir eventos e fenômenos da Física e da Química dentro de uma narrativa histórica, a qual se desenrola até a sociedade contemporânea. Para tal, faz-se necessário um “jogo de escalas” em escopos mais contrastantes do que os usualmente empregados por historiadores (Christian, 2011CHRISTIAN, David G. Maps of time: an introduction to big history. Prefácio de William McNeil ed. Berkeley, Calif London: University of California Press, 2011. , introdução, NP). Por outro lado, um exemplo de metodologia compartilhada por esses pesquisadores é a cliodinâmica, que, assim como a cliometria (i.e., história econométrica), é entendida como uma abordagem historiográfica majoritariamente quantitativa. Contudo, há diferenças entre essas metodologias: a cliometria limita seus modelos lógico-matemáticos e computacionais àqueles empregados em outras ciências sociais, especialmente em economia; a cliodinâmica, por sua vez, busca descrever e explicar eventos históricos com base em uma interação mais ampla, incluindo fatores e métodos das ciências naturais.
O método da cliodinâmica envolve o uso de equações diferenciais, modelos baseados em agentes, teoria evolucionária de jogos, entre outras ferramentas incomuns em cliometria (Mejía, 2015MEJÍA, Javier. The Evolution of Economic History since 1950: From Cliometrics to Cliodynamics. Tiempo & Economia, Bogotá,. v. 2, n. 2, p. 79-103, 2015 ). Seu principal uso na Big History é o de modelar a evolução de processos socioculturais em grande escala junto de processos naturais, utilizando o fluxo de energia em sistemas dinâmicos abertos (Christian 2011CHRISTIAN, David G. Maps of time: an introduction to big history. Prefácio de William McNeil ed. Berkeley, Calif London: University of California Press, 2011. , Introdução, NP; Chaisson, 2014CHAISSON, Eric. J. The Natural Science Underlying Big History. The Scientific World Journal, Londres, v. 2014, p. 1-41, 2014. ). Isso resulta em uma narrativa concebendo o universo no tempo como um acúmulo de complexidade regido por mecanismos e leis que determinam como matéria e energia se relacionam, formando estruturas mais complexas com propriedades emergentes; a exemplo da progressão de níveis: físico, químico, biológico, social etc. (Zinkia, et al. , 2019ZINKINA, Julia et al. A Big History of Globalization: The Emergence of a Global World System. Springer, 2019. , p. 3-4).
Apesar dessas duas abordagens ( Big History e Deep History ) ocuparem um crescente reconhecimento acadêmico e espaço institucional, o seu papel dentro da Historiografia ainda é pequeno (sobretudo no Brasil), interessando muito mais naturalistas do que historiadores.
A Historiografia e o tempo histórico profundo
Neste tópico, mostraremos a importância do tempo histórico profundo na Historiografia, considerando as definições precedentes e a relevância do uso desse tempo para a descrição e a explicação em ciências históricas. Mais precisamente, defenderemos que o tempo histórico profundo é relevante em Historiografia ao menos em três situações:
Proposição 1 (Relevância historiográfica do tempo profundo). Há pelo menos três situações em que é preferível que o estudo historiográfico seja feito em nível profundo em oposição a apenas se considerar um passado recente:
(*) na situação em que alguns fenômenos humanos de interesse do historiador consistam em um ou mais processos que tiveram início antes da Revolução Neolítica;
(**) na situação em que as premissas do explanans utilizadas para uma explicação histórica envolvam um ou mais eventos que se encontra(m) no passado profundo, enquanto, por outro lado, o seu efeito (o explanandum ) encontra-se no passado recente;
e (***) na situação em que é necessário considerar fenômenos mais amplos (no passado profundo) e não necessariamente típicos dos humanos para se determinar a “significância” de um fato histórico.
Comecemos detalhando o caso (*). Desde pelo menos o século XIX é sabido que, há dezenas de milhares de anos, os humanos já pintavam em cavernas e faziam ritos fúnebres ainda há mais tempo, razão pela qual um historiador da mentalidade sobre a morte e também um historiador da arte teriam diversos motivos para levar a investigação histórica para o nível profundo do tempo histórico. Nesse sentido, a análise do contexto em que se encontram pinturas rupestres na Europa e dos detalhes precisos e laboriosos de algumas obras dos maoris contribuiu para que Ernest Gombrich ( 1978GOMBRICH, Ernest H. A História da Arte. Rio de Janeiro: Editora Guanabara S.A., 1988. , p. 24) concluísse que “não é o padrão de capacidade artística desses artífices que difere dos nossos, mas as ideias deles [...], porque a história da arte não é uma história de progresso na proficiência técnica, mas uma história de ideias, concepções e necessidades em constante mudança”. Assim, em uma concepção mais ampla de “arte”, esse tipo de expressão já estava presente antes do Neolítico e suas manifestações no passado profundo, portanto, não podem ser ignoradas ao se considerar as transformações no decorrer da história da arte.
Quanto ao caso (**), envolve respostas a perguntas-porquê na Historiografia. Para uma resposta a perguntas desse tipo (i.e., uma conclusão explicativa, ou explanandum ), é preciso de um conjunto de premissas (i.e., o explanans ) formado por fatos particulares e, talvez, recorrências ou padrões, entre outras premissas possíveis, a depender da abordagem de teoria da explicação (Dutra, 2009DUTRA, Luiz Henrique de Araújo. Introdução a Teoria da Ciência. Florianópolis: Editora UFSC, 2009. , p. 104-107). Ocorre que, por vezes, ao se procurar uma explicação para um fato no passado recente, o conteúdo das premissas para explicá-lo encontra-se antes, no passado profundo. Um exemplo, nesse sentido, muito enfatizado pela Deep History , é o encontro dos indígenas com os europeus. A resposta à questão de como Hernán Cortés e Francisco Pizarro conquistaram respectivamente os impérios Azteca e Inca, com poucas centenas de espanhóis em um curto tempo, motivou historiadores a considerar processos culturais, sociais, políticos, biológicos e geológicos em diferentes durações. Usualmente, os historiadores consideram uma das duas possibilidades: causas contemporâneas à chegada dos europeus, relacionadas ao contexto de crises políticas recentes nesses impérios; ou causas que remontam a uma longa duração, acerca da superioridade técnica e intelectual europeia, incluindo uma possível vantagem semiótica nas comunicações inter-humanas dos espanhóis para manipular os indígenas (Todorov, 1987TODOROV, Tzvetan. The conquest of America: the question of the other. New York: Harper Torchbooks, 1987. ).
Contudo, ao explorarmos o passado profundo, conseguimos embasar novas premissas que podem complementar ou substituir explicações anteriores. Por exemplo, Alfred Crosby ( 2011CROSBY, Alfred. W. Imperialismo ecológico: a expansão biológica na Europa 900-1900. São Paulo: Companhia de Bolso, 2011 [1986]. , cap. 2) e Jared Diamond ( 2017DIAMOND, Jared M. Guns, germs, and steel: the fates of human societies. 20th Anniversary edition. New York: Norton, 2017 [1997]. , cap. 18) formularam novas hipóteses para a vitória dos espanhóis ao considerarem um amálgama de efeitos geológicos e biológicos. Ambos identificam causas há 200 milhões de anos, quando o deslizamento das placas provocava a divisão da pangeia em mega-continentes com diferentes climas, fauna e flora, gerando diferentes “arenas evolutivas”. No caso da Eurásia, em oposição à América, a soma de uma maior aglomeração populacional humana e o convívio prolongado com outros animais (especialmente os domesticados) resultaram em um efeito epidemiológico, propiciando a mutação de parasitas, vírus e bactérias capazes de transitar entre as espécies. Em uma curta e média escala, as novas doenças tiveram um poder destrutivo, mas, na longa duração, criaram humanos com um sistema imunológico mais preparado para o convívio com determinados animais e seus efeitos colaterais. Essa diferença não indica uma superioridade em si dos habitantes da Eurásia perante aqueles da América, mas uma vantagem relativa para lidar com o contexto da colonização no Novo Mundo. Desse modo, ao adicionar fatores históricos envolvendo os níveis geológico e biológico, no passado profundo, é possível desenvolver uma explicação mais completa para o caso em questão.
Por fim, quanto à situação (***), afirmamos que o passado profundo é também fundamental aos historiadores nos casos em que se considera a significância de um fato pretérito, ao menos se aceitarmos a diferença clássica de Walter Fales ( 1951FALES, Walter. Historical Facts. The Journal of Philosophy, Nova York, v. 48, n. 4, p. 85-94, 1951. ) e Edward Carr ( 1961CARR, Edward H. What is History? Cambridge: University of Cambridge, 1961. ) entre “fatos históricos” e meros “fatos do passado”. A ideia básica consiste em sustentar que certos fatos possuem uma significância no tempo histórico ou em função de seu poder explicativo de eventos posteriores ou em função da influência psicossocial que exerceram no desenvolvimento social (Fales, 1951FALES, Walter. Historical Facts. The Journal of Philosophy, Nova York, v. 48, n. 4, p. 85-94, 1951. , p. 85-86). Ocorre que, em ambos os “tipos de significância” (o de explicação e o de influência), o historiador pode precisar de um conhecimento histórico profundo para avaliar um fato do passado recente. Veremos a seguir dois exemplos (um para significância explicativa e outro para significância por influência ).
Para um exemplo de “significância explicativa”, consideremos a busca de uma explicação para o Antropoceno. “Antropoceno” é uma nomenclatura proposta por Paul Crutzen (Crutzen e Stoermer, 2000CRUTZEN, Paul; STOERMER, Eugene F. The ‘Anthropocene’. Global Change Newsletter, [s.l.], v. 41, p. 17-18, 2000. ) para demarcar um período logo após o Holoceno, dentro da Era Cenozoica (todas as épocas dessa era terminam com o sufixo -ceno). Embora sem uma definição geológica consensual, há várias características bem aceitas desse período proposto que podem delimitar seu início. Por exemplo, a partir do advento da agricultura; ou ainda, em propostas mais recentes, a partir do advento da tecnologia nuclear. Entre as características amplamente aceitas e frequentemente associadas a esse período, algumas são:
-
O aumento do teor de dióxido de carbono atmosférico sem precedentes na Era Cenozoica;
-
O aumento da taxa de extinção das espécies;
-
A alteração no fluxo e na composição dos rios;
-
A formação de novos estratos geológicos característicos da época (em decorrência dos efeitos da tecnologia humana).
Observando características como essas, podemos justificar a significância de certos fatos históricos como a já mencionada Revolução Neolítica, bem como a Revolução Industrial (dos séculos XVIII e XIX), ou ainda a Grande Aceleração (começada mais ou menos por volta de 1950). Esses fatos históricos, enquanto processos compreensíveis por meio de eventos subordinados (Fales, 1951FALES, Walter. Historical Facts. The Journal of Philosophy, Nova York, v. 48, n. 4, p. 85-94, 1951. , p. 89), possuem significância causal para os fenômenos posteriores acima mencionados do Antropoceno, mas só podem ter essa significância reconhecida se considerarmos a ação humana em contraste com a história natural do passado profundo (Kolbert, 2015KOLBERT, Elizabeth. A sexta extinção: Uma história não natural. Rio de Janeiro: Editora Intrínseca, 2015. , p. 101-119) 11 11 Ressalvamos que, neste exemplo, há outras razões (de desenvolvimento econômico, científico etc.) pelas quais os fatos pretéritos acima, da Revolução Neolítica e da Revolução Industrial, são historicamente significativos e, portanto, fatos históricos. . Daí porque só considerando o passando profundo é que conseguimos avaliar que, a partir de 2013, as emissões líquidas antrópicas de CO 2 aumentaram sua concentração atmosférica de 280 ppm (Holoceno ou “equilíbrio” pré-industrial) para aproximadamente 397 ppm 12 12 Informação do ESRL Global Monitoring Division – Global Greenhouse Gas Reference Network. . A maior parte desse aumento provavelmente foi causada pelo manejo de animais para a alimentação humana, notoriamente o gado, e também devido à queima de combustíveis fósseis, além de frações menores por outras causas, como a produção de cimento ou a mudança do uso do solo, a exemplo dos desmatamentos.
Por outro lado, para um exemplo de “significância por influência”, podemos enfatizar a questão do Aquecimento Global. Há algumas razões de significância (nos termos de Fales) para influência psicossocial neste fenômeno que dependem de que os membros sociais conheçam fatos do passado profundo. O aquecimento global é um fato histórico não só pelo que ele causou na humanidade, mas também em função do que ele influenciou na sociedade humana desde o final do século XX: tratados internacionais para cuidados com meio ambiente, criação e difusão de tecnologias de produtos biodegradáveis, novos combustíveis e até a adoção de hábitos alimentares com restrições a carnes e outros alimentos. Vale observar que há também outros fatores que influenciaram essas mudanças históricas, mas é um ponto pacífico que uma das influências é a consciência do aquecimento global.
Considerando os dois exemplos acima, é impossível caracterizar o aquecimento global como um “fato histórico” sem um estudo histórico profundo. Isso porque é impossível verificar sua significância (seja ela de explicação causal ou de influência psicossocial) sem o conhecimento de fatos que remontam ao passado profundo.
Considerando uma correta aplicação da Proposição 1 às três situações supracitadas (*), (**) e (***), parece que a dimensão do passado profundo é fundamental ao historiador ao menos em casos como esses, para os quais poderíamos encontrar facilmente vários exemplos além dos mencionados. Com efeito, se correta a Proposição 1, e se consideradas as Def. 1 e Def. 5, inferimos diretamente como um corolário a seguinte proposição:
Proposição 2 (Corolário) (Relevância da interdisciplinaridade entre Historiografia e História Natural). É relevante epistemologicamente para o historiador uma pesquisa interdisciplinar de ciências históricas (incluindo História Natural) ao menos nas situações (**) e (***), as quais envolvem fenômenos não típicos do humano.
Vale destacar que as duas proposições que defendemos não são equivalentes. A Proposição 1 aponta para a relevância do passado profundo para o historiador (não necessariamente envolvendo fenômenos naturais não típicos do humano). Por outro lado, a Proposição 2 aponta para a relevância de se estudar fenômenos históricos ao lado de ciências históricas da natureza (não necessariamente apenas em caso de fenômenos no passado profundo).
A inobservância das Proposições 1 e 2 pode ter por consequência, como examinamos nos exemplos para (*), (**) e (***), uma série de problemas:
-
Má demarcação do início de um processo (a exemplo do caso examinado da manifestação artística humana);
-
Percepção de certos eventos como inexplicáveis e/ou a imputação de causas insuficientes para uma ocorrência histórica (caso das mortes dos ameríndios);
-
Avaliação equivocada da significância de um determinado fato no curso do tempo histórico (caso dos fatores causais e de influência acerca do Antropoceno e do Aquecimento Global).
Conclusão
Concluiremos este trabalho com uma breve síntese de nossas definições e proposições para as ciências históricas, e abordaremos possíveis complementações em estudos futuros.
Neste trabalho, oferecemos uma definição minimalista do campo das ciências históricas que se inspira na proposta definicional de Gallie, partindo de uma noção lógica de tempo histórico convergente a certo uso tradicional do termo “ciências históricas” desde a Antiguidade até o recente livro de Curie, no qual o autor enfatiza a relevância do princípio do atualismo para o campo. Dividimos o grande campo das ciências históricas em dois domínios, respectivamente, para demarcar o domínio historiográfico, de um lado; e o da história natural, de outro. Analisamos, em seguida, duas diferentes abordagens recentes e promissoras nas ciências históricas: as abordagens da Big History e da Deep History . Essas abordagens nos levam a concluir a importância da pesquisa interdisciplinar entre as áreas historiográficas e as áreas naturalísticas para se desenvolver um conhecimento histórico profundo a respeito do que ocorreu e do porquê ocorreu no tempo histórico. Essas duas abordagens, como vimos, não diferem quanto ao tipo de fonte empregado (indiciário ou testemunhal), mas sim quanto à perspectiva metodológica e de escala temporal de fenômenos que remetem direta ou indiretamente ao passado profundo .
Sem a definição de passado profundo não se poderia compreender ao menos três determinados tipos de situações históricas: algumas porque – vide (*) – os fenômenos estudados estão parcialmente situados no passado profundo; outras porque – vide (**) e (***) –, ainda que os fenômenos estejam vigentes só no “passado recente”, parte de suas causas ou de sua significância devem-se a fenômenos outros que estão localizados no passado profundo. Por fim, procuramos demonstrar que, ao menos nessas três situações, faz-se necessário à Historiografia considerar o passado profundo e, ao menos nos casos (**) e (***), também a interdisciplinaridade com outras ciências históricas.
Nosso empreendimento, entretanto, pode ser complementado e aprofundado por estudos futuros. Destacamos quatro possibilidades (já comentadas de passagem no decorrer do trabalho).
Em primeiro lugar, embora nossa definição do campo das ciências históricas não negue que essas ciências possam explicar fenômenos históricos, e muito menos negue que haja um nível fenomenológico do tempo histórico e dos fenômenos sociais, ela as caracteriza primariamente em função de seu esforço descritivo , isso porque essa definição parcial do ofício do historiador basta para os fins desta análise. Estudos posteriores podem aprofundar esta análise no nível explicativo do conhecimento histórico.
Em segundo lugar, nossa definição de tempo histórico não detalha propriedades lógicas específicas do tempo histórico (Goranko; Rumberg, 2023GORANKO, Valentin; RUMBERG, Antlje. “Temporal Logic”. In: ZALTA, Edward N. (org.). Stanford Encyclopedia of Philosophy, [s.l.], Center for the Study of Language and Information (CSLI), 2023. ); trabalhos posteriores podem detalhar esses aspectos.
Em terceiro lugar, não tratamos de como se pode (por exemplo, em cosmologia) traduzir fenômenos no tempo histórico quando primariamente estariam em um tempo relativístico. Atualmente, há lógicas espaço-temporais relacionadas não somente a fenômenos físicos, mas também à agência (Belnap et al ., 2022BELNAP, Nuel; MÜLLER, Thomas; PLACEK, Tomasz. Branching Space-Times: Theory and Applications. Oxford: Oxford University Press, 2022. , p. 6-8); estudos posteriores podem generalizar os resultados que obtivemos nesta pesquisa.
Por fim (quarto lugar), nossa análise deteve-se em constatar a necessidade, para ao menos três casos, da interdisciplinaridade entre as ciências históricas em um tempo histórico profundo. Isso significa que não discutimos como e quais métodos precisamente (dos quais mencionamos apenas alguns de passagem) podem ser adequadamente empregados; estudos posteriores podem apresentar metodologias especialmente úteis para intersecções entre as ciências históricas.
Contudo, esperamos ter contribuído para demonstrar que há fenômenos em comum entre diferentes ciências históricas. Ademais, mesmo quando não há, essas disciplinas situam-se em uma mesma concepção lógica de tempo. Isso exige, como também mostramos, que essas diferentes áreas trabalhem juntas para a resolução de problemas históricos mais gerais. Desse modo, esperamos também motivar mais investigações empíricas interdisciplinares em pesquisas históricas (sobretudo quando envolvem observações em longa duração) e, ao mesmo tempo, esperamos ter contribuído com uma base teórica para aprofundar o entendimento acerca da definição das ciências históricas.
Agradecimento
Agradecemos aos editores e pareceristas que contribuíram com apontamentos importantes na versão final deste trabalho.
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-
1
Para uma definição mais ampla (não minimal), considerando também a metodologia do trabalho do historiador, conferir Estevão Martins ( 2011MARTINS, Estevão de Rezende. Tempo e verdade. Proposta de critério para um conhecimento histórico confiável. In: SALOMON, Marlon (org.). História, verdade e tempo. Chapecó: Argos, 2011, p. 291-321 , p. 295-296).
-
2
Em lógicas temporais de instantes: história ( history ) é um par ⟨ Ω,R ⟩ em que Ω é um conjunto não vazio de instantes e R é uma relação de ordenação entre eles. Em cada instante t elemento de Ω , pode haver proposições verdadeiras ou falsas (cf. McArthur, 1976McARTHUR, Robert P. Tense Logic. Dordrecht/Boston: D. Reidel Publishing Company, 1976. , p. 9).
-
3
Para uma introdução à teoria da história de Droysen, situando-o no debate entre explicação e compreensão (e não apenas no âmbito descritivo), ver Bentivoglio, 2009BENTIVOGLIO, Júlio C. In: DROYSEN, J. G. Manual de teoria da história. Petrópolis: Vozes, 2009. p. 7-26. . Para um exemplo de desdobramento recente das ideias de Droysen, ver Rüsen, 2013RÜSEN, Jörn. Historik: Theorie der Geschichtswissenschaft. 1. ed. Köln: Böhlau Köln, 2013. .
-
4
Não confundir com o sentido técnico-filosófico do termo em que Quine, Searle e outros filósofos se enquadram como naturalistas. Particularmente sobre naturalismo em epistemologia e filosofia da ciência, ver Dutra, 2009DUTRA, Luiz Henrique de Araújo. Introdução a Teoria da Ciência. Florianópolis: Editora UFSC, 2009. , p. 193-210.
-
5
O termo “Revolução Neolítica” refere-se às mudanças qualitativas e quantitativas (c. 10 a 5 mil AEC) nas práticas agrícolas sedentárias e na domesticação de novas espécies de plantas e animais (Earle; Gamble; Poinar, 2011EARLE, Timothy; GAMBLE, Clive; POINAR, Hendrik. Migration. In: SHRYOCK, Andrew.; SMAIL, Daniel L.; EARLE, T. K (orgs.). Deep history: the architecture of past and present. Berkeley: University of California Press, 2011. , p. 192-219).
-
6
A geo-história pode ser compreendida em uma dimensão ativa e passiva: no primeiro caso, a história do ambiente tal como foi alterada pelo humano; no segundo caso, a história das limitações ambientais dos hábitos humanos (Ribeiro, 2015RIBEIRO, Guilherme. A arte de conjugar tempo e espaço: Fernand Braudel, a geo-história e a longa duração. Hist. cienc. saúde, Manguinhos. vol. 22, n.2, p. 605-611, 2015. , p. 630).
-
7
Interpretamos a “longa duração” pela definição de “duração” de Espinosa (Ricoeur, 2007RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. São Paulo: Unicamp, 2007. , p. 25) enquanto “continuação da existência”. Assim, um processo de longa duração é um fenômeno que perdura por mais tempo do que a média dos fenômenos históricos humanos.
-
8
Esse conceito, dentro da Big History, pode ser entendido como uma expansão do conceito de macro-história característico do uso do escopo em grande-escala da Deep History e da World History (Little, 2010LITTLE, Daniel. New Contributions to the Philosophy of History. New York: Springer, 2010. , p. 16-17).
-
9
Uma abordagem historiográfica que lida com uma macro-história, no sentido espacial, mas que geralmente não abrange o passado profundo.
-
10
Doravante ‘NP’.
-
11
Ressalvamos que, neste exemplo, há outras razões (de desenvolvimento econômico, científico etc.) pelas quais os fatos pretéritos acima, da Revolução Neolítica e da Revolução Industrial, são historicamente significativos e, portanto, fatos históricos.
-
12
Informação do ESRL Global Monitoring Division – Global Greenhouse Gas Reference Network ESRL Global Monitoring Division – Global Greenhouse Gas Reference Network. Laboratory, US Department of Commerce, NOAA, Earth System Research. Disponível em: www.esrl.noaa.gov . Acesso em: 26 jul. 2020.
www.esrl.noaa.gov... . -
FinanciamentoCAPES e FAPESP (Processo: 2020/04735-9).
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Aprovação no comitê de éticaNão se aplica.
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Modalidade de avaliaçãoDuplo-cega por pares.
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PreprintO artigo não é um preprint.
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Publicação nesta coleção
08 Jul 2024 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
01 Set 2022 -
Aceito
15 Dez 2023 -
Revisado
20 Nov 2023