Open-access Invisibilidade sistemática: pessoas com deficiência e Covid-19 no Brasil

Systematic invisibility: people with disabilities and Covid-19 in Brazil

Invisibilidad sistemática: personas con discapacidad y Covid-19 en Brasil

Palavras-chave Pessoas com deficiência; Covid-19; Políticas públicas; Vulnerabilidade

Keywords People with disabilities; Covid-19; Public policy; Vulnerability

Palabras clave Personas con discapacidad; Covid-19; Políticas públicas; Vulnerabilidad

O coronavírus tem causado profundas consequências no mundo. Porém, sabe-se que ele afeta de forma diferenciada países e populações específicas. Acredita-se que as pessoas com deficiência (PcD) estão entre os coletivos mais afetados pela Covid-19. Pouco se sabe sobre as consequências e as respostas dadas para esse grupo populacional. O histórico de discriminação, as diferentes formas de reconhecer e registrar a deficiência, a lacuna de informações confiáveis em bancos oficiais de dados, a falta de políticas públicas e a ausência de espaços efetivos de participação podem auxiliar na compreensão da invisibilidade sistemática das PcD revelada pela crise do coronavírus.

Em 06/05/2020, o secretário-geral da ONU, António Guterres, reconhece a vulnerabilidade das PcD na pandemia e lança recomendações para Resposta ao Covid-19 Inclusiva para Deficiência1. Isso acontece aproximadamente três meses após ser considerada emergência em saúde pública e dois após ser declarada pandemia.

São traçados cinco pontos de análise quanto à vulnerabilidade das PcD com propostas de ações de enfrentamento e mitigação das consequências da Covid-19. A ONU reconhece a importância de integrar as PcD em ações globais, entretanto destaca a necessidade de pensar em estratégias específicas. Isso pressupõe a adoção de medidas de prevenção e controle, mas também a produção de dados quanti-qualitativos sobre PcD. Destaca que respostas inclusivas e efetivas somente serão possíveis com a participação das PcD1.

As PcD foram historicamente invisibilizadas de ações públicas2-4. A invisibilidade produziu sociedades inacessíveis5 e implicou o agravamento da vulnerabilidade. A vivência em situações-limite de isolamento e exclusão fez que a quarentena forçada para a população fosse comparada com o cotidiano das PcD no mundo6.

Cerca de 1 bilhão de pessoas são PcD, sendo 80% vivendo em países em desenvolvimento e 20% das pessoas mais pobres do mundo com algum tipo de deficiência7. Considerando teorias que analisam o fenômeno da pobreza sobre o prisma multidimensional8-10, a quantidade de PcD em situação de pobreza pode ser ainda maior. No Brasil, 24% da população apresenta algum tipo de deficiência.

As PcD experienciam barreiras que as colocam em situação de desvantagem evidenciada em níveis de saúde precários, rendimento educacional inferior, menor participação econômica, taxas mais altas de pobreza, maior dependência e mais restrições à participação7.

Em relação à saúde, as PcD possuem três vezes maior probabilidade de não conseguir assistência médica. O acesso aos serviços de reabilitação é escasso devido à falta de recursos financeiros, de acessibilidade, de transporte e de treinamento adequado da equipe de profissionais da saúde11.

As PcD enfrentam desafios acerca do acesso à água e ao saneamento, especialmente em países do sul global, existindo maior probabilidade de a população morar em residências sem instalações de higiene e saneamento. Os banheiros de casa e de espaços públicos são inacessíveis, reforçando o desafio em relação à participação social. Além disso, as PcD são particularmente vulneráveis durante desastres naturais, eventos climáticos extremos e emergências humanitárias, especialmente por serem subidentificadas12.

Os elementos apresentados inserem as PcD em situação de extrema vulnerabilidade1,7,12,13. Entende-se por vulnerabilidade fatores individuais, sociais e programáticos14,15. A invisibilidade histórica produzida nas ações das políticas públicas, as condições mais acentuadas de pobreza e privação de bens materiais e imateriais e a acessibilidade negada, demonstram que as PcD precisam de olhares apurados, especialmente em tempos de coronavírus16.

Notícias circulam sobre situações-limite vivenciadas e/ou sobre as respostas elaboradas para as particularidades das PcD. Em fevereiro de 2020, a imprensa internacional publicou o caso do falecimento de adolescente com deficiência por falta de cuidado após seus familiares ficarem em quarentena na China. Na Europa, estratégias diferenciadas foram pensadas para as crianças com deficiência durante o lockdown. No Brasil, a infecção por Covid-19 da senadora Mara Gabrilli, que é PcD e depende de assistência de terceiros para atividades de vida diária, acendeu a discussão sobre a necessidade constante de cuidado e as práticas de prevenção entre cuidadores profissionais ou familiares.

Entre os poucos estudos científicos produzidos sobre o tema e publicados em periódicos científicos até o momento da escrita desta nota, a necessidade de visibilizar essa população e produzir respostas inclusivas é ponto consensual13,17-20. Na Romênia são descritas situações das PcD em instituições de acolhimento afirmando que esses espaços são propícios para a proliferação do vírus21. No Irã são demonstradas as mudanças ocorridas na vida das PcD, como o fechamento de serviços de reabilitação, o acesso à informação apenas por meio de mídias específicas, a necessidade de cuidadores e a questão da prevenção22. Na Espanha são reconhecidas condições de desvantagem de PcD no acesso ao mercado de trabalho, situação intensificada pela pandemia23. Na China, são apontadas inadequações em relação aos planos de preparação e resposta a emergências em meio à crise de saúde pública que ignoram as necessidades e perspectivas das PcD24.

Na Argentina, no Brasil, Chile e Peru foram analisados 72 documentos oficiais publicados entre 01/02 e 22/05/2020 com o objetivo de compreender as respostas governamentais para as PcD durante a pandemia. Os autores afirmam que, mesmo editando recomendações, os países não construíram maneiras concretas de colocar em prática a proteção às PcD25. Reconhece-se que questões de ordens política, técnica e logística influenciam na implementação de ações. Entretanto, é importante ressaltar que pouco foi realizado para mudança da realidade das PcD na pandemia.

Os autores e os documentos internacionais identificam a importância, porém a inexistência, de respostas coordenadas – globais e particulares – para as PcD. Pode-se apontar pelo menos cinco elementos que complexificam a produção de respostas públicas para mitigar as consequências da Covid-19 entre PcD no Brasil:

  1. A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD) foi ratificada no Brasil em 2009 e a Lei Brasileira de Inclusão (LBI) em 2015. A maior parte dos dispositivos da LBI não foi regulamentada, o que provoca ausência de legislações para fazer frente a situações como a provocada pela Covid-19.

  2. Ainda não existe no Brasil uma forma unificada de avaliação da deficiência. As ações/políticas produzem diferentes sujeitos com base em critérios específicos. Isso fragmenta e invisibiliza as PcD, visto que não é possível obter uma informação única e confiável sobre essa população no país. Cabe destacar a existência de dois artigos na LBI que ampliariam a capacidade de reconhecimento das PcD: Art. 2 que trata da avaliação biopsicossocial, interdisciplinar e multiprofissional da deficiência e o Art. 92 que dispõe sobre o Cadastro-Inclusão.

  3. Os sistemas de informação que consolidam os dados nacionais para os registros de casos suspeitos de Doença pelo Coronavírus 2019, e-SUS Vigilância Epidemiológica, e confirmados para Síndrome Respiratória Aguda Grave Hospitalizado, Sistema de Informação de Vigilância Epidemiológica da Gripe (Sivep Gripe), não possuem campos para registros da deficiência, impossibilitando qualquer inferência sobre a forma como a epidemia e a doença têm afetado a saúde das PcD e invisibilizando-as no planejamento de serviços de saúde. A despeito de ter declarado Emergência em Saúde Pública Nacional, o Ministério da Saúde emitiu poucas normas regulatórias sem garantia do cuidado ou consideração às especificidades das PcD.

  4. Os diferentes sistemas não estão integrados e não geram informações de qualidade sobre essa população no Brasil. Dados importantes como os do CadÚnico, do Benefício de Prestação Continuada (BPC), do auxílio emergencial não são integrados com outros de setores diferentes do executivo, como da Saúde e da Educação. As consequências da pandemia serão vivenciadas em diferentes âmbitos e isso exigirá análises e atuações intersetoriais pelas instituições públicas. A falta de diálogo entre os dados produzidos e a invisibilidade das PcD nos sistemas de informação serão um fator institucional relevante.

  5. Desde a reconstrução teórica dos estudos sobre deficiência, ratificada pela CDPD, é imprescindível que qualquer ação conte com a participação das PcD. O protagonismo dessa população nas políticas específicas precisa ser fomentado e estimulado pelas instâncias governamentais. A ampliação de espaços coletivos de deliberação e discussão e a inserção das reivindicações das PcD nas pautas públicas podem ampliar a possibilidade de atuação para mitigar as consequências da Covid-19.

Essas questões têm efeitos amplos e complexos na produção de informações e de respostas para o coronavírus para PcD. É importante ressaltar as exclusões históricas vivenciadas por essa população e a invisibilização sistemática produzida pela ausência de informações qualificadas nos sistemas estatais. Esse constante apagamento das PcD produz ainda mais ausências e dificulta as reflexões e as políticas públicas para essa população.

Além disso, as consequências da pandemia não poderão apenas ser mensuradas pelos grandes sistemas de informação. É necessário investir em pesquisas qualitativas para compreender as mudanças que a Covid-19 trouxe para a vida das PcD e suas famílias.

A Covid-19 iluminou ainda mais a invisibilidade vivida pelas PcD. A repetição da invisibilidade por meio do apagamento em sistemas oficiais ou pela pouca produção bibliográfica intensifica a vulnerabilidade. Faz-se urgente regulamentar os dispositivos da LBI e investir em pesquisas que explicitem como as PcD e famílias têm enfrentado a Covid-19 e quais são os grandes impactos que têm repercutido negativamente em suas rotinas.

  • Pereira EL, Alecrim CGM, Silva DFL, Salles-Lima A, Santos GCG, Resende MC. Invisibilidade sistemática: pessoas com deficiência e Covid-19 no Brasil. Interface (Botucatu). 2021; 25 (Supl. 1): e200677 https://doi.org/10.1590/interface.200677

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Editado por

  • Editor
    Antonio Pithon Cyrino
    Editora associada
    Fatima Corrêa Oliver

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    26 Out 2020
  • Aceito
    03 Maio 2021
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