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Bioética e identidade profissional: a construção de uma experiência de si do trabalhador da saúde

Bio-ética e identidad profesional: la construcción de uma experiencia propia del trabajador de la salud

DOSSIÊ

Bioética e identidade profissional: a construção de uma experiência de si do trabalhador da saúde* * Trabalho elaborado com o apoio da Capes, bolsa de estágio pós-doutoral.

Bio-ética e identidad profesional - la construcción de uma experiencia propia del trabajador de la salud

Flávia Regina Souza RamosI; Jorge Ramos Do ÓII

IEnfermeira. Programa de Pós-Graduação em Enfermagem, Universidade Federal de Santa Catarina. Travessa Angela Chaves, 81. Lagoa da Conceição, Florianópolis, SC, Brasil. 88.062-305 flavia.ramos@pq.cnpq.br

IIHistoriador. Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação. Universidade de Lisboa

RESUMO

O estudo aborda a bioética como discurso no interior de amplas mudanças culturais e em seus crescentes impactos sobre a constituição da identidade do profissional da saúde. São apresentadas duas teses, fundamentadas no referencial de Giddens: 1. A bioética é, potencialmente, um sistema abstrato capaz de produzir reflexividade, ordenando a experiência e o projeto de identidade subjetiva do trabalhador da saúde; 2. A formação ética/bioética do trabalhador da saúde é indissociável de um conjunto de dispositivos pedagógicos que relacionam o trabalho e a escola em "modos de ser profissional". A identidade profissional é problematizada no contexto de descentramento do sujeito moderno e novas noções de identidades pessoais, bem como no interior de dispositivos pedagógicos fortemente alinhados às exigências e conformações políticas e técnicas dos cenários concretos de trabalho, capazes de definir a potencialidade moral/ética da formação.

Palavras-chave: Identidade. Pessoal de saúde. Educação e trabalho. Bioética.

ABSTRACT

This study approaches bioethics as discourse inside broad cultural changes and also in its growing impacts on the constitution of the healthcare professional's identity. Two theses, based on Giddens' theoretical framework, are presented. The first is that bioethics potentially is an abstract system that is capable of producing reflection and of organizing the experience and the subjective identity project of the healthcare worker; the second states that the ethical/bioethical education of the healthcare worker is inseparable from a set of pedagogical devices that relate work and formal education in "modes of being professional". Professional identity is discussed in the context of the decentralization of the modern subject and new notions of personal identities, as well as within pedagogical devices that are strongly aligned with the political and technical demands and configurations of concrete work scenarios, capable of defining the moral/ethical potential of the formal education offered.

Keywords: Identity. Health personnel. Education and work. Bioethics.

RESUMEN

El estudio aborda la bio-ética como discurso em el interior de amplios câmbios culturales y em sus crecientes impactos sobre la constitución de la identidad del profesional de la salud. Se presentan dos tesis fundamentadas em el referencial de Giddens: 1 La bio-ética es, potencialmente, um sistema abstracto capaz de producir reflexividad, ordenando la experiência y el proyecto de identidad subjetiva del trabajador de la salud; 2 La formación ética/bio-ética del trabajador de la salud es indisociable de um conjunto de dispositivos pedagógicos que relacionan el trabajo y la escuela en "modos de ser profesional". La identidad profesional se problematiza em el contexto de descentralización del sujeto moderno y nuevas nociones de identidades personales, así como em el interior de dispositivos pedagógicos fuertemente alineados a las exigências y conformaciones políticas y técnicas de los espacios concretos de trabajo capaces de definir la potencialidad moral/ética de la formación.

Palabras clave: Identidad. Personal de salud. Educación y trabajo. Bioética.

Introdução

Este estudo é parte de uma investigação teórica desenvolvida com base em um objeto, delimitado por referências fundamentais: - o foco sobre o trabalhador da saúde; - o foco sobre uma dimensão desta formação, denominada "formação ética", definida em termos de um discurso operante na formação profissional, identificado como um novo campo de conhecimento ou problematização interdisciplinar - a bioética. A ética/bioética foi pensada por um duplo viés: - como discurso que penetra e produz reflexividade, participando da relação do trabalhador da saúde com seu trabalho e consigo mesmo; - como discurso penetrado por e produzido no interior de certas tecnologias (de prática e de formação profissional), em cenários complexificados de integração educação-trabalho. Fundamentou-se, especialmente, em Foucault, pelo caráter produtivo de sua preocupação com o sujeito como experiência histórica e culturalmente contingente e singular.

As reflexões se dirigem para o primeiro viés e a intenção é tratar a bioética como um discurso que manifesta uma interessante produtividade no campo da saúde, de modo variado e multidirecional. Se é verdade que elementos de um discurso que começou a se impor a partir da bioética impactam cada vez mais os contextos de formação e trabalho em saúde - participando de diferentes definições sobre o papel, a responsabilidade e as fronteiras da atuação profissional - também é verdade que o pensamento produzido no campo da saúde não só incorporou mas interagiu, modificou e deu matizes próprias às proposições da bioética. Também é fato que a maioria das questões hoje postas em termos de bioética, seja no terreno da ciência em geral ou da intervenção em saúde, não tenha sido inaugurada pela Bioética, como problemas adormecidos ou ignorados, à espera de um discurso que os trouxesse à luz. O que fez a Bioética foi organizar dentro de uma lógica, compor no interior de um sistema, "aparelhar" um olhar, no sentido de equipá-lo com conceitos, metas e argumentos sobre a ciência e a vida; enfim, fazer funcionar novos campos de visão sobre o que existia bem antes dela.

Pensando "ciências da saúde" como típica ciência moderna e, mais ainda, tipicamente desafiada pela pretensão de obter a máxima confiança em seus achados e intervenções, esta não escapa à dúvida e ao risco que invadem a vida social. A "ciência médica" que sempre se confrontou com os saberes não seguros da tradição, ora combatendo-os, ora incorporando-os sob rótulos de seu arsenal, vê fragilizadas suas bases de atuação, fortemente imbuída de uma noção de autonomia fundada na especificidade do caso, na relação face a face e numa suposta confiança estabelecida nesta relação. Mesmo a especialização acumulada, característica da modernidade tardia apontada por Giddens (2001), ao mesmo tempo em que acena com as minúcias de saberes específicos, produz múltiplas fontes de autoridade, passíveis de contestações e divergências, quanto a supostos e resultados.

Um dos ângulos da relação entre bioética e trabalho em saúde pode ser traçado na dimensão da formação desses trabalhadores e, mais especificamente, no que se tinha convencionado como "formação ética" dos profissionais da saúde. O caminho de abordagem se constitui em torno de duas teses sobre a experiência de si do trabalhador da saúde no contexto da formação ética/bioética.

Das teses sobre a experiência de si do trabalhador da saúde no contexto da formação ética/bioética

TESE I: A bioética é, potencialmente,

um "sistema abstrato" capaz de produzir reflexividade,

ordenando a experiência e o projeto de identidade

subjetiva do trabalhador da saúde.

Enfatiza-se, aqui, um outro polo da bioética quando referida como base necessária para o exercício profissional moralmente responsável no campo da saúde. A idéia, já comum, de princípios éticos1 1 Embora não se desconheça a clássica diferenciação entre moral e ética - a primeira ligada às práticas da vida social em suas regulações ou na forma como princípios e valores guiam as escolhas, juízos e condutas nas relações sociais; e, a segunda, como a própria reflexão sobre estas condutas e práticas, o estudo ou ramo da filosofia que tem a moral como objeto - neste texto esta diferenciação não é relevante. A ética, em Foucault, é reconhecida com um dos eixos de problematização do sujeito; ética ligada à idéa de subjetivação, como maneira de tornarse sujeito moral de suas ações. Para isto, em muitos estudos, se aplicou sobre exemplos históricos de moral, e deles se valeu para propor um noção de ética como estética da existência, que vincula o individuo a regras e valores (tecnologias de si) e o faz colocar-se (a si mesmo) como objeto da prática moral. De modo geral, o autor emprega, como equivalentes, os termos "sujeito moral" e "sujeito ético". que regulem os comportamentos e ações no âmbito da pesquisa e das práticas sobre a saúde humana, tem, como um de seus fundamentos, a noção de proteção quanto aos abusos, iatrogenias e erros de julgamentos e atos levados a cabo por uns sobre outros, ou com consequências diretas ou indiretas sobre outros. Simplificando, fica a idéia de proteção contra a má prática, baseada numa idéia da boa prática ou da boa ciência. Na posição de protegido, normalmente, é colocado o outro, paciente, cliente, usuário, do indivíduo às populações. De outro lado, também é ressaltada a proteção dos profissionais, pelo fato de que o uso de bons instrumentos amplia a possibilidade de êxito e, portanto, reduz as chances dos desacertos. Como ferramenta para o manejo de problemas e dilemas da prática, essencialmente disposta a promover o raciocínio moral nos processos de tomada de decisão, a bioética reforça a noção de proteção também sob este prisma.

Se este é o polo conhecido, um outro possível seria o de pensar a bioética ligada à constituição da identidade do profissional da saúde. Mais do que ferramentas que habilitam para um agir qualificado, ela pode também fornecer as condições para que um trabalhador se pense qualificado para tal ação. Mais do que isso, que um tipo de trabalhador se diferencie de tantos outros (e saiba-se assim diferenciado) por: em si reconhecer certos atributos, em suas operações identificar certas lógicas e valores, enfim, estabelecer "autoidentidades" que se relacionam, em relativa coerência, com a instituição que as abriga e as mantém.

Uma aparente inconsistência precisa ser esclarecida, no que se refere à perspectiva foucaultiana e à aplicação de algumas idéias de Giddens. À primeira vista, o termo "autoidentidade" de Giddens parece contraditório a Foucault, mas a compreensão não é de identidade que se autoproduz ou de uma referência construída a partir de si mesmo, como num encontro com uma essência já posta no individuo. Ao contrário, com base em linguagens e objetos de estudo diversos, os autores confluem no caráter socialmente construído de "identidades" ou subjetividades, ou, ainda, de formas de ser sujeito neste tempo. A síntese foucaultiana que correlaciona campos de saber (discursos) + tipos de normatividade (práticas regulatórias) + formas de subjetividade é talvez mais facilmente apreendida quando se trata de pensar a bioética como discurso, sistema abstrato ou dispositivo (que integra discursos e práticas) - aqui novamente articulando outros conceitos desses dois autores, apesar de suas dieferenças. Acredita-se que a concepção de identidade de Giddens não pode ser ligada a qualquer tipo de destinação, mas a um pensamento crítico sobre a sociedade contemporânea, e, nisto, pode-se reconhecer a similaridade de projetos em contribuições de diferentes autores.

A questão que se coloca hoje ao filósofo já não consiste em saber [...] como o mundo pode ser vivido, experimentado, atravessado pelo sujeito. O problema central consiste, atualmente, em saber quais as condições impostas a um sujeito para que possa introduzir-se, funcionar, servir de nó na rede sistemática daquilo que nos rodeia. (Foucault, 1994, p.211)

Voltando a este segundo polo, que liga bioética e identidade, não indiferente ao outro polo citado (da bioética como base para ação moralmente correta), a proteção se desloca para a própria identidade do ser-médico, ser-enfermeira, ou do que é medicina e enfermagem. Não se considera que a bioética teria sido uma invenção para funcionar como mecanismo protetor desses agentes e de suas práticas, mas apenas que, também neste terreno, ela tem eficácia. Para argumentar nesta direção, buscou-se apoio em noções propostas por Giddens (2001), especialmente as de "sistemas abstratos", "reflexividade do self", "segurança ontológica", além do próprio conceito de "modernidade tardia"2 2 Há várias motivações para se pensar a bioética como um "sistema abstrato", embora nem todas estejam ancoradas numa tradução fiel das proposições do autor, mas em interpretações mais ou menos livres, ou nelas inspiradas. Opta-se por se destacarem, entre aspas, expressões e termos utilizados pelo autor referenciado, mesmo quando não se faz uma citação literal de trechos da obra, para sinalizar termos recorrentes na mesma e aqui empregados. .

Sistemas abstratos funcionam como filtros mediante os quais se dão as escolhas e revisões que organizam reflexivamente o empreendimento da autoidentidade. O autor trata do modo como a autoidentidade tornou-se um empreendimento reflexivo, um "projeto reflexivo do self" ou uma busca pela "manutenção de narrativas biográficas coerentes", na "ordem pós-tradicional" da modernidade e das novas experiências que ela abre. Ao se falar da eficácia da bioética como sistema abstrato que produz nexos entre problemas e soluções, valores e alternativas - mediados pela experiência que de si faz o sujeito em situações concretas - considera-se tal eficácia como potencialidade a ser estudada na forma como se desdobra em diversificadas manifestações subjetivas.

O compromisso com o profissional que se quer ser é firmado e estimulado desde a escola, na mesma lógica de subjetividades extensivamente conectadas a um projeto de sociedade, a atributos desejáveis e escolhas sensatas, a modos de "andar a vida". Mas este compromisso também é reelaborado no próprio andar da vida, em formas também díspares de nexos entre vida pessoal íntima, profissional e coletiva, ou outros nomes que se possa dar. O sentido de identidade e pertencimento a um trabalho ou carreira ainda é forte na saúde, mesmo em tempos de fragilização (e rompimento?) da centralidade do trabalho na vida subjetiva. Para profissionais preparados em processos intensivos (longos ou concentrados, com intenso recurso ao exercício prático e à inserção nos cenários concretos de trabalho) e em que a permanência na profissão é a tônica, o forte vínculo com este sentido de pertencimento e o compromisso com este projeto identitário é recorrente. Assim, não seria difícil defender que, neste projeto, a bioética se inclui como pauta e instrumento, fim e meio, mesmo que diluída, disfarçada ou revestida por matérias diversas. Simplesmente porque surgiu e tomou este lugar? Provavelmente não. Talvez porque algumas dessas matérias já lá estão há tempo, não imutáveis, mas restauradas, e outras estejam se agregando e se transformando, mas agora podem ser coligadas e conectadas a um saber, um termo: a bioética.

Como lembra Giddens (2001), sistemas abstratos se conectam e interagem com a experiência individual, afetando tanto o corpo quanto o psiquismo, no modo como estes passam a ser mobilizados para construir e realizar os projetos de vida e de pessoa definidos nessa relação. Um dos efeitos é o desencadeamento de processos de "requalificação", em que os indivíduos são empurrados à reaquisição de conhecimentos e competências diversas, relativos desde a aspectos íntimos da vida pessoal até a relações sociais ampliadas. Tais requalificações são sempre parciais, variam em profundidade, especialmente pelos motivos e questões em causa, e são afetadas pelo "caráter revisável do conhecimento especializado". Sobre esta característica "pericial", afirma que a especialização é uma das chaves para entender os sistemas abstratos modernos, e que "toda gente vivendo sob condições de modernidade é afetada por múltiplos sistemas abstratos e, na melhor das hipóteses, pode incorporar apenas um conhecimento superficial da sua complexidade" (Giddens, 2001, p.20).

Muitas questões se desdobram dessas referências quando se volta para a bioética. Uma diferença que cumpre fazer é sobre a forma com que a bioética passa a afetar a vida de todos os dias, sem isenção do leigo, e como afeta particularmente aqueles que estão habilitados, ou se habilitando, como peritos. Aqui surgem aspectos bem particulares, como o fato de um discurso amplamente divulgado, embora controverso e fragmentado, tenha tornado comum uma série de temas nem sempre nomeados como temas bioéticos. Temas que existiam bem antes do próprio neologismo, junto com tantos outros emergentes, não são mais distantes das formas de todos representarem a si e ao seu mundo. Mostra-se coerente pensar que realmente isto tudo impacta a reflexividade dos sujeitos de uma cultura, de uma época.

Se a interação das pessoas com sistemas abstratos é de tal ordem a produzir tais efeitos, o que se dirá dos efeitos sobre a reflexividade dos trabalhadores da saúde, pensada a bioética como sistema abstrato? Dizer que a bioética interage, mediando a experiência do sujeito com seu trabalho e consigo mesmo, ainda é pouco esclarecedor. É razoável que este trabalhador mobilize seus recursos pessoais, e outros disponíveis, para levar a termo um projeto pessoal/profissional que foi e continua sendo elaborado na confluência de díspares influências e autoridades. Mas por que e em que esta relação se distingue daquela de qualquer indivíduo que compartilha tal cultura?

Pensando-se numa reflexividade institucionalizada (nos moldes de uma profissão) pela aplicação regular de conhecimentos sobre as circunstâncias que justificam sua existência, poder-se-ia falar numa reflexividade que é, em si mesma, autojustificadora, autorreflexividade, como juiz de si mesma. Isto está implicado no fato de tal reflexividade dizer ao sujeito e aos outros que uma profissão é útil, necessária e pertinente; e que as circunstâncias que a justificam são o próprio saber que mobilizam e de que lançam mão. No trabalho em saúde, a bioética expressa maior vigor como sistema abstrato constituinte de reflexividade, podendo-se argumentar com base em duas especificidades que podem estar envolvidas com este vigor ou eficácia.

O primeiro argumento acerca dessa reflexividade pode ser relacionado ao que Giddens (2001) refere como a grande importância dos sistemas periciais (saberes especializados e seus produtos) nos sistemas abstratos. Da explicação para a intervenção e daí para a conquista de monopólios é conhecido o caminho comum a tantas profissões e, neste, é reconhecível o estabelecimento de margens seguras para o usufruto e o manejo do arsenal disponível somente entre habilitados credenciados. A defesa de fronteiras sob permanente vigilância, os conflitos em arenas tomadas por diferentes partidários, tanto quanto a crescente especialização dos saberes e práticas tornam-se figura comum deste cenário. Portanto, é obvia a relação entre tais práticas e seus sistemas de peritos ou "comunidades de pensamento"3 3 Numa referência a Fleck (1986). . Mas onde jogaria a bioética - movimento interdisciplinar não afeito ao enclausuramento - nesta arena de peritos?

Como movimento que permeia uma cultura e atravessa distintos ramos do saber teria a bioética se imposto como "matéria" necessária nesta tarefa de garantir legitimidade? Teria sido por uma intencionalidade dos próprios profissionais a adesão ao movimento ou a incorporação desta linguagem como processo inevitável para sua sustentabilidade? Se não tão claramente posto como intenção, teria tal artifício tomado corpo no gradual processo de ligações e entroncamentos dos saberes especializados com seu entorno cultural e científico, numa manifestação de quão contingentes e negociáveis são suas fronteiras?

Na verdade, não apenas a idéia de fronteiras contingentes e negociáveis pode ser emprestada de Fleck (1986). Com ele podemos pensar também em "traduções" de conhecimentos para um estilo de pensamento, não como simples ato de "importar", mas de assimilar enriquecendo, moldando e conferindo novas propriedades ao "traduzido". Assim, a bioética, oferecendo "objetos fronteiriços", mobilizaria estes movimentos entre a rigidez e a flexibilidade dos "estilos de pensar" dessas disciplinas, fazendo compartilhar não só problemas (que escapam e desafiam seus limites), mas também instrumentos. Lidar com objetos fronteiriços acarretaria zonas de acordo entre os grupos que interagem (núcleos rígidos?) e "zonas difusas e periféricas", de tradução e recriação por cada grupo ou disciplina, mais fortemente estruturadas para a abordagem e uso específico.

Pode-se refletir sobre a bioética traduzida e capturada nas fronteiras do trabalho em saúde, sem perder-se como sistema abstrato de repercussões amplas, mas ganhando mais potencial de penetração, novas roupagens e novos conteúdos. Com isso, aquela referência de Giddens sobre a importância dos sistemas periciais (comunidades de pensamento?) na constituição e propagação dos sistemas abstratos se confirma e amplia. Não só esses profissionais, ao fazerem uso da bioética, reforçam sua penetração como sistema abstrato (uma vez que eles próprios funcionam como peritos e têm sua fala reconhecida como legítima), como também proferem um discurso que virtualmente os transforma. Não só os sistemas periciais penetram várias esferas da vida cotidiana, mas, ao mesmo tempo, são penetrados por outros sistemas.

Outro argumento do vigor da bioética como sistema abstrato participante da constituição de reflexividade e identidade na especificidade do trabalho em saúde remete a uma eficácia bem mais sutil, imbricada em referências tradicionais dos profissionais, a ponto de serem substrato básico de sua identificação subjetiva. No marco da modernidade tardia, Giddens (2001) mencionou o "isolamento da experiência" a partir da qual as instituições modernas criam cenários de ação ordenados segundo seus próprios termos e dinâmicas, livres de critérios externos, numa "referencialidade interna" que a desliga de experiências e problemas existenciais gerais e de moralidade. A ciência, a tecnologia e o "conhecimento pericial" teriam um papel fundamental nesse isolamento.

Partindo da medicina, como exemplo, é possível reconhecer uma ambivalente posição - a de se estabilizar na vida social como prática protegida no interior de uma relação de intimidade e confiança entre sujeitos e, portanto, neste encontro, resguardada do olhar alheio; e, ao mesmo também, como prática constrangida a extrair, dessa experiência única do encontro, um conhecimento generalizável, aplicável à multiplicidade. Dito de outro modo, trata-se de a especificidade do caso ter algo a dizer que menos tem a ver com tal especificidade, mas com sistemas de nomeações e descrições; para continuamente alimentar uma linguagem, codificações e normalizações, continuamente ampliar o arquivo de registros sobre a multiplicidade humana que sente dor, adoece e morre.

O que se mostra resguardado na particularidade do encontro é o que desconforta e desestabiliza a segurança dos padrões. No interior dos saberes "sólidos" da linguagem clínica, a objetividade e detalhamento da especialização e da perícia são moedas fortes; valorizadas a ponto de serem tidas como recurso suficiente para comparecer ao encontro com o outro. Mas se, agora, este outro pode ser presença não mais dissolvida nos códigos, cálculos e prescrições, pode também reclamar por mais do que ações e técnicas periciais, pode demandar por sistemas abstratos não completamente identificados com a clínica, seus discernimentos diagnósticos e terapêuticos. Aqui a bioética adquire a eficácia de um sistema abstrato que alinhava, compõe essas posições de ambiguidade dando-lhes um tipo de acabamento. Visto por dentro, do ângulo do trabalhador, o poder de isolar e proteger sua experiência, tanto quanto o de expandi-la para as margens do público, pode ser tomado como virtude da prática e de seus praticantes, como condição de fortaleza por seus praticantes e favorecidos.

A bioética se mostra capaz de fortalecer o valor do que já está legitimado (o saber e prática clínica) como produto não só desejável e útil, mas também qualificável e distribuível - não apenas importante pelos efeitos que pode ter na vida das pessoas, mas por ser bem que deve ser competentemente aplicado e justamente distribuído entre todos que necessitam. Neste sentido, atribui valor e condições de valor a um saber e uma prática tradicional, de certa forma relativizando o "isolamento da experiência", a "referencialidade interna", ou a intimidade do encontro. Se estes existem, devem de si prestar contas de algum modo. Modos efetivos e abrangentes? Nem tanto. Mas relativa proteção.

Mesmo correndo o risco de reduzir o argumento ao exemplo, é possível finalizar esta tese com uma ilustração com base na idéia de beneficência. Enquanto princípio bioético, a beneficência foi amplamente divulgada a partir da obra de Beauchamp e Childress, de 1977, "Ética Biomédica". A intenção de "mostrar como a teoria ética pode iluminar problemas referentes à saúde" (Beauchamp, Childress, 2002, p.17), no sentido de uma ética aplicada, acabou por produzir a principal referência (mais conhecida no meio acadêmico e científico), a ponto de "tornar principialista a bioética". Para Pessini e Barchifontaine (2002), ela forneceu a linguagem para falar com um público especifico (profissionais da área da saúde) e foi o porto seguro desses mesmos profissionais.

Linguagem para dar sentido à ética neste contexto de sujeitos e práticas, "para a ética falar"? Sim. Mas também linguagem que integrou e deu sentido (teórico-filosófico) a um conjunto de experiências desses sujeitos, ou seja, "para os técnicos falarem".

Mesmo antes da vinculação das práticas de cuidado com a ciência, o fato de buscar o benefício de quem a recebia era a base da confiança na ação de cuidar/curar e da sua legitimidade como prática social. O bem, como meta, sustenta a relação tanto da parte de quem cuida como de quem é cuidado. O profissional precisa acreditar que sua decisão é movida pelo interesse no outro - e esta será uma marca distintiva de como se vê e se julga, com tanta ou maior consistência do que os instrumentos que emprega ou dos resultados obtidos em suas ações. Até o erro é admissível, mas a ausência desta finalidade é inconcebível. Beneficência é constituinte da autoidentidade, e sua ausência é desagregadora neste mesmo nível.

Então, o que a bioética trouxe de novo? Como mesmo afirmam Beauchamp e Childress (2002), a moralidade comum é tida como o ponto de partida correto para a teoria ética, apesar de suas incompletudes e imperfeições. Buscar, na tradição, a matéria-prima para a reflexão ética é expediente

elementar para, a partir daí, se construírem repertórios consistentes e válidos de soluções objetivas, convicções morais firmes, articuladas e expansíveis; enfim, "juízos ponderados" devem ser "normas autoevidentes" e "intuições plausíveis" (aceitáveis sem suporte argumentativo ou sem recorrer a outros juízos), uma vez que servem como premissas confiáveis, independente de sua proveniência, sobre as quais se ergue uma estrutura mais sólida, enriquecida por um amplo corpo de experiência.

A beneficência já era componente de uma moralidade, ou de um sistema abstrato vinculado a noções morais de uma cultura, que, nas interações com novas conformações e exigências das práticas, se organizou de modo diverso, ou no interior de um novo sistema abstrato. Ou, ainda, conteúdos se ordenaram de outro modo e adquiriram a conformação de um sistema abstrato mais unitário, elaborado ou destacado. A teoria bioética considerou, assim, a beneficência como este juízo ponderado ou norma autoevidente, e a ele deu corpo sistematizado, numa rede de ligações entre fundamentos e casuística, idéias e problemas práticos.

Desta forma, o modelo bioético tornou mais evidente os elos que articulam a experiência individual ao pensamento de uma época, agregando soluções e alternativas, antes fragmentadas, em um arcabouço lógico e orientador frente ao recorrente e, quem sabe, o inesperado destas práticas; enfim, ligando o serviço ao outro e o serviço a si mesmo, numa mesma exigência. A partir daí o próprio uso, ou a presença obrigatória da beneficência nos modos de pensar e falar do trabalho em saúde, se encarregou de ampliar sua utilidade, com crescentes problemas a responder e integrar.

TESE II: A formação ética/bioética do trabalhador da saúde é indissociável

de um conjunto de dispositivos pedagógicos que relacionam o trabalho e a

escola4 4 Longe de uma separação entre trabalho e escola, a intenção é destacar seus imbricamentos (ou impossibilidade de serem pensados de modo isolado), sem desconhecer certas especificidades em termos de regulações, dinâmicas políticoinstitucionais ou, mesmo, representações sociais, que acabam por conformar referências para pensar um e outro espaço formal (justificando serem referidos como "mundo da escola" e "mundo do trabalho", especialmente em campos de pesquisa que se debruçam sobre as transformações processadas em cenários eleitos e sob a influência de impactos também elegíveis, sejam macro ou microanálises). Assim, é limitada a crítica de que este tipo de referência poderia negligenciar, por exemplo, o próprio trabalho educativo ou a educação como trabalho social. em "modos de ser profissional". Ou: A formação ética do trabalhador se

processa no interior de certas tecnologias (de prática e de educação)

em cenários complexificados de integração educação-trabalho.

Uma vez constituída a bioética como discurso no interior de amplas mudanças culturais, em especial aquelas geradas nas relações desta cultura com a ciência; uma vez apropriada como instrumental adequado e necessário às práticas de saúde e ao "bom" exercício profissional neste campo, uma pergunta pertinente, ou até mesmo inevitável, foi colocada para médicos e enfermeiros - que ser ético é você?5 5 Em referência ao comentário de Foucault, sobre o estabelecimento de um dispositivo da sexualidade (conjunto de práticas, instituições e conhecimentos), a partir do século XVII, que tornou inevitável a pergunta: que ser sexual é você? (Foucault, 2002). .

Mas o que tinha de novo esta pergunta, uma vez que a formação "ética" de médicos e enfermeiros sempre esteve presente nas pautas pedagógicas desta educação profissional? Pelo menos no sentido que podemos circunscrever como educação profissional institucionalizada, independente do local que ocupava ou da concepção que a justificava, existia uma noção de moralidade aplicada à prática desses profissionais. Apesar disto, é enorme o vazio sobre a formação moral em estudos históricos sobre essas profissões. A maioria desses estudos se organiza em torno de eixos históricos espaço-temporais que privilegiam a relação das práticas com grandes transformações do pensamento e da sociedade ocidental. Normalmente, formação moral ou formação ética do profissional se confunde e é limitada ao ensino de ética e, mesmo sob este entendimento, os estudos são escassos (Rego, 2003; Dallari, 1996; Germano, 1993).

O que esta tese aponta, em diferença aos focos relatados, pode ser sintetizado em algumas problematizações: - que esta "identidade profissional", a qual os processos formativos pretendem "construir", só pode ser pensada no contexto de amplas mudanças das identidades pessoais, do "sentido de si" e da própria idéia do que possa ser identidade hoje; - que a pergunta sobre o "ser ético" não está separada da pergunta sobre o "ser profissional ou técnico"; - que os dispositivos pedagógicos são definidores de qualquer potencialidade moral/ética da formação e; - tais dispositivos estão fortemente alinhados a exigências e conformações políticas e técnicas dos cenários de trabalho.

Inicialmente, cabe discutir o que foi referido como mudanças da noção de identidade, de identidades pessoais ou de sujeito. Trata-se do que Hall (1997) aborda como crise ou colapso das identidades modernas ou, ainda, morte do sujeito moderno, em que a idéia de morte ou colapso refere-se a um processo de descentramento, fragmentação ou deslocamento, ou melhor, duplo deslocamento, uma vez que "descentra os indivíduos tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmo" (Hall, 1997, p.9). Esta crise abala a idéia que as pessoas têm de si como sujeitos integrados - com sólidas localizações como seres sociais, como aquelas fornecidas por meio de suas posições de gênero, classe, etnia, raça, nacionalidade, entre outras - desarticulando identidades estáveis do passado e, também, possibilitando novas articulações, a produção de novos sujeitos, ou "posições de sujeito" em sociedades marcadas pela diferença.

Nos últimos anos, a identidade tem se colocado como objeto de estudo por parte desses trabalhadores, em diferentes inserções teóricas, mobilizados por idéias como: o profissional de hoje só poderia ser compreendido pela análise crítica de transformações históricas do trabalho na sociedade e heranças culturais que conformaram a identidade destes profissionais; a educação profissional era decisiva na formação de identidades profissionais; projetos políticos para o trabalho em saúde e para profissões específicas passavam pela crítica de identidades culturais de seus trabalhadores, entre outras.

Segundo Rose (2001, p.45), apesar de tal heterogeneidade, há um "borramento" das diferenças em nosso presente, de modo que os humanos ainda se concebem em situação de familiaridade com "humanos considerados como eus dotados de autonomia, escolha e auto-responsabilidade, equipados com uma psicologia que aspira à auto-realização, efetiva ou potencialmente levando suas vidas como uma espécie de empresa de si próprios".

Num segundo ponto, que levanta a articulação do "ser ético" e o "ser profissional ou técnico" nos processos de formação desses trabalhadores, ressalta-se o caráter temporário e contingente de qualquer pretensa "unidade". A relação entre "ser ético" e "ser técnico" é presumida ou trabalhada pelos dispositivos pedagógicos, indicando a índole sempre precária e móvel das respostas que sobre si têm os profissionais. Quando grande parte da afirmação do "que ser ético eu sou" se fundamenta no "quão bom técnico eu sou" ou no como "desempenho meu papel profissional", as circunstâncias do desempenho, os predicados e critérios de avaliação deste papel se mostram menos sólidos, mais móveis e provisórios, exatamente por sua contingencialidade.

Se considerarmos que uma posição ética interessante surgiria desta carência de solidez (das referências e circunstâncias da prática profissional), uma vez que confrontaria o trabalhador com a reflexão sobre si em outras bases (que não da tradição e das identidades fixas), poderíamos pensar que quanto mais sólidas e coesas (cultural e subjetivamente) essas identidades profissionais, mais difícil se tornariam as rupturas éticas? Então, o empreendimento de ser profissional, também por este motivo, se conectaria (acessaria de múltiplas formas) ao empreendimento de ser ético.

Mas ao se afirmar esta articulação, não se quer afirmar que isto esteja refletido em todo o dispositivo da formação profissional. Parece se revelar um tipo de cruzamento ambíguo: por um lado, uma emergência e valorização crescente do "ser ético, ou de competências éticas, como inalienáveis à pratica profissional; por outro lado, uma disposição e funcionamento desses aparatos que fazem o "ético" ser subsumido ao "técnico", incorporado, fagocitado e encapsulado no interior deste, como se uma relação automática, infalível e duradoura se processasse e, a partir daí, a boa técnica fosse capaz de responder pela ação ética, fosse capaz de representar o sujeito ético.

Por este pensamento se chega ao terceiro e quarto pontos - que os dispositivos pedagógicos também atuam na definição da potencialidade moral/ética da formação e, por sua vez, tais dispositivos estão fortemente alinhados às exigências e conformações políticas e técnicas dos cenários de trabalho.

A idéia de dispositivos pedagógicos, de certa forma, já surge em contraposição a qualquer noção que possa tomar o amplo arsenal de instrumentos pedagógicos (locais, métodos, práticas, saberes, recursos) como simples meios para um fim que dirige todo o processo e, portanto, ferramental quase sem vida, manipulável e frio. Ao contrário, dispositivos funcionam, se movem, se expandem, incorporam e produzem coisas pela interação de muitos elementos quentes e frios; coisas como discursos e práticas (saberes e instituições, proposições e normatividades dos mais variados tipos, da científica à moral) reunidos estrategicamente. Assim, por dispositivo é referida a rede de relações entre elementos heterogêneos (discursos, leis, instituições, enunciados, medidas administrativas etc.); em que o tipo de nexo estabelecido entre esses elementos é de uma natureza especial, de acordo com uma função sempre estratégica, que responde a uma necessidade historicamente dada (Castro, 2004). "Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode tecer entre esses elementos" (Foucault, 2000, p.244).

Por esta idéia se torna óbvia a afirmação anterior. Se o que estamos chamando de formação ética/ moral entra, participa ou é um dos elementos do dispositivo da formação profissional, é óbvio que este dispositivo é decisivo nessa dimensão. Mas como penetra neste dispositivo, ou como é capturada nele? Que relação estabelece com outros elementos deste dispositivo, essa formação ética não mais pensada como isolada?

Neste momento serão retomadas três relações, ou três outros elementos participantes desta rede ou dispositivo, entre muitos que poderiam ser escolhidos, por referências a identidades profissionais, a uma situação política do setor e uma lógica dos serviços de saúde, e, ainda, a uma dinâmica universitária de saberes disciplinarizados.

A primeira referência, a identidades profissionais, remete a alguns destaques que valem ser retomados: - a identidade profissional (ser médico, ser enfermeira) em seus aspectos históricos e culturais, tem sido aprendida como importante objeto de reflexão por aqueles que são ou se preparam para ser profissionais; - os processos de formação tentam captar, compreender e/ou criticar os modos de ser profissional, sejam como expressões de representações sociais ou do pensamento que os trabalhadores tenham de si mesmos; - essas atenções voltadas para as identidades trazem em comum uma fusão linear e espontânea entre subjetividade e trabalho, identidade e ação, ou modos de ser e modos de fazer o trabalho, em que o que faço diz sobre mim, ou que o profissional é identificado pelo conteúdo, características e valores atribuídos, social e subjetivamente, ao seu trabalho (aos atos em si e aos resultados), como "um ser que se constrói no tempo, no espaço e nas relações do cotidiano" do trabalho (Araújo Netto, Ramos, 2004, p.56); - os processos formativos assumem para si a tarefa de: acessar identidades que se fazem no próprio trabalho, traduzi-las em conteúdos assimiláveis, constituir inteligibilidades e, sem abrir mão da pretensão de fazer a sua crítica e de empreender a sua transformação, manter uma unidade que assegure a consolidação de estruturas de identificação profissionais suficientes a esta socialização; - as leituras e traduções na relação escola-trabalho não estão livres de teorizações e modelos que mediam estas mesmas relações e, assim, certos canais de leitura, ou vias de acesso, são abertas (e outras emperradas); o elemento ético do trabalho é, por estas vias, acessado e passa a constituir um componente (maior ou menor) do mesmo e, daí, um componente da formação.

A segunda referência aponta para um outro conjunto complexo de elementos, alguns vetores que rivalizam, conformam uma situação e uma lógica própria de funcionamento dos serviços de saúde brasileiros. Só a análise deste tema, aqui reduzido a elemento, já implicaria um estudo bastante amplo, pois remete a ramificações em inúmeras interfaces, próprias de processos políticos e técnicos em intensas transformações. Na impossibilidade de distinguir um fluxo único e coerente das transformações no campo da saúde, é possível reconhecer algumas direcionalidades, mais ou menos generalizáveis, como aquelas que incidem sobre modelos de organização do trabalho, perfil do trabalhador e complexificação e ampliação dos campos de prática em saúde.

Cada uma dessas tendências, advindas de mudanças sociológicas e tecnológicas do mundo do trabalho ou de mudanças políticas do sistema de saúde, apresenta repercussões sobre as formas de trabalhar e de ensinar em saúde, representando ou impondo mudanças tecnológicas sem sentidos únicos e autoevidentes, mas que demonstram a complexificação dos cenários concretos do trabalho e, daí, das alternativas de integração educação-trabalho. Numa representação muito rápida, poderíamos falar de sistema de saúde que conforma um perfil de trabalhador (assalariado em serviços públicos e, extensivamente, de atenção básica), que crescentemente passa a ser alvo de intervenções políticas particulares. Enfim, o Estado não apenas é o maior empregador, como o maior regulador das relações de trabalho, da organização e divisão do trabalho, dos modelos tecnológicos e, inclusive, do mercado de trabalho e da formação do trabalhador em saúde no Brasil.

Como motor deste conjunto de mobilizações, relativamente abrangentes e simultâneas, atuam não apenas as exigências do Sistema Único de Saúde e seu modelo de atenção, mas também a intensa reformulação do marco legal dos cursos, com a implantação das Novas Diretrizes Curriculares Nacionais, alinhadas às competências profissionais comuns e específicas exigidas por este modelo de atenção e alavancadas por políticas interministeriais (Saúde e Educação).

Mesmo considerando um relativo sucesso na "uniformização" de uma base legal e teórica para os processos de mudança nos cursos de graduação em saúde, uma série de escolhas e operacionalizações impele escolas e cursos a caminhos e contingências nunca uniformes. De um lado poderíamos falar de circunstâncias, tendências e movimentos mais compartilhados, de outro, contingências que apartam de qualquer suposta condição comum. Em suma, o momento "agrega" em torno de uma revalorização da integração ensino-serviço, na medida em que ambos compartilham da integralidade como eixo norteador, como moeda forte com a pretensa capacidade de negociar as diferenças de papéis e posições em proveito de bases e objetivos comuns. Mas até que ponto comuns? E sob que condições de adesão a este novo estatuto da integralidade? (Quem a elegeu? Sob que argumentos e referenciais? Que construções são possíveis neste marco? Como se impõe aos atores?). Do lado que constrange e limita esta lógica unificadora, relativizando seu potencial de constituir-se como movimento hegemônico e sólido, estão contingências não solucionáveis no âmbito deste tipo de intervenção, porque próprias à estrutura e situação desses cursos. Estas se referem a: diferenças institucionais (cursos em universidades públicas ou privadas) que implicam discrepâncias em termos de qualificação e perspectiva de carreira docente, inserção e valorização da pesquisa, lógicas de gestão, condições de ensino e de trabalho docente (infraestrutura, apoio, insumos), recursos para o ensino, pesquisa e extensão, entre outros; disparidades regionais; capacidades de interlocução entre gestores dos serviços de saúde e das escolas e cursos.

Na terceira e ultima relação se pretende contemplar um pouco mais desta dinâmica universitária ou de saberes disciplinarizados. O que se quer ressaltar é que, além de tudo o que pode ter de problemático no contexto atual da formação de trabalhadores da saúde, existem aspectos que há muito demarcam as possibilidades de desenvolvimento de saberes e técnicas no marco da ciência moderna.

Da organização dos saberes em disciplinas, de suas intercomunicações e hierarquizações no interior de um campo global, é que se pode falar da "ciência" (em oposição aos saberes múltiplos, independentes, heterogêneos e secretos anteriores ao grande empreendimento de generalização e anexação próprio ao desenvolvimento do saber tecnológico do séc. XVIII) (Foucault, 2005). O interesse maior com esta referência é de enfatizar uma consequência, apontada por Foucault, desse controle exercido internamente na disciplina dos saberes, que foi a possibilidade de renunciar à "onerosa ortodoxia" sobre os enunciados, na forma de um "desbloqueio epistemológico". Ou seja, um "liberalismo" quanto ao conteúdo dos enunciados substitui a ortodoxia por um controle infinitamente mais rigoroso e mais abrangente sobre os procedimentos de enunciação. O problema desloca-se para saber "quem falou" e se era qualificado para falar, em que nível e conjunto se situa este enunciado, em conformidade a qual tipologia de saber. Assim, para além dos constrangimentos contemporâneos que pesam sobre a universidade, cabe reconhecer que algumas das críticas e propostas de reestruturação institucional e reorganização dos saberes implicariam bem mais do que reformas de caráter administrativo ou de adoção de supostos teóricos para o ensino. Estão em jogo relações entre saber e poder e as próprias regras do grande empreendimento científico. Ficar fora dessas regras impõe falar de fora, ou talvez não falar. Afrouxar, mover e deslocar regras, sem nunca deixar de criar outras tantas, não deixa de ser o movimento característico da dinâmica universitária ou das disciplinas, acadêmicas e profissionais, em suas formas institucionais, em suas fronteiras móveis e incertas.

Profissões como a enfermagem e a medicina também possuem experiências diferenciadas do enfrentamento das tensões de suas situações como campos de saber e prática, até mesmo porque, apesar de possuírem objetos fronteiriços, se estabelecem como disciplinas com estatutos e histórias bem diversas.

Por todas estas considerações, estaria irremediavelmente quebrada a possibilidade de uma identidade que realizasse a ilusão de unidade e coerência, articulando sem conflitos os movimentos: de expansão e retração, de normalização e inovação, de autocrítica e sustentabilidade, de exposição e preservação, de controle alfandegário de fronteiras, e um desapego apenas imaginado, enfim, da profissionalização, disciplinarização e cientifização, por um lado, e da reflexão ética, por outro.

Talvez o reconhecimento de que, além de nossas múltiplas e descentradas identidades, também a relação subjetiva com nosso trabalho não possa se dar sobre uma superfície calma e limpa, sob um sujeito ideal integrado, mas possa ser a condição que temos de novas críticas, de novos olhares sobre as instituições nas quais este sujeito profissional se entende como tal. Assim, os poucos elementos aqui tratados - identidades profissionais, relação com a política e serviços de saúde e cenário universitário - são apenas representativos da complexidade da relação educação-trabalho. Relação mediada por tecnologias com repercussões diretas, não apenas nos modos de trabalhar, mas nos modos de se perceber e se constituir como sujeito trabalhador e, como tal (não apenas, mas também aí), sujeito ético.

As dificuldades de análise que advêm da complexidade dessas relações (educação-trabalho) não podem reduzir as demandas do trabalho às demandas do mercado. Mesmo em tempos de empregabilidade e "competências para o mundo do trabalho"não se podem simplificar as posições do mercado e da escola, pressupondo autonomia ou submissão absolutas, mas talvez, por isso mesmo, o recurso de pensar em dispositivos que interagem estrategicamente. Assim, dispositivos pedagógicos e dispositivos do trabalho em saúde (terapêuticos, do cuidado, da gestão) são interativos e co-funcionais, se não, por alguns momentos, idênticos ou absolutamente colados.

As diferentes modalidades de trabalho ou modos de um trabalho se organizar tecnologicamente permitem pensar na constituição de sujeitos trabalhadores, subjetividades ou identidades mediadas pela tecnologia. Instrumentalidade tanto pelo ponto de vista da operacionalidade do saber (devem ter utilidade/aplicação ou "postos em ação" para certos fins), da necessidade de exercitar habilidades no próprio fazer, quanto do ponto de vista de que os "fins" desse trabalho são apreendidos num compromisso com a realidade e pela sensibilidade para nela perceber problemas.

Buscou-se localizar o que se está chamando de formação ética/moral no interior de um dispositivo da formação profissional, e este em relações com outros dispositivos, para desenhar uma rede na qual a reflexão sobre a ética/bioética pode ser desencadeada de diferentes pontos ou cruzamentos. Mais do que localizar um ponto fixo onde a formação ética estaria enredada, "capturada" nesse dispositivo (conforme perguntado anteriormente), trata-se de ver múltiplas conexões e pontos móveis, de cruzamentos com elementos vários. Reafirma-se, assim, o não isolamento dessa formação ética em conteúdos e experiências tradicionalmente estandardizadas, mas essencialmente implicada em cenários e modos de ensinar e trabalhar, complexificados por processos políticos e tecnológicos que atravessam esta e outras redes e que também poderiam ser tomados como dispositivos específicos.

Colaboradores

A autora Flávia Regina Souza Ramos responsabilizou-se por todas as etapas de preparação do manuscrito. Jorge Ramos D'Ó apoiou a busca de literatura, interpretação, análise e revisão final.

Referências

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Recebido em 20/01/08. Aprovado em 18/09/08.

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  • ROSE, N. Como se deve fazer a história do eu? Educ. Real., v.26, n.1, p.33-57, 2001.
  • *
    Trabalho elaborado com o apoio da Capes, bolsa de estágio pós-doutoral.
  • 1
    Embora não se desconheça a clássica diferenciação entre moral e ética - a primeira ligada às práticas da vida social em suas regulações ou na forma como princípios e valores guiam as escolhas, juízos e condutas nas relações sociais; e, a segunda, como a própria reflexão sobre estas condutas e práticas, o estudo ou ramo da filosofia que tem a moral como objeto - neste texto esta diferenciação não é relevante. A ética, em Foucault, é reconhecida com um dos eixos de problematização do sujeito; ética ligada à idéa de subjetivação, como maneira de tornarse sujeito moral de suas ações. Para isto, em muitos estudos, se aplicou sobre exemplos históricos de moral, e deles se valeu para propor um noção de ética como estética da existência, que vincula o individuo a regras e valores (tecnologias de si) e o faz colocar-se (a si mesmo) como objeto da prática moral. De modo geral, o autor emprega, como equivalentes, os termos "sujeito moral" e "sujeito ético".
  • 2
    Há várias motivações para se pensar a bioética como um "sistema abstrato", embora nem todas estejam ancoradas numa tradução fiel das proposições do autor, mas em interpretações mais ou menos livres, ou nelas inspiradas. Opta-se por se destacarem, entre aspas, expressões e termos utilizados pelo autor referenciado, mesmo quando não se faz uma citação literal de trechos da obra, para sinalizar termos recorrentes na mesma e aqui empregados.
  • 3
    Numa referência a Fleck (1986).
  • 4
    Longe de uma separação entre trabalho e escola, a intenção é destacar seus imbricamentos (ou impossibilidade de serem pensados de modo isolado), sem desconhecer certas especificidades em termos de regulações, dinâmicas políticoinstitucionais ou, mesmo, representações sociais, que acabam por conformar referências para pensar um e outro espaço formal (justificando serem referidos como "mundo da escola" e "mundo do trabalho", especialmente em campos de pesquisa que se debruçam sobre as transformações processadas em cenários eleitos e sob a influência de impactos também elegíveis, sejam macro ou microanálises). Assim, é limitada a crítica de que este tipo de referência poderia negligenciar, por exemplo, o próprio trabalho educativo ou a educação como trabalho social.
  • 5
    Em referência ao comentário de Foucault, sobre o estabelecimento de um dispositivo da sexualidade (conjunto de práticas, instituições e conhecimentos), a partir do século XVII, que tornou inevitável a pergunta: que ser sexual é você? (Foucault, 2002).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Jul 2012
    • Data do Fascículo
      Jun 2009
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