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À SOMBRA DA COLONIALIDADE: A VIOLÊNCIA EM “THE WELCOME TABLE”, DE ALICE WALKER, E “DUZU-QUERENÇA”, DE CONCEIÇÃO EVARISTO

IN THE SHADOW OF COLONIALITY: VIOLENCE IN ALICE WALKER’S “THE WELCOME TABLE”, AND CONCEIÇÃO EVARISTO’S “DUZUQUERENÇA”

Resumo

Este artigo objetiva analisar dois contos, “The welcome table”, da escritora afro-americana Alice Walker, e “Duzu-Querença”, da escritora afro-brasileira Conceição Evaristo. O ponto principal da análise é entender como as duas narrativas literárias encenam violências perpetuadas ao longo da história por uma matriz colonial de poder. Partindo desse ponto, observamos as violências de raça e gênero pela lente da decolonialidade a partir do desenvolvimento dos enredos e das dinâmicas de figuração das personagens. Para tanto, na primeira seção apresentamos algumas teorizações sobre a (de)colonialidade e os seus desdobramentos a partir da violência e a sua relação com a literatura. Na sequência, analisamos os textos literários a partir das questões levantadas na discussão teórica, observando como é construída a semantização das opressões sustentadas pela colonialidade.

Palavras-chave
Decolonialidade; Literatura Afro-Americana; Literatura Afro-Brasileira; Violência

Abstract

This paper aims at analyzing two short stories, “The welcome table”, by the African-American writer Alice Walker, and “Duzu-Querença”, by the African-Brazilian writer Conceição Evaristo. The core of the analysis is to understand the way both literary narratives represent violence perpetuated throughout History by a colonial matrix of power. Starting from this point, we observe racialized and gender-based violence through the lens of decoloniality considering the development of the storyline and the figurative dynamics of the characters. In order to do so, in the first section we introduce some theorizations on (de)coloniality and its unfoldment through violence and its relations to Literature. In the aftermath, we analyze the literary texts taking into account the concerns raised in the theoretical discussion observing how the semantization of oppressions supported by coloniality is built.

Keywords
Decoloniality; African-American Literature; African-Brazilian Literature; Violence

Introdução

O escritor martiniquenho Patrick Chamoiseau (2002CHAMOISEAU, Patrick. Biblique des derniers gestes. Paris: Gallimard, 2002. apud FIGUEIREDO, 2009FIGUEIREDO, Eurídice. Afetos e arquivos da escravidão. Alea: Estudos Neolatinos, v. 11, n. 01, p. 35-47, 2009. Disponível em: < https://www.scielo.br/j/alea/a/39jXMQCGkY8j5nB68Sn7TyB/?lang=pt&format=pdf>. Acesso em: 01/09/2021.
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, p. 31), no livro Biblique des derniers gestes, enquadra o tráfico de escravos como o crime fundador da América. Tal prática é alicerce, junto com o genocídio dos povos autóctones, acrescentamos, de todos os processos históricos que se desenvolveram depois da invasão dos territórios americanos pelas potências coloniais europeias. Isso demonstra que a violência é uma constante nos desdobramentos históricos das sociedades erguidas sob o jugo do colonialismo e da colonialidade. A partir desse quadro histórico é possível lançar luz nas diversas formas de violência observadas hoje, das quais destacamos a violência racial e de gênero, uma vez que o racismo e o sexismo são impulsionados pela matriz colonial de poder.

A cultura, enquanto capital simbólico de uma comunidade, não fica alheia a esse cenário permanente de violência. As produções culturais representam esse contexto das mais variadas formas, pois, como postula Walter Benjamin (2012, p. 245)BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 8ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2012. p. 241-252., “nunca houve um documento da cultura que não fosse simultaneamente um documento da barbárie”. De uma forma mais específica, pensando na literatura, esse nicho cultural encena nas suas formulações diegéticas as várias faces da violência em arranjos estéticos diversos.

Sobre esse aspecto, consideramos que a violência na literatura transcende a mera representação de cenas de violência física. A criação literária, nesse sentido, imbrica as dinâmicas históricas que sedimentam a manifestação da violência em uma sociedade ao empreendimento estético que realiza. Dito de outro modo, refletir sobre literatura e violência é pensar na aproximação de processos históricos, culturais e sociais que se entrelaçam no discurso literário.

Por esse contexto, neste artigo, buscamos analisar de uma forma comparada dois contos: “The welcome table”, de Alice Walker, dos Estados Unidos, e “Duzu-Querença”, de Conceição Evaristo, do Brasil. No exercício analítico, voltamos nossa atenção para as formas de representação da violência, ou seja, como esse fenômeno social é semantizado a partir do posicionamento das personagens na cartografia social figurada na diegese e a ação por elas desenvolvida, bem como os recursos simbólicos que redimensionam os arranjos históricos da colonialidade, manifestados nos textos por meio da violência racial e de gênero. Tais análises ancoram-se nas proposições epistemológicas dos estudos decoloniais, com base em Restrepo e Rojas (2010)RESTREPO, Eduardo; ROJAS, Axel. Inflexión decolonial: fuentes, conceptos y cuestionamientos. Popayán: Universidad del Cauca, 2010., Fanon (2004)FANON, Frantz. The wretched of the earth. Trad. Richard Philcox. New York: Grove Press, 2004., Quijano (2000)QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder y clasificación social. Journal of world-systems research. v. 11, n. 2, p. 342-386, 2000. Disponível em: <http://www.ram-wan.net/restrepo/poscolonial/9.2.colonialidad%20del%20poder%20y%20clasificacion%20social-quijano.pdf>. Acesso em: 01/09/2021.
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, Mignolo (2008)MIGNOLO, Walter D. Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado de identidade em política. Cadernos de Letras da UFF: Dossiê: Literatura, língua e identidade, v. 34 n. 01, p. 287-324, 2008. Disponível em: <http://professor.ufop.br/sites/default/files/tatiana/files/desobediencia_epistemica_mignolo.pdf>. Acesso em: 01/09/2020.
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e Said (2011)SAID, Edward. Cultura e imperialismo. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011., bem como hooks (2000)HOOKS, bell. Feminist theory: from the margin to center. 2nd ed. Cambridge: South and Press, 2000., Crenshaw (2016)CRENSHAW, Kimberlé. The urgency of intersectionality. 2016. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=akOe5-UsQ2o>. Acesso em: 23/10/2020.
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, Akotirene (2019)AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019., Davis (1981)DAVIS, Angela. Women, race and class. New York: Vintage Books, 1981. e Gonzalez (1984)GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje. s/n, p. 223-244, 1984. Disponível em: < https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4584956/mod_resource/content/1/06%20-%20GONZALES%2C%20L%C3%A9lia%20-%20Racismo_e_Sexismo_na_Cultura_Brasileira%20%281%29.pdf>. Acesso em: 01/09/2021.
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para pensar as questões da raça e gênero.

Na perspectiva comparatista que nos inscrevemos, primeiramente nos harmonizamos com a tematologia (ALBARELLOS, 2003ALBARELLOS, Susana Gil. Literatura comparada y tematología: aproximación teórica. Exemplaria 7, s/n, p. 239-259, 2003. Disponível em: <http://rabida.uhu.es/dspace/handle/10272/1843>. Acesso em: 27/07/2021.
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), colocando em perspectiva os horizontes temáticos das duas narrativas. Ademais, buscamos entender de que forma os textos aproximam as dinâmicas históricas e culturais da colonialidade a partir de dois locus distintos: Alice Walker nos Estados Unidos e Conceição Evaristo no Brasil. Dessa forma, não se tem a intenção de estabelecer ou reforçar fronteiras, mas problematizar como os contos, a partir das suas localizações, produzem sentidos que convergem para um ponto histórico comum aos dos países: a escravidão e a posterior manutenção da subalternização das pessoas negras com base na retórica da colonialidade na forma do racismo.

(De)Colonialidade, violência e literatura

Antes de partir para a análise literária, faz-se necessário entender a relação entre a colonialidade e a violência, sobretudo, da matriz colonial como um motor de violências historicamente perpetuadas. Isso a fim de inscrever o objeto literário no rol dos processos culturais que se constituem como índices representacionais que, pela realização artística, semantizam estruturas de poder que se prolongam no curso da história.

Quando um percurso de reflexão é traçado a partir da colonialidade faz-se necessário que sejam esclarecidos alguns termos que apresentam nuances próprias de valor semântico: colonialismo, colonialidade, descolonização e decolonialidade. Eduardo Restrepo e Axel Rojas, em Inflexión decolonial, entendem que o colonialismo se refere a uma forma de dominação de caráter político-administrativo de uma metrópole sobre uma colônia. A colonialidade, por seu turno, é definida pelos autores como o padrão de poder que permanece após a independência político-administrativa, como uma matriz de poder que se baseia pelo estabelecimento de hierarquias que legitimam opressões e, consequentemente, impulsionam processos de violência.

No que se refere às hierarquizações, Restrepo e Rojas entendem que estas constituem-se como a classificação de determinados territórios, raças, etnias, gêneros, sexualidades, classes, culturas e epistemologias como superiores, enquanto outras são consideradas inferiores. Desse modo, a colonialidade configura-se como o posicionamento do Norte global, sobremaneira, Europa e Estados Unidos, de grupos étnicos euroidentificados, branco, masculino, cisheteronormativo, burguês, da cultura e epistemologia eurocêntrica como centro, enquanto o que foge desse padrão, ou seja, as subjetividades, identidades, formas de vida, geografias, saberes e culturas que não se enquadram nessa matriz são alocadas à margem, inferiorizadas, invisibilizadas e constantemente ameaçadas. Logo, tal hierarquização direciona para a dominação, opressão e destruição de identidades que são situadas na parte inferior da hierarquia. Isto é, a matriz colonial de poder perpetua as violências contra mulheres brancas e negras, homens negros, indígenas, LGBTQIA+, dentre outros.

Com isso, ao longo da história, são inúmeros os dados que ilustram o quadro dantesco da colonização: o tráfico de escravos, o regime escravagista, o genocídio das comunidades autóctones, e a desterritorialização de povos, por exemplo, figuram no cerne da violência do colonialismo. Contudo, a independência das colônias e a abolição da escravatura não significam o cessar da opressão, pelo contrário, a partir desse momento observam-se dinâmicas de manutenção da subalternidade. Tal observação implica reconhecer que o racismo e o sexismo visualizados na contemporaneidade têm as suas raízes históricas nos malabarismos do colonialismo que são, hoje, mantidos pela colonialidade. Na explicação de bell hooks, em Feminist theory: from margin to center, tais hierarquizações, base dos atos discriminatórios e opressivos, são ancoradas pela naturalização da violência.

Esse cenário é previsto por Frantz Fanon, em The wretched of the earth. Nessa obra fundamental dos estudos decoloniais, o filósofo martiniquenho adianta o prolongamento das estruturas de poder operadas pela lógica colonial nas sociedades colonizadas. Por isso, defende que a independência das colônias, ainda que seja uma reparação moral necessária, não é suficiente: urge uma resistência política e epistemológica no horizonte do desmantelamento das dinâmicas coloniais de dominação. Desse modo, o que o autor está dizendo, ainda que sem usar esses termos, é que o término do colonialismo clássico não significa o fim da colonialidade, mas, sim, novas dinâmicas de poder que mascaram a dominação.

Nesse sentido, emerge o que Aníbal Quijano entende como a colonialidade do poder. A essa compreensão subjaz a ideia dos processos de hierarquização que são geridos pela matriz colonial. Esse estabelecimento da superioridade de um grupo em relação a outro estrutura uma formação social que prolonga o modelo imposto pelos impérios coloniais. Ainda, esse projeto de poder ancora-se no que pode ser entendido como a colonialidade do saber e a colonialidade do ser. A primeira refere-se à marginalização de epistemologias, de saberes, colocando as epistemologias europeias numa posição de centralidade, enquanto as epistemologias que fogem dessa localização geográfica sofrem constantes investidas de apagamento. A segunda, por seu turno, compreende a inferiorização de seres humanos, construindo uma retórica de que existem sujeitos com graus maiores ou menores de humanidade, tendo como baliza o sujeito europeu.

Outro importante estudioso das questões da decolonialidade é o argentino Walter Mignolo que problematiza a simetria entre modernidade e colonialidade. Para o autor, a modernidade, antes de um período histórico, é uma autonarrativa europeia que coloca a si mesma como baliza da história e da concepção de humanidade e, desse modo, constrói uma retórica que serve como instância legitimadora do projeto colonial. Em outros termos, a construção discursiva da modernidade é o que justifica o colonialismo e impulsiona à colonialidade, uma vez que reforça os processos de hierarquização e, por extensão, de dominação. Tal pontuação é reforçada pelas observações de Edward Said sobre o léxico do discurso da modernidade, repleto de termos como “raças servis”, “salvação”, “povos subordinados”. Desse modo, tanto o colonialismo, enquanto um sistema de administração política, quanto a colonialidade, como essa estrutura de poder que se prolonga historicamente, fundamentam-se na ideia de que determinados povos precisam e clamam pela dominação.

Colocadas essas distinções entre colonialismo e colonialidade, Restrepo e Rojas distinguem descolonização de decolonialidade. Enquanto aquela é a superação do modelo administrativo colonial, esta refere-se ao desvelamento e às investidas de desmantelamento das estruturas coloniais de poder que se perpetuam após a descolonização. Na compreensão de Mignolo a decolonialidade

significa ao mesmo tempo: a) desvelar a lógica da colonialidade e da reprodução da matriz colonial do poder (que, é claro, significa uma economia capitalista); e b) desconectar-se dos efeitos totalitários das subjetividades e categorias de pensamento ocidentais

(MIGNOLO, 2008MIGNOLO, Walter D. Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado de identidade em política. Cadernos de Letras da UFF: Dossiê: Literatura, língua e identidade, v. 34 n. 01, p. 287-324, 2008. Disponível em: <http://professor.ufop.br/sites/default/files/tatiana/files/desobediencia_epistemica_mignolo.pdf>. Acesso em: 01/09/2020.
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, p. 313).

Pelos termos do autor, a prática decolonial tem dois objetivos principais: o primeiro é descortinar a forma de pensamento da colonialidade, ou seja, a estrutura de pensamento baseada na dominação do outro e como isso reverbera nos processos de socialização delimitados pelos fluxos de capital. O segundo diz respeito a pensar as formas de subjetivação outras, distintas das ofensivas de homogeneização conduzidas pela colonialidade, bem como a urgência de voltar o olhar para as epistemologias dos povos colonizados. Isso significa a demanda do colonizado pensar a si mesmo, a sua construção de identidade, a sua forma de ser no mundo a partir de si mesmo e não a partir das imposições de uma matriz colonial de poder.

A matriz colonial de poder é motor para diversas formas de violência que transpassam o tecido social das nações que viveram à sombra do colonialismo e, por conseguinte, da colonialidade. À vista disso, entendemos violência a partir de Sylvia Walby (2012)WALBY, Sylvia. Violence and society: introduction to an emerging field in sociology. Current Sociology. v. 2, n. 61, p. 95-111, 2012. Disponível em: < https://journals.sagepub.com/doi/pdf/10.1177/0011392112456478>. Acesso em: 01/09/2021.
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, que a define como um fenômeno social que se estabelece enquanto uma relação de forças oponentes, em que o lado mais fraco dessa cadeia sucumbe ao mais forte. Essa relação de poder pode se dar como a violência física – a agressão propriamente dita –, como também psicológica, quando envolve danos emocionais e afetivos, assim como a violência simbólica2 2 Na teoria sociológica de Pierre Burdieu (1989), a violência simbólica é a violência que se concretiza nos processos de socialização sem a presença da coação física, mas que é exercida tendo como pontos de direcionamento as instâncias morais e psicológicas. Ainda, é uma violência exercida por meio de hierarquizações construídas nas ordens econômicas, sociais, políticas, culturais e simbólicas. Na estrutura social, a violência simbólica atravessa as produções de subjetividade, fazendo com que alguns indivíduos tenham os seus posicionamentos na cartografia social delimitados pela lógica do poder dominante. , que tem a ver com padrões de poder que atravessam os processos de socialização do sujeito e determinam o seu posicionamento na sociedade. Em relação às questões coloniais, a autora diz que “a violência é uma ferramenta de poder usada pelos colonizadores; esta, sempre presente em seus repertórios de poder, preparada para vir à tona a qualquer momento para impor a sua posição de superioridade3 3 " violence is a tool of power used by the colonizers; it is an ever present part of their repertoire of power, ready to surface at any moment to enforce their superior position ".  Assim, nos contextos do colonialismo e da colonialidade a violência se torna um meio pelo qual as hierarquizações são estabelecidas e o poder do grupo dominante é perpetuado ao longo da história.

Nesse sentido, o racismo e o sexismo, por exemplo, sistemas de opressão com ligação placentária com o colonialismo e a colonialidade, se interseccionam, interagem entre si, tornando mais complexas as formas de socialização e de construção de identidades. Como explica a teórica afro-americana Kimberlé Crenshaw, em sua fala ao TED Talk, intitulada “The urgency of intersectionality”, é como se a mulher negra estivesse em um cruzamento de várias avenidas e fosse atropelada por carros que vêm de todas as direções. É um cruzamento de avenidas identitárias: a identidade de mulher negra periférica é alvo da interação de diferentes formas de opressão cuja origem está no padrão de poder da colonialidade.

Carla Akotirene empreende uma busca arqueológica do conceito de interseccionalidade, cuja origem está no feminismo negro, mas que, como observa a autora, muitas vezes é cooptado por outras correntes de pensamento sem essa referência, o que acarreta em um esvaziamento do sentido original do termo. Nessa perspectiva, a interseccionalidade, enquanto um dispositivo teórico, se enquadra nas proposições da decolonialidade: primeiro, por expor as raízes da aparelhagem colonial na opressão da mulher negra; segundo, por pensar a subjetividade e as formas de ser no mundo da mulher negra a partir de epistemologias próprias.

Nesse alinhamento entre movimentos históricos da colonialidade e as violências do racismo e do sexismo, pelas análises de Angela Davis em Women, race and class, podemos perceber o engendramento dessa intersecção ainda nos regimes escravistas, ou seja, na linha direta da violência colonial. A teórica aponta que, no contexto da escravidão nos Estados Unidos,

Uma vez que as escravas eram classificadas como 'reprodutoras' em oposição à 'mães', seus filhos e suas filhas poderiam ser vendidas, tiradas delas como bezerros das vacas. Um ano após a interrupção do tráfico de africanos, uma corte da Carolina do Sul decidiu que as escravas não tinham direito algum sobre seus filhos. Consequentemente, de acordo com essa decisão, as crianças poderiam ser separadas de suas mães em qualquer idade, porque 'os jovens escravos ... são como qualquer outro animal'. Como mulheres, as escravas eram inerentemente vulneráveis a todas as formas de coerção sexual. Se o mais violento dos castigos para os homens consistia em açoitamentos e mutilações, as mulheres eram açoitadas e mutiladas, bem como eram estupradas. O estupro, na verdade, era uma expressão desvelada do domínio econômico do senhor de escravos e do controle do supervisor sobre as mulheres negras enquanto trabalhadoras 4 4 " Since slave women were classified as “breeders” as opposed to “mothers,” their infant children could be sold away from them like calves from cows. One year after the importation of Africans was halted, a South Carolina court ruled that female slaves had no legal claims whatever on their children. Consequently, according to this ruling, children could be sold away from their mothers at any age because “the young of slaves … stand on the same footing as other animals.” As females, slave women were inherently vulnerable to all forms of sexual coercion. If the most violent punishments of men consisted in floggings and mutilations, women were flogged and mutilated, as well as raped. Rape, in fact, was an uncamouflaged expression of the slaveholder’s economic mastery and the overseer’s control over Black women as workers”.

Nas primeiras linhas, a autora já aponta o dilaceramento da maternidade da mulher negra durante a escravidão pela metáfora da animalização: a escrava tinha negada a subjetividade e a afetividade maternal pelo comércio escravista ao tirarem os bebês das mães para serem vendidos, nos termos da autora, como bezerros tirados das vacas. Ainda, nesse cenário Davis destaca a violência sexual, o estupro das escravas como forma de punição. O estupro, como coloca a autora, era expressão clara do poder do senhor de escravos sobre os corpos daquelas mulheres.

Nesse mesmo caminho, Lélia Gonzalez, no ensaio “Racismo e sexismo na cultura brasileira”, entende que o racismo consiste em uma montagem ideológica que privilegia o branco. Ademais, Gonzalez (1984, p. 224)GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje. s/n, p. 223-244, 1984. Disponível em: < https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4584956/mod_resource/content/1/06%20-%20GONZALES%2C%20L%C3%A9lia%20-%20Racismo_e_Sexismo_na_Cultura_Brasileira%20%281%29.pdf>. Acesso em: 01/09/2021.
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observa que no contexto brasileiro o racismo “se constitui como a sintomática que caracteriza a neurose cultural brasileira. Nesse sentido, veremos que sua articulação com o sexismo produz efeitos violentos sobre a mulher negra em particular”. Por essa citação fica evidente a interação entre as violências de raça e gênero que, no imaginário brasileiro, pela ideia de neurose trazida da psicanálise, emerge em uma sociedade que se pensa branca, se representa como branca, mas que apaga, invisibiliza, toda a matriz cultural africana que atravessa todos os fios que compõem o tecido social brasileiro.

Sobre a raiz histórica da intersecção entre racismo e sexismo na escravidão, Gonzalez olha para essas violências pela lente dos estereótipos que são criados para a mulher negra a partir desse contexto. Esse quadro histórico lega para as mulheres negras os estereótipos da mulata, da doméstica e da mãe preta. Nesse sentido, a interação entre essas opressões está no centro da dominação e subalternização da mulher negra enquanto uma constante no curso da história.

Tanto no contexto dos Estados Unidos, trazido por Davis, quanto do Brasil, tratado por Gonzalez, a colonialidade é ponto fixo quando se pensa a identidade da mulher negra. Em primeiro lugar, porque é no processo de hierarquização realizado pela matriz colonial de poder que a mulher negra é colocada na posição mais baixa possível: ela acumula as opressões de raça e gênero. Nessa operação de hierarquizar, iniciada no colonialismo, com a escravidão, e mantida pela colonialidade, a mulher negra é destituída da sua subjetividade: para o senhor branco, ela é objetificada, um objeto sexual, reprodutora e uma força de trabalho.

A colonialidade, como esse prolongamento de uma estrutura de poder colonial, está na base da manutenção das violências que atravessam a mulher negra. Com isso queremos dizer que, assim como a independência das nações não cessa a dominação colonial, há uma continuidade das violências que atingem a mulher negra desde a escravidão até a contemporaneidade.

Tais problematizações sobre a colonialidade e a decolonialidade nos seus desdobramentos com a violência são elementos indeléveis ao campo literário. Primeiramente, porque é visível o apagamento das vozes negras no que se convenciona chamar de cânone literário, que, em um vocabulário decolonial, poderíamos entender como as produções literárias que ocupam uma posição de centralidade e, consequentemente, de prestígio e valoração. Esse apagamento, como toda exclusão, pode ser lido como uma violência simbólica. As obras posicionadas no centro, ou seja, no cânone, são majoritariamente escritas por homens brancos, dessa forma colocando o discurso literário enunciado por mulheres, negros e indígenas e, no interesse deste artigo, de mulheres negras, à margem. Assim, privilegiando no estudo escolar da literatura, nos espaços de crítica literária e demais meios de circulação de textos literários as perspectivas literárias eurocêntricas que não contemplam identidades alocadas nas posições inferiores da hierarquização erigida pela colonialidade.

No contexto da Literatura Norte-Americana, pelas discussões de Paul Lauter (1983)LAUTER, Paul. Race and gender in the shaping of the American literary canon: A case study from the twenties. Feminist Studies. v. 9, n. 3, p. 435-463, 1983. Disponível em: < https://www.jstor.org/stable/3177608>. Acesso em: 01/09/2021.
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, observa-se que é apenas a partir de meados do século XX, em paralelo aos movimentos sociais, que a crítica norte-americana vai revisar o seu cânone e, de alguma forma, flexibilizá-lo. Tal movimento de repensar o cânone tem como centro questões de raça e gênero como forma de abrir essa centralidade para produções de minorias, sobremaneira, mulheres e afro-americanos.

Lauter aponta, ainda, de forma mais específica sobre a Literatura Afro-Americana, que havia uma gama considerável de produções, desde canções, poemas, narrativas, até mesmo romances, mas que eram completamente ignoradas pelo centro canônico. É, então, a partir desses redimensionamentos que chegam à instituição acadêmica como ressonância do ativismo feminista e antirracista que, ainda que com lacunas, a produção literária afro-americana passa a ser integrada a uma posição de destaque.

Essa situação não é diferente do contexto da Literatura Brasileira, Eduardo de Assis Duarte (2013, p. 146)DUARTE, Eduardo de Assis. O negro na literatura brasileira. Navegações. v. 6, n. 2. pp. 146-153, 2013. Disponível em: < https://revistaseletronicas.pucrs.br/index.php/navegacoes/article/download/16787/10936/>. Acesso em: 01/09/2021.
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usa os adjetivos “rarefeito e opaco” para definir a presença do negro no cânone nacional, seja como produtor de um discurso literário – como escritor –, ou como objeto de representação – como figura ficcional. Sobre esse cenário, o autor não se furta de relacionar à raiz histórica da escravidão e os desdobramentos do preconceito como motores para tal processo de invisibilização da Literatura Afro-Brasileira no cânone.

Desse modo, o que está na base de tais mecanismos de exclusão da literatura produzida por minorias étnicas, raciais e de gênero são as práticas discriminatórias que se prolongam nas sociedades que experimentaram o regime colonial. A âncora desse processo é a própria estrutura hierárquica da colonialidade, que desvaloriza, inferioriza, tudo o que escapa de uma matriz eurocêntrica, incluindo as artes.

Para além da questão da circulação das obras, pensar a (de)colonialidade e os seus desdobramentos como forma de violência na literatura implica na reflexão sobre a representação das estruturas coloniais de poder no discurso literário. Essas produções, ignoradas pelo centro hegemônico, a partir de composição de enredos, figuração das personagens e pelo projeto artístico que realizam como um todo, descortinam as engrenagens da estrutura da colonialidade e redimensionam as construções de imaginário e sistemas representacionais a partir da visão das vítimas dessa máquina de violência. Nesse sentido, ao encenar as faces violentas da colonialidade, como o racismo e o sexismo, enuncia-se um discurso decolonial a partir da literatura como uma forma de resistência.

É com base nesses apontamentos que colocam a violência de raça e gênero como dobras da colonialidade, que a análise literária, empreendida na próxima seção, é realizada. A partir dos dois contos trabalhados, há uma tentativa de visualizar os efeitos da colonialidade em diferentes pontos da América (neste caso, Estados Unidos e Brasil) e como as escritoras constroem as suas respectivas estéticas a partir da representação dessas violências.

“The welcome table”, de Alice Walker, e “Duzu-Querença”, de Conceição Evaristo

No conto de Alice Walker, “The welcome table”, publicado em In love and trouble (1963), a protagonista, uma mulher negra não nomeada no texto, morre às portas de uma igreja. No conto de Conceição Evaristo, “Duzu-Querença”, publicado no livro Olhos D’água (2016), a protagonista, Duzu, também mulher negra, morre da mesma forma: às portas de uma igreja. A partir desse ponto comum, passamos a observar que as realidades diegéticas de ambas as narrativas se estruturam a partir da matriz histórica e cultural da colonialidade, uma vez que o racismo e sexismo vistos nos textos é ligado pelo vértice do que podemos chamar do crime fundador da América, para retomar a ideia de Chamoiseau. Dessa forma, a partir de localizações geográficas distintas, Walker, dos Estados Unidos, e Evaristo, do Brasil, há a emergência de um discurso cujo sujeitos da enunciação são atravessados diretamente pela violência colonial: descendentes de africanos traficados para o continente americano para serem escravizados. É isso também que está no centro da figuração das personagens que apresentam como elemento distintivo os carácteres da violência do colonialismo e da escravidão prolongada pela colonialidade. Assim, tomamos como ponto de partida essas determinantes históricas e culturais que subjazem à criação literária como elemento propulsor do exercício comparatista que buscamos efetuar pela análise dos dois contos.

Em “The welcome table”, o primeiro ponto de análise é o título, a dedicatória e a epigrafe, como traduz Waldéa Barcellos (1998):

A mesa do Senhor Para a irmã Clara Ward Um dia desses Vou me sentar à mesa do Senhor E me queixar aos gritos Vou caminhar ao lado de Jesus E dizer a Deus como você me trata. (WALKER, 2013WALKER, Alice. The welcome table. TIPPENS, Darryl [et al]. Shadow and light: literature and the life of faith. 3ª ed. Abilne: Abilne Christian University Press, 2013. p. 379-383., p. 379, grifos originais) 5 5 The welcome table I’m going to sit at the Welcome Table Shout my troubles over Walk and talk with Jesus Tell God how you treat me One of these days! for sister Clara Ward

O título é uma alusão à canção gospel afro-americana colocada como epígrafe, que se refere a uma mesa na qual os oprimidos são acolhidos pelo Senhor, o Deus cristão. No site Folk Song Index (2021) consta a seguinte explicação sobre a música:

“A ‘mesa do senhor’ refere-se à festa de casamento do Cordeiro aludida no Novo Testamento, no livro das Revelações. Esse acontecimento acontece quando aqueles que depositam sua confiança em Jesus Cristo juntam-se a ele no céu. Os escravos afro-americanos nunca foram acolhidos nas mesas dos seus senhores e essa canção faz ecoar sua esperança pela transformação das mesas servidas em uma glória futura. Essa canção foi modificada e usada amplamente durante o Movimento pelos Direitos Civis nos anos de 1950 e 1960”

(tradução nossa).6 6 The “welcome table” refers to the marriage feast of the Lamb referred to in the New Testament book of Revelation. This event takes place when those who put their trust in the Jesus Christ are joined with him in heaven. African-American’s enslaved were never welcome to their master’s table and this song echoed their hope of the tables turning in future glory. This song was modified and used extensively during the Civil Rights Movement of the 1950’s and 1960’s (FOLK SONG INDEX, 2021, s/p)

A canção tem origem no contexto da escravidão nos Estados Unidos e sua autoria é desconhecida. Contudo, pela indicação do nome Clara Ward, na dedicatória, o fragmento refere-se à versão gravada por esta cantora gospel afro-americana, que morreu no ano de 1973. Como é explicado na citação, a letra fala sobre aqueles que tiveram negado o direito de sentarem-se à mesa da acolhida, ou “a mesa do Senhor”, como traduz Waldéa Barcellos (WALKER, 1998WALKER, Alice. De amor e desespero. Trad. Waldéa Barcellos. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.). No Cristianismo, a mesa do Senhor é mencionada diversas vezes ao longo do Novo Testamento, na tradução de Paulo Bazaglia (2014)Evangelhos. Trad. Paulo Bazaglia. São Paulo: Editora Paulus, 2014. do “Evangelho de São Lucas” no capítulo 14, versículo 13 é dito: “quando você der uma festa, convide pobres, aleijados, coxos e cegos”. Nessa linha de interpretação, essa mesa é lugar em que os oprimidos têm um espaço de acolhimento. Tal ideia, transportada para a cultura afro-americana, como mostra a citação acima, demonstra a esperança de, simbolicamente, um dia poderem sentar-se a uma mesa que os acolhe e lhes garante justiça, o que estava distante da realidade escravista e que se prolongou a partir do racismo e da segregação.

Ainda nas explanações trazidas do site Folk Song Index, essa música foi um dos símbolos dos Movimentos Pelos Direitos Civis nas décadas de 1950 e 1960. Movimentos esses de que Alice Walker participou ativamente, como no Movimento Pelos Direitos Civis no Mississippi e na Marcha de Washington. Essa relação intertextual que se estabelece entre a canção e o conto é fundamental para entender os processos de semiotização da figura ficcional e a forma como os sujeitos se encenam socialmente na realidade diegética. Uma vez que o percurso da personagem principal é a negação na participação da vida social, explorada pela via religiosa, e o seu encontro com Jesus.

Nas primeiras linhas do conto o leitor tem uma descrição da protagonista:

A velha mulher permaneceu com os olhos erguidos, usava sua roupa de domingo: sapatos altos polidos na parte de cima e nos dedos, um vestido corroído vestido enfeitado com um corpete velho, longo, definhado, e os restos de uma elegante echarpe de seda cobrindo a cabeça com manchas da oleosidade dos cabelos. Talvez ela tenha conhecido o sofrimento

(tradução nossa).7 7 The old woman stood with eyes uplifted in her Sunday-go-to-meeting clothes: high shoes polished about the tops and toes, a long rusty dress adorned with an old corsage, long withered, and the remnants of an elegant silk scarf as headrag stained with grease from the many oily pigtails underneath. Perhaps she had known suffering (WALKER, 2013, p. 379)

A voz narrativa descreve a roupa como sendo a “roupa de domingo”, na expressão “sunday-go-to-meeting clothes”, o que significa que aquela era a melhor roupa que a personagem tinha. Contudo, as adjetivações que seguem no fragmento descrevem como era essa melhor roupa, sobretudo pelo uso de termos como “rusty”, que traz a carga semântica de corroído, para descrever o vestido, o corpete velho, “old”, os restos, “remnants”, de uma echarpe que lhe cobriam a cabeça e que estavam manchados pela oleosidade. Assim, demarca-se um tom irônico do narrador: como seria aquela a melhor roupa estando em estado tão degradado? Desse modo, observa-se, já nas primeiras linhas do conto, a posição da personagem na sociedade, que ocupa as camadas mais baixas da hierarquização social. Ainda, a última sentença do fragmento recobra o tom de ironia, pois após toda a descrição o narrador diz que possivelmente, usando o termo “perhaps” – advérbio de dúvida –, ela tenha experimentado, ao longo da sua vida, o sofrimento.

Por essa interpretação, há um deslizamento de sentidos: os signos que semantizam a roupa vestida pela personagem também projetam sentidos ao seu próprio corpo, pois ela mesma é descrita já como uma “old woman”, uma mulher velha, que carrega traços que indicam uma vivência atravessada por violências. A forma como o narrador descreve o olhar da personagem também constrói sentidos a partir desse ponto: “Os seus olhos tinham uma aparência atordoada e cansada” (tradução nossa).8 8 There was a dazed and sleepy look in her aged blue-brown eyes (WALKER, 2013, p. 379-380). O seu olhar tinha uma aparência atordoada e sonolenta/cansada, o que pode ser tomado como indícios de cansaço, de exaustão física, que corrobora com a construção da imagem da personagem demarcada pelo deslocamento semântico da roupa para o corpo.

A personagem está indo para uma igreja e quando chega ao seu destino os olhares direcionados a ela demarcam os posicionamentos sociais:

E então eles a encaravam sem nenhum pudor, transmitindo seus próprios medos; um medo do negro e do velho, um terror do desconhecido e também do que era profundamente conhecido. Alguns dos que a viram nas escadarias da igreja disseram palavras sobre ela que eram incabíveis demais para serem ouvidas, outros mantiveram a sua pia paz; e alguns sentiram uma pena, pequena e persistente e vaga, como se ela fosse um cachorro prestes a morrer

(tradução nossa).9 9 And so they gazed nakedly upon her their own fear transferred; a fear of the black and the old, a terror of the unknown as well as of the deeply known. Some of those who saw her there on the church steps spoke words about her that were hardly fit to be heard, others held their pious peace; and some felt vague stirrings of pity, small and persistent and hazy, as if she were an old collie turned out to die (WALKER, 2013, p. 380).

Os olhares, segundo o narrador, denunciavam o medo daquelas pessoas, notadamente brancas. Todavia, esse “medo” apontado pela voz narrativa não carrega, necessariamente, o sentido comum de estado emocional diante de uma situação de perigo. A ideia de medo expressa aqui é a de fechamento para o outro, da anulação da alteridade: aquelas pessoas, em primeiro lugar, como será exposto na sequência, não aceitam a presença daquela mulher negra, não a julgam digna de frequentar a mesma igreja que eles. Nesse sentido, há uma evidenciação da hierarquia da colonialidade, aquelas pessoas sentem-se superiores a ela, visualizada até mesmo na ideia de sentir pena, uma vez que essa postura demarca uma posição superior e uma inferior.

Ainda nesse fragmento, evidencia-se que os que lá estavam não a desejavam, situação denunciada pelas palavras sussurradas que indicam os comentários sobre a sua presença e os olhares reveladores do preconceito. No contexto dos Estados Unidos dos anos de 1970, ainda se sentiam – e por que não dizer que ainda se sentem? – os efeitos das Leis Jim Crow, instrumentos jurídicos que tornavam legais as práticas de segregação impostas pela violência. Esse elemento é central no conto porque dimensiona os posicionamentos dos sujeitos nos espaços: espaços para pessoas brancas e espaços para pessoas negras. Tal distinção que se apoia na estrutura hierárquica da colonialidade.

A partir da caracterização física e do posicionamento da personagem na cartografia social, as dinâmicas figurativas da personagem se assentam nos processos históricos que, no contexto cultural afro-americano, têm sua gênese na escravidão. Tal perspectiva de análise é aberta pelo discurso do narrador, quando diz:

Em sua face, séculos eram dobrados em torno de um olho, enquanto no outro estavam gravadas e traçadas, como se fosse para estampar, épocas ainda mais ameaçadoras ainda para serem vividas. Alguns daqueles que estavam na igreja viam a idade, a sanidade, a falta de botões na parte de baixo da frente do seu vestido preto mofado. Outros viam cozinheiras, motoristas, empregadas, amantes, crianças negadas ou abafadas no jeito em que ela mantinha o rosto para o lado, fitando o chão

(tradução nossa).10 10 On her face centuries were folded into de circles around one eye, while around the other, etched and mapped as if for print, ages more threatened again to live. Some of them there at the church saw the age, the dotage, the missing buttons down the front of her mildewed black dress. Others saw cooks, chauffeurs, maids, mistress, children denied or smothered in the deferential way she held her cheek to the side, toward the ground (WALKER, 2013, p. 380).

Em um olho a personagem carrega os círculos da história, séculos de passado. Ao pensar qual é o passado afro-americano, logo emergem as imagens da violência: o tráfico pelo Atlântico, os trabalhos forçados nas plantations, os castigos físicos, o estupro, a segregação e o preconceito. É nesse passado, é nessa tessitura da história, que a história de vida da personagem é inscrita, ela herda esse passado e, no presente, tem a sua existência atravessada pela mesma violência. O narrador ainda diz que no outro olho está gravado o futuro e esse porvir é descrito de uma forma pessimista, como mais anos ameaçadores pela frente. Por essa construção de uma imagem temporal cíclica, evidencia-se que a violência, oriunda da matriz colonial de poder, é repetida em todas as suas voltas: os antepassados da personagem experimentaram a violência da escravidão, ela é vítima das formas de violência que tem essa raiz histórica e os que virão depois dela também serão acometidos por atos violentos.

Na segunda parte da citação, revelam-se as formas como ela era vista por aquelas pessoas brancas. Alguns focam na sua idade e no estado senil que a enquadravam, o que é destacado pelo termo “dotage”, outros nas suas roupas em uma condição não tão boa. Porém, o que chama atenção são os papéis sociais a ela designados: cozinheira, motorista, empregada doméstica, amante etc. Esses demarcam posições subalternas, para as quais ela é empurrada pela força das estruturas coloniais de poder que se perpetuam na sociedade estadunidense. Essa imagem da subalternidade é enfatizada pela forma como a personagem direciona o seu olhar para baixo, com o rosto voltado para o chão.

A segregação é, então, colocada no primeiro plano da narrativa quando o reverendo se dirige a ela e diz: “Tia, você sabe que esta não é a sua igreja?” (tradução nossa). 11 11 Auntie, you know this is not your church? (WALKER, 2013, p. 380). Pela fala do religioso, entende-se que naquele espaço ela não era bem-vinda, não era acolhida, tanto aquele lugar não a pertencia, quanto ela não poderia pertencer àquele lugar. Pelas dinâmicas culturais, históricas e sociais que subjazem ao conto, relaciona-se justamente às práticas segregacionistas. Por ser uma figura da igreja, um líder religioso, há uma contraposição: ali a personagem não encontra a acolhida da mesa do Senhor, como deveria ser; dizemos, aquela igreja não lhe ofertava nenhuma acolhida e isso acontece em razão da sua identidade étnico-racial. A própria posição ocupada por ela dentro do prédio da igreja demarca a inferiorização:

Dentro da igreja ela sentou no primeiro banco a contar dos fundos, encarando com concentração o vitral acima da sua cabeça. Estava frio, mesmo dentro da igreja, e ela estava tremendo. Todos podiam ver. Eles fitaram-na à medida que iam entrando e sentando próximos a frente

(tradução nossa).12 12 Inside the church she sat on the very first bench from the back, gazing with concentration at the stained-glass window over her head. It was cold, even inside the church, and she was shivering. Everybody could see. They stared at her as they came in and sat down near the front (WALKER, 2013, p. 381).

Ela senta-se no último banco da igreja, como mencionado, o primeiro banco a partir os fundos. Eles, marcados com o pronome pessoal da terceira pessoa do plural, “they”, os brancos, novamente olham para ela com estranhamento e se sentam nos bancos das primeiras fileiras. Pensando na arquitetura da igreja, novamente visualiza-se uma hierarquização: as pessoas brancas sentam-se à frente, ela, mulher negra, aos fundos; os brancos estão mais próximos do altar e, nessa construção simbólica, mais próximos à mesa do Senhor, “the welcome table”. Contudo, esse posicionamento, na nossa compreensão, não é totalmente consciente: é a própria estrutura da colonialidade que comanda a agência das personagens. Por essa via de leitura, esse posicionamento no microcosmo da igreja representa o posicionamento da personagem, enquanto mulher negra, nas coordenadas do macrocosmo social: os fundos, a subalternidade e a opressão.

A próxima cena continua a figuração das situações segregacionistas, nesta o porteiro pede que ela se retire da igreja:

O jovem porteiro, nunca tendo expulsado ninguém da sua igreja antes, exceto por não considerar esse trabalho como aquilo (afinal, ela não tinha direito de estar lá, certamente), foi até ela e sussurrou que deveria sair. Ele a chamou de ‘vó’, como depois ele parece ter se dado conta? Porém para aqueles que levavam a sério essas cortesias tradicionais e para aqueles a quem isso realmente significa alguma coisa, “vó” não era adequado, para ela não prestar nenhuma atenção, apenas murmurou ‘sai’, em uma voz fraca, incisiva e incomodada, tremulando seu cabelo matizado e olhos perto da face dela

(tradução nossa). 13 13 The young usher, never having turned anyone out of his church before, but not even considering this job as that (after all, she had no right to be there, certainly), went up to her and whispered that she should leave. Did he call her “Grandma”, as later he seemed to recall he had? But for those who actually hear such traditional pleasantries and to whom they actually mean something, “Grandma” was not one, for she did not pay him any attention, just muttered, “Go ‘way”, in a weak sharp bothered voice, waving his frozen blond hair and eyes from near her face (WALKER, 2013, p. 381).

O porteiro solicita que ela se retire da igreja, pois no seu pensamento, trazido pelo narrador entre parênteses, aquela mulher negra não tinha direito de estar ali. Contudo, o que chama atenção no fragmento é que a personagem está tão absorta nas suas orações que quase não dá atenção ao que o porteiro está dizendo. Contudo, o pedido do porteiro apenas anuncia a violência que está por vir, as senhoras obrigam seus maridos a tirarem aquela mulher da igreja, como é dito pelo narrador: “Seus maridos estavam esperando que elas se sentassem com aquilo?” (tradução nossa).14 14 Could their husbands expect them to sit up in church whith that? No, no (WALKER, 2013, p. 381, grifos originais). Aqui fica clara a visão preconceituosa e segregacionista. É importante observar, nessa fala, o uso do “that”, pronome demonstrativo para objetos, pois, o pronome para se referir a pessoas nesse contexto, em inglês, é “her”. Esse jogo lexical reforça a ideia de um processo de desubjetivação: em que até mesmo o caráter humano lhe é negado. Assim, manifestando a colonialidade do ser que toma corpo pela hierarquização de subjetividades e identidades.

Nesse cenário, os homens brancos tiram, à força, a mulher da igreja:

Por baixo dos braços dela eles colocaram seus punhos firmes (que depois ficaram cheirando a podre e almíscar – o odor fermentado de cascas de cebola e verduras estragadas). Por baixo dos braços da velha mulher eles ergueram os seus punhos, flexionaram seus ombros musculosos e ela então voou porta afora, de volta sob o gélido céu azul. Isso feito, as mulheres cruzaram seus braços sadios sobre seus corpos magros e sentiram imediatamente legitimadas e desdenhosas

(tradução nossa). 15 15 Under the old woman’s arms they placed their hard fists (which afterward smelled of decay and musk – the fermenting scent of onionskins and rotting greens). Under the old woman’s arms they raised their fists, flexed their muscular shoulders, and out she flew through the door, back under the cold blue sky. This done, the wives folded their healthy arms across their trim middles and felt at once justified and scornful (WALKER, 2013, p. 381).

Nesse excerto evidencia-se a cena de violência: os maridos, ou seja, os homens brancos, atiram a mulher negra, violentamente, para fora da igreja. Essa cena é representativa pelos processos de segregação que se desenrolam por meio da violência. Em primeiro lugar, pela própria violência simbólica que emerge: pessoas brancas decidem qual é e qual não é o lugar para pessoas negras, exercendo poder sobre suas vidas. Na sequência, toma forma a própria violência física: os homens brancos a jogam para a rua. Os homens brancos, aqui, são os agentes da violência direta que age materialmente sobre o corpo daquela mulher negra.

Quando está se recompondo da queda, a mulher vê Jesus vindo em sua direção:

Porém, de repente, ela olhou para a longa e cinza estrada e viu uma coisa interessante e aprazível vindo em sua direção. Ela deu um sorriso desdentado e tímido, com pequenas risadinhas de alegria, começou a saltitar e a bater as mãos nos joelhos. Pela estrada com um passo firme, mas sem pressa, vinha Jesus

(tradução nossa).16 16 Suddenly, however, she looked down the long gray highway and saw something interesting and delightful coming. She started to grin, toothlessly, with short giggles of joy, jumping about and slapping her hands on her knees. And soon it became apparent why she was so happy. For coming down the highway at a firm though leisurely pace was Jesus (WALKER, 2013, p. 382).

Esse encontro com a figura de Jesus é bastante simbólico, pois representa a morte da personagem. A única coisa que Cristo diz à mulher é “siga-me” (tradução nossa). 17 17 follow me (WALKER, 2013, p. 382). O narrador, sobre o lugar para o qual a personagem era conduzida, diz: “Ela não sabia para onde estavam indo: algum lugar maravilhoso, ela suspeita. O chão era como nuvens sob seus pés e ela poderia andar para sempre sem ficar nem um pouco cansada” (tradução nossa). 18 18 She did not know where they were going: some place wonderful, she suspected. The ground was like clouds under their feet, and she could walk forever without become the least bit tired (WALKER, 2013, p. 383). Essa descrição reforça a ideia da morte da personagem por direcionar, semanticamente, a concepção de paraíso, na cultura do cristianismo. A adjetivação “wonderful”, maravilhoso, combina com a forma como o paraíso, o lugar aonde os justos vão depois da morte, como esse espaço excepcional e de alegria plena. Ainda, nessa linha, o paraíso, associado a céu, destacado pelo chão que se assemelha a nuvens, é o lugar em que as necessidades do corpo não mais existem, por isso a personagem pode andar tanto e não sentir cansaço. Assim, a personagem teve negado o seu lugar à “mesa do senhor”, ou à mesa da acolhida, enquanto viva, na terra. Porém, ao morrer pela brutalidade dos que a oprimiram, toma, simbolicamente, o seu assento junto a Cristo.

No último parágrafo do conto, o narrador expressa a memória que ficou sobre aquela mulher naquela comunidade:

As pessoas da igreja nunca souberam o que aconteceu com aquela velha mulher; eles nunca falaram sobre ela entre si ou com outras pessoas. A maioria deles ouviu algum tempo depois que uma velha mulher de cor caiu morta na estrada. Idiota como parecia, foi como se ela mesma tivesse se encaminhado para a morte. Muitas das famílias negras ao longo da estrada disseram ter visto uma velha senhora descendo a estrada a passos largos; às vezes tagarelando em uma baixa e insistente voz, às vezes cantando, às vezes apenas gesticulando animada com suas mãos. Outras vezes silenciosa e sorridente, olhando para o céu. Ela estava sozinha, diziam. Alguns pensavam alto sobre onde aquela mulher velha estava indo tão decidida a ponto de ter consumido seu coração. Eles achavam que talvez ela tivesse parentes do outro lado do rio, alguns quilômetros adiante, mas ninguém realmente sabia

(tradução nossa).19 19 The people in church never knew what happened to the old woman; they never mentioned her to one another or to anybody else. Most of them heard sometime later that an old colored woman fell dead along the highway. Silly as it seemed, it appeared she had walked herself to death. Many of the black families along the road said they had seen the old lady high-stepping down the highway; sometimes jabbering in a low insistent voice, sometimes singing, sometimes merely gesturing excitedly with her hands. Other times silent and smiling, looking at the sky. She had been alone, they said. Some of them wondered aloud where the old woman had been going so stoutly that it had worn her heart out. They guessed maybe she had relatives across the river, some miles away, but none of them really knew (WALKER, 2013, p. 383).

A partir do acontecimento da sua passagem, cria-se uma imagem daquela mulher: para os brancos que a mataram, ela não passou de um infortúnio. Eles descobrem que uma mulher negra foi encontrada morta, mas não é dada atenção ao caso. O que chama atenção nesse sentido é a falta de imputabilidade, pois os que a atiraram para a morte, nem se questionam se foram os causadores do fato, inclusive pensam que ela mesma tirou sua vida. Já as famílias negras veem a figura de uma mulher negra em estado eufórico – cantando, gesticulando de uma forma empolgada. Por essas perspectivas abertas pelo narrador, há uma propulsão a pensar na morte da personagem e na sua representação após o falecimento como um tanto natural.

O destino da personagem de Alice Walker não se distingue muito da personagem Duzu, do conto “Duzu-Querença”, de Conceição Evaristo. Na primeira cena apresentada pelo conto, a personagem está à porta de uma igreja, mas não na condição de fiel, está ali como mendiga. Sobre ela, é dito pela voz narrativa:

Duzu lambeu os dedos gordurosos de comida, aproveitando os últimos bagos de arroz que tinham ficado presos debaixo de suas unhas sujas. Um homem passou e olhou para a mendiga, com uma expressão de asco. Ela lhe devolveu um olhar de zombaria. O homem apressou o passo, temendo que ela se levantasse e viesse lhe atrapalhar o caminho. Duzu olhou no fundo da lata, encontrando apenas o espaço vazio. Insistiu ainda. Diversas vezes levou a mão lá dentro e retornou com um imaginário alimento que jogava prazerosamente à boca. Quando se fartou deste sonho, arrotou satisfeita, abandonando a lata na escadaria da igreja e caminhou até mais adiante, se afastando dos outros mendigos. Agachou-se quieta. Ficou por algum tempo olhando o mundo. Sentiu um início de cãibra nas pernas, ergueu-se pela metade, acocorando-se de novo. Estava mesmo ficando velha, pensou

(EVARISTO, 2016EVARISTO, Conceição. Duzu-Querença. In. EVARISTO, Conceição. Olhos d’água. Rio de Janeiro: Pallas; Fundação Biblioteca Nacional, 2016. p. 20-23., p. 24).

A situação de vida da personagem é precária: o alimento no qual busca nutrição para o corpo são restos e insuficientes; não possui um lugar para si no mundo, é obrigada a perambular pela porta da igreja, pelos espaços à margem; desperta olhares avessos dos que passam por ela, que não querem ser atrapalhados pelo que, para eles, é uma incômoda presença. Quando é dito que a personagem “ficou por algum tempo olhando o mundo” cabe perguntar qual é a perspectiva, qual é a lente, pela qual ela vê o mundo. Nesse sentido, é pelo seu posicionamento subalternizado na cartografia social que Duzu interpreta o mundo e a si mesma, ou seja, é desde a margem da sociedade que a personagem observa o seu entorno e constrói a sua subjetividade.

Na última linha da citação, é transmitido o seu pensamento sobre a sua atual condição, a velhice. Nesse sentido, no texto, pela via da memória, recupera-se a história de vida da personagem e, nessa construção narrativa, evidencia-se a constante das violências que se estendem no curso temporal pela matriz colonial de poder.

Quando Duzu chegou pela primeira vez na cidade, ela era menina, bem pequena. Viera numa viagem de trem, dias e dias. Atravessara terras e rios. As pontes pareciam frágeis. Ela ficava o tempo todo esperando o trem cair. A mãe já estava cansada. Queria descer no meio do caminho. O pai queria caminhar para o amanhã. [...] Era preciso também dar outra vida para a filha. Na cidade havia senhoras que empregavam meninas. [...] E a menina tinha sorte. Já vinha no rumo certo. Uma senhora que havia arrumado trabalho para a filha de Zé Nogueira ia encontrar com eles na capital. Duzu ficou na casa da tal senhora durante muitos anos. Era uma casa com muitos quartos. Nos quartos moravam mulheres que Duzu achava bonitas

(EVARISTO, 2013EVARISTO, Conceição. Duzu-Querença. In. EVARISTO, Conceição. Olhos d’água. Rio de Janeiro: Pallas; Fundação Biblioteca Nacional, 2016. p. 20-23., p. 20).

A mudança para uma cidade maior significava a esperança de um futuro melhor. Ir para uma cidade maior, por uma relação de oposição, nos faz interpretar a mudança de uma cidade pequena, provavelmente rural, para um centro urbano, em processo de industrialização. Duzu logo recebe ofertas de trabalho, pois um futuro melhor para ela era o que o pai idealizava. A oferta dessa senhora é ponto central da narrativa, pois simboliza as violências que irão se abrir na história de vida da personagem.

Com o passar do tempo, a personagem descobre o que era aquela casa cheia de quartos e com mulheres bonitas: um prostíbulo. Assim, ela é empurrada para a vida da prostituição:

Duzu viu várias vezes homens dormindo em cima das mulheres. Homens acordados em cima das mulheres. Homens mexendo em cima das mulheres. Homens trocando de lugar com as mulheres. Gostava de ver aquilo tudo. Em alguns quartos a menina era repreendida. Em outros, era bem-aceita. Houve até aquele quarto em que o homem lhe fez um carinho no rosto e foi abaixando a mão lentamente... A moça mandou que ele parasse. Não estava vendo que ela era uma menina? O homem parou. Levantou embrulhado no lençol. Duzu viu então que a moça estava nua. Ele pegou a carteira de dinheiro e deu uma nota para Duzu. Ela olhou timidamente para o homem. Voltou ali no outro dia no entrar-entrando. [...] Duzu voltava sempre. Vinha num entrar-entrando cheio de medo, desejo e desespero. Um dia o homem estava deitado nu e sozinho. Pegou a menina e jogou na cama. Duzu não sabia ainda o ritmo do corpo, mas, rápida e instintivamente, aprendeu a dançar. Ganhava mais e mais dinheiro. Voltava e a moça do quarto nunca estava. Um dia quem abriu a porta de supetão foi D. Esmeraldina. Estava brava. Se a menina quisesse deitar com homem podia. Só uma coisa ela não ia permitir: mulher deitando com homem, debaixo do teto dela, usando quarto e cama, e ganhando o dinheiro sozinha! Se a menina era esperta, ela era mais ainda. Queria todo o dinheiro e já! Duzu naquele momento entendeu o porquê do homem lhe dar dinheiro. Entendeu o porquê de tantas mulheres e de tantos quartos ali. Entendeu o porquê de nunca mais ter conseguido ver a sua mãe e o seu pai, e de nunca D. Esmeraldina ter cumprido a promessa de deixá-la estudar. E entendeu também qual seria a sua vida. É, ia ficar. Ia entrar-entrando sem saber quando e porque parar

(EVARISTO, 2016EVARISTO, Conceição. Duzu-Querença. In. EVARISTO, Conceição. Olhos d’água. Rio de Janeiro: Pallas; Fundação Biblioteca Nacional, 2016. p. 20-23., p. 21).

A partir dessa passagem, pode-se perceber que Duzu, ainda menina, foi jogada para vida da prostituição. A menina, ainda sem saber o que era o sexo, teve o seu corpo mercantilizado. Assim, os sentidos que se constroem a partir do discurso literário, sobremaneira, pela figuração da personagem, vão ao encontro do que Lélia Gonzáles apresenta sobre a violência simbólica que acomete a mulher negra a partir dos estereótipos, dentre os quais está a mulher negra na condição de objeto sexual possuído pelo homem branco. Ainda na instância simbólica da violência, esta é reforçada pela conseguinte exclusão da personagem, de modo especial do convívio familiar, pois nunca mais viu seus pais. A família ocupa posição central nas tramas afetivas, que lhes são negadas, mesmo ela sendo uma vítima da violência, representada pelos abusos sexuais. Além da violência simbólica, há a dimensão da violência sexual: a menor estava em um estado de vulnerabilidade, de inocência, e os homens – brancos – se aproveitaram de tal situação para torná-la objeto. Nesse sentido, todo processo de objetificação implica na negação da subjetividade, em tirar os caráteres humanos.

Nesse ponto, novamente, a colonialidade do ser emerge na narrativa pelas hierarquizações de malhas subjetivas. Como foi trazido de hooks, as dinâmicas hierárquicas que perpassam o tecido social são sustentadas pela naturalização da violência. Logo, o tornar natural a situação de abuso sexual da menina é sustentáculo da inferiorização da sua subjetividade. Isso, em uma análise mais ampla, pode ser observado em um ciclo que se retroalimenta: a naturalização da violência é base para o estabelecimento de hierarquias e a configuração de tais hierarquizações é potência propulsora das práticas de violência. Isto é, ao mesmo tempo que é natural para os homens brancos verem a menina Duzu como inferior, é natural, para eles, que o seu corpo seja tomado como um objeto a ser consumido, erigindo assim um ciclo de violência.

Na citação, quando a voz narrativa diz que a personagem “entendeu também qual seria a sua vida” significa a tomada de consciência por parte da personagem sobre a sua posição subalternizada. Nesse sentido, a personagem toma consciência sobre o seu posicionamento no enquadramento social. A ela, resta o espaço da subalternidade, a zona interseccional de opressões que acumula o racismo e o sexismo. Como anunciado no início do conto, com a personagem já na velhice como mendiga, que se alimenta dos restos e habita as margens da sociedade, ela é representada no texto pela própria geografia urbana: as escadarias da igreja, cujos transeuntes desviam daquelas figuras indesejadas.

Como uma prostituta, a violência passa a ser permanente, como observa a figura narrativa: “[Duzu] acostumou-se aos gritos das mulheres apanhando dos homens, ao sangue das mulheres assassinadas. Acostumou-se às pancadas dos cafetões, aos mandos e desmandos das cafetinas. Habituou-se à morte como uma forma de vida” (EVARISTO, 2016EVARISTO, Conceição. Duzu-Querença. In. EVARISTO, Conceição. Olhos d’água. Rio de Janeiro: Pallas; Fundação Biblioteca Nacional, 2016. p. 20-23., p. 22). Os sentidos que emergem desse fragmento do discurso literário dos vocábulos “gritos”, “apanhar”, “sangue”, “assassinadas”, “pancadas”, e poderíamos pensar também “mandos e desmandos” como termos que carregam sentidos de coerção, associam-se ao campo semântico da violência, explicitamente da física, que se constitui pela destruição e subjugação dos corpos alheios por meio da força física. Aqui, revela-se que a violência é muito mais direta do que aquela que se constitui como simbólica pela projeção de estereótipos e negação de condições dignas de vida.

As posições sociais, primeiro prostituta e depois mendiga, demarcam também essa experiência atravessada pela opressão e pela violência. O corpo primeiro é objeto de abuso e venda, mas quando não é mais desejado pelos homens, quando não desperta mais os desejos masculinos, a personagem precisa recorrer aos resíduos, às sobras, dos outros para a sua sobrevivência. Essa transição, da prostituta à mendiga, representa a manutenção das violências e da localização subalterna que Duzu ocupa.

Duzu teve filhos e netos que herdam a cor de sua pele, mote da discriminação, do preconceito, e também a violência da mãe e avó. Quando um de seus netos, Tático, é assassinado, acentua-se ainda mais a situação precária da vida da personagem:

Com a morte de Tático, Duzu ganhou nova dor para guardar no peito. Ficava ali, amuada, diante da porta da igreja. Olhava os santos lá dentro, os homens cá fora, sem obter consolo algum. Era preciso descobrir uma forma de ludibriar a dor. Pensando nisto, resolveu voltar ao morro. Lá onde durante anos e anos, depois que ela havia deixado a zona, fora morar com os filhos. Foi retornando ali que Duzu deu de brincar de faz de conta. E foi aprofundando nas raias do delírio que ela se agarrou para viver o tempo de seus últimos dias

(EVARISTO, 2016EVARISTO, Conceição. Duzu-Querença. In. EVARISTO, Conceição. Olhos d’água. Rio de Janeiro: Pallas; Fundação Biblioteca Nacional, 2016. p. 20-23., p. 22).

A dor que a personagem sente é potencializada, uma vez agora não apenas ela é o alvo da violência, mas os seus, seus descendentes, que estão na mira das práticas violentas. A ela é negado qualquer tipo de apoio: os homens que passavam na calçada a ignoravam e ela também estava interditada para os santos que via dentro da igreja. Assim, volta ao morro, que novamente se constitui como uma área de subalternidade, pois, na sua construção histórica, representa a marginalização dos escravos após o fim da escravatura como estratégia, dentro da geografia urbana, de marginalizar esses sujeitos. Porém, o morro, a favela, se constitui, no curso da história, como um locus de resistência e a forma de resistir àquele maquinário opressivo é encontrada na imaginação, nas fabulações, que a tira da realidade violenta e a transporta para outras possibilidades de ser no mundo, ainda que imaginativas.

Nessa nova fase, é central a figura de Querença, que junto do nome de sua avó, está no título do conto. Duzu projeta para a neta todas as expectativas que, outrora, seu pai teve para ela, de um futuro melhor, de estudos e vida digna. Ainda, é nesse momento que Duzu vai para o carnaval para desfilar:

O dia do desfile chegou. Era preciso inaugurar a folia. Despertou cedo. Foi e voltou. Levantou voo e aterrizou. E foi escorregando brandamente em seus famintos sonhos que Duzu visualizou seguros plantios e fartas colheitas. Estrelas próximas e distantes existiam e insistiam. Rostos dos presentes se aproximavam. Faces dos ausentes retornavam. Vó Alafaia, Vô Kiliã, Tia Bambene, seu pai, sua mãe, seus filhos e netos. Menina Querença adiantava-se mais e mais. Sua imagem crescia, crescia. Duzu deslizava em visões e sonhos por um misterioso eterno caminho...

(EVARISTO, 2016EVARISTO, Conceição. Duzu-Querença. In. EVARISTO, Conceição. Olhos d’água. Rio de Janeiro: Pallas; Fundação Biblioteca Nacional, 2016. p. 20-23., p. 23).

É no carnaval que, como apresenta Mikhail Bakhtin (1981)BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Ed. Forense-Universitária, 1981., constitui-se como a suspensão das identidades individuais, o que nesse contexto se destaca a suspensão das diferenciações de raça, gênero e classe, que Duzu tem o seu momento de plenitude. Ela se conecta com a sua ancestralidade, as faces que já não tinha mais no presente, tanto por já terem morrido quanto por terem a negado, como seus pais, depois que foi arrastada para a prostituição. Nesse instante apoteótico a temporalidade se rompe: os seus ancestrais estão junto com seus descendentes em harmonia e fartura. Nas últimas linhas da citação observa-se o indício da morte da personagem, que se erige por uma via simbólica ao mencionar um “misterioso eterno caminho”. Essa imagem se conecta a uma compreensão transcendental da existência, sem necessariamente ser vinculada a uma religão específica, por ser ponto comum de várias correntes religiosas, ao anunciar um caminho desconhecido, mas que é eterno. Essa interpretação ganha força pelo uso das reticências que interrompem a cena e conduzem ao momento em que Querença toma conhecimento da morte da avó:

Menina Querença, quando soube da passagem da Avó Duzu, tinha acabado de chegar da escola. Subitamente se sentiu assistida e visitada por parentes que ela nem conhecera e de quem só ouvira contar as histórias. Buscou na memória os nomes de alguns. Alafaia, Kiliã, Bambene... Escutou os assobios do primo Tático lá fora chamando por ela. Sorriu pesarosa, havia uns três meses que ele também tinha ido... Querença desceu o morro recordando a história de sua família, de seu povo. Avó Duzu havia ensinado para ela a brincadeira das asas, do voo. E agora estava ali deitada nas escadarias da igreja

(EVARISTO, 2016EVARISTO, Conceição. Duzu-Querença. In. EVARISTO, Conceição. Olhos d’água. Rio de Janeiro: Pallas; Fundação Biblioteca Nacional, 2016. p. 20-23., p. 23).

É nesse momento que Querença tem a sua revelação e se conecta com a ancestralidade, a morte da avó a impulsiona a retomar, via memória, seus antepassados. A menina, agora, é a portadora das memórias familiares que, por sua vez, são marcadas pela violência, a vida de opressões da avó, o assassinato do primo, mas que também é uma memória do seu povo, que desde que foram arrancados do continente africano são submetidos a uma constante história de barbárie. Encontra, finalmente, o corpo da avó nas escadarias da igreja. Assim, o conto termina no mesmo lugar em que começou, as escadarias de uma igreja que serviam como abrigo para mendigos, esse início e fim no mesmo espaço de marginalidade e subalternidade demarcam a permanência dessa situação nas histórias de vida e na história da comunidade.

A última imagem do conto é Querença contemplando o corpo da avó:

Querença olhou novamente o corpo magro e a fantasia da avó. Desviou o olhar e entre lágrimas contemplou a rua. O sol passado de meio-dia estava colado no alto do céu. Raios de luz agrediam o asfalto. Mistérios coloridos, cacos de vidro - lixo talvez - brilhavam no chão

(EVARISTO, 2016EVARISTO, Conceição. Duzu-Querença. In. EVARISTO, Conceição. Olhos d’água. Rio de Janeiro: Pallas; Fundação Biblioteca Nacional, 2016. p. 20-23., p. 23).

O corpo magro, agora morto, é delatador da situação precária da vida, arrasada por diversas formas de violência. Contudo, esse corpo está envolto na fantasia de carnaval feita a partir de restos. Essa cena produz significações que remetem a uma imagística residual, em que a tentativa de conferir dignidade àquele corpo é operada a partir dos restos que compunham sua fantasia. Finalizando, desse modo, com essa simbologia da subalternização da mulher negra.

Sobre os contos de Conceição Evaristo, Humberto Gomes Pereira e Natália de Souza Lisboa (2019)EVARISTO, Conceição. Duzu-Querença. In. EVARISTO, Conceição. Olhos d’água. Rio de Janeiro: Pallas; Fundação Biblioteca Nacional, 2016. p. 20-23., em uma perspectiva decolonial, dizem que esses

são marcados pela apresentação de formas diversas de dominação e violência, revelando a subalternização dos corpos negros, suas mortes violentas e seletivas como a face da necropolítica. A enunciação de discursos minoritários desconstrói a ideia de homogeneidade e produz-se a partir de lugares de fala subalternizados

(PEREIRA & LISBOA, 2019PEREIRA, Humberto Gomes; LISBOA, Natália de Souza. Análise decolonial das personagens femininas da obra Olhos d´água, de Conceição Evaristo. Antares: Letras e Humanidades. v. 11, n. 22, p. 159-177, 2019. Disponível em: < http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php/antares/article/view/7101>. Acesso em: 01/09/2021.
http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php...
, p. 175).

Nesse sentido é que emerge o viés decolonial enunciado pelo discurso literário pela denúncia da violência e do prolongamento da subalternização das pessoas negras. Ainda, as narrativas se constroem como reparação histórica a essas vozes que, no decorrer da história, tiveram o direito de fala negado, inferiorizado e invisibilizado. É a mulher negra enunciando um discurso sobre a vida a partir de si mesma e, assim, indo contra as estruturas coloniais de poder que se colocam de forma contínua nas sociedades que viveram o colonialismo.

Essa marcação se aplica também ao empreendimento narrativo de Alice Walker. A escritora afro-americana, assim como Evaristo, enuncia um discurso decolonial a partir da sua criação literária, uma vez que também expõe as diversas formas de violência e subalternizações da mulher negra movidas por uma engenharia de poder que tem como centro a colonialidade. Ademais, o ponto central, nessa via de interpretação, é a desconstrução de um discurso hegemônico.

Como afirma Edward Said, em Cultura e imperialismo, os Estados Unidos passam a adotar uma postura imperialista. Esse movimento decorre a partir da industrialização e das vitórias de guerra, quando a nação norte-americana passa a se projetar como uma potência política, econômica e bélica, exercendo domínios para além de suas fronteiras, nesse contexto do século XX não no modelo do colonialismo oitocentista de instituição de colônias, mas a subjugação de outros territórios por meio da sua força e influência, com destaque relevante aos fluxos de capital. Além disso, os Estados Unidos emergem como nação a partir da colonização europeia, principalmente da colonização britânica, mas que adotam políticas expansão territorial logo que tem a sua independência, como a anexação de territórios mexicanos.

Outrossim, a sociedade norte-americana se ergue pela colonialidade na medida que prolonga as estruturas de poder que herda do modelo político do colonialismo inglês e tem como um dos seus pilares históricos a escravidão. Por conseguinte, o final da escravatura não significa o final da opressão da comunidade negra, pelo contrário, há o estabelecimento das Leis Jim Crow e as contínuas práticas de discriminação e violência que perduram até hoje, como, por exemplo, o caso de repercussão internacional George Floyd. Esse cenário de violência racial se aglutina com a violência de gênero que tem a sua raiz no patriarcado enquanto ramo da colonialidade. Com essa base, observa-se um discurso hegemônico nos Estados Unidos que se centraliza como branco, masculino e imperialista, marginalizando, nessa operação, afro-americanos, mulheres e outras minorias.

A literatura de Alice Walker, nesse sentido, desconstrói essa visão, dando visibilidade às mulheres negras que, nessa hegemonia, são silenciadas e negligenciadas. Suas tramas são reveladoras das violências oriundas dessa estrutura de poder e que se perpetuam no percurso histórico da formação social.

Dito isso, observamos que, a partir dessas bases históricas, culturais, sociais e, é importante ressaltar, pelos desdobramentos estéticos, é clara a aproximação das duas narrativas. Primeiramente, porque ambas as personagens ocupam o espaço interseccional que imbrica opressões de raça, gênero e classe. Nos contos, as tramas identitárias são transcorridas pelos cruzamentos de identidades que, em dados momentos, tendem a ser negociadas. Em “The welcome table” as senhoras brancas, no texto referidas como “the ladies”, sentem-se incomodadas pela presença da mulher negra e ordenam que seus maridos a tirem da igreja. Nesse ponto há uma atenuação das identidades de gênero e um fortalecimento da identidade de raça, evidenciando as perspectivas interseccionais de que a mulher negra está no ponto máximo de exposição às práticas opressivas. O mesmo ocorre em “Duzu-Querença”, pois a personagem não é violentada apenas por homens, mas também pelas cafetinas, que dá a entender serem mulheres brancas, em que novamente é o conjunto identitário que se evidencia.

No plano das construções estéticas e simbólicas de ambos os contos as mortes das respectivas personagens também se aproximam. No conto de Walker é no momento da morte, figurado pelo encontro com Jesus, que a personagem tem o seu momento de plenitude, que se constitui como a legitimação da sua profissão de fé, e sua existência é ressignificada pelo imaginário das pessoas negras, quando afirmam terem visto uma senhora negra na estrada. De forma congênere é tida a morte de Duzu, que se dá depois do seu momento de plenitude, no carnaval, quando se reconecta com a sua ancestralidade e sua história de vida, bem como a de seus antepassados, é mantida pela memória de Querença.

Desse modo, as mortes das duas personagens, que se dão às portas de igrejas, redimensionam, por meio dos sentidos que emergem do discurso literário, os arranjos de poder fundamentados na colonialidade. Tais dinâmicas impulsionam às diversas formas de violência que acometem as personagens. Nesse sentido, o que mata a personagem de “The welcome table”, simbolizada pelos braços dos homens brancos que a jogam pela porta da igreja, é a própria colonialidade que, também, no caso de Duzu, é a responsável pela morte desta e se manifesta na forma da fome e da precariedade das condições de vida.

Lélia Gonzalez (2018)GONZALEZ, Lélia. Primavera para as rosas negras: Lélia Gonzalez em primeira pessoa. São Paulo: Diáspora Africana: Editora Filhos da África, 2018 aponta que na América de colonização anglófona o racismo é desenrolado pela segregação, já na América Latina, ou como se refere a autora, Améfrica Ladina20 20 Para González, a América Latina é uma construção eurocêntrica edificada a partir de um bojo cultural ibérico. Para subverter essa elaboração é que se propõe o termo Améfrica Ladina, ou a categoria político-cultural da amefricanidade. Isso que consiste na reivindicação de uma matriz cultural africana como base para fundamentar as identidades e estruturas sociais nesse enquadramento territorial. Essa compreensão tem como base a observação de que nesse espaço geográfico, o esteio cultural provém do histórico contato com as diversas expressões da cultura africana, que chega às Américas por meio comércio de escravos. , por denegação, ou seja, pelas invisibilizações que se constituem pelos discursos da miscigenação. Ainda que colocadas essas distinções, a teórica brasileira aponta que a história do povo negro no continente americano é a história do sofrimento, da exploração, da humilhação e do etnocídio. Contudo, dessa opressão histórica também emerge a resistência, uma vez que esses desdobramentos tomam forma como “a heroica resistência e a criatividade na luta contra a escravização, o extermínio, a exploração, a opressão e a humilhação” (GONZALEZ, 2018GONZALEZ, Lélia. Primavera para as rosas negras: Lélia Gonzalez em primeira pessoa. São Paulo: Diáspora Africana: Editora Filhos da África, 2018, p. 331). Nessa potência criativa que surge como resistência, enquadramos a literatura que, como força de criação, semantiza a máquina violenta da colonialidade.

Desse modo, pela aproximação das duas narrativas, no esforço comparatista empreendido, visualiza-se que ambas constroem sentidos desde os processos culturais e históricos a partir de seus respectivos locus de enunciação – Walker, dos Estados Unidos, e Evaristo, do Brasil. Logo, as dinâmicas da história iniciadas no tráfico de escravos, tomada como um dos alicerces da América, e que se prolongam pela colonialidade, subjazem à agência das personagens e impulsionam as situações de violência que irrompem nos processos de construção das figuras ficcionais. Assim, o exercício crítico conduz a uma interpretação que vai além da mera comparação textual, mas que (re)conecta movimentos culturais que têm como palco o continente americano.

Considerações finais

As reflexões aqui propostas foram traçadas no intuito de aproximar duas produções literárias de lugares geográficos distintos: os contos “The welcome table”, de Walker, dos Estados Unidos, e “Duzu-Querença”, de Evaristo, do Brasil. À primeira vista, a afinidade entre ambos os textos recai na questão temática, por focalizarem as vivências de duas personagens negras que experienciam diferentes formas de violência no curso das suas histórias de vida. Porém, à medida que se adentra às narrativas percebe-se as histórias de vida representadas nos dois contos são envolvidas pelas malhas históricas e culturais que se desenrolam a partir da colonialidade. Isso quer dizer que as protagonistas das duas narrativas têm as suas vidas encobertas pelas sombras da colonialidade, que cruza as suas dinâmicas de socialização e a tessitura das suas subjetividades.

Tanto Estados Unidos quanto Brasil se erguem enquanto nação a partir da colonização europeia, o que significa a invasão de territórios, a escravização dos africanos e o genocídio das comunidades indígenas. Esse dado histórico abre campo para a perpetuação de um padrão de poder que se estabelece pela opressão do outro manifestada por violências que se sustentam pela organização de hierarquias de subjetividades, identidades, saberes e culturas. A isso chama-se, de acordo com as vozes teóricas trazidas à problematização proposta, colonialidade, que é essa continuidade de uma estrutura social instituída pelo colonialismo. Essas lógicas se fazem visíveis nas narrativas literárias analisadas, pois a composição dos enredos e as figurações das personagens desvelam tais processos de hierarquização e seus desdobramentos em violência de raça e gênero.

Em “The welcome table” as questões da colonialidade são expressas pela hierarquização que se estabelece entre a personagem principal, uma mulher negra, e os demais personagens que ocupam o mesmo espaço diegético. Os sentidos produzidos pelo discurso literário semantizam a experiência da personagem a partir da segregação, do estabelecimento de espaços para pessoas brancas e o espaço para pessoas negras. Além da violência simbólica do ato discriminatório, há a presença da violência física, quando ela é atirada para fora da igreja. Ainda, a tessitura textual negocia sentidos a partir do diálogo com outros objetos culturais: primeiramente a cultura bíblica e, de forma mais específica, a canção “I’m gonna sit at the welcome table”.

Em “Duzu-Querença” a colonialidade é expressa também pela hierarquização, ainda que as questões de gênero estejam colocadas com um destaque maior pela violência sexual encenada na diegese. Duzu ocupa o lugar da subalternidade que se delineia pela própria ocupação dos espaços aludidos na narrativa: prostíbulo, favela e escadarias da igreja. As diversas faces da violência são representadas pela própria situação inicial de abuso da personagem, as agressões que testemunhou enquanto prostituta, o assassinato do seu neto e a sua própria morte, causada pela fome, que pode ser lida como uma forma da violência. Assim como no conto de Walker, aqui há um direcionamento a uma realidade cultural exterior ao texto: o carnaval que conecta a personagem, via memória, com a sua ancestralidade.

Dito isso, entendemos que a mola propulsora das violências mimetizadas em ambos os contos é a própria colonialidade. As duas personagens vivem à sombra da colonialidade, os fios que costuram as suas histórias de vida são tecidos pela colonialidade e, nessa leitura, suas mortes são causadas pela arquitetura de poder da colonialidade que se manifesta pelo racismo e o sexismo.

Notas

  • 1
    O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) - Código de Financiamento 001. This study was financed in part by the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) - Finance Code 001.
  • 2
    Na teoria sociológica de Pierre Burdieu (1989)BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. 1989., a violência simbólica é a violência que se concretiza nos processos de socialização sem a presença da coação física, mas que é exercida tendo como pontos de direcionamento as instâncias morais e psicológicas. Ainda, é uma violência exercida por meio de hierarquizações construídas nas ordens econômicas, sociais, políticas, culturais e simbólicas. Na estrutura social, a violência simbólica atravessa as produções de subjetividade, fazendo com que alguns indivíduos tenham os seus posicionamentos na cartografia social delimitados pela lógica do poder dominante.
  • 3
    " violence is a tool of power used by the colonizers; it is an ever present part of their repertoire of power, ready to surface at any moment to enforce their superior position ".
  • 4
    " Since slave women were classified as “breeders” as opposed to “mothers,” their infant children could be sold away from them like calves from cows. One year after the importation of Africans was halted, a South Carolina court ruled that female slaves had no legal claims whatever on their children. Consequently, according to this ruling, children could be sold away from their mothers at any age because “the young of slaves … stand on the same footing as other animals.” As females, slave women were inherently vulnerable to all forms of sexual coercion. If the most violent punishments of men consisted in floggings and mutilations, women were flogged and mutilated, as well as raped. Rape, in fact, was an uncamouflaged expression of the slaveholder’s economic mastery and the overseer’s control over Black women as workers”.
  • 5
    The welcome table I’m going to sit at the Welcome Table Shout my troubles over Walk and talk with Jesus Tell God how you treat me One of these days! for sister Clara Ward
  • 6
    The “welcome table” refers to the marriage feast of the Lamb referred to in the New Testament book of Revelation. This event takes place when those who put their trust in the Jesus Christ are joined with him in heaven. African-American’s enslaved were never welcome to their master’s table and this song echoed their hope of the tables turning in future glory. This song was modified and used extensively during the Civil Rights Movement of the 1950’s and 1960’s (FOLK SONG INDEX, 2021Folk song index. I’m Gonna sit at the welcome Table. 2021. Disponível em: <http://www.stephengriffith.com/folksongindex/i%CA%BCm-gonna-sit-at-the-welcome-table/>. Acesso em: 01/09/2021.
    http://www.stephengriffith.com/folksongi...
    , s/p)
  • 7
    The old woman stood with eyes uplifted in her Sunday-go-to-meeting clothes: high shoes polished about the tops and toes, a long rusty dress adorned with an old corsage, long withered, and the remnants of an elegant silk scarf as headrag stained with grease from the many oily pigtails underneath. Perhaps she had known suffering (WALKER, 2013WALKER, Alice. The welcome table. TIPPENS, Darryl [et al]. Shadow and light: literature and the life of faith. 3ª ed. Abilne: Abilne Christian University Press, 2013. p. 379-383., p. 379)
  • 8
    There was a dazed and sleepy look in her aged blue-brown eyes (WALKER, 2013WALKER, Alice. The welcome table. TIPPENS, Darryl [et al]. Shadow and light: literature and the life of faith. 3ª ed. Abilne: Abilne Christian University Press, 2013. p. 379-383., p. 379-380).
  • 9
    And so they gazed nakedly upon her their own fear transferred; a fear of the black and the old, a terror of the unknown as well as of the deeply known. Some of those who saw her there on the church steps spoke words about her that were hardly fit to be heard, others held their pious peace; and some felt vague stirrings of pity, small and persistent and hazy, as if she were an old collie turned out to die (WALKER, 2013WALKER, Alice. The welcome table. TIPPENS, Darryl [et al]. Shadow and light: literature and the life of faith. 3ª ed. Abilne: Abilne Christian University Press, 2013. p. 379-383., p. 380).
  • 10
    On her face centuries were folded into de circles around one eye, while around the other, etched and mapped as if for print, ages more threatened again to live. Some of them there at the church saw the age, the dotage, the missing buttons down the front of her mildewed black dress. Others saw cooks, chauffeurs, maids, mistress, children denied or smothered in the deferential way she held her cheek to the side, toward the ground (WALKER, 2013WALKER, Alice. The welcome table. TIPPENS, Darryl [et al]. Shadow and light: literature and the life of faith. 3ª ed. Abilne: Abilne Christian University Press, 2013. p. 379-383., p. 380).
  • 11
    Auntie, you know this is not your church? (WALKER, 2013WALKER, Alice. The welcome table. TIPPENS, Darryl [et al]. Shadow and light: literature and the life of faith. 3ª ed. Abilne: Abilne Christian University Press, 2013. p. 379-383., p. 380).
  • 12
    Inside the church she sat on the very first bench from the back, gazing with concentration at the stained-glass window over her head. It was cold, even inside the church, and she was shivering. Everybody could see. They stared at her as they came in and sat down near the front (WALKER, 2013WALKER, Alice. The welcome table. TIPPENS, Darryl [et al]. Shadow and light: literature and the life of faith. 3ª ed. Abilne: Abilne Christian University Press, 2013. p. 379-383., p. 381).
  • 13
    The young usher, never having turned anyone out of his church before, but not even considering this job as that (after all, she had no right to be there, certainly), went up to her and whispered that she should leave. Did he call her “Grandma”, as later he seemed to recall he had? But for those who actually hear such traditional pleasantries and to whom they actually mean something, “Grandma” was not one, for she did not pay him any attention, just muttered, “Go ‘way”, in a weak sharp bothered voice, waving his frozen blond hair and eyes from near her face (WALKER, 2013WALKER, Alice. The welcome table. TIPPENS, Darryl [et al]. Shadow and light: literature and the life of faith. 3ª ed. Abilne: Abilne Christian University Press, 2013. p. 379-383., p. 381).
  • 14
    Could their husbands expect them to sit up in church whith that? No, no (WALKER, 2013WALKER, Alice. The welcome table. TIPPENS, Darryl [et al]. Shadow and light: literature and the life of faith. 3ª ed. Abilne: Abilne Christian University Press, 2013. p. 379-383., p. 381, grifos originais).
  • 15
    Under the old woman’s arms they placed their hard fists (which afterward smelled of decay and musk – the fermenting scent of onionskins and rotting greens). Under the old woman’s arms they raised their fists, flexed their muscular shoulders, and out she flew through the door, back under the cold blue sky. This done, the wives folded their healthy arms across their trim middles and felt at once justified and scornful (WALKER, 2013WALKER, Alice. The welcome table. TIPPENS, Darryl [et al]. Shadow and light: literature and the life of faith. 3ª ed. Abilne: Abilne Christian University Press, 2013. p. 379-383., p. 381).
  • 16
    Suddenly, however, she looked down the long gray highway and saw something interesting and delightful coming. She started to grin, toothlessly, with short giggles of joy, jumping about and slapping her hands on her knees. And soon it became apparent why she was so happy. For coming down the highway at a firm though leisurely pace was Jesus (WALKER, 2013WALKER, Alice. The welcome table. TIPPENS, Darryl [et al]. Shadow and light: literature and the life of faith. 3ª ed. Abilne: Abilne Christian University Press, 2013. p. 379-383., p. 382).
  • 17
    follow me (WALKER, 2013WALKER, Alice. The welcome table. TIPPENS, Darryl [et al]. Shadow and light: literature and the life of faith. 3ª ed. Abilne: Abilne Christian University Press, 2013. p. 379-383., p. 382).
  • 18
    She did not know where they were going: some place wonderful, she suspected. The ground was like clouds under their feet, and she could walk forever without become the least bit tired (WALKER, 2013WALKER, Alice. The welcome table. TIPPENS, Darryl [et al]. Shadow and light: literature and the life of faith. 3ª ed. Abilne: Abilne Christian University Press, 2013. p. 379-383., p. 383).
  • 19
    The people in church never knew what happened to the old woman; they never mentioned her to one another or to anybody else. Most of them heard sometime later that an old colored woman fell dead along the highway. Silly as it seemed, it appeared she had walked herself to death. Many of the black families along the road said they had seen the old lady high-stepping down the highway; sometimes jabbering in a low insistent voice, sometimes singing, sometimes merely gesturing excitedly with her hands. Other times silent and smiling, looking at the sky. She had been alone, they said. Some of them wondered aloud where the old woman had been going so stoutly that it had worn her heart out. They guessed maybe she had relatives across the river, some miles away, but none of them really knew (WALKER, 2013WALKER, Alice. The welcome table. TIPPENS, Darryl [et al]. Shadow and light: literature and the life of faith. 3ª ed. Abilne: Abilne Christian University Press, 2013. p. 379-383., p. 383).
  • 20
    Para González, a América Latina é uma construção eurocêntrica edificada a partir de um bojo cultural ibérico. Para subverter essa elaboração é que se propõe o termo Améfrica Ladina, ou a categoria político-cultural da amefricanidade. Isso que consiste na reivindicação de uma matriz cultural africana como base para fundamentar as identidades e estruturas sociais nesse enquadramento territorial. Essa compreensão tem como base a observação de que nesse espaço geográfico, o esteio cultural provém do histórico contato com as diversas expressões da cultura africana, que chega às Américas por meio comércio de escravos.

Referências

  • AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Out 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    06 Nov 2021
  • Aceito
    14 Mar 2022
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