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“Nossa bandeira não é sexualidade”: construções discursivas em @gaycombolsonaro no Twitter

“Nuestra bandera no es sexualidad”: construcciones discursivas en @gaycombolsonaro en Twitter

Resumo

Este artigo busca refletir sobre a construção discursiva do movimento Gays com Bolsonaro (GcB) por meio de seu perfil no Twitter (@gaycombolsonaro). A partir de suas práticas discursivas, iluminamos suas alianças com elementos do heterocissexismo (BORRILLO, 2010; JUN, 2018) e a consequente legitimação dessa ideologia. Tendo como base a Análise do Discurso (ROCHA, 2014) e como corpus os tweets e retweets deste autointitulado “novo movimento LGBT”, apontamos como a formação dessa rede discursiva on-line – constitutiva desse movimento – tem como uma de suas bases a negação polêmica (DUCROT, 1987) que estabelece em relação aos movimentos anteriores. Nesse sentido, assinalamos a construção de um tipo de discurso nacionalista que é produzido em oposição às discussões e pautas do movimento LGBTI, contribuindo para o seu apagamento.

Palavras-chave
Movimentos LGBTI; Twitter; Heterocissexismo; Movimentos de direita; Análise do Discurso

Resumen

Este artículo busca reflexionar sobre la construcción discursiva del movimiento Gays con Bolsonaro (GcB) por medio de su perfil en el Twitter (@gaycombolsonaro). A partir de sus prácticas discursivas, destacamos alianzas con elementos del heterocisexismo (BORRILLO, 2010; JUN, 2018) y la consecuente legitimación de esa ideología. Con base en el Análisis del Discurso (ROCHA, 2014) y como corpus los tweets y retweets de este denominado “nuevo movimiento LGBT”, indicamos como la formación de esa red discursiva en línea – constitutiva de ese movimiento – tiene como una de sus bases la negación polémica (DUCROT, 1987) que establece en relación a los movimientos anteriores. En ese sentido, observamos la construcción de un tipo de discurso nacionalista que es producido en oposición a las discusiones y a la agenda del movimiento LGBTI, contribuyendo para su olvido.

Palabras clave
Movimientos LGBTI; Twitter; Heterocisexismo; Movimientos de derecha; Análisis del discurso

Abstract

This article aims to analyze the discursive construction of the movement Gays com Bolsonaro through its Twitter profile (@gaycombolsonaro). From their discursive practices, we illuminate their alliances with elements of heterocisexism (BORRILLO, 2010; JUN, 2018) and the consequent legitimation of this ideology. Based on the Discourse Analysis (ROCHA, 2014) and on the tweets and retweets of this self-titled “new LGBT movement”, we point out how the formation of this online discursive network – constitutive of this movement – has, as one of its bases, the polemic negation (DUCROT, 1987) that it establishes in relation to the previous movements. In this sense, we note the construction of a type of nationalist discourse that is produced in opposition to the discussions and agendas of the LGBTI movement, contributing to its erasure.

Keywords
LGBTI movements; Twitter; Heterocissexism; Right movements; Discourse Analysis

Introdução

Apesar de encontrar nas discussões sobre as diferentes formas de identidades de gênero e orientações sexuais um ponto comum, não podemos afirmar a existência de uma homogeneidade dentro da comunidade LGBTI1 1 Optamos pela sigla LGBTI devido a sua forte presença em discussões institucionais a nível nacional e internacional. . Em meio aos movimentos GLS, LGBT, LGBTI, LGBTT, LGBT+, LGBTQ, LGBTQIAP+2 2 Na sequência: Gays, Lésbicas e Simpatizantes; Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais; Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Intersexo; Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Travestis; Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e mais; Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans, Queers; Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans, Queers, Intesexo, Assexuais, Pansexuais e mais. , entre outros, é possível identificar diferentes sujeitos e perspectivas que têm se diversificado, mesclando-se à luta de outros movimentos sociais, buscando a visibilidade de suas formas de existência frente a uma sociedade que tenta, constantemente, apagá-las. Ademais, o próprio movimento de mudanças de sigla explicita um campo interno e múltiplo de disputas pela incorporação e pelo reconhecimento de identidades que, mesmo existindo previamente, não possuíam – e muitas delas ainda não possuem – visibilidade dentro da própria comunidade. Um exemplo marcante foi a passagem da sigla GLS para LGBT, que inverteu a posição das primeiras letras, como forma de conferir maior visibilidade às lésbicas – diminuindo o foco central na comunidade gay, a fim de diversificar o movimento –, bem como incorporou outras identidades sexuais e de gênero, processo este que se mantém até os dias atuais.

Essa heterogeneidade não se deve, unicamente, à diversidade de identidades englobadas – lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, intersexuais, travestis, transgêneros, pansexuais, assexuais, queers e muitas outras –, mas também às diversas perspectivas acerca de cada uma dessas formas de ser, bem como as de se impor politicamente frente a tensões e aproximações desses sujeitos com as hegemonias heterocisnormativas3 3 Entendemos a heterocisnormatividade como padrões pré-estabelecidos de gêneros – em consonância com o sexo biológico – e de sexualidade – com a heterossexualidade – tomados como norma e reforçados constantemente nas relações familiares e sociais, que não reconhecem a pluralidade sexual e de gêneros (BORRILLO, 2010; JUN, 2018). . Dessa forma, vemos surgirem, dentro da comunidade LGBTI, movimentos que visam desde à desconstrução dessas normatividades até a existência dos que negociam espaços, construindo alianças com grupos heterocisnormativos, muitas vezes, legitimando e reforçando diversas opressões sobre essa comunidade.

Vemos também o avanço das tecnologias digitais e das mídias digitais on-line, cada vez mais presentes em diversas atividades, inserindo-nos em uma constante articulação de práticas humanas e não-humanas. Tais avanços tecnológicos-informacionais vêm permitindo, desde a formação da Web 2.0, um deslocamento na unidirecionalidade clássica da produção e consumo de informações, dado que, ao menos em princípio, qualquer usuário que possua acesso à Internet pode compartilhar suas opiniões com milhares de pessoas ao redor do globo.

Entre essas mídias, destacamos o desenvolvimento das redes sociais que têm se tornado cada vez mais corriqueiras, havendo, inclusive, um crescimento do uso dessas plataformas para práticas político-ativistas. Seja como espaço de debates sobre questões sociais, meio de divulgação e de produção de pronunciamentos de figuras políticas, ou até como ferramenta de controle de dados e divulgações de fake news – grande impasse para a afirmação da democracia contemporânea –, as redes sociais assumiram um papel de grande relevância para a compreensão do campo sócio-político atual, em especial no que concerne à ascensão de grupos à direita do espectro político. Esses variados grupos têm encontrado nos novos modelos de organização da Internet formas de difundir suas percepções políticas e de ganhar apoio popular.

Com base no exposto, interessa-nos, neste artigo, a construção de movimentos dentro da comunidade LGBTI que se aliam discursivamente, por meio das redes sociais on-line, a grupos hegemônicos heterocisnormativos contrários às políticas sociais pela diversidade sexual e de gênero. Selecionamos como córpus4 4 Em consonância com Rocha e Deusdará (2021, p. 24), que já vêm apontando o largo uso dessa palavra em pesquisas na área de Análise do Discurso, e, consequentemente, a necessidade de incorporá-la aos dicionários, escolhemos a grafia da palavra “córpus”, compatível com as normas da língua portuguesa. de análise tweets publicados e republicados pela página do movimento Gays com Bolsonaro (@gaycombolsonaro, doravante GcB), na rede social Twitter, como um meio de refletir sobre a construção dessas alianças e do próprio movimento, a partir da mobilização de elementos dessa rede social. A seleção inicial dos (re)tweets se deu por intermédio de um levantamento inicial dos tweets enunciados pela página e pelos retweets feitos por ela – inclusive de tweets postados anteriormente à sua criação, em abril de 2018 –, realizado entre os dias 20 e 27 de maio de 2020. Assim, os (re)tweets selecionados datavam, majoritariamente, de outubro de 2017 até o final de 2018, havendo ainda outros postados entre 2019 e maio de 2020. Em diálogo com o córpus construído, optamos pelas marcas linguísticas de negação polêmica (DUCROT, 1987DUCROT, O. O dizer e o dito. Campinas: Pontes, 1987.), presente, em sua maioria, nos (re)tweets que antecedem a eleição; e pelo uso de léxico que remete ao Movimento LGBTI.

Buscamos na Análise do Discurso (ROCHA; DEUSDARÁ, 2005ROCHA, D.; DEUSDARÁ, B. Análise de Conteúdo e Análise do Discurso: aproximações e afastamentos na (re)construção de uma trajetória. Alea: Estudos Neolatinos, v. 7, p. 305-322, 2005.; MAINGUENEAU, 2004MAINGUENEAU, D. Análise de Textos de Comunicação. São Paulo: Cortez, 2004.) e nas categorias de negação polêmica e de implícitos (DUCROT, 1987DUCROT, O. O dizer e o dito. Campinas: Pontes, 1987.) um aporte teórico para nossas análises. Baseamo-nos, ainda, na concepção de linguagem-intervenção (ROCHA, 2014ROCHA, D. Representar e intervir: linguagem, prática discursiva e performatividade. Linguagem em (Dis)curso, v. 14, n. 3, p. 619-632, 2014.), segundo a qual a linguagem, mais do que possuir um papel de mera representação da realidade, produz deslocamentos e efeitos de sentido que atuam intervindo na sua construção; e em Foucault (2018)FOUCAULT, M. História da Sexualidade 1: a vontade de saber. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2018. e Scott (2005)SCOTT, J. W. O enigma da igualdade. Rev. Estudos Feministas, v. 13, n. 1, p. 11-30, abr. 2005. buscamos um modo de refletir sobre as relações entre sexualidades, grupos, indivíduos e estruturas de poder e direito. Também se faz presente a discussão de Borrillo (2010)BORRILLO, D. Homofobia: história e crítica de um preconceito. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010. e de Jun (2018)JUN, H. Cissexism (Genderism or Binarism). In: JUN, H. Social Justice, Multicultural Counseling and Practice. 2. ed. Springer Cham, 2018. p. 161-185. acerca do heterossexismo e do cissexismo.

Dividimos, portanto, o artigo em três partes. A primeira aborda os direitos LGBTI, com foco em questões como a sua recente institucionalização e as respostas dos movimentos contrários. Na segunda, tratamos do recente avanço das direitas, e como tal processo se deu, possibilitado pelas redes sociais on-line e pela oposição ao avanço das pautas LGBTI. Em seguida, realizamos nossas análises.

Direitos LGBTI no Brasil atual: disputas e dilemas

Uma das questões centrais para a discussão das pautas LGBTI é a relação indivíduo-grupo e igualdade-diferença. Nossa sociedade, geralmente, tende a tratar esses conceitos como opostos e inconciliáveis, mas, de acordo com Scott (2005)SCOTT, J. W. O enigma da igualdade. Rev. Estudos Feministas, v. 13, n. 1, p. 11-30, abr. 2005., esses conceitos têm se relacionado, tensionado e reconfigurado de diferentes formas ao longo da história.

Tendo o indivíduo como ponto central da aplicação do direito, as políticas voltadas à afirmação de determinado grupo social impedem que os indivíduos sejam avaliados por eles mesmos – única forma justa perante o Estado Moderno/capitalista e seu conceito de sujeito de direito –, sendo avaliados como pertencentes a um grupo. A igualdade somente seria aplicável quando todos os indivíduos fossem julgados como tal. Contudo, os grupos de minorias representativas, defensores dessas ações afirmativas, asseveram que “enquanto o preconceito e a discriminação permanecerem, [...] os indivíduos não serão todos avaliados de acordo com os mesmos critérios; a eliminação da discriminação requer a atenção ao status econômico, político e social dos grupos” (SCOTT, 2005SCOTT, J. W. O enigma da igualdade. Rev. Estudos Feministas, v. 13, n. 1, p. 11-30, abr. 2005., p. 13).

A própria percepção de “indivíduo” é ficcional, tendo sido construída como norma ao longo da história, assumindo o homem branco, heterossexual, cisgênero, de classes mais abastadas como a sua expressão e referência. Os indivíduos que possuem essas características – e que por esse motivo são plenos de direito – não são considerados um grupo; somente aqueles que fogem desses padrões assim o são considerados. “A diferença tem sido representada como um traço fundamental ou natural de um grupo enquanto a norma padronizada [...] não é considerada como possuidora de traços coletivos” (SCOTT, 2005SCOTT, J. W. O enigma da igualdade. Rev. Estudos Feministas, v. 13, n. 1, p. 11-30, abr. 2005., p. 24). Dessa forma, muitas vezes, diferentes sujeitos, mesmo que não pertençam aos grupos hegemônicos, alinham-se a essa percepção social o que acaba por desqualificar suas pautas, causando ainda mais discriminações.

Compreendemos, então, que mesmo que os grupos sejam compostos por indivíduos reunidos em torno de uma característica comum, não deixam de ser indivíduos diversos em suas formas de exercer as distintas orientações sexuais e identidades de gênero. Se é por meio das práticas discursivas – entendidas como a relação conjunta de construção de texto e comunidade (MAINGUENEAU, 2004MAINGUENEAU, D. Análise de Textos de Comunicação. São Paulo: Cortez, 2004.) – que interagimos com o mundo e nos construímos nele a partir do embate entre diferentes vozes sociais (FIORIN, 2008FIORIN, J. L. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2008.) que se contradizem e/ou descontinuam (FOUCAULT, 2014FOUCAULT, M. A ordem do discurso: aula inaugural no Collegè de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. 24. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2014.), podemos afirmar que a população LGBTI não possui uma única forma de identidade, de modo que se espere que toda a comunidade construa a mesma relação com a sociedade. Nesse sentido, tomamos como base os estudos de Souza e Pereira (2013, p. 89)SOUZA, E. M.; PEREIRA, S. J. N. (Re)produção do heterossexismo e da heteronormatividade nas relações de trabalho: a discriminação de homossexuais por homossexuais. Rev. Adm. Mackenzie, v. 14, n. 4, p. 76-105, 2013. em relação específica aos homossexuais, mas aplicável aos LGBTI, conforme os quais não devemos crer que seus discursos “tenham identidade, centralidade e unicidade, pois eles manifestam enunciados que podem até ser mesmo antagônicos e contrários a sua orientação sexual, por exemplo”.

No que concerne ao avanço do reconhecimento de pautas e direitos LGBTI no cenário brasileiro, o final da década de 1990 foi de central importância. Decisões como a liberação das cirurgias de readequação/redesignação sexual, em 1997, pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), e a Resolução nº 01/99 do Conselho Federal de Psicologia (CFP) – que proíbe o tratamento de “reversão sexual” da homossexualidade, despatologizada em 1985 pelo CFM – são decisões que representaram importantes conquistas para o reconhecimento das identidades LGBTI e para a redução das violências contra esses corpos por setores médico-clínicos.

Nas duas décadas seguintes (2000 e 2010), vimos o prosseguimento de outras discussões no que concerne às questões familiares, que culminaram na legalização da união estável entre pessoas do mesmo sexo em 2011, do casamento em 2013, e da possibilidade de adoção de crianças em 2015. Houve, também, avanço quanto ao reconhecimento da identidade de gênero com a oferta de cirurgias de redesignação sexual pelo Sistema Único de Saúde (SUS), a partir de 2008, e por meio da possibilidade de qualquer cidadão decidir como se identificar, em 2018, com o provimento nº 73/2018, pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que estabeleceu as regras para que pessoas trans pudessem alterar nome e gênero em seus documentos. Ainda em 2018, o CFP emitiu a Resolução n° 01/2018, que orienta aos profissionais de psicologia no Brasil que as travestilidades e as transexualidades não sejam abordadas como patologias. Somente em maio de 2019, a Organização Mundial da Saúde (OMS) oficialmente despatologizou a transexualidade, por meio da emissão da Classificação Internacional de Doenças (CID) 11, o que ela havia sinalizado que faria, ainda em 2018.

Esses debates e conquistas não são frutos de um processo linear das pautas LGBTI. Foram acompanhadas por reações negativas de setores conservadores da sociedade – majoritariamente religiosos – que apresentaram diversas contrapropostas, com destaque para as da década de 2010, em variados espaços institucionais, que visavam justamente à retirada ou suspensão dos direitos que vinham sendo oficializados nesses últimos anos.

Desse modo, vimos a ebulição de diferentes proposições, como o Projeto de Decreto Legislativo (PDC) nº 234/2011, que buscava sustar parágrafos da Resolução nº 01/99 do CFP que proíbem tratamentos de “reversão sexual” em homossexuais. Esse decreto visava a legitimar e institucionalizar, novamente, a homofobia/heterossexismo na psicologia brasileira (VILLELA et al., 2020VILLELA, G. M. M.; GIORGI, M. C.; ALMEIDA, F. S.; VARGENS, D. P. M. Documentos jurídicos, “cura gay” e legitimação do heterossexismo: uma análise discursiva do PDC 234/2011. Letrônica, v. 13, n. 2, p. e36006, 2020.).. Junto a esse processo, vimos, ainda, a ascensão de candidatos que, de acordo com Bulgarelli (2018)BULGARELLI, L. Moralidades, direitas e direitos LGBTI nos anos 2010. In: GALLEGO, E. S. (org.). O ódio como política: a reinvenção das direitas no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2018. p. 97-102., têm no antifeminismo e no anti-LGBTI uma pauta que lhes confere notoriedade, juntamente com os ataques aos direitos humanos que, segundo estes, “infiltraram-se em âmbitos diversos: das instituições estatais à política, do núcleo familiar às mentes das gerações futuras” (BULGARELLI, 2018BULGARELLI, L. Moralidades, direitas e direitos LGBTI nos anos 2010. In: GALLEGO, E. S. (org.). O ódio como política: a reinvenção das direitas no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2018. p. 97-102., p. 101). Diante desse cenário de conquistas sociais, ainda que tímidas, essa frente conservadora – concebida por ela mesma como um conjunto de indivíduos modelo e não como um grupo – começou a sentir sua hegemonia ideológica e econômica ameaçada passando a atacar de maneira sistemática as pautas e as conquistas dos movimentos negros, feministas e LGBTI.

Ascensão das “novas direitas” e das redes sociais on-line

Interessados nas práticas linguageiras, entendemos que o conceito de linguagem-intervenção de Rocha (2014)ROCHA, D. Representar e intervir: linguagem, prática discursiva e performatividade. Linguagem em (Dis)curso, v. 14, n. 3, p. 619-632, 2014. é central na discussão aqui proposta, visto que mais do que somente representar uma realidade social extralinguística, a linguagem provoca deslocamentos, efeitos de sentido e de qualidades do real por meio de práticas discursivas. Essas práticas, como afirma Rocha (2014)ROCHA, D. Representar e intervir: linguagem, prática discursiva e performatividade. Linguagem em (Dis)curso, v. 14, n. 3, p. 619-632, 2014., são definidas como a construção de textos que, ao passo que provém de uma comunidade discursiva responsável pela sua produção, simultaneamente dão base para a existência dessa própria comunidade. Com efeito, a linguagem, ao atuar sobre a produção da realidade social, atua sobre a produção de subjetividades. Nesse sentido, traçamos nesta seção uma reflexão sobre o processo de fortalecimento da chamada “nova direita brasileira”.

As manifestações populares, que iniciaram em 2013 contra o aumento das passagens e foram transformadas em um levante que se pretendia “contra a corrupção”, se converteram em um movimento de ataque e desestabilização do governo de Dilma Rousseff (Partido dos Trabalhadores – PT), evidenciando o crescimento da extrema direita brasileira. Para entendê-lo, é necessário considerar que não há uma direita, na realidade,

O que existe hoje é a confluência de grupos diversos, cuja união é sobretudo pragmática e motivada pela percepção de um inimigo comum. Os setores mais extremados incluem três vertentes principais, que são o libertarianismo, o fundamento religioso e a reciclagem do antigo anticomunismo

(MIGUEL, 2018MIGUEL, L. F. A reemergência da direita brasileira. In: GALLEGO, E. S. (org.). O ódio como política: a reinvenção das direitas no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2018. p. 17-26., p. 19)

Observa-se, assim, a aliança entre diferentes grupos que buscam: 1) intervenção socioeconômica estatal mínima; 2) a “restauração” plena dos valores religiosos cristãos ultraconservadores – principalmente evangélicos neopentecostais e católicos conservadores – “atacados” pelos avanços das pautas feministas e LGBTI; e 3) o reavivamento, no Brasil, de um nacionalismo ufanista, de inspirações macartistas/ anticomunistas, que se atualizam, tendo como inimigos os governos bolivarianistas e cubano, o que deu origem às expressões como “Vai pra Cuba!” e “o Brasil não vai virar uma Venezuela”. Por mais que essas sejam vertentes distintas, frequentemente encontramos sujeitos e grupos que defendem combinações diversas desses pontos (MIGUEL, 2018MIGUEL, L. F. A reemergência da direita brasileira. In: GALLEGO, E. S. (org.). O ódio como política: a reinvenção das direitas no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2018. p. 17-26.).

A ascensão dessas novas direitas não é resultado somente do interesse de grandes grupos que cooperaram com o financiamento desse processo almejando a aprovação das propostas ultraliberais. Com efeito,

Muitos outros fatores devem ser levados em consideração e dizem respeito à percepção de ameaças e oportunidades por parte da militância, a consolidação de laços e identidades comuns, mobilização de afetos e uso de redes sociais, sendo que em determinadas circunstâncias, tais fatores foram mais importantes do que a posse de recursos abundantes

(ROCHA, 2018ROCHA, C. O boom das novas direitas brasileiras: financiamento ou militância? In: GALLEGO, E. S. (org.). O ódio como política: a reinvenção das direitas no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2018. p. 47-52., p. 52).

O uso das redes sociais foi um dos grandes fatores que tornaram possível o engajamento de uma base popular à ascensão desses grupos que se apresentaram como resposta à crise econômica que, apesar de ser um reflexo da crise mundial do capitalismo iniciada em 2008, foi construída como uma crise “moral”, sendo a corrupção entendida como um problema da gestão do PT e não como fruto das estruturas capitalistas.

Ressaltamos também o avanço de um suposto “marxismo cultural” e de pautas feministas e LGBTI produzidos como ameaças. Como resultado, as forças hegemônicas, autoconstruídas como vítimas dessa suposta ameaça reproduzem “O mesmo tipo de raciocínio [...] como maneira de sustentar sua oposição a qualquer iniciativa para reduzir as desigualdades de gênero, e chega às redes sociais na forma de denúncias contra a ‘ditadura comunista gay’ em formação” (MIGUEL, 2018MIGUEL, L. F. A reemergência da direita brasileira. In: GALLEGO, E. S. (org.). O ódio como política: a reinvenção das direitas no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2018. p. 17-26., p. 22).

Esses discursos com vieses conspiracionistas são responsáveis por mobilizar grandes bases de apoio aos grupos neoconservadores, principalmente no Facebook e Twitter. Esta última plataforma ganha destaque devido ao seu recorrente uso por grandes figuras políticas, tanto internacionais quanto brasileiras instaurando, por vezes, tensões diplomáticas.

Diante disso, podemos compreender como a produção de tweets, por perfis de grande visibilidade e impacto social desempenha um grande poder de intervenção social nos meios de subjetivação e na produção dos sujeitos, com grande poder político.

“O mundo não é só gay”: negação das pautas LGBTI e seu “novo” movimento no Twitter

O Twitter surgiu em 2006, nos Estados Unidos, e desde então não para de se popularizar. O Brasil assume a sexta posição no ranking de países com maior número de usuários5 5 Ver: <https://www.tecmundo.com.br/redes-sociais/144654-brasil-10-paises-usuarios-twitter.htm>. Acesso em: 13 nov. 2022. . Essa plataforma se apresenta como um microblog, no qual seus usuários falam de si e se comunicam essencialmente pelos tweets, havendo ainda a possibilidade de envio de mensagens privadas.

Os tweets são textos curtos, de no máximo 280 caracteres (140 caracteres até 2017), e possibilitam três tipos de interação: “curtir”, “comentar” e “retweetar”. Os retweets podem ser compreeendidos como a construção de uma espécie de diálogo com um tweet: pode-se simplesmente compartilhar esse conteúdo sem nenhum adendo, geralmente significando concordância com aquele texto ou ainda adicionar comentários reforçando ou rechaçando os conteúdos ali apresentados. Assim, os retweets constituem uma rede discursiva online entre diferentes sujeitos, seja pela oposição entre formações discursivas ou pela coletivização de um enunciado – que é assumido por outros sujeitos. Devido a essas características estruturais, o gênero discursivo tweet tradicionalmente foi marcado pelo uso de uma linguagem informal e por enunciados sucintos, visto que há um número restrito de caracteres que a plataforma impõe, o que torna comum o uso de abreviações. Por causa dos seus novos usos e da inserção do campo político-institucional nessa plataforma, vemos progressivamente desenvolverem-se construções mais complexas, por meio das threads/fios e utilização de links externos de modo que seu uso tradicional seja somente uma das possibilidades de enunciação nessa rede social (MOURA; BLANCO; THERESO, 2020MOURA, A. S.; BLANCO, G. A. R.; THERESO, P. G. Segue o fio no Twitter: análise discursiva de thread da Folha de S.Paulo sobre o governo Bolsonaro. In: ROCHA, D.; DEUSDARÁ, B.; ARANTES, P.; PESSÔA, M. (org.). Pesquisar com gêneros discursivos: interpelando mídia e política – Em discurso 4. Rio de Janeiro: Cartolina, 2020. p. 128-144.). Apesar desse movimento, os tweets da página analisada são os do uso mais tradicional.

Ao acessarmos uma página no Twitter, vemos a imagem de perfil e de capa, a bio, seu modo de se apresentar, algumas informações como local, quando o usuário ingressou nessa plataforma, número de seguidores, quantos perfis segue; assim como a opção “Seguir” e quatro seções: Tweets, Tweets e respostas, Mídia e Curtidas. A primeira apresenta todos os tweets e retweets feitos pela página, a segunda inclui os tweets que são respostas dessa página para as publicações de outras, a terceira apresenta todos os arquivos em formato visual ou audiovisual e a última mostra todos os tweets que a página curtiu. Podemos observar dois momentos do perfil do movimento GcB nas imagens a seguir.

Imagem 1
Capturas de tela do perfil do Twitter do Gays com Bolsonaro

A página no Twitter do GcB foi criada em abril de 2018, seis meses antes da eleição do presidente Bolsonaro, momento em que identificamos diversos tweets que justificavam os votos de pessoas LGBTI nesse candidato, que, atualmente, ratificam falas e decisões de personagens que rodeiam o governo e do próprio chefe da nação.

O GcB se apresenta na bio de sua página como “Brazilian Gay Conservative Org., cristão, nordestino; um novo Mov. LGBT”; um grupo de direita conservadora com inspirações religiosas cristãs e que se constrói como contraproposta aos atuais movimentos LGBTI, entendidos por eles como coletivo homogêneo. Apesar de se autodenominar “novo movimento LGBT”, a homossexualidade é o centro de suas pautas, bem como a masculinidade como indica a própria escolha do nome da página que, optando pelo termo Gay, exclui lésbicas que não se sentem contempladas por ele. Outras sexualidades e identidades de gênero, tais como bissexuais, assexuais, intersexuais, transgêneros e travestis foram seletivamente apagados nessa escolha.

Analisamos os tweets e retweets presentes na seção “Tweets” do perfil do GcB (@gaycombolsonaro), levantados em maio de 2020 e selecionados, como já dito, a partir das marcas linguísticas, em especial a negação polêmica (DUCROT, 1987DUCROT, O. O dizer e o dito. Campinas: Pontes, 1987.), muito presente nos (re)tweets de 2017 e 2018, e o uso de léxicos referentes ao Movimento LGBTI, mais presente nas publicações dos anos de 2019 e 2020. Interessa-nos perceber, como esse “novo movimento” se constrói por meio de seus tweets. Faz-se necessário explicitar que os retweets, ao serem anexados à sua página, são (re)enunciados, de modo que também atuam discursivamente na sua construção da identidade desse movimento.

Um ponto recorrente nesses tweets e retweets é a negação de pautas e disputas políticas apresentadas pelos movimentos LGBTI. Mostrou-se produtivo iluminar a rejeição construída nos enunciados por meio da categoria de negação polêmica, proposta por Ducrot (1987)DUCROT, O. O dizer e o dito. Campinas: Pontes, 1987., para quem os referidos enunciados marcam sua polifonia por meio de duas visões de mundo antagônicas atribuíveis a dois diferentes sujeitos discursivos. Por sua vez, há duas diferentes posições discursivas: uma associada à perspectiva positiva e o outro à perspectiva que rejeita a primeira, e com a qual o locutor se alia.

Quadro 1
Negações polêmicas, afirmações subjacentes e implícitos

Ao construir e atualizar tais negações, o GcB dialoga com afirmações subjacentes, compreendidas como afirmações geradoras da negação polêmica, atribuídas a um Outro ser discursivo; um Outro que tem que ser contestado, negado; um Outro enunciador dos movimentos LGBTI, os quais também poderiam ser chamados de “velho movimento LGBT”, em contraposição a esse que se autointitulou “novo movimento LGBT”.

Compreendemos que o GcB produz essas negações em prol de uma suposta afirmação de cidadania, como se ambas as lutas – por direitos sexuais e de gênero e pela cidadania – fossem elementos inconciliáveis. Nesse sentido, o fato de um determinado grupo adquirir direitos, se constituiria como uma ameaça aos que têm seus direitos consolidados. Ao mesmo tempo, essa estratégia discursiva associa aos movimentos LGBTI a construção inversa: a de negação da cidadania em benefício de suas pautas e especificações. Observamos que o GcB constrói um simulacro, uma imagem discursiva do movimento LGBTI no qual “o mundo seria ‘somente gay’ e não cidadão”. A essa afirmação subjaz outra alegação: a de que existiria uma oposição entre “gays” e “cidadãos”, e que o sujeito precisa optar por uma dessas duas identidades: “cidadão”, que seria uma perspectiva positivada do sujeito ou “gay”, sua contrapartida negativa. Diante dessa dualidade apresentada pelo discurso do GcB, resta aos seus interlocutores duas alternativas: fazer a defesa de pautas homossexuais e manchar seu caráter por ter “orgulho de ser gay”, ou renunciar a essa luta e ser percebido como um “cidadão”, o que causa mais estranhamento à opção pelo nome da página. A afirmação da identidade “gay” que pode ser presumida a partir da opção do nome do perfil, conflita com os discursos reproduzidos pela página que buscam, quase sempre, apagar essa identidade em detrimento de uma suposta cidadania que exclui a possibilidade de ser “gay com orgulho”.

Essa percepção ‒ de que o movimento LGBTI defende um mundo formado somente por gays, e/ou que confere espaço privilegiado às identidades de gênero e orientações sexuais ‒ está fortemente vinculada à perspectiva de oposição entre indivíduos e grupos, abordada anteriormente, e tende a reforçar concepções hegemônicas sobre pessoas LGBTI. Referenciando Scott (2005, p. 14)SCOTT, J. W. O enigma da igualdade. Rev. Estudos Feministas, v. 13, n. 1, p. 11-30, abr. 2005. ao discutir essa questão: “indivíduos e grupos, [...] igualdade e diferença não são opostos, mas conceitos interdependentes que estão necessariamente em tensão”. Dessa forma, a afirmação de um grupo minoritário por meio de representação política não significa sua oposição aos demais indivíduos ou grupos e seus direitos, sendo justamente a forma de se afirmar em uma sociedade que os tem deixado à margem. A utilização dessas ações de positivação por meio da luta por reconhecimento desses mesmos grupos pode ser compreendida como estratégia de (re)existência, uma vez que sofreram processos históricos e sociais de diferenciação, apagamento e opressão que os negaram justamente a possibilidade de se afirmarem como cidadãos/ indivíduos plenos de direitos.

Em nossa sociedade é comum entendermos como grupos somente os chamados “minoritários”, social, histórica e culturalmente excluídos, que requerem direitos, enquanto os indivíduos (de pleno direito) são tidos como norma e como meta. Em relação à questão de identidade de gênero e orientação sexual, o indivíduo normativo da sociedade é aquele que possui a cisgeneridade e a heterossexualidade. Ou seja, ser cisgênero e heterossexual é tido como tendo ausência de uma orientação sexual e de identidade de gênero e ser simplesmente um indivíduo – e não um grupo heterocisnormativo que é o “preferido” pela sociedade para possuir direitos –, ao passo que ser LGBTI seria uma “opção” por um grupo, de modo a inserir a diferença e buscar a preferência para si.

Tal construção é, desse modo, justificada e reafirmada pelo GcB, por meio de uma lógica binária, na qual não seria possível a luta concomitante pela sexualidade (e consequentemente pelo gênero) e pelo Brasil. Constrói-se através das afirmações subjacentes e dos implícitos em que os movimentos LGBTI (aos quais a página se contrapõe) lutariam pelos direitos às minorias representativas por tratá-las como “especiais”, aliando-se a discursos que tratam esses direitos como privilégios, ignorando que a sociedade já elegeu, sócio historicamente, uma orientação sexual e identidade de gênero “especiais” e que não possuem seus direitos individuais atacados por esse corte social. Observamos que o movimento GcB, ao construir discursivamente que os movimentos LGBTI negariam sua nacionalidade ao defenderem o direito de exercer suas sexualidades e identidades de gênero, acaba construindo também a percepção que tanto os movimentos LGBTI quanto as lutas por seus direitos seriam contra o Brasil.

Pensando nos conceitos de heterossexismo, entendido como a “crença na existência de uma hierarquia das sexualidades, em que a heterossexualidade ocupa a posição superior” e pelas quais as outras sexualidades são consideradas, como “patológicas6 6 Apesar da despatologização das homossexualidades pela OMS em 1990, vimos no Brasil, na década dos anos 2000, projetos que visavam atacar deliberações contra a patologização da homossexualidade, como por exemplo o Projeto de Decreto Legislativo nº 234 de 2011. Ver discussão em: Villela et al. (2020). , criminosas, imorais e destruidoras da civilização” (BORRILLO, 2010BORRILLO, D. Homofobia: história e crítica de um preconceito. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010., p. 31), e de cissexismo, compreendido como a “opressão sistêmica de jovens e adultos transgêneros para beneficiar homens e mulheres cisgêneros que estão em conformidade com as expectativas de gênero da sociedade” (JUN, 2018JUN, H. Cissexism (Genderism or Binarism). In: JUN, H. Social Justice, Multicultural Counseling and Practice. 2. ed. Springer Cham, 2018. p. 161-185., p. 162), podemos entender que o GcB legitima práticas heterocissexistas, em especial por meio de sua faceta diferencialista – uso da diversidade de identidades para justificar tratamentos sociais diversos. Borrillo (2010)BORRILLO, D. Homofobia: história e crítica de um preconceito. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010., ao apresentar essa faceta mais moderna do heterossexismo7 7 Entretanto, entendemos que tal processo do discurso diferencialista também se faz presente, de certo modo, no cisseximo e, portanto, adicionamos esse conceito à nossa discussão. , define que a princípio ela descarta a superioridade heterossexual – em prol da diversidade de sexualidades, mas, na realidade, atua como legitimadora para tratamentos diferenciados a esses sujeitos.

Ao negar não só as pautas LGBTI, mas sua colocação como minorias representativas que sofrem discriminações e que, por isso, necessitam de direitos, o GcB promove o apagamento dessas lutas “pelo Brasil”. Por meio dessa estratégia discursiva invisibiliza a existência de tratamentos diferenciados a essas populações bem como a existência do heterocissexismo diferencialista, o que resulta no reforço e legitimação desses tratamentos excludentes aos LGBTI.

Faz-se necessário considerar que o surgimento do “movimento homossexual”, que com o tempo viria a se tornar os movimentos LGBTI, “indica a aspiração a reivindicar direitos universais e civis plenos, por meio de ações políticas que não se restringiam ao ‘gueto’, mas que se voltavam para a sociedade de modo mais amplo” (FACCHINI, s/d, s.p.). Assim, o GcB, ao atuar na negação desses movimentos e da politização de suas pautas, legitima o isolamento da população LGBTI, realocando-os no “gueto”, ao mesmo tempo em que reafirma o privilégio heterocisnormativo.

Foucault (2018)FOUCAULT, M. História da Sexualidade 1: a vontade de saber. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2018. aponta para movimentações na gestão do poder que, desde o século XVIII, vem se utilizando da sexualidade como um dispositivo a partir de seu deslocamento do espaço privado. Assim, a sociedade burguesa gerou um sistema de relações de poder-saber-prazer, bem como reatualizou seu poder disciplinar, de modo a gerir quais sexualidades e identidades de gênero8 8 Foucault desenvolve, especificamente, a questão da sexualidade, entretanto a cisnormatividade também é produto de uma construção social, de modo que outras identidades de gênero além da cis também sofreram processos de marginalização e opressão (RODOVALHO, 2017). são aceitas e quais não. E, em nossa sociedade de forte tradição judaica-cristã, o “padrão ótimo” de funcionamento da sexualidade e de identidade de gênero deu-se pela construção da heterossexualidade e da cisgeneridade como norma e enquanto as outras são tidas como exceções que possuiriam desvios e até mesmo “anormalidades”.

Nesse sentido, o movimento GcB propõe-se a intervir na concepção da separação do que é público e do que é privado, sendo este último um espaço que deveria ser desligado da política. Ou seja, a sexualidade e a identidade de gênero, por serem fatores da vida privada, não deveriam estar no centro de discussões políticas e, se estão, é para que haja a criação de “privilégios” para a população LGBTI.

Contudo, o GcB não se apresenta como um grupo menos político. Ao contrário, ele se constrói como movimento político voltado para o ataque aos questionamentos políticos dos movimentos LGBTI acerca das opressões sobre suas formas de existências; um movimento político contra a politização de “um” movimento.

Podemos analisar a continuidade dessa negação de especificações e lutas LGBTI em prol do apagamento dessa questão e da reafirmação do nacionalismo – comum em grupos de apoiadores ao atual governo – ainda no uso do sujeito no tweet 2. Percebemos a construção do distanciamento do GcB da luta pelos direitos da população LGBTI no uso sujeito oculto “nós”. Há um grupo – “nós” – que nega a necessidade de direitos que não são destinados a esse “nós”, mas “para as minorias”, com as quais esse sujeito não se identifica, apesar de se colocar como parte dele. Junto às demais premissas do GcB por nós analisadas, tal construção nos leva a inferir que esse “nós” oculto pode ser entendido como “os cidadãos” cuja “bandeira não é sexualidade”, e sim que a “bandeira é o Brasil” (aí incluído o GcB); enquanto que “as minorias” seriam aquelas cuja “bandeira não é o Brasil”, mas “é a sexualidade”.

Observa-se, ainda, o uso de termos que remetem aos movimentos LGBTI, os quais, ao mesmo tempo em que corroboram com a perspectiva de negação da luta por direitos para essa população, como apresentado previamente, dialogam ainda com o heterocissexismo e com a diversos preconceitos relacionados à comunidade LGBTI, como “frescura”, “depravado” e “do capeta”. Apresentamos alguns (re)tweets e seus efeitos de sentido no quadro a seguir:

Quadro 2
Uso de léxico que remete ao Movimento LGBTI

Conclusão

A partir da análise de alguns conceitos e de discursos que atravessam os tweets do movimento GcB pudemos iluminar como esse grupo tem se constituído principalmente por meio da negação (polêmica) e da construção de um simulacro dos movimentos LGBTI.

O GcB é oriundo de um contexto marcado pela (re)ascensão das chamadas novas direitas brasileiras, as quais encontraram na Internet e nas suas redes sociais um meio de se desenvolverem e construírem sua base popular, sendo justamente por onde o GcB também se estrutura. Seu surgimento se dá em resposta a um período de institucionalização das pautas dos movimentos sociais, entre eles o LGBTI. Utiliza de elementos presentes nas vertentes dessas direitas para construir um simulacro dos movimentos pelos direitos da população LGBTI, apresentando-os como uma ameaça à agenda nacional.

Apoiando-se nas contraposições entre indivíduos-grupos e igualdade-diferença, percebemos como o GcB acaba por se construir discursivamente como um “novo movimento LGBT” heterocissexista. Apesar de não defender explicitamente uma hierarquia de sexualidades e identidades de gênero que privilegiam os cisgêneros e heterossexuais, esse movimento se contrapõe, nega e deslegitima as lutas que visam a desconstrução desses sistemas de crença – o heterossexismo e o cissexismo – reforçando as violências sofridas por essa população, inclusive aqueles que compõem o GcB, recolocando-os no “gueto” do qual muitos desses sujeitos ainda lutam para sair.

Cabe ainda a reflexão de que os indivíduos que compõe esse “novo movimento LGBT” são frutos de uma sociedade heterocisnormativa que atua nos processos de subjetivação e que, muitas vezes encontram na negação de si e na consequente aliança com grupos hegemônicos um meio de conseguir ocupar determinados espaços. Porém, esse mesmo movimento acaba por reforçar estruturas que oprimem outras partes da população LGBTI, especialmente as que são mais vulneráveis.

  • 1
    Optamos pela sigla LGBTI devido a sua forte presença em discussões institucionais a nível nacional e internacional.
  • 2
    Na sequência: Gays, Lésbicas e Simpatizantes; Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais; Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Intersexo; Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Travestis; Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e mais; Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans, Queers; Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans, Queers, Intesexo, Assexuais, Pansexuais e mais.
  • 3
    Entendemos a heterocisnormatividade como padrões pré-estabelecidos de gêneros – em consonância com o sexo biológico – e de sexualidade – com a heterossexualidade – tomados como norma e reforçados constantemente nas relações familiares e sociais, que não reconhecem a pluralidade sexual e de gêneros (BORRILLO, 2010BORRILLO, D. Homofobia: história e crítica de um preconceito. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010.; JUN, 2018JUN, H. Cissexism (Genderism or Binarism). In: JUN, H. Social Justice, Multicultural Counseling and Practice. 2. ed. Springer Cham, 2018. p. 161-185.).
  • 4
    Em consonância com Rocha e Deusdará (2021, p. 24)DEUSDARÁ, B; ROCHA, D. Análise cartográfica do discurso: temas em construção. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2021., que já vêm apontando o largo uso dessa palavra em pesquisas na área de Análise do Discurso, e, consequentemente, a necessidade de incorporá-la aos dicionários, escolhemos a grafia da palavra “córpus”, compatível com as normas da língua portuguesa.
  • 5
  • 6
    Apesar da despatologização das homossexualidades pela OMS em 1990, vimos no Brasil, na década dos anos 2000, projetos que visavam atacar deliberações contra a patologização da homossexualidade, como por exemplo o Projeto de Decreto Legislativo nº 234 de 2011. Ver discussão em: Villela et al. (2020)VILLELA, G. M. M.; GIORGI, M. C.; ALMEIDA, F. S.; VARGENS, D. P. M. Documentos jurídicos, “cura gay” e legitimação do heterossexismo: uma análise discursiva do PDC 234/2011. Letrônica, v. 13, n. 2, p. e36006, 2020..
  • 7
    Entretanto, entendemos que tal processo do discurso diferencialista também se faz presente, de certo modo, no cisseximo e, portanto, adicionamos esse conceito à nossa discussão.
  • 8
    Foucault desenvolve, especificamente, a questão da sexualidade, entretanto a cisnormatividade também é produto de uma construção social, de modo que outras identidades de gênero além da cis também sofreram processos de marginalização e opressão (RODOVALHO, 2017RODOVALHO, A. M. O cis pelo trans. Rev. Estud. Fem., v. 25, n. 1, p. 365-373, 2017.).

Referências

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  • FOUCAULT, M. História da Sexualidade 1: a vontade de saber. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2018.
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  • RODOVALHO, A. M. O cis pelo trans. Rev. Estud. Fem, v. 25, n. 1, p. 365-373, 2017.
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  • ROCHA, D. Representar e intervir: linguagem, prática discursiva e performatividade. Linguagem em (Dis)curso, v. 14, n. 3, p. 619-632, 2014.
  • ROCHA, D.; DEUSDARÁ, B. Análise de Conteúdo e Análise do Discurso: aproximações e afastamentos na (re)construção de uma trajetória. Alea: Estudos Neolatinos, v. 7, p. 305-322, 2005.
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Editado por

Editora responsable: Maria Ataide Malcher
Assistente editorial: Weverton Raiol

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    16 Dez 2020
  • Aceito
    05 Nov 2022
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