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Do 'direito à voz' à 'voz como valor': cultura e política no neoliberalismo

RESENHA

Do 'direito à voz' à 'voz como valor': cultura e política no neoliberalismo

Marcus Antônio Assis Lima

Professor Adjunto do Curso de Comunicação Social, habilitação em Jornalismo, da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Doutor em Estudos Linguísticos (UFMG) e mestre em Comunicação e Sociabilidade (UFMG). E-mail: malima@uesb.edu.br

COULDRY, NICK. Why voice matters. Culture and Politics after Neoliberalism. London: Sage, 2010. 176 p.

Em seu mais recente trabalho, o professor de Media and Communications na Universidade de Londres, Nick Couldry, sustenta que vivemos, no mundo contemporâneo, em uma "crise de voz" nos domínios político, econômico e cultural. Segundo ele, os seres humanos são capazes, e efetivamente o fazem, de criar uma "narrativa de si" e do seu lugar no mundo. "Voz" é um termo que pretende demonstrar essa capacidade de se criar uma "narrativa de si" e do mundo, segundo Couldry, mas ter voz nunca é suficiente. O indivíduo precisa saber que sua voz interessa. Na verdade, a oferta de voz eficaz é crucial para a legitimidade das democracias modernas; e mesmo o lado econômico e cultural da vida tem oferecido voz de diversas maneiras. No entanto, temos fomentado usos que favorecem modos de organizar a vida cotidiana de maneiras que ignoram a voz e que assumem que ela não importa.

Para Couldry, um dos aspectos dessa crise é justamente a perda das conexões narrativas que podem ajudar os seres humanos a entenderem muitas das desagregações específicas do mundo contemporâneo. Ele mostra que, embora o "direito à voz" seja persistentemente garantido, especialmente nas mídias, em muitos aspectos ela vem sendo negada ou mesmo tornada ilusória, e as raízes dessas contradições, defende ele, é o neoliberalismo, que nega relevância à voz. O objetivo do professor inglês é refletir sobre essa crise e identificar alguns recursos para se pensar para além dela.

Couldry utiliza o termo "voz" de uma maneira bastante específica. Ele prefere dividir o conceito em dois níveis: "voz como processo" (de certa maneira, um termo familiar) e "voz como valor". Por "voz como valor", Couldry quer referir não apenas ao ato de valorizar, mas, e especialmente, à possibilidade de se poder decidir sobre como operar essa valorização nos quadros contemporâneos (neoliberalismo, ele sempre se esforça em nos lembrar) de organização da vida humana e dos recursos que se dá ao valor da voz (como um processo).

Por que essa distinção é importante? Em que o termo "voz", usado como o autor sugere, pode adicionar a outros termos como justiça e democracia, ao nos ajudar a pensar em como promover mudanças políticas? A razão, argumenta Couldry, reside em uma situação historicamente delimitada, a um discurso em particular, o neoliberalismo, que se tornou a ideologia hegemônica do mundo contemporâneo, de maneira formal, pragmática, cultural ou mesmo em termos de criatividade. Esse discurso opera com uma visão econômica que desconsidera a voz como algo de importância, além de impor uma visão econômica sobre o político que reduz o "político" ao gerenciamento do funcionamento do mercado.

Em seu livro, Nick Couldry procura ver a crise do neoliberalismo como ela é: uma crise de voz. A economia neoliberal está quebrada, segundo ele, porque dá ao funcionamento dos mercados uma prioridade absoluta sobre o valor da voz, desvalorizando a capacidade dos seres humanos para darem conta de si para além de agentes com fins lucrativos. Com mídias orientadas para o mercado, há pouco espaço para alternativas à visão de mundo neoliberal e, através de suas rotinas de produção, que aceleram o ciclo temporal dos acontecimentos, acaba-se por minar os processos de deliberação dentros dos governos e, por isso mesmo, de uma democracia mais justa.

Nick Couldry oferece "voz" como um termo conector que pode contribuir para interromper a visão neoliberal sobre a economia e a vida econômica, transformando o ponto de vista neoliberal e capacitando os seres humanos a construirem visões alternativas de política; visões pelo menos parcialmente orientadas para a valorização de processos de voz e do reconhecimento da capacidade das pessoas para a cooperação social baseada na voz.

Assim, ele define voz como a capacidade de criar, e ser reconhecido por criar, narrativas sobre a vida. Para tanto, alguns princípios mais gerais devem ser estabelecidos: a) A voz é socialmente enraizada; b) A voz é uma forma de agenciamento reflexivo; c) A voz é um processo adquirido; d) A voz requer uma forma material que pode ser individual, coletiva ou distribuída; e) A voz é subestimada pelas racionalidades que não a levam em consideração e por práticas que excluem vozes ou minam formas para sua expressão.

Outro ponto importante na abordagem de Couldry são as relações que ele estabelece entre o termo "voz", como entendido por ele, e a polítca. O conceito de "voz" opera tanto dentro quanto vai além da política. O autor começa a partir do entendimento de que a "voz como processo" não é necessariamente política em si mesmo. Isso é importante se se quer um conceito de voz que seja abrangente suficientemente para se conectar com diversos enquadramentos normativos e que possa ser aplicado a variados contextos para além da política formal, seja na esfera econômica, seja na esfera política. O argumento central do livro de Couldry, entretanto, mantem-se orientado para a política em um sentido mais abrangente, como o espaço onde as disputas e as deliberações sobre a alocação dos bens, serviços e valores toma lugar. Essa visão rejeita a visão reducionista do neoliberalismo sobre a política democrática e busca sua superação por uma visão da política como um mecanismo ampliado para a cooperação social, que pode ser resgatada no filósofo pragmático e teórico político norteamericano do início do século passado, John Dewey.

Por "voz como processo", Couldry quer demonstrar o processo de dar significado à vida de alguém e a suas condições: "dar crédito a alguém". Dar crédito significa contar uma estória, prover uma narrativa. Não é sempre que qualquer um de nós senta-se pra contar uma história de maneira formal, com começo e fim. Mas, de uma maneira mais geral, uma narrativa é um ingrediente básico da ação humana. O que fazemos – para além de uma descrição básica de como nossos membros se movem pelo espaço – também vem envolvido em narrativa, a nossa própria mas as dos outros também. Por isso que negar valor à capacidade de alguém em criar narrativas – negar seu potencial para voz – significa negar uma dimensão básica da natureza humana. Uma forma de vida que sistematicamente nega a voz não deveria apenas ser intolerada, ela deveria ser desconsiderada como cultura, defende Couldry.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jul 2012
  • Data do Fascículo
    Jun 2012
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