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Por um olhar complexo sobre a imagem

For a complex look on the image

Para una mirada compleja en la imagen

O professor Josep María Català Domènech é atualmente um dos maiores especialistas europeus no estudo da imagem, com uma visão peculiar e inovadora sobre o tema. Doutor em Comunicação pela Universidade Autônoma de Barcelona (UAB), onde é decano, tem licenciatura em História Moderna e Contemporânea na Universidade de Barcelona e mestrado em Teoria do Cinema pela San Francisco State University, na Califórnia. Foi professor da Faculdade de Ciências da Comunicação da Universidade Autônoma de Guadalajara (México) e professor do Departamento de Cinema de San Francisco State University. Documentarista, produziu para vários canais de televisão nacionais (TVE, TV3) e estrangeiros (Canal 4 de Televisa, Canal 6 de San Francisco). Vários de seus documentários foram premiadas. É também membro da Asociaciones Española de Historiadores de Cine (AEHC).

Sua produção bibliográfica tornou-se referência no universo acadêmico: é coeditor do volume Imágen, memoria y fascinación: notas sobre el documental em España(2001), autor de La puesta en imágenes: conceptos de dirección cinematográfica (2001), La imagen compleja (2006), La forma de lo real (2008) e La Imágen Interfaz (2010). Atualmente, dirige o Mestrado em Documentário Criativo da UAB.

Nesta entrevista, o pesquisador fala do potencial da imagem na contemporaneidade a partir de uma “mirada complexa”, conceito criado por ele que vai além do olhar tradicional de outros pensadores sobre o tema.

Revista IntercomO que é a imagem complexa?

Català Domènech – A imagem complexa não consiste em algo preciso, é uma forma de ver as imagens. Todas elas podem ser complexas. A ideia de conceituar isso vai contra a tradição de achar que a imagem é sempre algo simples – inclusive aquelas tão simples como uma fotografia instantânea, ou um retrato de passaporte. Há níveis de complexidade, mas depende da relação que o observador estabelece com aquela imagem para que surja essa relação de complexidade. Outra questão é que as imagens não estão isoladas, é o que dizia Godard (Jean Luc Godard), referindose aos planos: não existe um plano, mas um conjunto deles em um filme, e esse plano sozinho não tem significado. Isso acontece com qualquer tipo de imagens, com um cartaz, uma ilustração. Tende a parecer uma espécie de objeto fechado, que o contempla em si mesmo, mas quando você realmente o interroga, se dá conta de que ele está relacionado com outras imagens, ou porque faz parte de uma categoria ou pela maneira como tem circulado. Quando estas imagens estão inseridas nos novos meios, essas relações se colocam de forma ainda mais evidente, a exemplo da internet, na qual uma imagem pode lhe dirigir a outros lugares. Trata-se da materialização, de uma ecologia do visual. A complexidade surge também por isso, pois não se atém a esta imagem em concreto, mas permite vê-la como parte do que Adorno (Theodor Adorno) chama de constelação, em que se pode estabelecer uma dialética entre as diferentes partes (daí também a complexidade). Há dois níveis de complexidade: a imagem em movimento e a imagem estática, fixa. Durante muito tempo, consideramos apenas a imagem fixa, mas agora, com a internet e o Cinema, parece que a única forma de entendê-la é imobilizando-a. Daí a questão. Vimos que um plano não é único, ele faz parte de outros e que agora temos a tentação de dizer: “vamos parar o filme”, e parece que só quando o detemos, conseguimos entender as coisas. Isso é certo, mas ao pará-lo imobilizamos a vida da imagem; por que o movimento é importante, ele nos leva a outro aspecto da imagem. Esse movimento que, às vezes, eliminamos do Cinema ou do vídeo precisa ser reconsiderado para se entender que ele (o movimento) está nos dando uma escultura da imagem. Como dizia Tarskovsky (Andréi Tarkovski), é uma forma de esculpir o tempo, do tempo visualizado, e isso temos que levar para as imagens fixas. Pois se pensava que elas não tinham tempo ou movimento, mas é preciso entender o movimento nas imagens móveis para entender a imobilidade. As Belas Artes se interessaram por estas dialéticas, ou pelo Cinema lento ou ainda pela relação entre mobilidade e imobilidade. Como o Cinema utiliza a imobilidade? Ao imobilizar algumas imagens, fotografias ou, por exemplo, no Cinema de Vanguarda (de Godard), tem-se uma utilização da dialética entre imobilidade-movimento, que vai contra o naturalismo do movimento. Quer dizer, as coisas se movem, as pessoas se movem e, portanto, a fotografia, o Cinema, ou seja, a condição fotográfica do Cinema capta o natural, é uma forma de ver, mas também é verdade que esses movimentos são expressivos e que às vezes vão além do naturalismo. Então, essa perspectiva levada à imagem fixa te dá dimensões dessa imagem porque ela é talvez uma imobilização no tempo, mas significa que foi um corte no tempo, o tempo estava lá. Numa fotografia existe o “antes e o depois”. Dá-se conta disso ao examinar a imagem pelo lado complexo. Se examinarmos a coisa pelo lado simples, isso não deixa de ser uma aplicação banal do método científico, que o que faz é analisar, e isso implica em cortar as coisas, os fenômenos, para explicá-los. Isso é efetivo, traz resultados, mas é difícil quando os fenômenos foram destroçados, é preciso voltar a uni-los e geralmente não se faz esta “re-união”. Para Edgar Morin, está claro quando fala do método complexo, ou seja, da relação entre o todo e as partes: normalmente o método científico examina as partes e vai eliminando para chegar ao concreto, e então “o todo” se perde a complexidade seria voltar a recuperar o “todo”, ter essa consciência do “todo” por meio das relações da imagem, da constituição dessa constelação que é ver o todo, a ecologia visual, ou o “todo”, no sentido de ver na imagem multitude de elementos e, é capaz que às vezes, essas metodologias mais estritas, que analisam só aspectos concretos, deixam de lado. Movemo-nos aqui entre uma efetividade muito rotunda e uma certa ambiguidade. Às vezes, em nome da efetividade, escolhemos métodos que nos dão resultados imediatos. Mas isso implica na perda de informações e de tantas questões que estão na imagem. A imagem complexa não é tanto um tipo de imagem, mas uma concepção da imagem. Há imagens que são mais elaboradas que outras, que foram feitas por um exercício de complexidade pelo autor. Creio que é mais interessante ter uma concepção complexa da imagem.

Revista Intercom – A imagem complexa busca resolver a questão da técnica e da Ciência?

Català Domènech – Esta é uma questão fundamental para nossa civilização – na Europa, nos EUA... Na América Latina, talvez não se aplique tanto porque a região está em uma fase distinta de desenvolvimento e países como Brasil, por exemplo, estão no auge. Essa crise de que estamos falando para nós europeus é tremenda, é uma crise não só da economia, mas de valores, é uma batalha ideológica, ela vai no sentido da concepção científica. Tenho sido grande amante da Ciência, mas também crítico dela, de alguns métodos científicos, que nos têm levado a um beco sem saída. Por exemplo, a Ciência Econômica tem provocado muitos desastres deteriorando o planeta ou servindo de instrumento de guerra, à parte a medicina que salva vidas. O problema é o método científico que se quer aplicar a tudo. Temos uma série de disciplinas na universidade que querem ser científicas, não descobriram sua própria maneira de ser, mas tentam aplicar o método reducionista, e aí está o problema, pois estão criando mentalidades incapazes de dar conta do que se está tratando. As Ciências Sociais têm seu lado perverso ao interpretar a sociedade ditando caminhos políticos. Na Arte ou na Literatura, o resultado pode ser menos perverso – onde se emprega o método reducionista o resultado pode ser menos negativo, mas é negativo do ponto de vista da mentalidade, pois se criam estas mentalidades nas quais não se está receptivo a ver, por exemplo, questões como ética e complexidade. Deveríamos fazer uma interação entre Arte e Ciência, entre Humanidades e Ciência. O livro célebre de Snow (As Duas Culturas, 1959, de C. P. Snow) diz que há duas culturas, elas estão separadas e não deveriam estar, mas Snow, ou mesmo Steiner (George Steiner), que é um grande humanista, que nos últimos anos falou um pouco o que dizia Snow, mostrou que há duas culturas que estão separadas e que se deve fazer todo o possível para juntá-las. E qual é o diagnóstico? Dizem que os humanistas deveriam aprender Ciência, mas não dizem que os cientistas devem ter uma cultura humanista, que não deveriam desprezar a Arte, a Literatura, elementos que entram na Sociologia, como o imaginário, que muitas vezes se despreza por conta de uma perspectiva sociológica muito quantitativa, estatística. É essa conjunção que eu expressava em meu livro como “Arte e Ciência” (quis dizer Ciência e humanismo), ali estava falando de imagem porque me parecia que no terreno dela os dois campos estavam implicados. A Ciência emprega muito a imagem e, portanto, era necessário tê-las em conta. Por outro lado, o computador produz imagens artísticas e o cientista usa o computador, é um problema não só de imagem, mas de cultura de civilização, a única solução é ter uma noção de ser humano muito mais ampla do que temos. A forma como se está empregando o método científico, equivocada, tem como proposta qualificar os professores, as universidades, para dar as subvenções para as investigações científicas etc. Tudo isso vai em um mesmo sentido e está formando pessoas com uma mentalidade muito estreita, e depois acontece o que acontece... Essa mentalidade é empregada de forma unificada em Wall Street, nos EUA, nos bancos, em todas as partes, relacionados evidentemente com o mundo acadêmico, e isso provoca um desastre mundial.

Revista IntercomO contexto dos periódicos está determinando mais as imagens?

Català Domènech – Sim, creio que a imagem é muito subsidiária ainda nos periódicos, está determinada pelo contexto, estilo do periódico. É verdade que, ao migrarem para a internet, para as páginas Web, há outra forma de ver as imagens, como os fotoensaios (nos quais não se tem só uma foto, mas várias fotos sobre um acontecimento). Isso implica num sistema distinto, pois não consiste em eleger uma imagem só, mas em construir uma espécie de narrativa. Depois temos os infográficos, um resumo visual da notícia (como o faz o El País), explicado pelos diagramas, isso faz parte do estilo do periódico. No The New York Times, havia montagens extraordinárias sobre o 11 de setembro, cujos acontecimentos são explicados perfeitamente, é uma forma muito mais rica e complexa de explicar os fatos do que a simples imagem fotográfica no jornal. É certo que a imagem não determina a notícia, a acompanha. Há certo mal-estar do editor para utilizar a imagem, detectamos isso na legenda da imagem porque faz parte do estilo do periódico, como ocorre no livro de estilo do El País. Me chama a atenção que as legendas das fotos deste jornal sejam muito redundantes e repetitivas, ou são muito irresponsáveis. Por exemplo, se pode pôr a imagem de um ministro da economia saudando alguém e a legenda informa exatamente isso, o que já estamos vendo. Outra vez, o texto fala de um terrorista afegão atacando algo e a foto não diz isso (nem que é terrorista). Em uma imagem sobre uma manifestação, a pessoa está catalogada, mas a imagem não pode determinar se a pessoa estava ligada àquele coletivo, ou seja, às vezes o texto diz o que a imagem não diz, e diz o que a imagem já diz (redundante), há um mal-estar, não se sabe o que fazer com a imagem. Há outros casos de revistas que buscam um escritor que comente a imagem, de forma que a imagem apareça como algo alegórico, e o escritor interpreta, faz uma espécie de minipeça da imagem, de forma que ela vá além da notícia, que a imagem seja a notícia, e poucas vezes é. Na televisão, a notícia vem pelas imagens que mostra, na imprensa escrita não. Na imprensa, temos a Life Magazine, que introduziu a grande fotografia e variava muito essa concepção, dava muita importância à imagem, claro, mas dava mais importância ao texto. Mas deu bom tratamento à fotografia, introduziu a foto-ensaio, a combinação entre imagem e texto.

Revista IntercomImagem complexa e Walter Benjamin: que relações são possíveis?

Català Domènech – Benjamin é um pensador complexo. Absolutamente vai além do que propõe o mundo acadêmico. Sua tese de doutorado sobre o drama barroco alemão não foi aceita. Ao propor as coisas de forma distinta, recebeu críticas. Não o compreendemos, não foi recebido amplamente até agora, no entanto, se converteu em um pensador estrela. Suas obras completas estão sendo publicadas, mas durante muito tempo foi ignorado, não o entendiam, não o aceitavam, não havia sensibilidade para isso. Algo mudou agora, mas há ainda uma tendência muito grande à especialização, à quantificação. A relação entre Benjamin e a complexidade da imagem se dá pelo fato de que ele esteve analisando a sociedade por meio dos produtos visuais. Em seus estudos sobre Paris do século 19, como a capital da modernidade, muitas das suas perspectivas eram sobre objetos visuais da cidade, ou sobre estruturas arquitetônicas, desenhos ou inclusive sobre personagens, mas que estavam sendo vistos sobre um ponto de vista visual. O flaneur, essa espécie de explorador da cidade que apareceu já com Baudellard, poeta de grandes centros urbanos, não deixa de ser visual, é um personagem que contempla um lugar, que passeia, recorre visualmente à cidade, tem uma sensibilidade visual para entender as imagens como pontos dialéticos, pontos em que a história ou a sociedade visualizava suas pulsões internas, compostas, segundo ele, de diferentes tempos: tempo passado, tempo presente, tempo futuro... Em uma imagem se poderia ver essas diferentes configurações dos tempos, isso é complexidade da imagem. Ou interpretar como imagem os passageiros no centro comercial. Até então, só se pensava na imagem artística, os quadros, as pinturas, o filme poderia ser arte, já se faziam estudos sobre o Cinema, mas pensar um enclave urbano como uma imagem, no sentido de contemplar a visualidade daquilo, era uma novidade. Então, há uma relação entre imagem complexa e o pensamento de Benjamin, é um dos instrumentos que nos indica o caminho, este caminho a-metodológico, ensaístico, muito difícil. Ensaio é mescla de Arte e Ciência, de Literatura e, às vezes, de instrumentos hermenêuticos, de investigação. Aí está a chave, achar essa fórmula para avançar, e Benjamim é exemplo eminente de utilização do ensaio como instrumento de investigação.

Revista IntercomO pensamento histórico e marxista está presente em suas reflexões?

Català Domènech – Sim, pois quando estudei Historia ela era marxista. Na Espanha, estávamos saindo de Franco, do regime franquista, a universidade havia se aberto um pouco, pelo menos entre alguns professores, e o Marxismo era um instrumento de análise da realidade muito potente e segue sendo. A história deu razão a Marx, mas durante muito tempo ele foi desprestigiado por duas razões: uma porque era, digamos, acusado de ser o gérmen do desastre do comunismo e outro porque diziam que as suas previsões não seriam cumpridas. No primeiro caso, não tinham razão, pois Marx não pensou nunca que a sociedade comunista poderia desembocar no que foram os regimes comunistas. Não digo que seja um acidente da história, pois quando se contempla as utopias se dá conta de que elas desgraçadamente não podem gerar mais do que regimes autoritaristas, portanto é melhor não considerá-las. Claro, se queremos mudar uma sociedade drasticamente, é preciso obrigar as pessoas a fazer as coisas, pois elas são livres e fazem muitas coisas distintas. Então, havia certa razão, digamos, para acusá-lo de suas ideias, mas as ideias dele iam em outra direção, e vão interpretar realmente o que era o capitalismo e a História e dar instrumentos para poder, de alguma forma, enfrentar-se uma deriva que conduziria ao desastre. Durante muito tempo, dizia-se que os vaticínios de Marx não se cumpririam, mas, agora estão se cumprindo, agora vemos claramente no nosso próprio cerne social o que está acontecendo, o que significa a concentração de poder econômico, o que significa a exclusiva visão economicista etc... Então, Marx é recuperável, reciclável, evidentemente, porque é preciso voltar a pensá-lo, creio que está presente aí essa ideia, não temos essa nova forma de ver, e temos que acolher Marx.

Revista IntercomMas embates são possíveis?

Català Domènech – A complexidade está aí, o problema é uma interpretação excessivamente mecanicista do marxismo. Todos os pensadores têm luzes e sombras neste sentido. Marx abriu um território extraordinário na mente humana, como Freud, que também abriu e teve seus problemas, também foi muito criticado. Temos que ver o que se pode aceitar. Dos pensadores que puderam examinar inclusive os lados positivos do capitalismo, o melhor foi Marx. Seus inscritos começam sempre por uma análise positiva do capital, ele entende que o capitalismo é um avanço na sociedade, mas sabe também que a dialética leva também àquelas coisas que são positivas no princípio depois acabam se convertendo em algo negativo, isso ocorreu ao longo da História da humanidade. Portanto, aqueles que se dedicam a escolher dos pensadores um dogma e a aplicar um dogma não estão fazendo um favor aos pensadores, pois o que esses pensadores fazem é abrir este território e a obrigação dos demais é avançar por este território de forma muito ampla. Interpretações marxistas da imagem ou da arte em geral, às vezes, têm sido muito mecanicistas. E há ocasiões nos partidos políticos em que isso ocorre ainda mais. Porque aqui na Espanha, durante a época mais militante dos partidos de esquerda no período franquista, em que fomos comunistas, havia uma espécie de censura. Havia certos autores cinematográficos que não podiam ser mais que desprezados como, por exemplo, John Ford, porque eram considerados como representantes do imperialismo norte-americano, ele era um grande diretor de cine Western, que era a mentalidade norte-americana do extermínio dos índios americanos etc. etc. Mas Ford, no aspecto humano da construção dos personagens, é extraordinário, é um grande autor. Mas nós, que gostávamos de Ford e militávamos em partidos de esquerda, não podíamos dizer que gostávamos dele, se não éramos muito criticados, e isso é ridículo – não avançamos por aí, é uma caricatura menos drástica da que poderiam ter feito os nazistas quando iam contra a chamada arte degenerada, que era toda a vanguarda... Assim como na União Soviética onde, ao se impor o imperialismo socialista, se elimina toda a produção de arte de vanguarda. Portanto, é Marx que nos abre um campo e que nos dá instrumentos para interpretar a realidade sim, mas não o Marx que se destina ao dogmatismo. Essa questão da complexidade é algo maior, mais amplo, assim como no que diz respeito à imagem. Morin fala do método em seus livros, a questão complexa nos permite entender a complexidade do real, sem eliminar a complexidade. Em algum lugar, disse que precisamente ao método científico deveria ter incorporado, entre muitas coisas, evidentemente, o fator ética, ou seja, deveria haver sempre nas investigações uma cláusula, da mesma forma que há nos protocolos da investigação para que ela funcione, deveria haver uma obrigação de expor quais as consequências desse estudo, se são danosas ou não. Quando se inventou a bomba atômica, alguns cientistas explicitaram essa questão. Oppenheimer (Robert Oppenheimer), por exemplo, o fez, e o isolaram, foi muito criticado por isso. Einsten também tinha suas prevenções sobre quem havia feito isso, e tinha razão, a bomba atômica foi lançada sobre a população civil japonesa sem nenhuma razão. Portanto, este fator é perigoso, pois quando entramos na complexidade deixamos de lado o terreno seguro, mas claro, o terreno seguro é também perigoso, pois é o dogma. Quando a igreja se opõe à investigação das células tronco, teremos que fazer caso da igreja? Não, é um equívoco. Este fator ético não é uma espécie de máquina censora, mas um instrumento de pensamento. Quando isso ocorre, dizemos: vamos fazer uma comissão composta por cientistas e humanistas e religiosos para que determinem se todas as investigações são eticamente responsáveis... Quando fazemos isso, estamos perdidos, pois este comitê terá uma ideologia, uma luta como ocorre nos círculos de conselho de poder judiciário e tribunal supremo. Não se trata disso, mas como nós, com nosso próprio pensamento, seremos capazes de pensar para onde vão nossas obras, as consequências delas, se teremos beneficio econômico imediato, vão ser piores as consequências a longo prazo desse benefício? É uma questão de pensar e ter em conta, e logo a liberdade pessoal de dizer, isso é a complexidade.

Revista IntercomEdgar Morin é o pensador que te dá base?

Català Domènech – Morin me abriu o caminho da complexidade, quando li sua introdução ao método complexo, a antessala para todos os volumes, me abriu o mundo, pois tudo que eu tinha não sabia expressar, a partir daí transpassei à imagem.

Revista IntercomFale sobre a força da política, interpretação do leitor, autonomia do indivíduo.

Català Domènech – Aqui tem havido uma rigidez no uso do conceito do receptor (da audiência). Evidentemente, as imagens são dirigidas às pessoas, passam por meios, filtros políticos, ao final há um receptor, que a interpreta, portanto, essa questão tem que estar presente. A questão do receptor é muito subjetiva, é difícil se aplicar uma metodologia. Tem-se tentado aplicar essa metodologia, e já tem ocorrido daí as perversidades dos estudos de audiência, que Adorno (Theodor Adorno) sofreu porque há um momento em que explico – talvez no livro Imagens Complexas – sobre o choque que houve de culturas representadas por Adorno e Lazarsfeld, pai da investigação sociológica quantitativa. Os dois são alemãos, Lazarsfeld passou mais tempo nos EUA quando Adorno chegou, ele estava na Europa e, ao se mudar para os EUA, foi recebido por Lazarsfeld em seu projeto e deu emprego a Adorno, que era grande filósofo e crítico da música. Seus artigos sobre a música são de complexidade extraordinária, são difíceis de ler como os de Benjamim. Lazarsfeld lhe ensinou os sistemas de interpretação de audiência, que consiste em pôr as pessoas ouvindo música com um botão diante delas, e elas tinham que apertar um botão quando gostavam ou não da música, então Adorno pôs as mãos na cabeça porque ele havia feito as interpretações da música, das complexidades da música, algo que não se podia resolver com esse método. Deste método mecanicista vêm todos os métodos superiores. Não tão grandes coisas se fez quando se estudou audiência, pois este tipo de estudo se fixa em saber quantas pessoas estão olhando (ou ouvindo), mas não se pergunta como estão olhando, o que significa, separa-se as pessoas por classes sociais, e aí fazem entrevistas mais qualitativas, focusgroup etc. Mas tudo é muito construído, inclusive na entrevista do focus as pessoas não dizem exatamente o que experimentaram diante de um filme e TV, e de um quadro, é muito difícil, se obtém resultados quantitativos. É possível disso fazer estatística, e funciona, porque aí os programadores de TVs podem dizer aos anunciantes “este programa é visto por tantas pessoas de classe social tal”, e aí os anunciantes dizem que podem anunciar, mas é uma grande mentira, se pode chegar aí, mas há tantas questões pendentes... Quantas pessoas veem seus programas, que tipo de classe social vê... Os publicitários não têm outra coisa, se aceitam o método ele funciona, e os que defendem os programas lixo dizem que as pessoas gostam. As estatísticas neste sentido servem para reafirmar algo que não deveria deixar-se levar por isso. Que a gente goste é discutível. Uma coisa é que veja, outra é que goste. Criou-se outro público também, o que se faz é estabelecer uma espécie de miséria simbólica e emotiva e emocional para estas pessoas, porque as estão rebaixando com isso... Se há milhões de pessoas vendo, o programa é perfeito, o sistema funciona, produz efeitos imediatos, mas não permite ver a complexidade do que significa o sujeito. Para saber o que ele sente, creio que ele é que tem que dizer, é muito difícil dizer de fora, o próprio pesquisador deve constituir-se em sujeito-mostra, e com sua própria percepção tentar combinar sua própria subjetividade e tentar estendê-la, partindo de sua própria experiência sobre a imagem, o que ela diz: examinando o que vê na imagem, pode perguntar a outro se a vê daquele jeito e pode ensinar a outro o que viu daquela maneira, porque descobriu coisas que outra pessoa não descobriu. É difícil fundamentar uma pesquisa assim, mas creio que é possível, é um fator de complexidade também, pelo fato de que podem haver diferentes concepções. Quando alguém examina uma imagem e extrai conclusões pessoais da imagem, isso está na imagem, não se trata de invenção, há algo ali que provocou este pensamento, há o gérmen daquilo, pois se em uma imagem aparece um rio e não há um rio, está se inventando algo, mas se te dá uma ideia de fluidez etc. e tal que é metafórica, aí sim, o rio está ali, a imagem te induziu a pensar aquilo. Devemos ser menos mecanicistas, empiristas, ingênuos neste sentido de pensar só o que se vê estritamente é o que há. Porque o que vê acarreta muitas coisas, te leva a outros universos, e em você, ver uma nuvem, um edifício, desperta ideias em um e em outro não, para você aquilo tem um significado. A partir desse momento você pode ver se o que isso produziu em você pode ser algo geral ou não, há que estar aberto a essa questão, e saber manejar isso. O ensaio é algo fundamental, pois lhe permite elaborar essa questão, ele implica você – a subjetividade –, mas, às vezes, está usando determinados métodos e o melhor é usar vários e não um só, e como não é uma impressão única, não se diz “isso é assim”, mas vai se elaborando e fazendo conexões, pouco a pouco vai se aproximando de uma objetividade, e uma subjetividade expressada em cento e tantas páginas começa a ser contundente. Claro, não se pode afirmar da forma como todos esperamos que se afirme: “Isso é assim”. Existe esta dificuldade, mas creio que este é o caminho. Normalmente, as teses tendem a ser muito concretas, com uma metodologia concreta, tende-se a eliminar o que incomoda, o que se está realmente buscando, as hipóteses que se tem. Há uma tendência, eticamente que ninguém aceita, mas é realidade, que é o seguinte: o que não funciona se deixa de lado. Um filósofo da Ciência que falou dos paradigmas pela primeira vez disse que num determinado momento toda a Ciência gira em torno de pressupostos hegemônicos – a certas distâncias, uns estão mais no núcleo, outros mais à parte, não há outras perspectivas. Pouco a pouco, nas margens, vão se produzindo tensões, até que chega um momento em que ocorre um salto qualitativo e se passa para outro lado, e desaparece o paradigma anterior e se estabelece outro, isso se vê bem com o paradigma Newtoniano e Einsteiniano. Einsten produz um salto qualitativo em relação a outro âmbito, até então, toda a Ciência girava em torno dos conceitos de Newton, mas pouco a pouco não funcionavam, havia certos fenômenos que não se podiam ser detectados por isso, e cada vez eram mais complexos. Havia que se buscar outras coisas, pesquisadores buscavam outras alternativas mas, claro, se moviam por margens, e mais difícil, não tem as compensações quando se está empregando o que é hegemônico. Einstein deu a possibilidade de abrir o mundo até outro âmbito, da relatividade etc., então se podia expressar fenômenos que antes não se expressavam. Neste sentido, creio que se vê esta questão: que os que estão atuando no centro são muito restritos com estas metodologias e, portanto, estão deixando de lado aquilo que lhes molesta. Os que estão na margem estão tentando enxergar.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Jun 2015
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