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Transplante renal pediátrico e risco cardiometabólico: um estudo de coorte

Resumo

Introdução:

Sabe-se que pacientes com doença renal crônica (DRC) têm maior risco cardiovascular, mas há poucos dados sobre risco de receptores de transplante renal pediátrico. Visamos avaliar o impacto do sobrepeso pré/pós-transplante na função do aloenxerto e caracterizar a evolução de diversas variáveis de risco cardiovascular com o tempo e seus impactos.

Métodos:

Realizou-se análise retrospectiva dos registros de 23 crianças/adolescentes acompanhados em um centro terciário após transplante renal. Foram analisados dados sobre antropometria e variáveis cardiometabólicas antes do transplante, seis e 12 meses após transplante, e na última consulta de acompanhamento. O impacto das variáveis na função do aloenxerto (taxa de filtração glomerular (TFG)) foi estimado pela fórmula de Schwartz revisada e baseada na creatinina (TFGe-Cr), e avaliado usando testes não paramétricos. Resultados: Os 23 pacientes incluídos no estudo tinham idade média de 6,3 (4,4-10,1) anos. Valores do escore Z das pressões arteriaissistólica e diastólica diminuíram significativamente entre grupos de índice de massa corporal [1,2 (-0,2 - 2,3) vs. 0,3 (-0,4 - 0,6), p=0,027 e 0,8 (-0,4 - 1,3) vs. 0,1 (-0,6 - 0,7), p=0,028, pré-transplante e na avaliação final, respectivamente]. Durante acompanhamento, valores da TFG diminuíram [TFG-Cr: 68,9 (57,7-76,8) vs. 58,6 (48,9-72,9), p=0,033 aos 6 meses e ao final, respectivamente]. Encontramos correlações negativas significativas entre triglicerídeos, TFGe baseada na cistatina C (ρ=-0,47, p=0,028) e TFGe-Cr-Cis (ρ=-0,45, p=0,043) ao final do estudo.

Conclusão:

Nosso estudo mostrou alto número de crianças com sobrepeso submetidas a transplante renal. Verificou-se correlação negativa entre triglicerídeos e TFG, destacando a importância de controlar o estado nutricional e da avaliação regular dos lipídios sanguíneos após transplante renal.

Descritores:
Aloenxerto; Fatores de Risco Cardiometabólico; Dislipidemias; Insuficiência renal; Obesidade Pediátrica; Transplante de Rim

Abstract

Introduction:

Patients with chronic kidney disease (CKD) are known to have increased cardiovascular risk but there are few data on the risk of pediatric kidney transplant recipients. We aimed to assess the impact of pre- and post-transplant overweight on allograft function and to characterize the evolution of several cardiovascular risk variables over time and their impact.

Methods:

A retrospective analysis of the records of 23 children/adolescents followed at a tertiary center after kidney transplant was conducted. Data on anthropometry and cardiometabolic variables were analyzed before transplant, six and 12 months after the transplant, and at the last follow-up visit. The impact of the variables on allograft function (glomerular filtration rate (GFR)) was estimated by creatinine-based revised Schwartz formula (Cr-eGFR) and was evaluated using nonparametric tests. Results: The 23 patients included in the study had a median age of 6.3 (4.4-10.1) years. Both systolic and diastolic BP z-score values significantly decreased between BMI groups [1.2 (-0.2 - 2.3) vs. 0.3 (-0.4 - 0.6), p=0.027 and 0.8 (-0.4 - 1.3) vs. 0.1 (-0.6 - 0.7), p=0.028, pre-transplant and at the final evaluation, respectively]. During follow-up, GFR values decreased (Cr-GFR: 68.9 (57.7-76.8) vs. 58.6 (48.9-72.9), p=0.033 at 6-months and at the end, respectively). Significant negative correlations between triglycerides and cystatin C-based eGFR (ρ=-0.47, p=0.028) and Cr-Cys-eGFR (ρ=-0.45, p=0.043) at the end of the study were found.

Conclusion:

Our study showed a high number of overweight children undergoing kidney transplant. A negative correlation between triglycerides and GFR was found, which highlights the importance of managing nutritional status and regular blood lipids evaluation after kidney transplant.

Keywords:
Allograft; Cardiometabolic Risk Factors; Dyslipidemias; Renal Insufficiency; Pediatric Obesity; Kidney Transplantation

Introdução

O transplante renal tornou-se o tratamento de escolha tanto em adultos como em crianças com insuficiência renal. Em pacientes pediátricos, o transplante renal precoce foi difícil, mas diversos avanços melhoraram muito os desfechos nesta faixa etária11 Hogan J, Audry B, Harambat J, Dunand O, Garnier A, Salomon R, et al. Are there good reasons for inequalities in access to renal transplantation in children? Nephrol Dial Transplant. 2015 Dec;30(12):2080-7.. Melhor qualidade de vida, crescimento otimizado e maior sobrevida do paciente e do enxerto estão entre as vantagens do transplante renal em comparação com outras terapias renais substitutivas22 Saeed B. Pediatric renal transplantation. Int J Organ Transplant Med. 2012;3(2):62-73..

Sabe-se que pacientes com doença renal crônica (DRC) apresentam maior risco de comorbidades cardiovasculares (CV) e óbito prematuro ao longo da vida adulta, supostamente devido ao início pediátrico da doença renal em estágio terminal (DRET)33 Dobrowolski LC, Van Huis M, Van Der Lee JH, Sengers HP, Liliën MR, Cransberg K, et al. Epidemiology and management of hypertension in paediatric and young adult kidney transplant recipients in the Netherlands. Nephrol Dial Transplant. 2016 Nov;31(11):1947-56.. Acredita-se que o maior risco em pacientes com DRC esteja relacionado a diversos fatores de risco tradicionais simultâneos, tais como obesidade, hipertensão, dislipidemia e sedentarismo. Além disso, outros fatores diretamente associados ao status da DRC, a saber, estresse hemodinâmico ou metabólico, inflamação, aumento da atividade renina-angiotensina-aldosterona e disfunção endotelial, são, todos juntos, provavelmente intensificados pelos regimes de imunossupressão utilizados no contexto particular de pacientes receptores de transplante44 Val ML, Menezes FS, Massaoka HT, Scavarda VT, Czapkowski A, Leite HP, et al. Cardiovascular risk in children and adolescents with end stage renal disease. Clinics. 2019;74(11):e859.,55 Hooper DK, Mitsnefes M. A systems-based approach to managing blood pressure in children following kidney transplantation. Pediatr Nephrol. 2016 Oct;31(10):1593-604.. Assim, mesmo após o transplante bem-sucedido, há um risco maior de doença CV. Além do impacto de fatores relacionados ao doador e da terapia de imunossupressão, o ganho de peso excessivo pré e pós-transplante, juntamente com comorbidades associadas à obesidade, tais como hipertensão, dislipidemia e resistência à insulina, são cada vez mais reconhecidos por impactar significativamente a função do enxerto renal e a morbidade desses pacientes. Além disso, a obesidade também parece atuar como um fator de risco para o declínio mais rápido da função do aloenxerto, independentemente da presença de outras comorbidades66 Mitsnefes MM, Khoury P, McEnery PT. Body mass index and allograft function in pediatric renal transplantation. Pediatr Nephrol. 2002 Jul;17(7):535-9.,77 Johnson CP, Gallagher-Lepak S, Zhu YR, Porth C, Kelber S, Roza AM, et al. Factors influencing weight gain after renal transplantation. Transplantation. 1993 Oct;56(4):822-7..

Muitos pacientes já apresentam pressão arterial (PA) elevada antes do transplante, mas uma proporção ainda maior desenvolverá hipertensão posteriormente, durante o acompanhamento88 Mallamaci F, D’Arrigo G, Tripepi R, Leonardis D, Porto G, Testa A, et al. Office, standardizedand 24-h ambulatory blood pressure and renal function loss in renal transplant patients. J Hypertens. 2018 Jan;36(1):119-25.

9 Chan W, Bosch JA, Jones D, McTernan PG, Phillips AC, Borrows R. Obesity in kidney transplantation. J Ren Nutr. 2014 Jan;24(1):1-12.
-1010 John EG, Domingo LT. Hypertension and obesity after pediatric kidney transplantation: Management based on pathophysiology: a mini review. Int J Prev Med. 2014 Mar;5(Suppl 1):S25-S38.. Mesmo na ausência de excesso de peso, sabe-se que os pacientes transplantados têm uma prevalência maior tanto de hipertensão mascarada quanto de hipertensão noturna, com perda ou inversão do padrão dipper, estimando-se que um terço dos pacientes não seja diagnosticado devido às medições de PA realizadas apenas no consultório, em vez da monitorização ambulatorial da PA55 Hooper DK, Mitsnefes M. A systems-based approach to managing blood pressure in children following kidney transplantation. Pediatr Nephrol. 2016 Oct;31(10):1593-604.,1111 Hamdani G, Nehus EJ, Hooper DK, Mitsnefes MM. Masked hypertension and allograft function in pediatric and young adults kidney transplant recipients. Pediatr Transplant. 2016 Dec;20(8):1026-31.,1212 Charnaya O, Moudgil A. Hypertension in the pediatric kidney transplant recipient. Front Pediatr. 2017;5(May):1-10.. Além disso, uma associação positiva entre o índice de massa corporal (IMC) e a pressão arterial sistólica (PAS) foi relatada como permanecendo evidente anos após o transplante66 Mitsnefes MM, Khoury P, McEnery PT. Body mass index and allograft function in pediatric renal transplantation. Pediatr Nephrol. 2002 Jul;17(7):535-9.,1313 Silverstein DM, LeBlanc P, Hempe JM, Ramcharan T, Boudreaux JP. Tracking of blood pressure and its impact on graft function in pediatric renal transplant patients. Pediatr Transplant. 2007 Dec;11(8):860-7., com a obesidade contribuindo para probabilidades ainda maiores de hipertensão mascarada e noturna após o transplante renal55 Hooper DK, Mitsnefes M. A systems-based approach to managing blood pressure in children following kidney transplantation. Pediatr Nephrol. 2016 Oct;31(10):1593-604.,1414 Gimpel C, Wühl E, Arbeiter K, Drozdz D, Trivelli A, Charbit M, et al. Superior consistency of ambulatory blood pressure monitoring in children: implications for clinical trials. J Hypertens. 2009 Aug;27(8):1568-74.,1515 Krmar RT, Ferraris JR. Clinical value of ambulatory blood pressure in pediatric patients after renal transplantation. Pediatr Nephrol. 2018 Aug;33(8):1327-36..

Em adultos, a dislipidemia e a resistência à insulina são fatores de risco bem reconhecidos para o declínio da função renal, que estão associados principalmente ao ganho de peso e ao uso de imunossupressores após transplante renal1616 Sgambat K, Clauss S, Moudgil A. Cardiovascular effects of metabolic syndrome after transplantation: convergence of obesity and transplant-related factors. Clin Kidney J. 2018 Feb;11(1):136-46.. Estudos em adultos mostraram relações inversas entre a taxa de filtração glomerular (TFG) e triglicerídeos séricos e o colesterol total e também que, aos 12 meses pós-transplante, o colesterol total foi um fator de risco independente para mortalidade1717 Devine PA, Courtney AE, Maxwell AP. Cardiovascular risk in renal transplant recipients. J Nephrol. 2019 Jun;32(3):389-99.

18 Khurana M, Silverstein DM. Etiology and management of dyslipidemia in children with chronic kidney disease and end-stage renal disease. Pediatr Nephrol. 2015 Dec;30(12):2073-84.
-1919 Bock ME, Wall L, Dobrec C, Chandran M, Goebel J. Management of dyslipidemia in pediatric renal transplant recipients. Pediatr Nephrol. 2020;36(1):51-63., mas há poucos dados sobre a população pediátrica após transplante renal.

No presente estudo, nosso objetivo foi avaliar o impacto do estado de sobrepeso pré e pós-transplante na função do aloenxerto em todos os pacientes pediátricos de transplante renal acompanhados em um centro terciário. Também visamos caracterizar as variáveis de risco CV, como PA, lipídios no sangue, e resistência à insulina, e sua evolução ao longo do tempo após o transplante renal, e avaliar seu impacto na função do aloenxerto.

Material e Métodos

Desenho e amostra do estudo

No presente estudo, foram avaliados retrospectivamente os dados de crianças e adolescentes, com idade igual ou inferior a 18 anos no momento da coleta de dados (Fevereiro de 2020), que haviam sido submetidos a um transplante renal e tiveram seu acompanhamento regular na Unidade de Nefrologia Pediátrica, no Centro Materno-Infantil do Norte (CMIN), Centro Hospitalar Universitário do Porto (CHUPorto). Duas crianças foram excluídas por não terem dados antropométricos registrados antes do transplante renal. Por fim, foram analisados dados de 23 crianças; os transplantes renais foram realizados entre 2004 e 2019.

Coleta de dados e definição de variáveis

Foi realizada uma análise retrospectiva dos registros clínicos de todos os pacientes incluídos. Foram registrados dados sobre características sociodemográficas (sexo, raça e idade no transplante renal e na última consulta de acompanhamento até Fevereiro de 2020). Foram também registrados dados sobre características clínicas relacionadas a DRC prévia (etiologia, modalidade de terapia renal substitutiva) e transplante renal (tipo de doador, tempo de sobrevida do aloenxerto, função imediata e tardia do aloenxerto, agentes terapêuticos administrados - imunossupressores e outros medicamentos).

Os dados de antropometria (altura, peso) e de variáveis cardiometabólicas (PA de consultório, glicemia de jejum, triglicerídeos e colesterol total, lipoproteína de baixa densidade (LDL) e lipoproteína de alta densidade (HDL)) foram registrados imediatamente antes do transplante (pré-transplante), aproximadamente 6 e 12 meses após o transplante, e na última consulta de acompanhamento. A altura e o peso foram utilizados para o cálculo do índice de massa corporal (IMC) e os valores de IMC por idade foram classificados de acordo com os dados de referência de crescimento da Organização Mundial da Saúde para o escore z do IMC nas seguintes categorias: sem sobrepeso (-2DP a +1 DP) e sobrepeso (> +1 DP, incluindo também pacientes obesos com > +2 DP)2020 Onis M, Onyango AW, Borghi E, Siyam A, Nishida C, Siekmann J. Development of a WHO growth reference for school-aged children and adolescents. Bull World Health Organ. 2007 Sep;85(9):660-7. A insulina em jejum foi avaliada, e a resistência à insulina foi determinada na última consulta de acompanhamento usando apenas o modelo de avaliação da homeostase de resistência à insulina (HOMA-IR).

As determinações de PA de consultório foram avaliadas com dispositivos oscilométricos automatizados validados (Dinamap modelo Pro 300 series, Critikon®) com um manguito de tamanho adequado no braço direito. Quando disponível, foi utilizada para análise a média da segunda e terceira medições (com um intervalo de 5 minutos entre elas) em cada ocasião. A hipertensão e a PA elevada foram definidas de acordo com as diretrizes da Academia Americana de Pediatria de 201721. A presença de PA elevada foi considerada quando os pacientes apresentavam ou PA elevada ou hipertensão.

Foram coletadas análises de sangue venoso em jejum noturno realizadas no início, aproximadamente 6 e 12 meses após o transplante renal e na última consulta de acompanhamento (até Fevereiro de 2020). Foram analisados dados sobre hemoglobina, creatinina sérica, ureia, cistatina C (Cis), glicose, insulina, colesterol total, colesterol HDL, colesterol LDL e triglicerídeos, sempre que disponíveis. A creatinina sérica foi analisada utilizando um calibrador para sistema automatizado (Roche Diagnostics) e a Cis sérica foi medida por meio de um ensaio nefelométrico aprimorado por partículas (DADE - Behring, Siemens Company, Formato Europeu)2222 Fonseca I, Oliveira JC, Almeida M, Cruz M, Malho A, Martins LS, et al. Neutrophil gelatinase-associated lipocalin in kidney transplantation is an early marker of graft dysfunction and is associated with one-year renal function. J Transplant. 2013;2013:650123..

Para estimar a TFG em mL/min/1,73 m2, foram utilizadas as seguintes fórmulas2323 Souza V, Cochat P, Rabilloud M, Selistre L, Wagner M, Hadj-Aissa A, et al. Accuracy of different equations in estimating GFR in pediatric kidney transplant recipients. Clin J Am Soc Nephrol. 2015 Mar;10(3):463-70.: fórmula baseada na creatinina - fórmula de Schwartz revisada (TFGe-Cr) = k x (altura (cm)/creatinina sérica (mg/dL), usando uma constante k de 0,413); fórmula baseada na cistatina C - fórmula de Filler (TFGe-Cis) = Log (TFG) = 1,962 + [1,123 × log (1/cistatina C (mg/L)], e fórmula combinada de creatinina e cistatina C - fórmula de Zappitelli combinada (TFGe-Cr-Cis) = [(507,76 × 0,003e×altura(cm))/(cistatina C (mg/L)0,635 × creatinina sérica (mg/dL)0,547) x 1,165].

Ética

O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética do Centro Hospitalar Universitário do Porto e está em conformidade com a Declaração de Helsinque. Foi obtido o consentimento informado dos pais das crianças e o consentimento verbal das crianças ou adolescentes para a coleta de informações e amostras biológicas.

Análise estatística

A análise estatística foi realizada utilizando o IBM® SPSS® Statistics 26.0. As variáveis contínuas são descritas como mediana e foram utilizados os percentis 25 e 75 e testes não paramétricos, uma vez que os dados apresentaram uma distribuição assimétrica. As diferenças nas variáveis contínuas independentes entre grupos foram avaliadas com o teste de Mann-Whitney e as variáveis pareadas foram avaliadas com o teste de Wilcoxon. As diferenças nas variáveis categóricas foram avaliadas com o teste Qui-quadrado. Associações bivariadas entre variáveis contínuas foram avaliadas por correlações de Spearman. Todos os valores de p foram bilaterais e considerados estatisticamente significativos se <0,05.

Resultados

As 23 crianças e adolescentes incluídos no estudo apresentavam uma idade mediana (25º-75º percentil, P25-P75) de 6,3 (4,4-10,1) anos no transplante renal e 17 (74%) eram do sexo masculino. As características basais dos receptores de transplante renal pediátrico de acordo com o status do IMC pré-transplante, sem sobrepeso (n=15, 65%) e com sobrepeso (n=8, 35%), são mostradas na Tabela 1. A maioria dos pacientes (n=14, 60%) apresentou uma CAKUT como a causa da DRET. Apenas um paciente foi submetido a um transplante preemptivo; 59% (13) estavam em diálise peritoneal, 14% (3) em hemodiálise e 27% (6) em ambas as terapias antes do transplante renal por uma mediana de tempo (P25-P75) de 19 (7-51) meses antes do transplante renal. Os participantes apresentaram uma TFGe-Cr mediana (P25-P75) de 68,9 (57,7-76,8) mL/min/1,73 m2 aos 6 meses pós-transplante. Todos os receptores de transplante foram inicialmente mantidos em terapia de imunossupressão padrão com tacrolimus [dose mediana de 6,5 (5,4-9,6) mg/dia], micofenolato de mofetila [dose mediana de 600,0 (370,0-950,0) mg/dia], e esteroides [dose mediana de 15,0 (10,0-15,0) mg/dia]. No final do estudo, a terapia de imunossupressão incluiu para todos os pacientes uma dose mediana menor de corticosteroides (2,5 mg/dia) e tacrolimus 5,0 (4,4-6,0) mg/dia.

Tabela 1
Características basais dos receptores de transplante renal pediátrico por classes de índice de massa corporal pré-transplante

Na avaliação pré-transplante, a mediana (P25-P75) do IMC e do escore z do IMC no grupo sobrepeso foram de 15,8 (15,0-16,9) e 1,4 (1,2-2,3), respectivamente. Os pacientes do grupo sobrepeso tiveram um tempo médio menor de acompanhamento após o transplante, em comparação com os pacientes sem sobrepeso [3,2 (2,7-4,3) vs. 8,2 (7,4-10,9), p<0,001]. Com relação aos dados da PA de consultório, não foram encontradas diferenças entre os grupos de IMC quanto à PAS, PA diastólica (PAD) e respectivos escores z. Nove (39%) pacientes apresentaram PA elevada e estavam em tratamento com medicamentos anti-hipertensivos antes do transplante renal (Tabela 1).

A distribuição de pacientes por classes de IMC durante o período de estudo é apresentada na Figura 1, pela presença de PA elevada é mostrada na Figura 2, e a variação dos parâmetros cardiometabólicos é relatada na Tabela 2. A mediana do IMC foi maior no final do estudo em comparação com a avaliação de 6 meses [20,6 (18,0- 24,4) vs. 18,0 (15,5-20,9), p=0,003], mas os valores do escore z do IMC foram significativamente menores [0,3 (-0,8-1,3) vs. 0,8 (-0,1-1,6), p=0,040], assim como a prevalência de crianças classificadas como sobrepeso (43,5 vs. 52,2%, p=0,019). Um percentual maior de pacientes estava com sobrepeso no final do estudo em relação ao período pré-transplante, mas a diferença não foi significativa (35 vs. 43,5%, p=0,179); os valores medianos do escore z do IMC foram similares [0,4 (-0,3-1,3) vs. 0,3 (-0,8-1,3), p=0,651]. Os valores medianos da PAS e da PAD foram significativamente mais altos ao final do estudo em comparação com os valores da avaliação de 6 meses, mas as diferenças nos valores do escore z da PAS e da PAD e o número de pacientes com PA elevada não foram diferentes. Um percentual menor de pacientes apresentou PA elevada no final do estudo em comparação ao período pré-transplante, mas a diferença não foi significativa (52 vs. 13%, p=0,075) e os valores do escore z da PAS e PAD foram significativamente menores [1,2 (-0,2-2,3) vs. 0,3 (-0,4-0,6), p=0,027 e 0,8 (-0,4-1,3) vs. 0,1 (-0,6-0,7), p=0,028; para PAS e PAD, pré-transplante e ao final do estudo, respectivamente]. Os valores de colesterol total e triglicerídeos foram significativamente menores ao final do estudo em comparação com a avaliação de 6 meses após o transplante [163,0 (139,8-187,5) vs. 149,0 (136,0-170,0), p=0,008 e 111,0 (77,3-139,5) vs. 86,0 (72,0-125,0), p=0,035, respectivamente]. Não foram encontradas diferenças nos níveis de colesterol LDL e HDL ou nos níveis de glicemia de jejum. A insulina de jejum e o HOMA-IR só estiveram disponíveis para a última consulta de acompanhamento.

Tabela 2
Variação dos parâmetros cardiometabólicos aos 6 meses, 12 meses e na última consulta de acompanhamento após o transplante renal

Figura 1
Distribuição de pacientes por classes de índice de massa corporal pré-transplante e aos 6 meses, 12 meses e na última consulta de acompanhamento após o transplante renal.

Figura 2
Distribuição de pacientes pela presença de pressão arterial elevada pré-transplante e aos 6 meses, 12 meses e na última consulta de acompanhamento após o transplante renal.

Durante o período de acompanhamento, a creatinina aumentou e os valores da TFGe-Cr diminuíram significativamente [68,9 (57,7-76,8) vs. 58,6 (48,9-72,9), p=0,033, aos 6 meses e ao final do estudo, respectivamente]. A TFGe-Cr-Cis também diminuiu significativamente durante o período de acompanhamento (66,1 (57,1-71,9) vs. 47,6 (42,8-64,3), p=0,015; aos 6 meses e ao final do estudo, respectivamente) (Tabela 3). A comparação dos valores medianos reais da TFGe (TFGe-Cr, TFGe-Cis e TFGe-Cr-Cis) avaliados na última consulta de acompanhamento entre as classes de IMC aos 6 meses, 12 meses e ao final do estudo é apresentada na Figura 3. Não foram encontradas diferenças entre os grupos em nenhuma das estimativas de TFG consideradas.

Tabela 3
Variação dos parâmetros da função renal aos 6 meses, 12 meses e na última consulta de acompanhamento após o transplante renal

Figura 3
Taxa de filtração glomerular estimada mediana na última consulta de acompanhamento de acordo com as classes de índice de massa corporal aos 6 meses, 12 meses e na última consulta de acompanhamento após o transplante renal.

A correlação de Spearman entre a TFGe na última consulta de acompanhamento e as variáveis cardiometabólicas durante o acompanhamento é mostrada na Tabela 4. Uma correlação marginalmente significativa foi encontrada entre a PAS avaliada 6 meses após o transplante e a TFGe-Cis (ρ=0,42; p=0,048) e entre a PAS avaliada 12 meses após o transplante e a TFGe-Cr (ρ=0,46; p=0,046). Foram encontradas correlações negativas significativas entre triglicerídeos no final do estudo e ambas TFGe-Cis (ρ=-0,47; p=0,028) e TFGe-Cr-Cis (ρ=-0,45; p=0,043) (Tabela 4). Nenhuma outra correlação significativa foi encontrada entre a TFGe e as variáveis cardiometabólicas avaliadas.

Tabela 4
Correlação de spearman entre a filtração glomerular estimada na última consulta de acompanhamento após transplante renal e variáveis cardiometabólicas durante o acompanhamento

Discussão e Conclusão

No presente estudo, descrevemos o impacto do status de sobrepeso pré e pós-transplante na função do aloenxerto de pacientes pediátricos após transplante renal. Encontramos um percentual muito elevado de crianças/adolescentes acima do peso antes do transplante (cerca de 35%) e esse percentual foi de aproximadamente 43,5% ao final do estudo. Embora tenha sido observado um declínio nos valores da TFGe ao longo do tempo, não foram encontradas diferenças significativas nos valores medianos da TFGe entre o grupo sem sobrepeso e o grupo com sobrepeso aos 6 meses, 12 meses, ou ao final do estudo. Com relação às demais variáveis cardiometabólicas analisadas, constatamos que os valores do escore z da PA foram significativamente menores no final do estudo, em comparação com a avaliação pré-transplante. Os triglicerídeos foram significativamente mais baixos ao final do estudo e correlacionados negativamente com a TFGe-Cis e a TFGe-Cr-Cis nesse mesmo ponto.

O excesso de peso é um problema comum após o transplante renal, o qual pode ser explicado por diversos fatores, incluindo aumento do apetite e melhora da sensação gustativa associados à resolução da uremia e ao uso de esteroides, uma redução das restrições dietéticas devido à melhora da função renal, e um estilo de vida sedentário e má aptidão física1616 Sgambat K, Clauss S, Moudgil A. Cardiovascular effects of metabolic syndrome after transplantation: convergence of obesity and transplant-related factors. Clin Kidney J. 2018 Feb;11(1):136-46.. Uma alta porcentagem de crianças (35%) estava acima do peso antes do transplante, e este número foi ainda maior ao final do período de acompanhamento, embora não significativamente. A mediana do escore z do IMC permaneceu estável durante o período de acompanhamento, com um discreto aumento na avaliação de 6 meses. A prevalência de sobrepeso/obesidade encontrada em nosso estudo foi ligeiramente maior do que a relatada em alguns estudos pediátricos anteriores2424 Winnicki E, Dharmar M, Tancredi DJ, Nguyen S, Butani L. Effect of BMI on allograft function and survival in pediatric renal transplant recipients. Pediatr Nephrol. 2018;33(8):1429-35.,2525 Kaur K, Jun D, Grodstein E, Singer P, Castellanos L, Teperman L, et al. Outcomes of underweight, overweight, and obese pediatric kidney transplant recipients. Pediatr Nephrol. 2018;33(12):2353-62.. Esta diferença pode ser explicada pelo uso de diferentes valores de referência para a classificação do IMC. De fato, a definição da OMS para obesidade pediátrica normalmente gera as estimativas mais altas de sobrepeso e obesidade em comparação com outras definições2626 Shields M, Tremblay MS. Canadian childhood obesity estimates based on WHO, IOTF and CDC cut-points. Int J Pediatr Obes. 2010 May;5(3):265-73.. Devemos também considerar que a prevalência de sobrepeso e obesidade em crianças está entre as mais altas da Europa2727 Rito A, Graça P, Breda J. Trends in overweight and obesity in Portuguese primary school children: COSI study 2008-2013. In: XIII International Congress on Obesity (ICO), 1-4 May 2016, Vancouver, Canada. Vancouver: ICO; 2016., portanto espera-se que o estado nutricional da população pediátrica com DRC siga esta tendência, pelo menos em parte. Outro estudo de 2013 relatando a prevalência de sobrepeso/obesidade na população pediátrica europeia em terapia renal substitutiva relatou uma prevalência de sobrepeso/obesidade de mais de 30% em pacientes transplantados, especialmente naqueles com mais de 6 anos de idade2828 Bonthuis M, Van Stralen KJ, Verrina E, Groothoff JW, Melgar AA, Edefonti A, et al. Underweight, overweight and obesity in paediatric dialysis and renal transplant patients. Nephrol Dial Transplant. 2013 Nov;28(Suppl 4):iv195-iv204., o que é consistente com o que encontramos em nosso estudo.

A constatação de uma prevalência tão alta de sobrepeso entre pacientes pediátricos de transplante renal é particularmente preocupante, uma vez que tem sido cada vez mais reconhecido que o sobrepeso atua como um fator de risco independente para a diminuição da função e sobrevida do enxerto66 Mitsnefes MM, Khoury P, McEnery PT. Body mass index and allograft function in pediatric renal transplantation. Pediatr Nephrol. 2002 Jul;17(7):535-9.,2424 Winnicki E, Dharmar M, Tancredi DJ, Nguyen S, Butani L. Effect of BMI on allograft function and survival in pediatric renal transplant recipients. Pediatr Nephrol. 2018;33(8):1429-35.. Investigar esta associação foi nosso principal objetivo pois achados contraditórios são relatados na literatura, especialmente em crianças, para as quais as fortes evidências são escassas. Devido ao tamanho de nossa amostra, o poder estatístico pode não ter sido suficiente para encontrar uma diferença significativa entre pacientes sem sobrepeso e com sobrepeso nas estimativas de TFGe consideradas, independentemente da fórmula usada para estimar a TFG (TFGe-Cr, TFGe-Cis e TFGe-Cr-Cis) e em diferentes períodos de tempo. Outra explicação possível para isso pode ser que, em nosso estudo, os pacientes com sobrepeso tiveram um período de acompanhamento mais curto do que o do grupo sem sobrepeso. Isto pode indicar que o problema do ganho de peso excessivo em pacientes com DRET tem maior probabilidade de afetar aqueles pacientes que foram transplantados nos últimos anos. Estudos anteriores com amostras maiores constataram que os níveis de TFG foram significativamente menores entre pacientes com sobrepeso/obesidade29, enquanto outros autores não encontraram diferenças significativas em termos dos efeitos do sobrepeso na função renal66 Mitsnefes MM, Khoury P, McEnery PT. Body mass index and allograft function in pediatric renal transplantation. Pediatr Nephrol. 2002 Jul;17(7):535-9.,2929 Kasap B, Soylu A, Türkmen M, Kavukçu S, Bora S, Gülay H. Effect of obesity and overweight on cyclosporine blood levels and renal functions in renal adolescent recipients. Transplant Proc. 2006 Mar;38(2):463-5.,3030 Cameron C, Krmar RT. Single-center assessment of nutritional counseling in preventing excessive weight gain in pediatric renal transplants recipients. Pediatr Transplant. 2016 May;20(3):388-94., indicando a necessidade de mais estudos nesta faixa etária.

Sabe-se que a DRC está associada ao aumento do risco CV em pacientes pediátricos, que pode ser de 3 a 5 vezes maior em comparação com seus homólogos de idade. Acredita-se que o transplante renal reverta parte do risco CV nesses pacientes, mas os fatores cardiometabólicos continuam a desempenhar um papel importante no risco global de óbito nessa população3131 Gülhan B, Topaloǧlu R, Karabulut E, Özaltin F, Aki FT, Bilginer Y, et al. Post-transplant hypertension in pediatric kidney transplant recipients. Pediatr Nephrol. 2014 Jun;29(6):1075-80.,3232 Severova-Andreevska G, Danilovska I, Sikole A, Popov Z, Ivanovski N. Hypertension after kidney transplantation: clinical significance and therapeutical aspects. Open Access Maced J Med Sci. 2019 Apr;7(7):1241-5..

A mediana dos valores do escore z da PAS e da PAD em nosso estudo foi significativamente menor ao final do estudo em comparação ao pré-transplante ou mesmo à primeira avaliação após o transplante renal, apesar da diferença de 6 meses não ser estatisticamente significativa. A hipertensão é frequente entre os pacientes com DRET antes do transplante e geralmente persiste após o transplante, com uma prevalência relatada variando de 20% a quase 90%3131 Gülhan B, Topaloǧlu R, Karabulut E, Özaltin F, Aki FT, Bilginer Y, et al. Post-transplant hypertension in pediatric kidney transplant recipients. Pediatr Nephrol. 2014 Jun;29(6):1075-80.,3333 Hamdani G, Nehus EJ, Hanevold CD, Vansickle JS, Hooper DK, Blowey D, et al. Ambulatory blood pressure control in children and young adults after kidney transplantation. Am J Hypertens. 2017 Oct;30(10):1039-46.,3434 Krmar RT, Berg UB. Blood pressure control in hypertensive pediatric renal transplants: role of repeated ABPM following transplantation. Am J Hypertens. 2008 Oct;21(10):1093-9.. Em nosso estudo, a PA elevada, incluindo pacientes com PA elevada ou normal-elevada, esteve presente em mais da metade dos pacientes antes do transplante, mas em uma porcentagem significativamente menor de pacientes ao final do acompanhamento (cerca de 13%). Nossos resultados em relação aos valores de PA parecem indicar que foram feitos esforços efetivos para o controle da PA após o transplante renal. Isto é especialmente relevante considerando que um percentual maior de pacientes estava com sobrepeso ao final do estudo, o que poderia ter contribuído para valores de PA mais elevados.

A principal razão para o mau controle da PA após o transplante parece ser o uso inadequado de medicamentos anti-hipertensivos3535 Seeman T. Hypertension after renal transplantation. Pediatr Nephrol. 2009 May;24(5):959-72.. Sabe-se que diversos fatores estão envolvidos com a hipertensão pós-transplante, e estudos anteriores relataram uma associação negativa entre PA e TFG1212 Charnaya O, Moudgil A. Hypertension in the pediatric kidney transplant recipient. Front Pediatr. 2017;5(May):1-10.,1313 Silverstein DM, LeBlanc P, Hempe JM, Ramcharan T, Boudreaux JP. Tracking of blood pressure and its impact on graft function in pediatric renal transplant patients. Pediatr Transplant. 2007 Dec;11(8):860-7.. Em nossa amostra, encontramos uma correlação positiva marginalmente significativa entre PAS aos 6 meses e TFGe-Cr e entre PAS aos 12 meses e TFGe-Cr, o que contrasta com achados anteriores, e pode ser explicado pelo baixo número de crianças com PA elevada em nossa amostra1313 Silverstein DM, LeBlanc P, Hempe JM, Ramcharan T, Boudreaux JP. Tracking of blood pressure and its impact on graft function in pediatric renal transplant patients. Pediatr Transplant. 2007 Dec;11(8):860-7.. Não dispúnhamos de dados sobre a monitorização ambulatorial da PA que nos ajudassem a avaliar melhor a associação com a TFG, pois sabe-se que pacientes transplantados apresentam maior prevalência tanto de hipertensão mascarada quanto de hipertensão noturna, com perda ou inversão do padrão dipper, o que pode ter nos escapado na presente análise55 Hooper DK, Mitsnefes M. A systems-based approach to managing blood pressure in children following kidney transplantation. Pediatr Nephrol. 2016 Oct;31(10):1593-604.,1111 Hamdani G, Nehus EJ, Hooper DK, Mitsnefes MM. Masked hypertension and allograft function in pediatric and young adults kidney transplant recipients. Pediatr Transplant. 2016 Dec;20(8):1026-31.,1212 Charnaya O, Moudgil A. Hypertension in the pediatric kidney transplant recipient. Front Pediatr. 2017;5(May):1-10.. Os benefícios de utilizar a monitorização ambulatorial da pressão arterial como ferramenta de diagnóstico para complementar o estudo da hipertensão e consequentemente aumentar a sobrevida do enxerto já foram demonstrados em estudos anteriores1111 Hamdani G, Nehus EJ, Hooper DK, Mitsnefes MM. Masked hypertension and allograft function in pediatric and young adults kidney transplant recipients. Pediatr Transplant. 2016 Dec;20(8):1026-31.,1212 Charnaya O, Moudgil A. Hypertension in the pediatric kidney transplant recipient. Front Pediatr. 2017;5(May):1-10..

A associação entre DRC e dislipidemia é frequentemente relatada na literatura1616 Sgambat K, Clauss S, Moudgil A. Cardiovascular effects of metabolic syndrome after transplantation: convergence of obesity and transplant-related factors. Clin Kidney J. 2018 Feb;11(1):136-46.,1919 Bock ME, Wall L, Dobrec C, Chandran M, Goebel J. Management of dyslipidemia in pediatric renal transplant recipients. Pediatr Nephrol. 2020;36(1):51-63.. Após o transplante renal, acredita-se que a dislipidemia contribua para um declínio mais rápido da função do aloenxerto, sobretudo quando associada à proteinúria3636 Trevisan R, Dodesini AR, Lepore G. Lipids and renal disease. Am Soc Nephrol. 2006 Apr;17(4 Suppl 2):S145-S7.,3737 Tannock L, Feingold KR, Anawalt B, Boyce A, Chrousos G, Herder WW, et al. Dyslipidemia in chronic kidney disease. Dartmouth: MDText.com, Inc.; 2000.. Evidências sugerem que a concentração de colesterol total, 12 meses após o transplante renal, é um preditor independente de mortalidade1717 Devine PA, Courtney AE, Maxwell AP. Cardiovascular risk in renal transplant recipients. J Nephrol. 2019 Jun;32(3):389-99.. As diretrizes recomendam uma triagem precoce da dislipidemia após o transplante, que deve então ser repetida ao menos anualmente3838 Kidney Disease: Improving Global Outcomes (KDIGO) Transplant Work Group. KDIGO clinical practice guideline for the care of kidney transplant recipients. Am J Transplant. 2009 Nov;9(Suppl 3):S1-S155.,3939 Baker RJ, Mark PB, Patel RK, Stevens KK, Palmer N. Renal association clinical practice guideline in post-operative care in the kidney transplant recipient. BMC Nephrol. 2017 Jun;18(1):174.. Uma correlação negativa entre triglicerídeos e TFGe foi encontrada ao final do estudo, o que reforça a importância desta recomendação. Achados semelhantes foram relatados em um estudo prévio em pacientes pediátricos de transplante renal, sem associação significativa entre a TFGe e ambas as concentrações de colesterol total e LDL, mas com uma associação negativa com os níveis plasmáticos de triglicerídeos4040 Habbig S, Volland R, Krupka K, Querfeld U, Strologo LD, Noyan A, et al. Dyslipidemia after pediatric renal transplantation—the impact of immunosuppressive regimens. Pediatr Transplant. 2017 May;21(3):1-10.. Outros estudos anteriores não conseguiram encontrar uma associação entre a TFG e qualquer parâmetro lipídico após o transplante, mesmo quando ajustado para idade, status de IMC, ou doença renal primária4040 Habbig S, Volland R, Krupka K, Querfeld U, Strologo LD, Noyan A, et al. Dyslipidemia after pediatric renal transplantation—the impact of immunosuppressive regimens. Pediatr Transplant. 2017 May;21(3):1-10..

Nosso estudo teve diversas limitações. Embora tenha sido um desenho de estudo longitudinal prospectivo após o transplante, os dados foram obtidos a partir de registros médicos e analisados retrospectivamente. Além disso, foi um estudo de centro único e incluiu um número relativamente pequeno de pacientes. Não podíamos acessar dados de pacientes transplantados em idade pediátrica, mas com mais de 18 anos de idade e acompanhados em instalações para adultos no momento do estudo. Outra limitação importante foi que consideramos o final do acompanhamento como um marco temporal para diversas comparações, mas na verdade o tempo de acompanhamento após o transplante renal variou entre os pacientes e pode ter havido uma diferença entre as classes de IMC. Além disso, não tivemos acesso às medidas de circunferência da cintura durante o acompanhamento, impedindo assim a análise do impacto da obesidade abdominal nas associações estudadas. Outra limitação importante foi o fato de que a avaliação da PA foi baseada exclusivamente na PA de consultório, medida em um dispositivo oscilométrico automatizado, com dados sobre a monitorização ambulatorial da PA disponíveis apenas para cerca de metade dos pacientes, o que não foi relatado no presente estudo. A monitorização ambulatorial da PA teria nos fornecido informações mais completas, permitindo o diagnóstico de hipertensão mascarada e noturna e talvez para uma associação mais confiável com a função renal.

Apesar de todas as limitações, nosso estudo mostrou que um número elevado de crianças e adolescentes submetidos a transplante renal estão com sobrepeso ou são obesos. Considerando o impacto cada vez mais reconhecido deste fator de risco no declínio da função do aloenxerto, nossos resultados devem chamar a atenção para a importância de um melhor manejo do estado nutricional no grupo de alto risco de pacientes com DRET. Observamos um declínio da TFGe ao longo do tempo, mas não conseguimos encontrar diferenças na função renal entre os grupos de IMC provavelmente devido à falta de poder relacionada ao tamanho da amostra. Além disso, a associação negativa entre triglicerídeos e TFG também deve sensibilizar para a importância de avaliação e manejo regulares de lipídios no sangue após o transplante renal. Embora o número de estudos sobre transplante renal pediátrico tenha aumentado nos últimos anos, são necessários mais estudos para entender a melhor forma de manejo desses pacientes. Acreditamos que estudos de longo prazo, com amostras maiores e talvez multicêntricas, sejam necessários para avaliar melhor o efeito da obesidade e suas comorbidades associadas na função do aloenxerto renal em crianças.

Esperamos poder continuar a acompanhar esta amostra no futuro, acrescentando a monitorização ambulatorial da PA às suas visitas regulares de triagem para monitorar não apenas a evolução da função renal, mas também o impacto dos fatores de risco cardiometabólicos, que devem se tornar mais significativos à medida que o tempo avança.

Agradecimentos

Os autores agradecem a contribuição de todos os membros da equipe de pesquisa, pais e pacientes envolvidos neste estudo.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Fev 2022
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    21 Ago 2021
  • Aceito
    16 Dez 2021
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