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Parada cerebral, parada cardíaca e incertezas na definição de morte

EDITORIAIS

Parada cerebral, parada cardíaca e incertezas na definição de morte

Sam D. Shemie

MD. Division of Pediatric Critical Care. Medical Director, Extracorporeal Life Support Program, Montreal Children's Hospital, McGill University Health Centre, Montreal, Canada. The Bertram Loeb Chair in Organ and Tissue Donation, Faculty of Arts, University of Ottawa, Ottawa, Canada. Chair, Donation Committee, Canadian Council for Donation and Transplantation

Neste número da revista, Lago et al.1 descrevem as realidades existentes no que diz respeito à morte encefálica na América Latina, conforme avaliado retrospectivamente em sete unidades de tratamento intensivo pediátricas (UTIP) brasileiras, e apresentam alguns dados surpreendentes. Os investigadores documentam a grande variação geográfica no diagnóstico, a qual sugere diferenças na aplicação do exame clínico e não diferenças no perfil de casos atendidos (case mix). De forma semelhante às variabilidades dos critérios diagnósticos descritos em outros países2,3, não existe uma uniformidade no uso de exames complementares. No nordeste e sudeste do Brasil, o grande intervalo de tempo entre o diagnóstico da morte e a retirada do suporte vital merece destaque. Isso indica que muitos médicos têm receio de desligar os aparelhos que dão sustentação à "vida" após o diagnóstico de "morte" encefálica. A incidência extremamente baixa de doação de órgãos reflete o desconforto com assuntos relacionados à morte e com a utilização de órgãos humanos para transplante na sociedade brasileira, assim como entre os profissionais da área da saúde no Brasil.

Apesar da grande aceitação mundial dos critérios para morte encefálica, os achados conflitantes não se restringem apenas ao Brasil. A medicina e a sociedade continuam buscando um conceito de morte, especialmente em conseqüência dos avanços de sistemas complexos de suporte vital. Nossa habilidade de sustentar a falência de órgãos através da tecnologia e do transplante levanta questões importantes acerca de quando uma doença é irreversível, quando a continuidade do tratamento não é mais eficaz ou quando ocorre o óbito. Os benefícios de preservação da vida atinentes à doação de órgãos, como uma opção que surge após o estabelecimento da morte, requerem definições claras. O estudo de Lago et al.1 não responde se essas práticas relutantes refletem as crenças e percepções incertas dos clínicos brasileiros, ou simplesmente uma qualificação profissional precária.

Morte encefálica é um termo e um conceito que ainda gera controvérsias. Para os clínicos e para as famílias, pode ser difícil compreender a "morte" em um indivíduo cujos sinais vitais - batimentos cardíacos, calor da circulação e movimento dos pulmões – são mantidos por uma tecnologia de suporte vital. O conceito de morte encefálica em si vem sendo criticado como um construto social, criado para fins utilitários a fim de permitir o transplante4. Todos esses fatores levam à percepção lenta, como sugerido pelo estudo de Lago, de que a morte encefálica talvez seja um conceito errôneo. Se a morte encefálica não é considerada morte, então a retirada do suporte vital não é obrigatória e a doação de órgãos não é relevante.

Bem, o que significa estar "morto"? A morte é um evento, processo ou transição? A literatura médica não distingue claramente as diferentes formas como a "morte" pode ser definida (ex.: definição médica, legal, religiosa, espiritual, existencial, filosófica, sobrenatural ou mística). Os médicos intensivistas permanecem confusos5. Todavia, na Medicina e na lei, a distinção entre estar vivo e estar morto é bastante clara. A morte é o momento em que conseqüências concretas ocorrem, incluindo ausência de requisição legal para suprimento de reanimação ou tecnologias de suporte vital, perda de identidade pessoal e de direitos pessoais, potencial para doação de órgãos e autópsia, execução de testamento legal e bens, seguro de vida e despojamento do corpo através do sepultamento ou cremação.

As tecnologias de suporte e substituição de órgãos também nos ensinam sobre a mecânica da morte. Existem três mecanismos fisiológicos básicos: a) parada cardíaca primária resultando em parada circulatória b) parada respiratória primária, que causa uma parada cardíaca secundária através da hipoxemia, ou c) parada cerebral primária, que através da interrupção do controle das vias aéreas e impulso respiratório, causa uma parada respiratória secundária e então uma parada cardíaca. Independentemente do estado inicial da doença, todas as doenças críticas ameaçam a vida desta forma. A interrupção dessa seqüência através de várias formas de suporte vital é fundamental para a assistência na UTI. As tecnologias de suporte à vida são implementadas com o uso de vias aéreas artificiais, ventilação mecânica, suporte hemodinâmico com inotrópicos-vasopressores e terapias de reposição renal. O suporte avançado pode incluir sistemas extracorpóreos tais como oxigenação por membrana extracorpórea (ECMO) e corações artificiais (dispositivos de assistência ventricular tal como o coração de Berlim). O princípio por detrás de sua aplicação é manter a função vital, a fim de permitir que o tempo ou tratamento (médico ou cirúrgico) reverta o estado subjacente potencialmente fatal.

Embora o acesso à tecnologia varie de um país para outro, a medicina progrediu a tal ponto que todos os órgãos vitais (coração, pulmão, fígado, rim) podem ser mantidos por aparelhos ou substituídos através de transplante. A parada completa e irreversível do coração não é morte, contanto que a circulação de oxigênio no sangue seja mantida mecanicamente, com o uso de suporte extracorpóreo tal como máquina coração-pulmão artificial ou ECMO. A circulação pode ser mantida artificialmente e o coração com assistolia pode ser substituído através de transplante. O evento pode ser a parada cardíaca, mas a morte somente ocorre se a parada levar a uma perda concomitante de circulação.

O cérebro é o único órgão que não pode ser mantido através de tecnologia ou substituído através de transplante. Em todos os casos de dano cerebral grave, o atendimento na UTI não substituí nenhuma função do cérebro. A ventilação mecânica meramente interrompe a forma como a falência do cérebro leva à morte, e os tratamentos neuroprotetores limitam danos cerebrais secundários. Acreditava-se que a morte encefálica levava à parada cardíaca por causa da instabilidade hemodinâmica associada6. Sabe-se atualmente que qualquer grau de insuficiência cerebral, inclusive morte encefálica, pode ser mantido infinitamente através da ventilação mecânica e cuidados intensivos, conforme demonstrado numa série de caso de morte encefálica durante a gravidez com fetos levados a termo7.

A morte é determinada após a parada cardíaca pela perda da função clínica da atividade cardíaca e baseia-se na ausência de circulação. De forma semelhante à parada cardíaca, a morte encefálica é melhor compreendida como parada cerebral, baseada na ausência total das funções clínicas do cérebro. Isso é documentado pela perda de consciência, coma aperceptivo e perda de todos os reflexos do tronco cerebral, inclusive da capacidade de respirar. É a expressão clínica máxima de insuficiência cerebral irreversível e a função cerebral não pode piorar mais que isso. Muito embora a variabilidade de práticas regionais1 e internacionais2 esteja bem documentada, os critérios clínicos básicos são suficientemente coerentes. O correlato de imagem mais confiável da parada cardíaca é a ausência de fluxo sangüíneo cerebral, e isso é mais confiável que o eletroencefalograma8, sendo cada vez mais recomendado para crianças e adultos9.

Quando a parada cerebral ocorre na ausência de condições reversíveis ou de confusão, a morte do indivíduo é então determinada por critérios neurológicos. Essa determinação neurológica da morte é o processo e o procedimento para determinação da morte9. Uma vez diagnosticado que o indivíduo está morto do ponto de vista médico e legal, a opção de doação dos órgãos deve ser oferecida aos familiares e a tecnologia de suporte, interrompida. Jamais deve ser confundida com outras formas de dano cerebral grave, tais como estado vegetativo persistente, morte cortical ou anencefalia. O dano cerebral nessas condições pode ser catastrófico e irreversível, mas não é completo já que os sinais clínicos da função residual do tronco cerebral ainda persistem.

O progresso contínuo de tecnologias científicas força nossas comunidades a refletir sobre o significado e definição da morte. Paradoxalmente, em muitos países com programas de doação a partir de corações em assistolia, a morte encefálica é atualmente menos polêmica que a morte cardíaca. O conceito de irreversibilidade e os critérios diagnósticos vêm sendo questionados quanto à parada cardíaca tradicional e às definições da morte do ponto de vista circulatório10,11. O conceito de morte encefálica continua sendo visionário e mais válido hoje que em seus primórdios. A experiência das UTIP brasileiras, embora preocupante, reflete as práticas correntes e deveria ser vista como uma oportunidade para melhorias. É uma sugestão para que padrões nacionais sejam implementados na educação médica.

Referências

1. Lago PM, Piva J, Garcia PC, Troster E, Bousso A, Sarno MO, et al. Brain death: medical management in seven Brazilian pediatric intensive care units. J Pediatr (Rio J). 2007;83:133-40.

2. Wijdicks EF. Brain death worldwide: accepted fact but no global consensus in diagnostic criteria. Neurology. 2002;58:20-5.

3. Hornby K, Shemie SD, Teitelbaum J, Doig C. Variability in hospital-based brain death guidelines in Canada. Can J Anaesth. 2006;53:613-9.

4. Taylor RM. Reexamining the definition and criteria of death. Semin Neurol. 1997;17:265-70.

5. Joffe AR, Anton N. Brain death: understanding of the conceptual basis by pediatric intensivists in Canada. Arch Pediatr Adolesc Med. 2006;160:747-52.

6. Lagiewska B, Pacholczyk M, Szostek M, Walaszewski J, Rowinski W. Hemodynamic and metabolic disturbances observed in brain dead organ donors. Transplant Proc. 1996;28:165-6.

7. Powner DJ, Bernstein IM. Extended somatic support for pregnant women after brain death. Crit Care Med. 2003;31:1241-9.

8. Young GB, Shemie SD, Doig CJ, Teitelbaum J. Brief review: the role of ancillary tests in the neurological determination of death. Can J Anaesth. 2006;53:620-7.

9. Shemie SD, Doig C, Dickens B, Byrne P, Wheelock B, Rocker G, et al. Severe brain injury to neurological determination of death: Canadian forum recommendations. CMAJ. 2006;174:S1-13.

10. DeVita MA. The death watch: certifying death using cardiac criteria. Prog Transplant. 2001;11:58-66.

11. Bernat JL. Are organ donors after cardiac death really dead? J Clin Ethics. 2006;17:122-32.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Maio 2007
  • Data do Fascículo
    Abr 2007
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