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Valores anômalos e dados faltantes em estudos clínicos e experimentais

Resumo

Durante a análise dos dados de uma pesquisa científica, é habitual deparar-se com valores anômalos ou dados faltantes. Valores anômalos podem ser resultado de erros de registro, de digitação, de aferição instrumental, ou configurarem verdadeiros outliers. Nesta revisão, são discutidos conceitos, exemplos e formas de identificar e de lidar com tais contingências. No caso de dados faltantes, discutem-se técnicas de imputação dos valores para evitar a exclusão do sujeito da pesquisa, caso não seja possível recuperar a informação das fichas de registro ou reabordar o participante.

Palavras-chave:
análise de dados; base de dados; discrepância; imputação múltipla

Abstract

During analysis of scientific research data, it is customary to encounter anomalous values or missing data. Anomalous values can be the result of errors of recording, typing, measurement by instruments, or may be true outliers. This review discusses concepts, examples and methods for identifying and dealing with such contingencies. In the case of missing data, techniques for imputation of the values are discussed in, order to avoid exclusion of the research subject, if it is not possible to retrieve information from registration forms or to re-address the participant.

Keywords:
data analysis; database; outlier; multiple imputation

Antes de iniciar o processo de análise dos dados de uma pesquisa clínica ou biomédica, é imperioso avaliar cuidadosamente a existência de dados faltantes ou valores anômalos na amostra, pois eles são habituais, e a sua inobservância pode comprometer as conclusões do estudo ou seu poder inferencial11 Kwak SK, Kim JH. Statistical data preparation: management of missing values and outliers. Korean J Anesthesiol. 2017;70(4):407-11. http://dx.doi.org/10.4097/kjae.2017.70.4.407. PMid:28794835.
http://dx.doi.org/10.4097/kjae.2017.70.4...
. Valores anômalos podem ser resultado de erros de registro, de digitação, de aferição instrumental ou configurarem verdadeiros outliers22 Norman GR, Streiner DL. Biostatistics. The bare essentials. 4th ed. Shelton: People's Medical Publishing House; 2014..

À medida que a amostra e/ou o número de variáveis aumenta, cresce a chance de ocorrerem erros de digitação. Em estudos com amostras vultosas, utilizam-se inclusive artifícios como dupla digitação ou revisão amostral dos registros, para identificar (e prevenir) possíveis erros.

A Tabela 1 apresenta dados hipotéticos de uma pesquisa clínica em que ocorrem alguns padrões de valores anômalos, outliers e dados faltantes.

Tabela 1
Exemplo de registro de dados (hipotéticos) de uma pesquisa clínica.

A observação da sequência dos identificadores evidencia que o participante número 8 não foi incluído nos registros da Tabela 1, o que pode decorrer da exclusão protocolar ou de falha do digitador.

Na coluna da idade, há um participante com 555 anos, uma provável digitação múltipla de um algarismo (por exemplo, 55 versus 555 anos). Todavia, caso ocorresse troca de algarismos que resultasse em um valor coerente (como 23 versus 32 anos, ou 4 versus 44 anos), a identificação visual do erro seria muito dificultada.

Ainda sobre o registro da idade, há tendência dos sujeitos da pesquisa referirem sua idade arredondada para um valor abaixo do real (por exemplo, 40 em vez de 43 anos). A fim de minimizar esse tipo de viés, recomenda-se o registro do ano de nascimento, ou mesmo a data completa, sendo a idade calculada posteriormente na fase de análise dos dados. Nesse caso, deve-se ter atenção de não registrar a data ou ano atuais em vez da data ou ano de nascimento do participante (por exemplo, 2019 em vez de 1979).

O sexo do participante 17 foi registrado como “N”, uma codificação não utilizada para essa variável (M ou F). Visto que “N” é uma letra adjacente ao “M” no teclado, trata-se também de um padrão habitual de falha na digitação. Além disso, os sistemas usados para análise estatística podem diferenciar maiúsculas de minúsculas (por exemplo, “M” de “m”) e também a acentuação (por exemplo, “não” e “nao”). Tais contingências são prevenidas pela codificação numérica das respostas (por exemplo, Masculino = 1 e Feminino = 2; Sim = 1 e Não = 2).

Eventualmente, a percepção do erro depende da avaliação de mais variáveis, como ocorre no registro 16, em que um participante do sexo masculino refere três gestações. Da mesma forma, no registro 7, uma participante de apenas 18 anos refere seis gestações. Por fim, o participante 21 apresenta exatamente os mesmos registros que o participante 9 em todas as variáveis, sugerindo dupla inclusão no estudo.

Incongruências também devem ser verificadas diante de valores que apresentem comportamentos dependentes. No caso, a pressão arterial diastólica deve ser menor que a sistólica, o que não se observa nos registros 3 e 12, nos quais ocorreu inversão dos registros e duplicação do valor digitado, respectivamente.

Erros de aferição de diferentes instrumentos (por exemplo, esfigmomanômetros e balanças) induzem ao erro sistemático, muito difícil de ser identificado e corrigido. Quando tal erro se propaga homogeneamente na amostra (por exemplo, aferição de 10 mmHg a mais para todos os registros), não acarreta grande prejuízo na comparação interna dos grupos. Entretanto, quando se usam diferentes instrumentos com problemas de calibragem ou baixa reprodutibilidade, há aumento na variabilidade e perda da exatidão dos parâmetros. É fundamental a preocupação com a concordância dos instrumentos de coleta dos dados ou dos métodos laboratoriais, pois a correção desses vieses na fase analítica (por exemplo, transformação em valores de Z-score para os dados de cada instrumento) tem performance insatisfatória33 Miot HA. Agreement analysis in clinical and experimental trials. J Vasc Bras. 2016;15:89-92. http://dx.doi.org/10.1590/1677-5449.004216. PMid:29930571.
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Nesse ínterim, é conveniente comentar que algumas informações imbuídas de algum valor cultural podem ser falsamente reportadas pelos participantes, com a finalidade de aceitação, identificação social ou de julgamento moral. De uma maneira geral, peso corporal, uso de substâncias ilícitas e número de relacionamentos extraconjugais tendem a ser subestimados pelos sujeitos da pesquisa, enquanto a estatura, prática de sexo seguro e atitudes afirmativas (por exemplo, altruísmo, solidariedade ou bom senso) são reportados acima dos reais valores. Não há uma forma infalível de prevenir esse tipo de falso relato, tampouco a estatística pode corrigir tais vieses. Entretanto, os pesquisadores recomendam, além de medidas objetivas (por exemplo, medir o peso e a altura durante a entrevista, verificar o ano de nascimento em documento ou registro hospitalar), o uso de questões/perguntas confirmatórias que permitam verificar a integridade da informação (por exemplo, no início da pesquisa questionar o número de vezes por mês que usa substância ilícita e, ao final da entrevista, questionar o número de vezes por semana que usa substâncias, discriminando maconha, cocaína, ácido, etc.).

A exatidão dos registros é primordial para a qualidade do estudo e a validade das suas conclusões; dessa forma, o planejamento da pesquisa deve considerar esforços para minimizar esse tipo de situação.

Existem, ainda, valores que se distanciam muito do comportamento da amostra, os chamados outliers, que não se referem a erros de registro mas sim ao encontro probabilístico de valores extremos (para mais ou para menos) que realmente existem na população. No exemplo da Tabela 1, o participante 11 tem 93 anos, e o participante 15 apresenta níveis pressóricos discrepantes dos demais.

Em distribuições normais44 Miot HA. Assessing normality of data in clinical and experimental trials. J Vasc Bras. 2017;16:88-91. http://dx.doi.org/10.1590/1677-5449.041117. PMid:29930631.
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, valores outliers são definidos como os mais extremos que 1,5 desvio interquartílico abaixo do p25 ou acima do p75 de uma amostra (Figura 1), ou valores padronizados que ultrapassem três desvios padrão (para mais ou para menos) na amostra. Em distribuições não normais, análises de correlações ou análises multivariadas, a identificação de valores outliers é mais complexa, e ultrapassa o escopo desta revisão55 de Cheveigné A, Arzounian D. Robust detrending, rereferencing, outlier detection, and inpainting for multichannel data. Neuroimage. 2018;172:903-12. http://dx.doi.org/10.1016/j.neuroimage.2018.01.035. PMid:29448077.
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6 Penny KI, Jolliffe IT. Multivariate outlier detection applied to multiply imputed laboratory data. Stat Med. 1999;18:1879-95.
-77 Ramsay T, Elkum N. A comparison of four different methods for outlier detection in bioequivalence studies. J Biopharm Stat. 2005;15(1):43-52. http://dx.doi.org/10.1081/BIP-200040815. PMid:15702604.
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Figura 1
Histograma e diagrama box plot da variável idade apresentada na Tabela 1 (A e B) e após sua winsorização (C e D). Houve um valor outlier – a idade de 93 anos –, situado mais extremamente que 1,5 vezes o desvio interquartílico (25 anos) somado ao percentil 75 (55 anos), que foi winsorizado para 70 anos (n = 19).

Além da identificação de outliers, há grande discussão sobre como lidar com esses dados. Se, por um lado, esses registros destoam da amostra, aumentam a variabilidade dos dados, comprometem a normalidade da distribuição, reduzem o poder estatístico e influenciam na inferência populacional, por outro lado, são valores reais, de sujeitos que participam da população do estudo. Outliers podem, inclusive, ser indicadores de padrões especiais dentro da amostra, fundamentando novas hipóteses para o fenômeno estudado, ou ainda revelar distribuições de probabilidade não normais subjacentes da população88 Abellana Sangra R, Farran Codina A. The identification, impact and management of missing values and outlier data in nutritional epidemiology. Nutr Hosp. 2015;31(Suppl 3):189-95. PMid:25719786..

Os testes estatísticos bivariados habituais para dados paramétricos (teste t de Student, ANOVA, coeficiente de correlação de Pearson) são relativamente robustos para lidar com uma pequena frequência de outliers. Já os testes baseados em postos (Mann-Whitney, Wilcoxon, Kruskal-Wallis, coeficiente de Spearman) não são afetados por valores extremos. Dessa forma, a decisão de excluir sujeitos com valores outliers penaliza a amostra, e deve ser evitada. Em vez disso, se necessário, é possível tratar outliers com winsorização ou trimming, ou empregar técnicas de agrupamento (clusterização), reamostragem (bootstrap) ou análises estatísticas robustas, que promovem uma aproximação para uma distribuição de probabilidade, baseada nos dados centrais99 Shete S, Beasley TM, Etzel CJ, et al. Effect of winsorization on power and type 1 error of variance components and related methods of QTL detection. Behav Genet. 2004;34(2):153-9. http://dx.doi.org/10.1023/B:BEGE.0000013729.26354.da. PMid:14755180.
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10 Ramalle-Gomara E, Andres De Llano JM. Use of robust methods in inferential statistics. Aten Primaria. 2003;32(3):177-82. PMid:12975106.

11 Evans K, Love T, Thurston SW. Outlier identification in model-based cluster analysis. J Classif. 2015;32(1):63-84. http://dx.doi.org/10.1007/s00357-015-9171-5. PMid:26806993.
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12 Wilcox RR. Robust ANCOVA using a smoother with bootstrap bagging. Br J Math Stat Psychol. 2009;62(Pt 2):427-37. http://dx.doi.org/10.1348/000711008X325300. PMid:18652737.
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-1313 O’Hagan A, Stevens JW. Assessing and comparing costs: how robust are the bootstrap and methods based on asymptotic normality? Health Econ. 2003;12(1):33-49. http://dx.doi.org/10.1002/hec.699. PMid:12483759.
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.

Na winsorização, o dado aberrante é substituído por um valor que supere o seu antecessor, tornando o outlier mais próximo do conjunto de dados11 Kwak SK, Kim JH. Statistical data preparation: management of missing values and outliers. Korean J Anesthesiol. 2017;70(4):407-11. http://dx.doi.org/10.4097/kjae.2017.70.4.407. PMid:28794835.
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. No caso da Tabela 1, a idade de 93 anos poderia ser winsorizada para 70 anos, uma unidade acima do penúltimo valor mais alto: 69 anos (Figura 1).

No trimming, uma porcentagem dos extremos da amostra (por exemplo, os 2% mais extremos) é excluída bilateralmente da análise. Esse procedimento homogeneíza a amostra, mas pode penalizar o poder da análise estatística, por reduzir o tamanho amostral11 Kwak SK, Kim JH. Statistical data preparation: management of missing values and outliers. Korean J Anesthesiol. 2017;70(4):407-11. http://dx.doi.org/10.4097/kjae.2017.70.4.407. PMid:28794835.
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As técnicas de agrupamento avaliam padrões de proximidade dos participantes baseados no comportamento das demais variáveis, e o valor outlier é substituído pela média verificada entre os sujeitos identificados como um grupo. Tanto as técnicas de clusterização e imputação baseada em reamostragem quanto os métodos estatísticos robustos exigem o envolvimento de um profissional estatístico experiente1010 Ramalle-Gomara E, Andres De Llano JM. Use of robust methods in inferential statistics. Aten Primaria. 2003;32(3):177-82. PMid:12975106.,1111 Evans K, Love T, Thurston SW. Outlier identification in model-based cluster analysis. J Classif. 2015;32(1):63-84. http://dx.doi.org/10.1007/s00357-015-9171-5. PMid:26806993.
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,1414 Jiang X, Guo X, Zhang N, Wang B, Zhang B. Robust multivariate nonparametric tests for detection of two-sample location shift in clinical trials. PLoS One. 2018;13(4):e0195894. http://dx.doi.org/10.1371/journal.pone.0195894. PMid:29672555.
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15 Cleophas TJ. Clinical trials: robust tests are wonderful for imperfect data. Am J Ther. 2015;22(1):e1-5. http://dx.doi.org/10.1097/MJT.0b013e31824c3ee1. PMid:23896742.
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16 Wagstaff DA, Elek E, Kulis S, Marsiglia F. Using a nonparametric bootstrap to obtain a confidence interval for Pearson’s r with cluster randomized data: a case study. J Prim Prev. 2009;30(5):497-512. http://dx.doi.org/10.1007/s10935-009-0191-y. PMid:19685290.
http://dx.doi.org/10.1007/s10935-009-019...
-1717 Rascati KL, Smith MJ, Neilands T. Dealing with skewed data: an example using asthma-related costs of medicaid clients. Clin Ther. 2001;23(3):481-98. http://dx.doi.org/10.1016/S0149-2918(01)80052-7. PMid:11318082.
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.

É importante que os pesquisadores adotem rotinas de identificação de valores anômalos e outliers, devido ao ônus inferencial que eles infligem, especialmente em estudos com pequeno número de participantes. Caso outliers ocorram em baixa frequência na amostra e não modifiquem a conclusão da análise, recomenda-se não promover nenhuma transformação dos dados.

Outra situação habitual à pesquisa clínica e experimental são dos dados faltantes, que são facilmente diagnosticados visualmente, pelo “vazio” que infligem à planilha de dados (Tabela 1). Contudo, à medida que o número de sujeitos e/ou de variáveis aumenta, recomenda-se também utilizar estratégias de verificação da sua ocorrência. Ademais, algumas planilhas e softwares de análise substituem automaticamente os dados faltantes por ZERO ou por um valor aberrante (por exemplo, 999), o que pode acarretar ainda mais prejuízo caso esses dados não sejam identificados.

Os dados faltantes podem se originar tanto de erros de digitação quanto da sua real indisponibilidade durante a coleta. Caso se possa recuperar as fichas de registro ou reabordar o sujeito da pesquisa, essas são as melhores alternativas para essa contingência. Em alguns casos, o comportamento de outras variáveis permite deduzir com certeza o dado faltante. Na Tabela 1, o registro 14 deve se tratar de uma mulher, já que refere duas gestações22 Norman GR, Streiner DL. Biostatistics. The bare essentials. 4th ed. Shelton: People's Medical Publishing House; 2014..

Entretanto, alguns dados não podem ser recuperados a posteriori (por exemplo, paciente faleceu, camundongos foram sacrificados), não podem ser deduzidos, sofrem mudança com o momento da coleta, ou resultam de experimentos mais complexos. Essas circunstâncias demandam o uso de certas técnicas estatísticas para lidar com essas limitações1818 Vickers AJ, Altman DG. Statistics notes: missing outcomes in randomised trials. BMJ. 2013;346:1-4. http://dx.doi.org/10.1136/bmj.f3438. PMid:23744649.
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19 Altman DG, Bland JM. Missing data. BMJ. 2007;334(7590):424. http://dx.doi.org/10.1136/bmj.38977.682025.2C. PMid:17322261.
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-2020 Miot HA, Medeiros LM, Siqueira CRS, et al. Association between coronary artery disease and the diagonal earlobe and preauricular creases in men. An Bras Dermatol. 2006;81:29-33. http://dx.doi.org/10.1590/S0365-05962006000100003.
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O primeiro passo para tratar os dados faltantes é a análise da magnitude da ausência dos valores. Sujeitos com mais de 10% dos dados faltantes, ou variáveis com mais de 10% dos valores faltantes, são situações desfavoráveis ao uso de técnicas de imputação de valores, e a permanência desse sujeito ou dessa variável no estudo deve ser questionada.

O segundo passo é a avaliação do padrão de dados faltantes, já que as técnicas de imputação exigem que ausência de dados tenha uma certa independência frente às variáveis subjacentes, pois a própria falta da informação pode estar ligada ao comportamento de alguma variável.

Dados faltantes que não seguem um padrão de ausência são chamados de valores faltantes completamente aleatórios (missing completely at random, MCAR), como quando uma folha do questionário é perdida, uma amostra de sangue coagula, ou um paciente se muda de cidade. Nesse caso, assume-se que as ausências de respostas decorram de elementos externos ao protocolo, e que a análise dos dados com ou sem os participantes com dados faltantes não muda a dimensão do efeito2121 Sterne JA, White IR, Carlin JB, et al. Multiple imputation for missing data in epidemiological and clinical research: potential and pitfalls. BMJ. 2009;338:b2393. http://dx.doi.org/10.1136/bmj.b2393. PMid:19564179.
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Existem também os dados faltantes aleatórios (missing at random, MAR), em que a falta de um valor decorre do efeito de outra covariável secundária: os menos instruídos podem deixar itens sem resposta por baixa compreensão, questões de ordem sexual podem ser negligenciadas por participantes promíscuos, ou exames radiológicos podem ser cancelados em pacientes obesos por incompatibilidade do aparelho. Aqui, a análise dos dados com os participantes pode ser algo divergente dos resultados após a exclusão desses sujeitos; entretanto, não se espera uma modificação importante na direção do efeito1919 Altman DG, Bland JM. Missing data. BMJ. 2007;334(7590):424. http://dx.doi.org/10.1136/bmj.38977.682025.2C. PMid:17322261.
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Contudo, o padrão mais habitual de dados faltantes é diretamente relacionado ao próprio comportamento da variável estudada. Por exemplo, a conclusão de um questionário de sintomas é mais provável em pacientes com pouca dor; o abandono do estudo é mais comum em quem tem mais efeitos adversos ou no grupo placebo (menor efeito clínico); ou ainda, as visitas para aferição de pressão arterial podem ser perdidas entre os hipertensos mais graves, devido à maior necessidade de visitas ao pronto-socorro ou à ocorrência de cefaleia. Trata-se da perda não aleatória (missing not -at random, MNAR), e inflige importante viés de seleção na amostra, comprometendo a generalização dos resultados.

Caso haja uma pequena porcentagem de dados faltantes e eles apresentem um padrão aleatório (MAR ou MCAR), há diferentes opções de imputação descritas. Dados com padrão de ausência não aleatório (MNAR) demandam suporte de um profissional estatístico experiente na identificação e no tratamento dos dados.

A exclusão do registro completo (todos os dados) do participante que possua algum dado faltante (casewise ou listwise) reduz a amostra total e pode penitenciar o poder inferencial da análise quando a amostra for pequena, ou, em casos que o padrão de ausência seja não aleatório (MNAR), pode incluir viés analítico. Há, contudo, a opção de se excluir o sujeito da análise exclusiva das variáveis ausentes (pairwise), reduzindo o tamanho amostral apenas na estatística descritiva dessas variáveis ou em análises (por exemplo, correlações) que utilizem aquela variável, o que leva ao aproveitamento dos demais dados completos do sujeito para as demais técnicas estatísticas2222 Little RJ. Regression with missing X’s: A review. J Am Stat Assoc. 1992;87:1227-37..

A substituição do valor faltante por um estimador de tendência central (média, moda ou mediana) dos demais valores da variável é uma alternativa relativamente precisa, mas reduz a variabilidade dos dados (overfit) e não considera o efeito das demais variáveis na imputação. Por outro lado, a substituição do valor faltante pelo dado registrado adjacente (valor do sujeito anterior ou posterior) promove aumento da variabilidade dos dados (underfit), e também não pondera as demais variáveis. O uso de alguma técnica de regressão múltipla para estimar o valor faltante em função das demais variáveis apresenta melhor precisão da estimativa, mas reduz a variabilidade dos dados (overfit). Essas alternativas são mais indicadas quando a ausência de dados é de pequena magnitude (< 5%).

A técnica mais indicada na substituição de valores ausentes chama-se imputação múltipla, que utiliza diferentes modelos preditivos para validar os valores a partir da testagem de diferentes dados faltantes, a fim de manter a mesma variância dos valores na variável (minimiza o overfit). Imputação múltipla de valores ausentes resulta em melhor performance analítica que a exclusão dos casos (listwise) ou das variáveis faltantes (pairwise). Em geral, deve-se incluir no modelo de imputação múltipla todas as variáveis do estudo, e devem ser realizadas até 10 tentativas (iterações) para a melhor estimativa dos dados faltantes2323 Pedersen AB, Mikkelsen EM, Cronin-Fenton D, et al. Missing data and multiple imputation in clinical epidemiological research. Clin Epidemiol. 2017;9:157-66. http://dx.doi.org/10.2147/CLEP.S129785. PMid:28352203.
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24 Enders CK. Multiple imputation as a flexible tool for missing data handling in clinical research. Behav Res Ther. 2017;98:4-18. http://dx.doi.org/10.1016/j.brat.2016.11.008. PMid:27890222.
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25 Stanimirova I, Walczak B. Classification of data with missing elements and outliers. Talanta. 2008;76(3):602-9. http://dx.doi.org/10.1016/j.talanta.2008.03.049. PMid:18585327.
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26 Mackinnon A. The use and reporting of multiple imputation in medical research - a review. J Intern Med. 2010;268(6):586-93. http://dx.doi.org/10.1111/j.1365-2796.2010.02274.x. PMid:20831627.
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27 Harel O, Mitchell EM, Perkins NJ, et al. Multiple Imputation for Incomplete Data in Epidemiologic Studies. Am J Epidemiol. 2018;187(3):576-84. http://dx.doi.org/10.1093/aje/kwx349. PMid:29165547.
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28 Enders CK. Multiple imputation as a flexible tool for missing data handling in clinical research. Behav Res Ther. 2017;98:4-18. http://dx.doi.org/10.1016/j.brat.2016.11.008. PMid:27890222.
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-2929 Nunes LN, Klück MM, Fachel JMG. Multiple imputations for missing data: a simulation with epidemiological data. Cad Saude Publica. 2009;25(2):268-78. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-311X2009000200005. PMid:19219234.
http://dx.doi.org/10.1590/S0102-311X2009...
.

No exemplo da Tabela 1, a correlação entre os valores de pressão arterial sistólica e índice de massa corporal é ρ = 0,60 (p = 0,01) para os 17 pares de dados originais, e ρ = 0,61 (p < 0,01) após imputação múltipla dos dois valores faltantes3030 Miot HA. Correlation analysis in clinical and experimental studies. J Vasc Bras. 2018;17(4):275-9. http://dx.doi.org/10.1590/1677-5449.174118. PMid:30787944.
http://dx.doi.org/10.1590/1677-5449.1741...
. Esses valores evidenciam que técnicas de imputação múltipla não interferem com a dimensão do efeito (por exemplo, ρ de Spearman, odds ratio, coeficiente β da regressão), apenas aumentam o poder da análise e a precisão das estimativas2121 Sterne JA, White IR, Carlin JB, et al. Multiple imputation for missing data in epidemiological and clinical research: potential and pitfalls. BMJ. 2009;338:b2393. http://dx.doi.org/10.1136/bmj.b2393. PMid:19564179.
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,2727 Harel O, Mitchell EM, Perkins NJ, et al. Multiple Imputation for Incomplete Data in Epidemiologic Studies. Am J Epidemiol. 2018;187(3):576-84. http://dx.doi.org/10.1093/aje/kwx349. PMid:29165547.
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.

É importante salientar que essas técnicas de imputação múltipla não se aplicam a estudos com apenas uma variável, perdas com padrão MNAR, ou quando se tem intenção de ampliar (artificialmente) o tamanho de amostra. Da mesma forma, a imputação da variável dependente (desfecho principal do estudo) em função das demais covariáveis não é recomendada2929 Nunes LN, Klück MM, Fachel JMG. Multiple imputations for missing data: a simulation with epidemiological data. Cad Saude Publica. 2009;25(2):268-78. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-311X2009000200005. PMid:19219234.
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Uma situação especial se refere ao conjunto de dados faltantes decorrentes de abandono de seguimento do estudo. Esses eventos são chamados dropouts, e dão origem a uma rica discussão acadêmica sobre a análise de estudos longitudinais (por exemplo, coorte e ensaios clínicos)3232 Gades NM, Jacobson DJ, McGree ME, et al. Dropout in a longitudinal, cohort study of urologic disease in community men. BMC Med Res Methodol. 2006;6(1):58. http://dx.doi.org/10.1186/1471-2288-6-58. PMid:17169156.
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. Da mesma forma, como discutido anteriormente, abandonos ou perdas no seguimento de mais de 10% dos participantes podem comprometer seriamente os resultados do estudo, exceto em ensaios de sobrevivência, em que o desfecho principal é, propriamente, o tempo de sobrevida4040 Miot HA. Survival analysis in clinical and experimental studies. J Vasc Bras. 2017;16:267-9. http://dx.doi.org/10.1590/1677-5449.001604. PMid:29930659.
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. Dropouts também podem ocorrer devido a eventos ligados ou não às demais variáveis do estudo (por exemplo, falta na visita do estudo por um evento adverso do tratamento), e a análise dos resultados de um estudo com a exclusão dos participantes dropouts (per protocol analysis) pode promover uma falsa estimativa do efeito ou da segurança do tratamento3434 Cheng J, Edwards LJ, Maldonado-Molina MM, Komro KA, Muller KE. Real longitudinal data analysis for real people: building a good enough mixed model. Stat Med. 2010;29(4):504-20. PMid:20013937.,3535 Dziura JD, Post LA, Zhao Q, Fu Z, Peduzzi P. Strategies for dealing with missing data in clinical trials: from design to analysis. Yale J Biol Med. 2013;86(3):343-58. PMid:24058309.,4141 Little R, Kang S. Intention-to-treat analysis with treatment discontinuation and missing data in clinical trials. Stat Med. 2015;34(16):2381-90. http://dx.doi.org/10.1002/sim.6352. PMid:25363683.
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Estudos longitudinais de intervenção (por exemplo, ensaios clínicos randomizados) devem, preferencialmente, ter seus participantes analisados por intenção de tratamento (intention to treat, ITT), em que todos os randomizados e alocados em um grupo devem ser analisados ao final do estudo, independentemente de desvios do protocolo terapêutico (por exemplo, descontinuidade ou troca do tratamento) ou de dropouts. Em casos de dropouts, uma alternativa para a análise ITT de variáveis dependentes faltantes é replicar o valor da última visita do sujeito (last observed carried forward, LOCF), o que promove underfit na estimativa do parâmetro e pode reduzir o efeito do tratamento4242 White IR, Horton NJ, Carpenter J, Pocock SJ. Strategy for intention to treat analysis in randomised trials with missing outcome data. BMJ. 2011;342:1-9. http://dx.doi.org/10.1136/bmj.d40. PMid:21300711.
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. A recuperação da informação, mesmo distante da data prevista da visita, é preferível ao LOCF. Além disso, algumas técnicas de análise de estudos longitudinais (modelos lineares generalizados de efeitos mistos) lidam com dados faltantes e dropouts nas suas estruturas analíticas3535 Dziura JD, Post LA, Zhao Q, Fu Z, Peduzzi P. Strategies for dealing with missing data in clinical trials: from design to analysis. Yale J Biol Med. 2013;86(3):343-58. PMid:24058309.,3737 Rombach I, Jenkinson C, Gray AM, Murray DW, Rivero-Arias O. Comparison of statistical approaches for analyzing incomplete longitudinal patient-reported outcome data in randomized controlled trials. Patient Relat Outcome Meas. 2018;9:197-209. http://dx.doi.org/10.2147/PROM.S147790. PMid:29950913.
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De forma geral, a estatística descritiva e as análises bivariadas devem ser conduzidas com os valores outliers (não transformados) e considerar os dados faltantes, para se manter a fidedignidade com a descrição da amostra original. As técnicas aqui descritas são preferenciais para o sucesso das análises multivariadas, em que a existência de valores outliers ou dados faltantes compromete os pré-requisitos dos testes estatísticos (por exemplo, normalidade) ou implicam na exclusão de sujeitos e de variáveis da pesquisa.

Finalmente, as estratégias de tratamento para dados faltantes e outliers também devem ser detalhadamente descritas na metodologia e na apresentação dos resultados. Ademais, é recomendável promover uma análise de sensibilidade dos resultados, procedendo a mesma análise dos dados considerando os valores originais e excluindo os casos com dados faltantes e outliers, a fim de identificar se a direção dos resultados segue a mesma das conclusões com os dados corrigidos2121 Sterne JA, White IR, Carlin JB, et al. Multiple imputation for missing data in epidemiological and clinical research: potential and pitfalls. BMJ. 2009;338:b2393. http://dx.doi.org/10.1136/bmj.b2393. PMid:19564179.
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  • Como citar: Miot HA. Valores anômalos e dados faltantes em estudos clínicos e experimentais. J Vasc Bras. 2019;18: e20190004. https://doi.org/10.1590/1677-5449.190004
  • Fonte de financiamento: Nenhuma.
  • O estudo foi realizado na Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista (UNESP), Botucatu, SP, Brasil.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Maio 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    08 Jan 2019
  • Aceito
    14 Mar 2019
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