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A apropriação de gêneros textuais pelo professor: em direção ao desenvolvimento pessoal e à evolução do "métier"

The appropriation of textual genres by the teacher: toward personal development and the evolution of the "métier"

La apropiación de géneros textuales por el profesor: hacia el desarrollo personal y la evolución del "métier"

Resumos

Desde a divulgação dos PCNs de Língua Portuguesa (1998), a prescrição de que o ensino das atividades de produção e leitura de textos deveria tomar os gêneros textuais como unidades de ensino gerou uma grande proliferação de pesquisas e publicações. Entretanto, elas se centraram, sobretudo, na relação entre o ensino de gêneros e o desenvolvimento das capacidades de linguagem dos alunos, sem levar em conta o possível desenvolvimento do próprio professor que adota o trabalho com gêneros em seu contexto de ensino. Assim, neste artigo, temos por objetivo apresentar e discutir nossa concepção sobre o papel que o ensino de gêneros textuais pode desempenhar na atividade de trabalho docente e sobre o desenvolvimento pessoal do próprio professor, assim como para a evolução de seu "métier". Para alcançar esse objetivo, apoiamo-nos em pressupostos teóricos desenvolvidos no quadro da psicologia vigotskiana, principalmente no que se refere à distinção entre artefatos e instrumentos e de sua relação com o desenvolvimento humano.

Gênero textual; Artefato; Instrumento; Desenvolvimento profissional


ABSTRACT Since the disclosure of the PCNs of Portuguese (1998), the prescription that the teaching of activities for reading and production of texts should take textual genres as teaching units has generated a number of researches and publications. However, such works have focused mainly on the relation between the teaching of genres and the development of the students' linguistic capabilities, without taking into consideration the possible development of the teacher herself, who works with genres in her teaching context. Thus, in the present paper the goal is to present and discuss our conception on the role that the teaching of textual genres can play in teaching activities, and on the personal development of the teacher herself, as well as in the betterment of her "métier." In order to reach such a goal this discussion is based on the theoretical assumptions developed within the scene of Vigotskian psychology, especially on what refers to the distinction between artifacts and instruments, and their relation to human development.

Textual genre; Artifact; Instrument; Professional development


Desde la divulgación de los PCNs de Lengua Portuguesa (1998), la prescripción de que la enseñanza de las actividades de producción y lectura de textos debería tomar los géneros textuales como unidades de enseñanza, generó una gran proliferación de investigaciones y publicaciones. Sin embargo, ellas se centraron, sobretodo, en la relación entre la enseñanza de géneros y el desarrollo de las capacidades de lenguaje de los alumnos, sin tener en cuenta el posible desarrollo del propio profesor que adopta el trabajo con géneros en su contexto de enseñanza. Así, en este artículo, tenemos por objetivo presentar y discutir nuestra concepción sobre el papel que la enseñanza de géneros textuales puede desempeñar en la actividad de trabajo docente y sobre el desarrollo personal del propio profesor, así como para la evolución de su "métier". Para alcanzar ese objetivo, nos apoyamos en supuestos teóricos desarrollados en el cuadro de la psicología vigotskiana, principalmente en lo que se refiere a la distinción entre artefactos e instrumentos y de su relación con el desarrollo humano.

Género textual; Artecfato; Instrumento; Desarrollo profesional


ARTIGO DE PESQUISA

A apropriação de gêneros textuais pelo professor: em direção ao desenvolvimento pessoal e à evolução do "métier"

The appropriation of textual genres by the teacher: toward personal development and the evolution of the "métier"

La apropiación de géneros textuales por el profesor: hacia el desarrollo personal y la evolución del "métier"

Anna Rachel MachadoI; Eliane Gouvêa LousadaII

IPontifícia Universidade Católica de São Paulo, Professora titular, doutora, Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem. Email: arachelmachado@uol.com.br

IIUniversidade de São Paulo - FFLCH - DLM, Professora doutora, Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem. Email: elianelousada@uol.com.br; elousada@usp.br

RESUMO

Desde a divulgação dos PCNs de Língua Portuguesa (1998), a prescrição de que o ensino das atividades de produção e leitura de textos deveria tomar os gêneros textuais como unidades de ensino gerou uma grande proliferação de pesquisas e publicações. Entretanto, elas se centraram, sobretudo, na relação entre o ensino de gêneros e o desenvolvimento das capacidades de linguagem dos alunos, sem levar em conta o possível desenvolvimento do próprio professor que adota o trabalho com gêneros em seu contexto de ensino. Assim, neste artigo, temos por objetivo apresentar e discutir nossa concepção sobre o papel que o ensino de gêneros textuais pode desempenhar na atividade de trabalho docente e sobre o desenvolvimento pessoal do próprio professor, assim como para a evolução de seu "métier". Para alcançar esse objetivo, apoiamo-nos em pressupostos teóricos desenvolvidos no quadro da psicologia vigotskiana, principalmente no que se refere à distinção entre artefatos e instrumentos e de sua relação com o desenvolvimento humano.

Palavras-chave: Gênero textual. Artefato. Instrumento. Desenvolvimento profissional.

ABSTRACT Since the disclosure of the PCNs of Portuguese (1998), the prescription that the teaching of activities for reading and production of texts should take textual genres as teaching units has generated a number of researches and publications. However, such works have focused mainly on the relation between the teaching of genres and the development of the students' linguistic capabilities, without taking into consideration the possible development of the teacher herself, who works with genres in her teaching context. Thus, in the present paper the goal is to present and discuss our conception on the role that the teaching of textual genres can play in teaching activities, and on the personal development of the teacher herself, as well as in the betterment of her "métier." In order to reach such a goal this discussion is based on the theoretical assumptions developed within the scene of Vigotskian psychology, especially on what refers to the distinction between artifacts and instruments, and their relation to human development.

Keywords: Textual genre. Artifact. Instrument. Professional development.

RESUMEN

Desde la divulgación de los PCNs de Lengua Portuguesa (1998), la prescripción de que la enseñanza de las actividades de producción y lectura de textos debería tomar los géneros textuales como unidades de enseñanza, generó una gran proliferación de investigaciones y publicaciones. Sin embargo, ellas se centraron, sobretodo, en la relación entre la enseñanza de géneros y el desarrollo de las capacidades de lenguaje de los alumnos, sin tener en cuenta el posible desarrollo del propio profesor que adopta el trabajo con géneros en su contexto de enseñanza. Así, en este artículo, tenemos por objetivo presentar y discutir nuestra concepción sobre el papel que la enseñanza de géneros textuales puede desempeñar en la actividad de trabajo docente y sobre el desarrollo personal del propio profesor, así como para la evolución de su "métier". Para alcanzar ese objetivo, nos apoyamos en supuestos teóricos desarrollados en el cuadro de la psicología vigotskiana, principalmente en lo que se refiere a la distinción entre artefactos e instrumentos y de su relación con el desarrollo humano.

Palabras-clave: Género textual. Artecfato. Instrumento. Desarrollo profesional.

1. INTRODUÇÃO

Como sabemos, desde a divulgação dos PCNs de Língua Portuguesa (1998), a prescrição de que o ensino das atividades de produção e leitura de textos deveria tomar os gêneros textuais como unidades de ensino, tem gerado uma grande proliferação de pesquisas e publicações, ou voltadas para a clarificação do próprio conceito de gênero, ou para o modo como ensiná-los, ou ainda para tratar do desenvolvimento de capacidades de linguagem dos alunos por meio desse ensino (cf., por exemplo, a apresentação de muitas dessas pesquisas desenvolvida em MACHADO; CRISTOVÃO, 2009).

A nosso ver, tanto essa prescrição dos PCNs quanto muitas das pesquisas desenvolvidas trazem, de modo implícito ou explícito, o pressuposto de que "o gênero pode ser considerado como um instrumento psicológico no sentido vygotskiano do termo, 1 Grifo das autoras. 1 1 Grifo das autoras. ou seja, no sentido em que o termo instrumento foi reinterpretado, por Rabardel (s/d)" (SCHNEUWLY, 2004, p. 24). E é esse pressuposto que alicerça a tese de cunho didático de que os gêneros de texto devem ser o centro do processo de ensino de produção e compreensão.

Entretanto, consideramos que as pesquisas desenvolvidas ainda deixaram lacunas. Uma delas é a falta de clareza sobre o conceito de instrumento psicológico, muitas vezes compreendido no sentido do senso comum, isto é, como um objeto material existente fora do sujeito, tanto pelos que aceitam a tese defendida por Schneuwy (1994, 2004) quanto pelos que a rejeitam. Essa nossa afirmação encontra eco em Rabardel (2002), quando este afirma que a ideia de ferramenta ou de instrumento acaba sendo tomada em seu sentido concreto, de senso comum, confundindo-se com o objeto físico. Segundo Rabardel (1995, p. 56), essa concepção pode ser suficiente no âmbito tecnológico, porém ela é insuficiente para analisar a situação do ponto de vista do homem engajado na ação. Para tanto, seria necessário construir uma conceituação psicológica da noção de instrumento.

A segunda lacuna que observamos nas pesquisas sobre ensino de gêneros deriva da falta de exploração da relação entre a efetivação desse ensino e o possível desenvolvimento dos professores. 2 Com algumas exceções no campo da formação de professores, como as pesquisas desenvolvidas por Cristovão (2004) e por Magalhães (2004). 2 2 Com algumas exceções no campo da formação de professores, como as pesquisas desenvolvidas por Cristovão (2004) e por Magalhães (2004).

Assim, tomamos como objetivo primeiro deste artigo 3 A primeira versão do artigo foi exposta na conferência A apropriação de gêneros textuais pelo professor: em direção ao desenvolvimento pessoal e à evolução do "métier", proferida no V SIGET, no dia 12 de agosto de 2009, na cidade de Caxias do Sul (RS). 3 3 A primeira versão do artigo foi exposta na conferência A apropriação de gêneros textuais pelo professor: em direção ao desenvolvimento pessoal e à evolução do "métier", proferida no V SIGET, no dia 12 de agosto de 2009, na cidade de Caxias do Sul (RS). a apresentação e discussão de nossas hipóteses sobre essa relação para, a seguir, advogarmos a necessidade de um programa de pesquisas que possam confirmá-las. Evidentemente, para isso, teremos de, necessariamente, dar maior precisão à noção de "instrumento psicológico" que assumimos.

Os pressupostos teóricos fundamentais em que nos alicerçarmos provêm da integração de saberes construídos por diferentes grupos disciplinares, o que se torna possível graças à problemática maior que eles têm em comum, a compreensão do desenvolvimento humano em geral e no trabalho, em particular, e graças à sua filiação teórica comum, que é a da psicologia vigotskiana. Desse modo, nossas reflexões se baseiam em aportes oriundos:

a) do interacionismo sociodiscursivo em geral, vertente da psicologia da linguagem, surgida e desenvolvida na Unidade de Didática de Línguas da Universidade de Genebra, sobretudo dos trabalhos desenvolvidos sobre a questão do ensino-aprendizagem de gêneros textuais (SCHNEUWLY, 1994; SCHNEUWLY; DOLZ, 2004), e sobre o trabalho educacional (BRONCKART, 1997, 2004, 2008);

b) da ergonomia da atividade, tal como desenvolvida pelo Grupo ERGAPE (Ergonomie de l'activité des professionnels de l'éducation), do Institut de Formation de Maîtres de Marselha e Universidade de Aix-Marselha (AMIGUES, 2002, 2004; SAUJAT, 2004);

c) da Psicologia do Trabalho, tal como desenvolvida pela equipe da Clínica da Atividade, do CNAM (Centre National des Arts et Métiers) de Paris (CLOT, 1999; FAÏTA, 2004), e ainda dos trabalhos de Rabardel (1995), que rediscutem o conceito de instrumento psicológico de Vygotsky ([1934] 2001);

d) do conjunto de pesquisas desenvolvidas por nosso grupo de pesquisa (ALTER-CNPq - Análise de linguagem, trabalho educacional e suas relações), sediado no Programa de Estudos Pós-graduados em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem da PUC/SP.

Em síntese, em primeiro lugar, nosso posicionamento científico nos leva a defender os pressupostos fundamentais do interacionismo sociodiscursivo (ISD), assim como os aportes teórico-metodológicos deles decorrentes, dado que acreditamos haver uma coerência interna nessa proposta, com a explicitação clara das relações entre sua posição filosófica, política, psicológica, linguística, didática e formativa. Em segundo lugar, defendemos a necessidade de uma abordagem pluridisciplinar dos fenômenos da linguagem e do desenvolvimento profissional, sem a qual não podemos compreender os fenômenos especificamente humanos. Em terceiro lugar, afirmamos a não aceitação de um "modelo" teórico-metodológico fechado, que venha de qualquer disciplina das Ciências Humanas, mas sim, as teorias que estejam sempre abertas a uma permanente dialogia, crítica e reconstrução. Finalmente, quanto à relação entre teorias e práticas didáticas, consideramos não poder haver uma separação entre elas, em favor de qualquer uma, mas sim, o questionamento contínuo das teorias pelas práticas didáticas e das práticas didáticas pelas teorias.

Delineados esses pressupostos mais amplos, passaremos a perseguir nosso objetivo, para o que organizamos este artigo em três grandes partes. Na primeira, apresentaremos uma leitura da noção bakhtiniana de gêneros de texto à luz da psicologia vigotskiana, com a necessária discussão da noção de "instrumento psicológico". Estendendo esse raciocínio, buscaremos demonstrar que essa mesma noção pode ser relacionada ao desenvolvimento do próprio professor e de seu trabalho, postulando que a apropriação dos gêneros textuais é necessária para o desenvolvimento do professor e de seu trabalho. Finalmente, apresentaremos nossas conclusões finais, reafirmando o papel importante do ensino de gêneros nesse desenvolvimento.

2. A NOÇÃO DE GÊNEROS TEXTUAIS BAKHTINIANA À LUZ DA PSICOLOGIA VIGOTSKIANA

Nesta seção, discutiremos a metáfora que Schneuwly (1994) construiu, segundo ele, a partir de sua leitura da noção de gêneros textuais bakhtiniana à luz da psicologia vigotskiana: a metáfora de que "o gênero é um instrumento (ou megainstrumento)" e buscaremos esclarecer a noção de instrumento (psicológico) que o autor utiliza. Mesmo aceitando as considerações do autor, procuraremos mostrar que essa noção foi por ele assumida e, posteriormente, desenvolvida por outros pesquisadores, relacionada apenas ao desenvolvimento das capacidades de linguagem dos alunos, quando submetidos ao ensino formal e sistemático de gêneros textuais. Foi exatamente essa a tese que, em linguagem metafórica, foi inicialmente defendida por Schneuwly (1994) e sustentada por inúmeras pesquisas levadas a cabo, inicialmente, pela equipe da Unidade de Didática de Línguas da Universidade de Genebra e, posteriormente, por vários pesquisadores brasileiros. Evidentemente, foi ela também que deu sustentação à ideia de que o ensino de produção de textos deveria tomar os gêneros de texto como foco central.

Consideramos que o texto fundador para responder a essa questão é o artigo de Schneuwly de 1994, que propõe uma leitura vigotskiana da noção de gêneros baktiniana. Em seguida, pesquisas e estudos junto a Dolz contribuíram para desenvolver essa noção em outros trabalhos. Para Schneuwly (1994), os gêneros podem ser considerados como instrumentos que possibilitam a comunicação. Para defender essa posição, o autor retoma Bakhtin/Volochínov ([1929] 1981), que salienta que «Si les genres du discours n'existaient pas et si nous n'en avions pas la maîtrise, et qu'il nous faille les créer pour la première fois dans le processus de la parole, qu'il nous faille construire chacun de nos énoncés, l'échange verbal serait quasiment impossible" (SCHNEUWLY, 1994, p. 160). 4 "Se os gêneros do discurso não existissem e se nós não tivéssemos o domínio deles, se fosse preciso criá-los pela primeira vez no processo de fala, se tivéssemos que construir cada um de nossos enunciados, a troca verbal seria quase impossível." (Tradução das autoras). 4 4 "Se os gêneros do discurso não existissem e se nós não tivéssemos o domínio deles, se fosse preciso criá-los pela primeira vez no processo de fala, se tivéssemos que construir cada um de nossos enunciados, a troca verbal seria quase impossível." (Tradução das autoras).

Salientamos, aqui, a dificuldade de uso de "outil" devido à polissemia do termo, que é traduzido em português ora como 'instrumento', ora como 'ferramenta'. Na verdade, essa dificuldade pode ser percebida nos próprios PCNs de LP (língua portuguesa), cuja visão contribuimos para difundir. Nos PCNs de LP, podemos constatar que houve a integração das linhas teóricas bakhtiniana e de Schneuwly, resultando num processo de transformação que acaba por descaracterizar ambas as linhas e fazendo com que o que nele está afirmado não pertença a uma linha nem a outra. As consequências dessa transformação podem ser vistas não apenas para o uso dos PCNs, mas também para a própria concepção de instrumento e/ou ferramenta (MACHADO, 2009).

Defendendo o ensino com foco nas características dos gêneros, Schneuwly e Dolz (2004) consideram que uma definicão o mais precisa possível das dimensões ensináveis de um gênero facilita a apropriação deste como ferramenta e torna possível o desenvolvimento de capacidades linguageiras diversas que são associadas a ele. Trata-se, aqui, do desenvolvimento das capacidades de linguagem dos alunos, o que lhes permitiria agir com a linguagem em diferentes situações.

Schneuwly (1994) introduz a questão do ensino de gêneros de texto, mas dando ênfase à questão do desenvolvimento de operações de linguagem necessárias à produção de qualquer gênero. Ou seja, não é o ensino do gênero apenas pelo ensino do gênero. Dessas reflexões, surge em Genebra a expressão "sequência didática (SD) para o ensino de gênero", que vem posteriormente para o Brasil. Porém, essa expressão é problemática, pois leva a crer que estamos ensinando apenas um dado gênero, enquanto que o termo SD para o ensino de gênero significa muito mais que isso: estamos, na verdade, ensinando um conjunto de atividades planificadas para uma classe de alunos específicos, com o objetivo de ensinar um determinado gênero; mas, também, desenvolvendo três grandes tipos de capacidades de linguagem envolvidas na produção e/ou leitura de textos. Foi essa concepção simplificada que exerceu profunda influência sobre os PCNs para Língua Portuguesa no Ensino Fundamental.

Reconhecemos o importante papel no ensino e nas pesquisas brasileiras dessa tomada de posição pelos PCNs. Entretanto, vários foram os problemas para sua implementação, dois quais salientamos dois que consideramos fundamentais: o primeiro é que, já nos próprios PCNs, apontamos, como vários outros pesquisadores, que o que foi posto distanciou-se tanto da visão do Grupo de Genebra quanto da visão bakhtiniana, encontrando inúmeros problemas para sua implementação. O segundo é que, após a edição dos PCNs e a grande aceitação do ensino com foco em gêneros, inúmeros pesquisadores voltaram-se para a questão da descrição e do ensino de gêneros, sem, entretanto, terem suporte na teoria vigostkiana de ensino-aprendizagem e desenvolvimento. Portanto, houve o que podemos chamar de "Transposição didática invertida", dado que havia (e há) falta de consenso científico sobre a noção de gênero e que havia uma extraordinária falta de conhecimentos construídos sobre gêneros importantes da vida social brasileira a serem ensinados.

Isso gerou, a nosso ver, muitos mal-entendidos, dado que surgiram duas interpretações negativas. A primeira foi uma visão muito simplista ou de senso comum da metáfora "gênero é ferramenta/instrumento". Por exemplo, tomando os termos não como conceitos metafóricos, mas como se referindo a um objeto material ou a algo equivalente. A segunda foi a interpretacão dos termos no quadro de concepções de linguagem utilitaristas ou representacionalistas, o que levou muitos linguistas sérios a se manifestarem contra os PCNs. A nosso ver, para compreendermos a metáfora de Schneuwly (1994): "gênero é um instrumento" ou "a sequência didática é um artefato que pode se constituir em um instrumento do trabalho do professor" é necessário compreender "instrumento" como conceito construído no quadro da psicologia vigotskiana tanto por Vygotsky (1934/2001) quanto por pesquisadores que desenvolvem suas idéias. É necessário, portanto, retomar duas questões básicas: a) Na perspectiva da teoria psicológica vygostkiana e de seu desenvolvimento atual, o que são instrumentos psicológicos? e, b) Que efeitos provocam no meio e nos indivíduos envolvidos na atividade em que são utilizados?

Primeiro, quando se fala em "instrumento" como conceito da psicologia, não se fala de algo que está aí, pronto, "dado" pela natureza ou pela sociedade, de um objeto material que existe fora do sujeito, que se pode pegar com as mãos, mas de algo que é construído pelo sujeito e por ele utilizado para atingir o objetivo de sua ação. Segundo, o uso de um novo instrumento vai provocar transformações no ambiente físico ou social, nos outros que interagem com o sujeito, mas também sobre ele mesmo, fazendo com que ele tenha profundas transformações psíquicas, ou seja, aumente seus conhecimentos sobre o mundo físico e social, desenvolva capacidades para agir sobre o outro e sobre o mundo e regule seu comportamento.

Mas, de onde provêm esses instrumentos psicológicos? Como se constroem? Para responder a essas perguntas, é necessário compreender a distinção entre artefato e instrumento, proposta por Rabardel (1995) e retomada por Schneuwly (1994, 2004) para a discussão do papel dos gêneros no desenvolvimento.

Assim, nessa perspectiva, os artefatos são "objetos" materiais ou simbólicos, sócio-historicamente construídos para mediarem a ação do homem sobre o meio ou sobre o outro e para se atingirem determinadas finalidades. Entretanto, nenhum artefato, em si mesmo, pode servir como esse elemento mediador da ação humana. Por exemplo, não é a simples existência social dos gêneros textuais (ou discursivos) que garante a possibilidade de comunicação em um determinado contexto. Não é a simples colocação de computadores em sala de aula que levará automaticamente a que o aluno obtenha as informações que lhe são necessárias. É preciso desmistificar essa visão e compreender que os artefatos são colocados à disposição dos trabalhadores, em uma determinada época e em uma determinada sociedade, mas que existe a necessidade de o trabalhador apropriar-se do artefato.

Consideramos que "apropriar-se de alguma coisa" é adaptar alguma coisa a um uso ou a uma finalidade determinada; atribuir alguma coisa a si mesmo, fazer com que ela seja SUA (algumas vezes, até mesmo de modo indevido). De fato, segundo Rabardel (1995), o artefato nunca é apropriado em sua totalidade, mas em parte, de acordo com as necessidades dos sujeitos, de suas capacidades, da situação etc. Em outras palavras, não se trata de simplesmente utilizar o artefato como mandam as prescrições, mas de usá-lo de modo que ele seja útil para o próprio trabalhador e adaptado por ele mesmo às diferentes situações em que precisa utilizá-lo. Assim, é só quando algum artefato é apropriado pelo sujeito que ele passa a ser verdadeiro instrumento psicológico, na concepção da teoria vigotskiana. Trata-se, portanto, de uma construção psíquica, que permite o desenvolvimento de diferentes capacidades. Em relação aos gêneros, eles só poderão servir de mediadores para a comunicação e para o desenvolvimento linguageiro se forem apropriados pelo sujeito.

3. A NECESSIDADE DE APROPRIAÇÃO DO GÊNERO TEXTUAL PELO PROFESSOR

Vejamos, agora, o que se passa com o uso de gêneros ou sequências didáticas em relação ao professor e a seu métier. Em primeiro lugar, consideramos absolutamente necessário apresentar a nossa concepção global do trabalho docente, que se encontra em estado constante de reconstrução, e que é inspirada de aportes da Clínica da Atividade (CLOT, 1999), da Ergonomia da Atividade (AMIGUES, 2002, 2004; SAUJAT, 2002, 2004)) e do interacionismo sociodiscursivo. Por essa concepção, consideramos que o trabalho do professor é constituído de múltiplas atividades, desenvolvidas em diferentes situações, que precisam ser investigadas, pois se inter-relacionam. Sendo assim, podemos dizer que, em relação ao trabalho desenvolvido em sala de aula, o professor mobiliza seu ser integral, em suas múltiplas dimensões (físicas, cognitivas, linguageiras, afetivas etc.), com o objetivo de criar um ambiente propício à aprendizagem de determinados conteúdos pelos alunos e ao desenvolvimento de capacidades a eles relacionadas, direta ou indiretamente.

Além disso, a realização de seu trabalho é desenvolvida em interação permanente com outros actantes (com os alunos, principalmente, mas também com "outros" não presentes fisicamente na situação). Trata-se de uma atividade instrumentada, no sentido de que o professor, para realizá-la, utiliza instrumentos materiais ou simbólicos, oriundos da apropriação, por si e para si, de artefatos disponibilizados pelo seu meio social. Nesse sentido, sua atividade pode ser altamente criativa, dado que o professor recria esses artefatos de acordo com as diferentes situações, necessidades e capacidades.

Finalmente, podemos dizer que sua atividade é orientada por diferentes prescrições institucionais de diferentes níveis (PCNs, por exemplo, no caso do ensino de gêneros textuais) e por modelos do agir, historicamente construídos pelo coletivo de trabalho. Essas prescrições, de modo teórico, não podem ser vistas como negativas, mas como artefatos disponibilizados para o professor e que podem facilitar o seu trabalho. Segundo apontam Saujat (2002, 2004) e Amigues (2004), elas são frequentemente objeto de reconcepção, pelos professores. Em outras palavras, o professor adapta as prescrições iniciais a seu contexto particular de ensino, reconcebendo-as, redefinindo-as. Para Saujat (2002), é justamente a reconcepção da tarefa inicial, em função de seu contexto particular de ensino, que garante a competência, a saúde e a identidade do professor:

L'"activité" apparaît ici moins comme la réalisation de la tâche que comme sa "reconception" (CLOT, 1995), par laquelle l'opérateur non seulement réalise sa performance et gère la variabilité, mais aussi construit sa compétence, sa santé, son identité (SAUJAT, 2002, p. 23). 5 A "atividade" aparece aqui menos como a realização da tarefa que como sua "reconcepção" (Clot, 1995), através da qual o operador não apenas realiza sua performance e gerencia a variabilidade, mas também constrói sua competência, sua saúde, sua identidade. (Tradução das autoras). 5 5 A "atividade" aparece aqui menos como a realização da tarefa que como sua "reconcepção" (Clot, 1995), através da qual o operador não apenas realiza sua performance e gerencia a variabilidade, mas também constrói sua competência, sua saúde, sua identidade. (Tradução das autoras).

Voltando à ideia das prescrições institucionais enquanto artefatos, disponíveis para os professores em um determinado contexto sócio-histórico, precisamos relembrar que, como salientamos anterioremente, para que esses artefatos contribuam realmente para a construção da saúde, da competência e da identidade do professor, é preciso que eles sejam por ele apropriados, transformando-se em instrumentos para seu agir (ROGER, 2007). Contudo, vemos que, da maneira como os gêneros textuais foram sendo utilizados nos contextos educacionais brasileiros, eles acabaram se tornando um artefato imposto aos que trabalham no âmbito da educação, e não um instrumento que permita a ação dos professores e a apropriação dos alunos.

As concepções sobre trabalho do professor que explanamos são exemplificadas na figura 1:


No esquema em discussão, todos esses pólos (professor, objeto, outrem, artefatos/instrumentos) estão em interação, sendo que uns influenciam os outros. Por exemplo, o instrumento auxilia a organizar o meio, age sobre o outro e sobre o sujeito professor e vice-versa, o que pode levar à própria transformação dos artefatos sociais. Entretanto, é importante lembrar que esse é um esquema provisório, reducionista, que só poderá ser corrretamente preenchido a partir de muitas pesquisas. Seria necessário englobar também as outras atividades do professor, já que, neste triângulo, acabamos por reforçar o discurso dominante, segundo o qual o trabalho do professor é dar aulas.

O quadro teórico proposto por Rabardel (1995) pode ser transposto ao trabalho docente. Em alguns estabelecimentos escolares, as prescrições institucionais, o coletivo de professores constrói artefatos pedagógicos, por exemplo, as avaliações, os sistemas comuns de notas, e outros. Podemos pensar que esses artefatos constituem instrumentos, no sentido de Rabardel (1995), ou seja, sua utilização influencia a construção e a mobilização de saberes profissionais individuais relativos à tarefa de ensino. Em outros termos, quando os professores utilizam artefatos elaborados pelo coletivo da escola, eles associam a eles saberes profissionais, mais ou menos conscientemente, que lhes permitem guiar e pensar suas ações em situação de ensino com os alunos.

Rabardel (1995) caracteriza as situações de atividades instrumentadas pela "inserção pelo sujeito de um (ou vários) instrumentos em sua atividade". Para o autor, o instrumento é uma entidade mista consituída por um artefato (objeto transformado pelo homem) e esquemas de utilização que são associados a ele. Ele propõe, assim, definir as situações de atividade instrumentada ao redor de três pólos interdependentes: o sujeito, o instrumento e o objeto em direção ao qual a ação, com a ajuda do instrumento, é dirigida. Quando os artefatos disponibilizados pelo meio social (no caso, os gêneros textuais e os materiais didáticos correspondentes) são verdadeiramente apropriados pelo sujeito, eles se transformam não apenas em instrumentos para sua ação sobre o outro, mas também sobre si mesmo, sobre seu próprio desenvolvimento e o de seu "métier".

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

É assim que, a partir da concepção explicitada anteriormente, colocamo-nos algumas perguntas:

a) Como podemos considerar o papel do ensino centrado nos gêneros textuais em relação ao trabalho docente?

b) Qual seu papel no desenvolvimento dos professores e na evolução da profissão docente, ou seja, do métier?

Em nossas discussões, procuramos mostrar que são colocados diferentes artefatos para mediar a atividade do professor: as finalidades do ensino, as concepções sobre ensino-aprendizagem, os conteúdos, os procedimentos de ensino, a disposição das disciplinas etc. Dentre esses artefatos, podemos considerar as prescrições dos PCNs para Lingua Portuguesa, ou seja o ensino de produção e leitura com foco em gêneros textuais na forma de sequências. No entanto, para que os professores se desenvolvam e para que haja evolução do métier, seria importante que o professor se apropriasse dessas finalidades. Ele teria que fazer com que essas finalidades impostas de fora passassem a ser seus próprios objetivos. Em outras palavras, é preciso que o professor se aproprie do artefato (por si e para si) e se certifique de que ele pode ser útil para o seu trabalho, para si mesmo, para sua transformação, para seu bem-estar, e não apenas para o aluno.

Desse modo, por um lado, os gêneros textuais podem se constituir em instrumentos para os alunos, já que seu uso influencia profundamente a construção do saber e os processos de conceitualização. Por outro lado, eles podem se tornar instrumentos para os professores no sentido de que eles também podem influenciar profundamente a construção do saber o os processos de conceitualização do próprio professor (sobre produção e leitura). Sendo assim, o professor estará caminhando em direção ao desenvolvimento profissional, pessoal, assim como estará contribuindo para a evolução do "métier" docente.

Recebido em 20/10/2010.

Aprovado em 22/11/2010.

NOTAS

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  • 1
    Grifo das autoras.
  • 2
    Com algumas exceções no campo da formação de professores, como as pesquisas desenvolvidas por Cristovão (2004) e por Magalhães (2004).
  • 3
    A primeira versão do artigo foi exposta na conferência A apropriação de gêneros textuais pelo professor: em direção ao desenvolvimento pessoal e à evolução do "métier", proferida no V SIGET, no dia 12 de agosto de 2009, na cidade de Caxias do Sul (RS).
  • 4
    "Se os gêneros do discurso não existissem e se nós não tivéssemos o domínio deles, se fosse preciso criá-los pela primeira vez no processo de fala, se tivéssemos que construir cada um de nossos enunciados, a troca verbal seria quase impossível." (Tradução das autoras).
  • 5
    A "atividade" aparece aqui menos como a realização da tarefa que como sua "reconcepção" (Clot, 1995), através da qual o operador não apenas realiza sua performance e gerencia a variabilidade, mas também constrói sua competência, sua saúde, sua identidade. (Tradução das autoras).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Mar 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 2010

    Histórico

    • Aceito
      22 Nov 2010
    • Recebido
      20 Out 2010
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