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QUANDO DIZER É PRODUZIR O OUTRO

When To Say is to Produce the Other

Cuando decir es producir al otro

Resumo

Este artigo dá continuidade ao debate sobre produção de subjetividade realizado em tese de doutorado da autora (GONÇALVES, 2019) cujo foco é a natureza empresarial da prática discursiva denominada motivacional no âmbito do fisiculturismo. Explicita, argumenta e demonstra como as práticas discursivas capturam os corpos e produzem subjetividades. Com isso, coloca em relevo o papel criador da linguagem e a solidificação de certos perfis de sujeito para manutenção de certas perspectivas de vida e de sociedade. Para realizar este percurso, respalda-se em Michel Foucault (2010, 2016), Suely Rolnik e Félix Guattari (2013), Grada Kilomba (2019), Dominique Maingueneau (1997, 2008) Bruno Deusdará e Décio Rocha (2018).

Palavras-chave:
Discurso; Corporeidade; Subjetividade

Abstract

In this article, we continue the debate on subjectivity production carried out in my doctoral thesis (GONÇALVES, 2019), which focuses on the entrepreneurial nature of the discursive practice called motivational in the scope of bodybuilding. We explain, argue and demonstrate how discursive practices capture bodies and produce subjectivities. With this, we highlight the creative role of language and the solidification of certain subject profiles to maintain certain perspectives on life and society. To make this journey, we rely on Michel Foucault (2010,2016), Suely Rolnik and Félix Guattari (2013), Grada Kilomba (2019), Dominique Maingueneau (1997, 2008) Bruno Deusdará and Décio Rocha (2018).

Keywords:
Discourse; Corporeality; Subjectivity

Resumen

Este artículo continúa el debate sobre la producción de subjetividad realizado en la tesis doctoral de la autora (GONÇALVES, 2019), cuyo enfoque es la naturaleza empresarial de la práctica discursiva denominada motivacional en el ámbito del fisiculturismo. Se explicita, argumenta y demuestra cómo las prácticas discursivas capturan los cuerpos y producen subjetividades. Con esto, se destaca el papel creador del lenguaje y la solidificación de ciertos perfiles de sujeto para el mantenimiento de determinadas perspectivas de vida y sociedad. Para llevar a cabo este recorrido, se respalda en Michel Foucault (2010, 2016), Suely Rolnik y Félix Guattari (2013), Grada Kilomba (2019), Dominique Maingueneau (1997, 2008), Bruno Deusdará y Décio Rocha (2018).

Palabras clave:
Discurso; Corporalidad; Subjetividad

“Não se deve tentar fixar o homem, pois o seu destino é ser solto.”

(Frantz Fanon)

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Quando nos referimos aos corpos que transitam pelo mundo, não consideramos somente suas formas visíveis e tangíveis, mas, acima de tudo, os atravessamentos que os constituem. Um corpo é um construto complexo, cada perfil corporal é moldado em conformidade com a conjuntura em que está inserido, pois sua existência é indissociável da história. Na realidade, há a captura dos corpos e sua consequente modelagem para que atendam aos imperativos de dado momento. Nesse sentido, não existem corpos, existem corporeidades, ou seja, estados corporais que são produzidos em virtude das apropriações sociais que veiculam sentidos atrelados a uma época.

Tais atravessamentos se dão de várias formas, mas é pelo discurso, ou seja, pela língua situada historicamente, que estas apropriações se solidificam. É pelas práticas discursivas que podemos detectar e confirmar a captura dos corpos, bem como de outros elementos da realidade. Um corpo, então, se torna o que é pela reiteração e pela sedimentação de sentidos que são construídos em torno de si. É neste sentido que podemos falar na fabricação do outro a partir de discursos relacionados aos corpos, já que eles abrigam sentidos de um tempo e os imprimem nos sujeitos. Logo, há uma indissociabilidade entre produção do corpo e produção de sujeitos, há uma retroalimentação entre produção do corpo e modos de vida.

Explicitamos ao longo deste artigo as engrenagens discursivas que colocam certos corpos e certos sujeitos em evidência e, simultaneamente, negam outros e os sujeitos que os comportam. Para realizar este percurso, fazemos uma explanação atinente à corporeidade, apresentamos concepções relativas à produção de subjetividade e argumentamos acerca da produção do outro, apresentamos as perspectivas discursivas que alicerçam o texto e, por fim, mostramos, por meio da análise de enunciados pertencentes a um dado eixo do fisiculturismo, a produção do outro.

Com isso, intentamos colocar mais um acento na produção de subjetividades e, sobretudo, na detecção dessa produção como fundamental para os sistemas que vêm se mantendo em função da formação de dados perfis de sujeito.

2. CORPO ... CORPOREIDADE

As reflexões e teorização sobre o referente corpo são complexas, tendo em vista o fato de ele apresentar muitas facetas e, ao mesmo tempo, uma só, pois o modo como circula no mundo parece defini-lo e indicar o modo como deve ser percebido. Assim, referimo-nos aos corpos que transitam pelo mundo como altos, baixos, bonitos, feios, pretos, brancos, indígenas, homossexuais, heterossexuais, favelados, livres, submissos etc. Cada denominação não indica somente o aspecto visível, tangível ou estético do corpo, como já citamos antes, mas, sobretudo, as apropriações a que foi submetido. É nesta direção que nos propomos, nesta seção, a tratar de corporeidade ao invés de corpo. Corporeidade porque este vocábulo traz implícitas as modulações pelas quais os corpos passam no seio da sociedade.

Tratar de corporeidade é uma ação cartográfica, pois percorremos um território afetado pelas produções e pelas linhas que se conectam, se desconectam e se reconectam de forma constante. Tais produções estão atreladas a verdades que se apresentam e se sedimentam em consonância com os rumos sociais e históricos de um momento, de uma dada época, e definem os acontecimentos. A verdade

é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua “política geral” de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro. (FOUCAULT, 2015FOUCAULT, M. Verdade e poder. In: FOUCAULT, M. Microfísica do poder. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015. p. 35-54., p. 52)

Assim, tudo que circula no mundo é regido por algum sistema de veridicção. Sujeitos, sistemas políticos, sistemas religiosos, perfis identitários e toda sorte de questões estão sob a tutela de algum regime de verdade. Por isso, o corpo é uma produção, já que materializa, simboliza e expressa as verdades de um tempo, é capturado pelas relações de poder e de saber deste tempo e manifesta os sentidos gerados por este entrecruzamento.

Um olhar atento para os momentos históricos permite atestar esta produção corpórea. Mbembe (2018), ao tratar da ideia de raça em Crítica da Razão Negra, nos mostra que o corpo do negro foi inventado para caber no ideal de apagamento requerido pela esteira capitalista. Afirma o autor:

O corpo em si não é dotado, porém, de nenhum sentido que lhe seja intrínseco. Estritamente falando, na dramática da vida, o corpo em si não significa nada. É um entrelaçamento ou um feixe de processos que, em si, não têm nenhum sentido imanente. A visão, a motricidade, a sexualidade, o toque não têm nenhuma significação primordial. Sendo assim, sempre existe uma parcela de coisidade em toda corporeidade. (2018, p. 251)

O corpo do negro, então, foi vilipendiado pelo capitalismo, pôde ser usado, comercializado, traficado, pois sua humanidade havia sido anulada, sua corporeidade passava a abarcar aspectos que o desqualificavam como ser. O processo de coisificação do corpo do negro corresponde à produção de um perfil de sujeito necessário para uma conjuntura cuja constituição exigia a existência de um homem despido de uma consciência de si. Assim, o resgate feito pelo estudioso camaronês mostra que a produção de um perfil corporal é inseparável de interesses de diferentes ordens e de perspectivas sobre a vida. Não se trata somente da eleição de uma corporeidade em detrimento de outras, trata-se, sobretudo, da criação de corpos que tenham potencial para servir a dados sistemas.

Outra ilustração da produção corpórea pode ser verificada em certos enunciados proferidos durante o período pandêmico de 2020: “Consequências econômicas serão maiores do que 5.000 ou 7.000 que vão morrer”1 1 Enunciado proferido pelo empresário Júnior Durski, dono da rede de restaurantes Madero. Disponível em: https://bit.ly/3JGVPWo. Acesso em 23. dez. 2020. ou “12 mil mortes em 7 bilhões de habitantes é muito pouco pra criar essa histeria coletiva”2 2 Enunciado proferido pelo empresário e apresentador Roberto Justus. Disponível em: https://bit.ly/3O26X2Z. Acesso em: 23. Dez. 2020. . Tais enunciados não são apenas afirmações, indicam concepções de corpos, na medida em que se alicerçam em uma lógica que não é a do bios, isto é, a forma-de-vida que não pode ser separada da sua forma, como nos lembra Agamben (2015AGAMBEN, G. Sobre o que podemos não fazer. In: AGAMBEN, G. Nudez. Trad. de Davi Pessoa Carneiro. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.). A ideia de banalização sustenta tais enunciados na medida em que as vidas às quais eles fazem referência são concebidas como descartáveis. Nesse sentido, podemos falar em um corpo-descarte, em um corpo cuja possível morte, deflagrada por um evento que atinge o mundo inteiro, não afeta certos sujeitos, pois outros interesses se sobrepõem a este..

A explicitação acima nos coloca, inevitavelmente, no terreno das invenções. Permite enxergarmos que os corpos são capturados pelas lógicas do tempo em que se inserem e são enunciados em conformidade com essas lógicas. Tal fato nos coloca diante do corpo como objeto de discurso. Foucault (2016FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Trad. de Luiz Felipe Baeta Neves. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2016.) assevera que os objetos não são preexistentes às práticas, mas são formados por elas, pois estas são regidas por regras, têm seu próprio regime que determina o modo como dado objeto é enunciado. O autor afirma:

Se, em nossa sociedade, em uma época determinada, o delinquente foi psicologizado e patologizado, se a conduta transgressora pôde dar lugar a toda uma série de objetos de saber, deve-se ao fato de que, no discurso psiquiátrico, foi empregado um conjunto de relações determinadas. (FOUCAULT, 2016FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Trad. de Luiz Felipe Baeta Neves. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2016., p. 53) (grifo nosso)

As relações a que se refere Foucault são da ordem do discurso, produção situada, vínculo entre língua e história que permite a criação dos objetos, por isso aquilo de que falamos assume forma e sedimenta sua existência no exercício do discurso. O corpo, então, a partir do que lhe é próprio no âmbito físico, é capturado pelas redes discursivas, passa a ser enunciado e a ter valor a partir delas. Estas redes ou relações “[...] caracterizam não a língua que o discurso utiliza, não as circunstâncias em que ele se desenvolve, mas o próprio discurso enquanto prática.” (FOUCAULT, 2016FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Trad. de Luiz Felipe Baeta Neves. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2016., p. 56)

Com isso, é possível reafirmar que o corpo é um objeto formado pelas práticas discursivas que o atravessam, e sua existência e forma estão atreladas aos feixes dessas práticas. Por isso, não é possível conceber qualquer enunciado agressivo dirigido ao corpo de um LGBT, por exemplo, somente como ofensa. É uma ofensa, porque agride, mas é um enunciado produzido devido a uma rede de relações que concebem o corpo deste sujeito. Não é possível compreender o enunciado “Vidas negras importam”3 3 Tradução de Black Lives Matter, movimento pela luta contra o racismo, a brutalidade e a injustiça praticados pelas instituições legais americanas. O movimento surge em 2014, após dois policiais assassinarem dois homens negros desarmados. Em 2020, o movimento se intensifica, mas, no âmbito discursivo, é possível afirmar que ganhou o status de enunciado devido a sua reprodução por diferentes sujeitos e a sua inserção em diferentes esferas. somente como a nomeação de um movimento antirracista ou como um ato locutório, pois a concepção de corpo que o atravessa é aquela que visa a emergência e a visibilidade do corpo do negro.

Desse modo, estamos diante da fabricação do corpo. Não há possibilidade de definir o corpo se não assumimos que língua, história e experiência se mesclam e dizem, moldam o corpo; se os sujeitos que habitam esses corpos passam a representar ou a exercer papéis, passam a ser alvos de dadas ações, a assumir estatutos, a existir em conformidade com essas relações. Assim, é preciso admitir que “O corpo metaforiza o social e o social metaforiza o corpo. [...]” (LE BRETON, 2012LE BRETON, D. A sociologia do corpo. Trad. de Sônia M. S. Fuhmann. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2012., p. 70). Por isso, estamos diante de imagens sustentadas por certos posicionamentos de mundo que alimentam a realidade e são alimentadas por elas.

2.1 CORPO HIPERTROFIADO: UMA METÁFORA DO TRIUNFO

Nas linhas iniciais, anunciamos que a questão levantada neste artigo seria demonstrada através da análise de enunciados produzidos na esteira do fisiculturismo. Faremos agora uma breve exposição acerca desta prática, que enseja a produção de um dado perfil corporal.

O fisiculturismo tem uma larga história e contempla competições, categorias e um eixo mercadológico bastante diversificado. Figuras como Charles Atlas, Eugene Sandow, Arnold Schwarzenegger e Ronnie Colleman alçaram a prática ao estatuto de esporte e de popularidade. Hoje, nomes como Phil Heath, Kai Greene, Sergi Constance, Fernando Sardinha e outros mantêm e ressignificam a prática.

No que tange a sua face prática, a produção da corporeidade que lhe é própria se dá com levantamento de pesos, com séries de exercícios cujas cargas variam, mas também com auxílio de alimentação específica e com uso de suplementos, em muitos casos. Os corpos do fisiculturismo são produções, no sentido estrito do vocábulo, porque dependem da atitude dos sujeitos que os almejam, requerem disciplina para o exercício, para a alimentação e para a administração de rotinas. Mas é no aspecto simbólico que se centra a sua força. Courtine (2005COURTINE, J-J. Os Stakhanovistas do Narcisismo: Body-building e puritanismo ostentatório na cultura americana do corpo. In: SANT’ANNA, D. B. de (org.). Políticas do corpo. São Paulo: Estação Liberdade, 2005. p.81-114.) lembra a chamada Cristandade Muscular que, no final do XIX nos Estados Unidos, definia a junção do fisiculturismo com a lógica religiosa. O autor recorda que era comum, nas igrejas batistas e congregacionistas, a visão de Cristo como um atleta espiritual, como um homem de ação e, por isso, o corpo assumiria um aspecto moral: ser cristão era cuidar do espírito e também do corpo. A corporeidade era, então, uma aquisição do espírito.

Atualmente, observamos a presença desse perfil corporal no cotidiano, nos desenhos animados, em muitos personagens do cinema, das novelas, dos desenhos animados etc. O corpo, com musculatura hipertrofiada e definida, é uma composição desejada, almejada e alçada a patamares de essencialidade em nosso tempo, “o músculo é um modo de vida” (COURTINE, 2005COURTINE, J-J. Os Stakhanovistas do Narcisismo: Body-building e puritanismo ostentatório na cultura americana do corpo. In: SANT’ANNA, D. B. de (org.). Políticas do corpo. São Paulo: Estação Liberdade, 2005. p.81-114., p. 85). Nesse sentido, esta simbologia se alia à lógica da performance, porque os sujeitos que assumem esta corporeidade ligam-se à competição (no sentido prático ou não) e às ações arrojadas para a construção e para a manutenção de um corpo-edifício. Nesta linha de raciocínio, não temos um atleta ou um praticante de musculação, mas um empreendedor: “[...] O empreendedor foi erigido como modelo da vida heroica porque ele resume um estilo de vida que põe no comando a tomada de riscos numa sociedade que faz da concorrência interindividual uma justa competição. [...]” (EHRENBERG, 2010EHRENBERG, A. O culto da performance: da aventura empreendedora à depressão nervosa. Org. e trad. de Pedro F. Bendassoli. Aparecida: Ideias & Letras, 2010., p.13) (grifo do autor). Assim sendo, as ações do sujeito empreendedor ultrapassam barreiras, para este sujeito não há limitações, ou melhor, as limitações são vistas como fraqueza.

O que está em jogo, portanto, é uma produção corpórea cuja especificidade simboliza não só as metas relativas à produção e à manutenção dos músculos, mas, sobretudo, um perfil empresarial do sujeito. Os músculos e as ações dos fisiculturistas ou dos praticantes da atividade simbolizam o ideal de sujeito do neoliberalismo: competitivo e individualizado. É nesse sentido que podemos compreender este corpo hipertrofiado como uma metáfora do triunfo, pois o sujeito que se empresaria para a prática e segue as ações requeridas para o erguimento e a manutenção deste corpo precisa adotar uma conduta imperativa, ativa e competitiva, precisa adotar a conduta do vencedor. O triunfo está em erguer a empresa (o corpo), mantê-la em funcionamento e, acima de tudo, sustentar uma subjetividade que não abarque as intempéries, as interrupções e as falências inerentes à vida.

A combinação empresa-concorrência-triunfo sustenta, na verdade, a fabricação de sujeitos. De um lado, o fisiculturista ou bodybuilder, o construtor do corpo que se converte em um sujeito virtuoso, vitorioso e imbatível. De outro, os demais sujeitos que não pertencem a este universo ou pertencem, mas não se alinham a tal lógica. A concorrência, então, passa a ser entre sujeitos e não entre corpos. Nisso, há um embate e, consequentemente, a fabricação de subjetividades; há a fabricação de si e, necessariamente do outro, já que a existência do sujeito só se sustenta pela alteridade e, em um cenário de concorrência acirrada, esta subjetividade só se sustenta se o outro for forjado como desigual ou inferior.

2.2 QUEM É O OUTRO?

Vimos apontando o caráter industrial e o aspecto simbólico do corpo. Não à toa, foi usado o vocábulo corporeidade para indicar os estados e a transitoriedade dos corpos em conformidade com as conjunturas. Agora, seguimos o mesmo itinerário para tratar da alteridade. Fazer explanações ou teorizar sobre o outro é tratar do sujeito, é tratar da constituição, da estabilização e do trânsito do mesmo no mundo. Nesse sentido, o outro é o vivente que se constitui e é produzido.

A noção de um sujeito vertical e limitante ainda vigora nas sociedades. Baseada na concepção cartesiana, comporta a racionalidade, que o tornaria senhor das suas ações, das suas relações e do seu trânsito no mundo, ou seja, nesta perspectiva o sujeito é universal e autossuficiente. Entretanto, o que a história nos conta é bem diferente. Foucault ensina que a história não é uma sucessão de acontecimentos no tempo, mas uma instância que engendra produções, por isso abordar a problemática do sujeito é explicitá-las. Não faremos uma extensa explanação sobre isso devido à natureza deste texto que não permite e nem exige, mas é possível ilustrar a produção do outro resgatando um fato: a “libertação” dos escravizados no Brasil. A Lei Áurea pode ter oficializado o fim da escravidão, mas os grilhões simbólicos resistiram e ainda resistem. A chamada abolição não contemplou direitos, não contemplou questões humanitárias, já que o negro continuou sendo percebido sob a ótica da coisidade. Embora tenham edificado e sustentado a economia do país, não foram planejadas para os ex-escravizados no território brasileiro políticas de reparação que os colocassem como integrantes da sociedade.

Nascimento (2016NASCIMENTO, A. Genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2016., p.79) afirma:

Atirando os africanos e seus descendentes para fora da sociedade, a abolição exonerou de responsabilidades os senhores, o Estado, e a igreja. Tudo cessou, extinguiu-se todo o humanismo, qualquer gesto de solidariedade ou de justiça social: o africano e seus descendentes que sobrevivessem como pudessem. (grifo nosso)

Os ex-escravizados tiveram, então, sua existência ainda mais subalternizada com a intensificação das mazelas materiais e simbólicas. Se antes eram retirados do terreno da humanidade, agora esse viés de coisa se solidifica devido à produção de uma liberdade que não lhes daria a possibilidade de se constituírem como integrantes da sociedade e, acima de tudo, como seres cuja existência fosse considerada. Tal fato ilustra não só uma ocorrência gerada por coerções de uma época, mas um acontecimento cujo desdobramento crucial é a produção de sujeitos. O acontecimento libertário e seus mecanismos fortaleceram a concepção vigente em torno do sujeito negro e ainda produziram e sustentaram outras como, por exemplo, a produção e manutenção do negro como um marginal.

A compreensão deste fato nos leva ao terreno da subjetividade. Guattari (1992GUATTARI, F. Heterogênese. In: GUATTARI, F. Caosmose: um novo paradigma estético. Trad. de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Editora 34, 1992. p. 11-95.) a concebe como oriunda de uma fabricação. Para o autor, o sujeito não é preexistente, mas uma instância gerada pelo cruzamento de vários elementos. Para tratar deste fenômeno, o autor adota a ideia de máquinas de produção de subjetividade. Por máquinas não compreende somente o aparato tecnológico, mas todo tipo de relação:

A subjetividade não é fabricada apenas através das fases psicogenéticas da psicanálise ou dos “matemas do inconsciente”, mas também nas grandes máquinas sociais, mass-mediáticas, linguísticas, que não podem ser qualificadas como humanas. (GUATTARI, 1992GUATTARI, F. Heterogênese. In: GUATTARI, F. Caosmose: um novo paradigma estético. Trad. de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Editora 34, 1992. p. 11-95., p. 20)

A subjetividade, dessa maneira, não está dada. Não se trata de uma entidade pronta, mas que se produz, que é produzida e que se modela constantemente em função dos contatos realizados. Por isso, quando falamos do outro, quando pensamos em alteridade, devemos conceber a existência de uma instância que se apresenta em conformidade com os fluxos da vida, da sociedade, da tecnologia, da língua, do corpo, da saúde e de toda sorte de dispositivos que o atravessa. A subjetividade floresce, como nomeia Guattari (1992GUATTARI, F. Heterogênese. In: GUATTARI, F. Caosmose: um novo paradigma estético. Trad. de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Editora 34, 1992. p. 11-95.), a partir de uma heterogênese.

Se a gênese do sujeito está nas máquinas, na produção e na multiplicidade, significa que o que chamamos de outro deve ser compreendido a partir do entrecruzamento, das relações que o produzem, mas também a partir das relações entre as relações. Nesse sentido, Kilomba (2018) fala em outridade para pensar o lugar da mulher negra como sujeito. A autora concebe esta mulher como sendo o outro do outro porque

As mulheres negras foram assim postas em vários discursos que deturpam nossa própria realidade: um debate sobre o racismo onde o sujeito é homem negro; um discurso de gênero onde o sujeito é a mulher branca; e um discurso sobre a classe onde “raça” não tem lugar. Nós ocupamos um lugar muito crítico, em teoria. É por causa dessa falta ideológica, argumenta Heidi Safia Mirza (1997) que as mulheres negras habitam um espaço vazio, um espaço que se sobrepõe às margens da “raça” e do gênero, o chamado “terceiro espaço”. Nós habitamos um tipo de vácuo de apagamento e contradição “sustentado pela polarização do mundo em um lado negro e de outro lado, de mulheres.” (MIRZA, 1997: 4). Nós no meio. Este é, é claro, um dilema teórico sério, em que os conceitos de “raça” e gênero se fundem estreitamente em um só. Tais narrativas separativas mantêm a invisibilidade das mulheres negras nos debates acadêmicos e políticos. (KILOMBA, 2012, p. 56, grifo nosso)

A constatação de Kilomba mostra que a subjetividade da mulher negra só pode ser compreendida a partir do enfrentamento e da aceitação de que as máquinas de produção de que fala Guattari se entrecruzam. Trata-se, portanto, de compreender também a subjetividade a partir de um viés interseccional, uma vez que as relações sociais se atualizam, se refinam e nos desafiam a encarar o mundo e os sujeitos em suas diferentes dimensões. Trata-se de perceber as “vozes” dos sujeitos que parecem dizer:

Peço que me considerem a partir do meu Desejo. Eu não sou apenas aqui-agora, enclausurado na minha coisidade. Sou para além e para outra coisa. Exijo que levem em consideração minha atividade negadora, na medida em que persigo algo além da vida imediata; na medida em que luto pelo nascimento de um mundo humano, isto é, um mundo de reconhecimento recíproco. (FANON, 2008FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Trad. de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008., p.181, grifo nosso)

Sendo assim, assumimos que o outro é uma entidade moldada no trânsito social, mas também é produzida e se produz a partir de redes intermináveis. Na conjuntura atual, em que experienciamos tantos atravessamentos, é impossível assumir uma perspectiva do outro sem considerar o múltiplo, ou seja, a racialização, as vozes que insurgem, os movimentos de retomada, a atualização e o refinamento do autoritarismo, as reivindicações das diferentes corporeidades, só para citar alguns. Desse modo, o questionamento que dá título a esta subseção tem como única resposta possível nossa inserção em uma micropolítica que contemple os muitos fios que nos atravessam para concebermos o outro a partir de seus atravessamentos e assim produzirmos relações que engendrem subjetividades mais livres.

3. DIZER É CRIAR

A língua é uma produção social, visto que os sentidos que circulam não são individuais, são oriundos das experiências coletivas. A língua, então, deve ser compreendida como um trabalho, como uma atividade atravessada pela heterogeneidade. Isso indica que língua e história, como já afirmado antes, são indissociáveis e que sujeitos ocupam uma posição para dizer o que dizem e como dizem. Isso caracteriza o discurso. É preciso, pois, delimitar o que está sendo chamado de discurso.

Acolhemos e assumimos a perspectiva de discurso enquanto prática. Foucault (2016FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Trad. de Luiz Felipe Baeta Neves. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2016.) concebe o que denomina formação discursiva para tratar dos enunciados que, independentemente de sua fonte e de seu pertencimento, podem ser agrupados em conformidade com a semelhança dos objetos a que se referem, das enunciações de que derivam, dos conceitos que abarcam e das estratégias empreendidas para movimentá-los. Esta formação é perpassada por regras, há relações anônimas que permitem o enquadramento de enunciados em dado âmbito, habilitando-os as fazerem parte de um dado campo discursivo.

A instrumentalização da noção desenvolvida por Foucault pode ser observada em Maingueneau (1997MAINGUENEAU, D. Novas tendências em análise do discurso. São Paulo: Pontes, 1997., 2008), que teoriza acerca do trabalho feito em torno da manutenção da formação discursiva. O autor concebe a imbricação entre o texto e seus produtores:

[...] é preciso articular as coerções que possibilitam a formação discursiva com as que possibilitam o grupo, já que estas duas instâncias são conduzidas pela mesma lógica. Não se dirá, pois, que o grupo gera um discurso do exterior, mas que a instituição discursiva possui, de alguma forma, duas faces, uma que diz respeito ao social e a outra, à linguagem. (MAINGUENEAU, 1997MAINGUENEAU, D. Novas tendências em análise do discurso. São Paulo: Pontes, 1997., p. 55,grifo do autor)

Assim, o funcionamento e a sedimentação da formação discursiva se dão por meio do que o autor vai denominar como prática discursiva. Isso não só porque há reiterações e regularidades, mas, acima de tudo, porque há uma indissociabilidade entre o linguístico e as condições e produção, porque há uma “reversibilidade essencial entre as duas faces, social e textual, do discurso (MAINGUENEAU, 1997MAINGUENEAU, D. Novas tendências em análise do discurso. São Paulo: Pontes, 1997., p. 56). Compreende-se, portanto, a integração entre texto e uma comunidade que lhe dá sustentação, isto é, o discurso é uma prática porque há sujeitos que enunciam, há sujeitos que se produzem e são produzidos na esteira das máquinas de produção. É, por fim, uma prática discursiva porque há embates que sustentam um dado posicionamento no mundo.

Assumindo que estamos sempre diante de práticas discursivas, podemos compreender o que significa criar a partir da linguagem. Se uma prática discursiva é um trabalho relativo ao funcionamento de uma formação discursiva, isso indica que os elementos que constituem essa formação são produzidos, fabricados para o pertencimento a essa formação. Um desses elementos é, como vimos em linhas anteriores, o objeto. Para Foucault (2016FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Trad. de Luiz Felipe Baeta Neves. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2016.), os objetos são formados pela prática discursiva, já que esta não é um conjunto de signos, mas um conglomerado sustentado por muitas relações. Então, afirmar que a prática discursiva tem a face criadora é mais do que afirmar que ele produz um objeto estático, é confirmar que há a criação de realidades, porque são estas que dão sustentação e status aos objetos de que falamos.

A prática discursiva, desse modo, é produtora e mantenedora de verdades que vão se espraiando, se agregando e se solidificando. Não se trata, portanto, de uma representação de mundo, mas de uma criação de mundo que engendra modos de conceber os objetos de que falamos. Com isso, podemos relembrar e reafirmar o que foi enunciado sobre o corpo e podemos aqui refutar, mais uma vez, a ideia de corpo como etiquetação, isto é, como uma relação em que as nomeações e as atribuições dirigidas a ele estivessem atreladas ao impacto do olhar que lhe é dirigido, pois

O corpo, ou seja, a carne é nesse caso, considerado uma espécie de metáfora ou anamorfose do mundo. Porém, mais uma vez, ainda, é claramente o verbo que circula no espaço social, que formaliza o sistema de interdição ou de prescrição, o qual o corpo, após uma longa aprendizagem generacional e uma rápida aprendizagem individual na educação infantil, torna seu. (GLEYSE, 2007GLEYSE, J. A carne e o verbo. In: GLEYSE, J. Pesquisas sobre o corpo: ciências humanas e educação. Campinas: FAPESP, 2007. p. 1-21., p. 8)

Estamos, então, diante do que Rocha (2006ROCHA, D. Representação e intervenção: produção de subjetividade na linguagem. Gragoatá, Niterói, , v. 21, p. 355-372, 2006.) denomina como linguagem-intervenção. É a linguagem produzindo realidades, sujeitos, história. É a linguagem que cria e intervém no mundo que encontramos. Os objetos de que falamos parecem prontos somente na medida em que acreditamos que, ao enunciar, estamos somente fazendo reiterações, pois uma prática discursiva está impregnada de fatores que se impõem. A palavra, nesse sentido, é uma ordenação, como asseveram Deleuze e Guattari (1995, p. 17, grifo dos autores):

Chamamos palavras de ordem não uma categoria particular de enunciados explícitos no imperativo, mas a relação de qualquer palavra ou de qualquer enunciado com pressupostos implícitos, ou seja, com atos de fala que se realizam no enunciado, e que podem se realizar apenas nele. As palavras de ordem não remetem, então, somente aos comandos, mas a todos os atos que estão ligados aos enunciados por uma “obrigação social”. Não existe enunciado que não apresente este vínculo, direta ou indiretamente.

Desse modo, dizer é criar, é inventar sujeitos e modos de vida, porque a palavra emerge em conformidade com uma dada ordem de mundo, a palavra é uma prática que concerne às verdades de um tempo. Logo, não há representação, mas intervenção pela produção que é inerente à palavra no trânsito social.

4. POSTAGENS QUE CRIAM O OUTRO

Nesta seção, expomos análises de postagens para confirmar o processo de produção do outro na prática discursiva denominada motivacional do fisiculturismo. Antes, porém, cabe situar, de forma breve, a análise do discurso que respalda o trabalho e a natureza da prática discursiva em questão.

Assumimos e praticamos a análise do discurso de base enunciativa tendo em vista o fato de lermos a materialidade linguística atrelada às diferentes conjunturas. Não se trata de pinçarmos enunciados e suas diferentes configurações. O analista do discurso que se debruça sobre a análise de práticas discursivas precisa conceber a relação entre o texto e a comunidade que lhe dá sustentação. Esta relação, consequentemente, aparece nos enunciados produzidos. Por isso, nesta perspectiva, o trabalho com enunciados que “não são nem inteiramente linguísticos, nem exclusivamente materiais” (FOUCAULT, 2016FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Trad. de Luiz Felipe Baeta Neves. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2016., p.104) guia o trabalho do analista na medida em que permitirá acessar a produção ou a solidificação de dadas realidades. Cumpre destacar que as leituras e releituras dos enunciados é que dão ao analista as pistas que precisam ser seguidas para a realização das análises, uma vez que

uma etapa incontornável do trabalho é o exame das marcas - verbais e não verbais - presentes nos textos, etapa que pressupõe leituras sucessivas do material trabalhado. É preciso abrir espaço para uma sensibilidade que dirá, ao cabo de um certo tempo, qual a entrada linguística mais promissora para a investigação pretendida. Essa sensibilidade caracteriza o trabalho do analista do discurso como o de um analista institucional, para quem as marcas linguísticas operam como expressão de forças em jogo numa dada instituição. Afinal, a insistência em um determinado perfil de materialidade - a ênfase em dada estrutura sintática, em dado campo semântico, na retomada insistente de um tópico, na presença de enunciados negativos - parece nunca ser gratuita, apontando, via de regra para a produção de efeitos de sentidos significativos no material sob investigação, em articulação com uma dada espessura institucional. (DEUSDARÁ; ROCHA, 2018DEUSDARÁ, B; ROCHA, D. O que entendemos por “trabalhar em Análise do discurso”? In: DEUSDARÁ, B. et al. (orgs.). Em Discurso, cenas possíveis. Araruama: Ed. Cartolina, 2018., p. 21, grifo nosso)

O analista, portanto, não escolhe os enunciados ou as marcas linguísticas que irá analisar, mas depreende um certo funcionamento a partir das regularidades linguísticas e não linguísticas que aparecem nos textos que compõem suas pesquisas. Por isso, este trabalho é também cartográfico, uma vez que o objetivo não é isolar, mas “desenhar a rede de forças à qual o objeto ou fenômeno em questão se encontra conectado, dando conta de suas modulações e de seu movimento permanente.” (BARROS; KASTRUP, 2015BARROS, L. P. de; KASTRUP, V. Cartografar é acompanhar processos. In: PASSOS, E.; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. da (orgs.). Pistas do método da cartografia: pesquisa intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2015. p. 52-75., p. 57)

No que concerne à prática discursiva em questão, é possível afirmar que ela é denominada como motivacional4 4 Algumas são as comunidades discursivas voltadas para a “motivação”. Elas estão na rede social Instagram. https://www.instagram.com/monstrosbr/ https://www.instagram.com/academia_minhavida/ pela comunidade discursiva que a sustenta por conter elementos, nos planos verbal e não verbal, que levariam os sujeitos a empreenderem não só seus corpos, mas também suas condutas, que devem estar alinhadas aos ideais de superação e de vitória para o empreendimento corporal que requer, como já demonstramos, ações sistemáticas. Assim, o corpo assume o viés de algo interminável porque sua produção e manutenção dependem de uma postura alinhada a princípios que não contemplam a falência em nenhum sentido. Podemos, então, depreender que “Com isso, o que se busca não é tanto a saúde, mas a melhoria das performances.” (COUTO, 2001COUTO, E. S. Estética corporal e protecionismo técnico nas culturas higienista e desportiva. In: GRANDO, J. C. (org.). A (des)construção do corpo. Blumenau: Edifurb, 2001, p. 35-59., p. 57), tendo em vista o fato de tal prática atuar no sentido de conduzir os sujeitos a atuarem de forma cada vez mais arrojada na gestão de seus corpos.

Feitas as explanações e os esclarecimentos necessários, apresentamos a análise, que conta com dois posts pertencentes a uma página da rede social Instagram que se filia ao denominado eixo motivacional do fisiculturismo.

Figura 1
Primeiro Enunciado

No âmbito não verbal, o enunciado é composto pela imagem de uma mulher, realizando o exercício denominado agachamento com barra. A realização deste exercício requer muito esforço devido à carga e ao movimento que deve ser feito pelo praticante. No campo verbal, o enunciado apresenta referência à ação, à qualidade da ação e aos sujeitos. Isso se dá por meio da adjetivação das ações, da “nomeação” dos sujeitos e do operador argumentativo mas.

As ações trazidas são as fáceis e as difíceis e os sujeitos, os habilitados e os não habilitados. A dificuldade é alçada ao patamar da necessidade. Ao fazer isso, o enunciador marca um território, o território do sacrifício. Não há, portanto, uma oposição advinda dos vocábulos fácil e difícil, mas uma hierarquização que se dá através do vocábulo intensificador mesmo.

Os sujeitos são produzidos e qualificados a partir da oposição qualquer um e não é qualquer um e do operador argumentativo mas. Qualquer um, aqui, não é somente alguém que não tenha habilidades, mas alguém cujo valor não está atrelado à lógica das produções incessantes, alguém cujo valor não é o da individuação. Por isso, enunciar que o fisiculturista ou o praticante da mesma atividade não é qualquer é colocá-los como hábeis, mas, sobretudo, como sujeitos superiores. O operador argumentativo mas sustenta esta produção de sentido. Segundo Ducrot (1987DUCROT, O. O dizer e o dito. Campinas, SP: Pontes, 1987.), este é o operador argumentativo por excelência, pois liga dois atos distintos e, ainda, confere peso ao enunciado que o pospõe. Desse modo, o enunciado você não é qualquer um, constitui o argumento mais forte desta enunciação e ancora o dito no território da superioridade. O outro aqui é alguém cujo valor está atrelado a um ideário em que a sustentação de uns depende do rebaixamento de outros. Estamos, então, diante de um enunciado que não contempla a motivação, mas a produção do outro a partir das malhas de uma política de vida que desconsidera as singularidades por atrelar sua existência a uma categoria inferior por não executar os mesmos objetivos que a massa.

Figura 2
Segundo Enunciado

No plano não verbal, o post mostra um homem com corpo hipertrofiado que parece descansar após a execução de um exercício. Sua postura conduz a leitura no sentido de uma reflexão. No plano verbal, há um enunciado generalizante, pois pode ser proferido e aplicado a circunstâncias distintas e constitui seu eixo de sentido a partir da combinação entre afirmação e justificativa.

Esta compreensão pode ser verificada na materialidade linguística, primeiramente, pelo status que é conferido ao vocábulo impossível. Diferentemente de sua acepção gramatical, não aparece no enunciado como um adjetivo ou até como um substantivo, como poderia ser compreendido devido à presença do determinante, mas como lugar. O impossível no enunciado em questão é transformado pela enunciação em um locus destinado a certos sujeitos. Isso é sedimentado pela presença do operador argumentativo porque que introduz uma justificativa para um questionamento que está na ordem do não dito, do subentendido que, para Ducrot (1987DUCROT, O. O dizer e o dito. Campinas, SP: Pontes, 1987., p. 25),

[...] resulta de uma reflexão do destinatário sobre as circunstâncias de enunciação da mensagem e deve ser captado, através da descrição linguística, ao final de um processo totalmente diferente, que leve em conta, ao mesmo tempo, o sentido do enunciado e suas condições de ocorrência e lhes aplique leis lógicas e psicológicas gerais.

Tal depreensão, portanto, não resulta de uma suposição, mas do estabelecimento e da recuperação de relações discursivas e do que foi silenciado para que o dito, o literal aparecesse. Desse modo, é possível depreender que o enunciador se coloca como habitante de um território em que o extraordinário está sempre presente e atribui a si mesmo a imagem de herói - ao passo que tantos outros não têm as mesmas potencialidades, somente alguns. Nesse sentido, há a produção de uma autoimagem em que o sujeito que busca e trabalha pelo sobre-humano, pelo especial, uma corporeidade hipertrofiada e, simultaneamente, a produção da imagem dos muitos outros, entre esses, alguns que seriam ou estariam habilitados a habitar este território e outros que não estariam. Mais uma vez, vemos também a produção do território da seletividade, vemos a produção do outro como um sujeito destinado à falência, à precariedade para sustentar a existência de vencedores.

A análise apresentada permite compreendermos que uma produção corpórea está entrelaçada a uma produção de sujeitos. O sujeito produtor da corporeidade hipertrofiada (o fisiculturista ou aquele que pratica a mesma atividade) deve ter uma subjetividade baseada no heroísmo, na exclusividade ou em uma espécie de eleição que destina a poucos o sucesso, a glória, a produção. Já o sujeito que a prática constrói seria o oposto deste produtor de si, seria um sujeito (produzido) que não teria certas potencialidades ou as teria, mas não teria a conduta de um vencedor, a conduta de um construtor do corpo e de si. Assim, o que verificamos é, efetivamente, a produção do outro. Mas não se trata somente de “colocar um sujeito no mundo” para a coexistência, trata-se da produção do outro como necessidade para a sustentação de si. Nessa perspectiva,

a corporeidade atinge patamares que se relacionam às imposições do nosso tempo. Ter um corpo hipertrofiado não é somente ter um corpo musculoso, não é ostentar uma aparência; é, na verdade, sustentar uma série de princípios que tal corpo simboliza. Estes princípios contemplam a dissociação com a coletividade e a naturalização de atitudes que não comportam limites. (GONÇALVES, 2019GONÇALVES. Sem dor, sem ganho: uma análise da prática discursiva “motivacional” do fisiculturismo. 2019. 192 f. Doutorado (Letras) - Universidade Estadual do Rio de Janiero, Rio de Janeiro, 2019., p.185)

O fisiculturista ou o praticante da musculação que vislumbra os mesmos objetivos metaforizam, então, no campo da subjetividade, um ser triunfante, ao passo que o outro, o sujeito produzido a partir disso, metaforiza um ideário que captura o poder não fazer, isto é, suas potências e a capacidade de exercê-las ou não, como nos mostra Agamben (2015AGAMBEN, G. Sobre o que podemos não fazer. In: AGAMBEN, G. Nudez. Trad. de Davi Pessoa Carneiro. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.), e as coloca como falha, imperfeição, cerceando outras produções de vida.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do que foi exposto, debatido e demonstrado ao longo deste texto, cabe fazer considerações que abarquem mais reflexões acerca do sujeito e da linguagem no mundo do que aquelas que abarquem direções definitivas.

A perspectiva de mundo e de língua assumida aqui é industrial. Os objetos, portanto, não estão prontos, não apareceram no mundo de uma ou de outra forma, mas por processos. Por isso, é fundamental atentar para o fato de que os corpos, as línguas, os sujeitos, o conhecimento e tudo com o que temos contato não está em dado lugar de forma estática. Por mais que uma dada estabilidade ou sedimentação seja concebida por nós, sempre estaremos no terreno das criações.

Apontamos que isso ocorre no bojo das práticas linguageiras. Desse modo, as práticas discursivas, relação indissociável entre texto e comunidade discursiva, devem ocupar lugar central nas reflexões acerca dos acontecimentos do mundo. Se admitimos que essas práticas criam e interferem nos percursos do mundo, é impossível não atentarmos para as construções discursivas que o atravessam. Assim sendo, cabe lançar nossos olhares sobre as práticas discursivas que violentam os corpos, as línguas, as subjetividades e os encarceram.

Isso permite reafirmar que uma prática discursiva é constituída por relações de ordens distintas, inclusive a subjetividade do outro. Uma prática discursiva homogeneizante, como a que foi analisada em nossa tese e neste artigo e como muitas outras que estão em vigor, só se constituem e se se solidificam em virtude do outro, então vislumbrar esta dimensão é, de certo modo, apreender a mecânica das práticas que nos capturam, já que a discursividade só se institui a partir de uma dada alteridade.

Somos, então, chamados a admitir que a língua intervém no mundo, somos chamados ao entendimento de que as subjetividades produzidas por regimes enunciativos podem ser da ordem do engessamento, somos chamados a compreender e a abraçar o fato de que há perspectivas colonizadoras sobre nós. Isso nos coloca no terreno da ação, pois, se é possível intervir pela língua para uma produção paralisante, também é possível intervir para a produção de potencialidades. Então, é fundamental compreender que essas práticas discursivas precisam e devem ser combatidas com práticas discursivas que movimentem e contemplem outros pontos de partida.

A produção de subjetividade, como afirma Guattari (1992GUATTARI, F. Heterogênese. In: GUATTARI, F. Caosmose: um novo paradigma estético. Trad. de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Editora 34, 1992. p. 11-95.), pode trabalhar tanto para o melhor como para o pior. Isso significa que os sujeitos podem, a partir da agregação de fatores distintos, produzir outros caminhos para si e para o outro. Isso significa que, para qualquer produção massificante, há, de alguma forma, uma possibilidade de superação. Isso significa que os regimes de enunciação homogeneizantes e totalitários podem ser rompidos, transformados, porque sempre será possível o reconhecimento da diferença, que é inerente à vida. Isso significa que, se é possível produzir o outro como sujeito incapaz, sem pertencimento à sociedade e até mesmo como adversário, também é possível propiciar, por meio das enunciações, a produção de outro como potência, como vida e corporeidade.

REFERÊNCIAS

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  • 1
    Enunciado proferido pelo empresário Júnior Durski, dono da rede de restaurantes Madero. Disponível em: https://bit.ly/3JGVPWo. Acesso em 23. dez. 2020.
  • 2
    Enunciado proferido pelo empresário e apresentador Roberto Justus. Disponível em: https://bit.ly/3O26X2Z. Acesso em: 23. Dez. 2020.
  • 3
    Tradução de Black Lives Matter, movimento pela luta contra o racismo, a brutalidade e a injustiça praticados pelas instituições legais americanas. O movimento surge em 2014, após dois policiais assassinarem dois homens negros desarmados. Em 2020, o movimento se intensifica, mas, no âmbito discursivo, é possível afirmar que ganhou o status de enunciado devido a sua reprodução por diferentes sujeitos e a sua inserção em diferentes esferas.
  • 4
    Algumas são as comunidades discursivas voltadas para a “motivação”. Elas estão na rede social Instagram. https://www.instagram.com/monstrosbr/ https://www.instagram.com/academia_minhavida/

Editado por

Editor de Seção:

Fábio José Rauen

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    29 Dez 2020
  • Aceito
    03 Jul 2023
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