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Isso é conversa de branco

DESAFIO CONSTITUINTE

Isso é conversa de branco

Hamilton Cardoso

Jornalista

Até aqui as Constituições brasileiras não foram mais que conversa entre brancos. As elites e os militares levaram à risca o velho ditado popular: "Eles, os brancos, que se entendam." E se entenderam.

As coisas, porém, já não podem ser assim. A próxima Constituinte terá de incluir, no novo pacto social, o entendimento do que negros e índios pensam sobre como deve ser a organização da sociedade. A conversa terá de ser democrática, plurirracial e popular.

O tema do racismo, é verdade, está fora da pauta política dos partidos, ainda não assumiu concretude nas lutas e reivindicações dos movimentos populares, da mesma forma que ainda é considerado de difícil compreensão pelos intelectuais e pelas elites políticas progressistas da sociedade civil. Porém, o problema é concreto e interessa a milhões de brasileiros subcidadãos, descendentes dos povos nativos subjugados pelo colonialismo, e dos africanos escravizados, até hoje marginalizados dos benefícios reais do desenvolvimento nacional.

As vítimas atuais do racismo brasileiro chegam a pelo menos 60 milhões de brasileiros não-brancos (44,5%). São homens, mulheres e crianças que, exatamente por não terem laços plenos e contínuos com a identidade europeia do Brasil, se for mantida a atual estrutura antidemocrática e racista da sociedade, jamais serão vistos no alto da pirâmide social — a mais flagrante denúncia do racismo.

Tais raças, tradicionalmente prejudicadas pela política de investimentos públicos e privados, preferencialmente destinados aos grupos brancos do país, estão condenadas a reproduzir entre si e, quase geneticamente, a miséria e a ignorância, além da falta quase absoluta de oportunidades e acesso aos benefícios sociais.

Mas, como indica a tradição, não será fácil o enfrentamento do racismo na sociedade brasileira. Inclusive por causa da situação da marginalização do próprio tema nas listas de reivindicações sociais e democráticas. Além disso, o racismo brasileiro não se manifestou da forma clássica que ocorreu nos países onde ele foi oficializado por uma legislação segregacionista ou de apartheid (como na África do Sul e EUA). Aqui, as desigualdades sociais acabaram por ofuscar o racismo, na hora de definir os instrumentos para combatê-lo.

Até há algum tempo, o racismo era visto como algo "sutil", em nosso país. A partir de 1980, quando, cedendo às insistentes pressões dos movimentos étnicos, o IBGE incluiu o item cor nos censos demográficos, soube-se que o racismo era brutal. O IBGE revelou, por exemplo, que a distribuição racial da renda é profundamente desigual e, em geral, os não-brancos, negros e mestiços, têm uma renda média 40% inferior à média dos brancos. Ou então, que apenas dez mulheres negras, ao final da década dos 70, recebiam mais de vinte salários mínimos, em todo o país.

Os números do racismo revelaram também que o fato de freqüentar escola e concluir a universidade era um privilégio de brancos. No caso dos negros que alcançaram sucesso neste desafio, a educação universitária pouco ajudou para melhorar o seu nível de vida e as suas condições sociais, como indicam os salários das mulheres negras, em situação bem mais desfavorável que a dos seus pares homens. Por fim, as pesquisas sobre as realidades raciais revelaram que até mesmo as desigualdades regionais do país refletem a hegemonia racial dos brancos na sociedade brasileira: o Sul rico, belo e desenvolvido, é praticamente branco, enquanto o Nordeste, pobre e subdesenvolvido, teve a sua identidade revelada: é negro e índio, com a população majoritariamente mestiça.

Da mesma forma, quem traçar o perfil racial da população brasileira e sua distribuição geográfica vai descobrir também a intensa concentração de negros no campo, em oposição ao branqueamento da cidade. Isto, ao mesmo tempo que a maior parte dos conflitos entre camponeses e latifundiários pela terra manifesta-se com maior violência nas regiões com populações majoritariamente mestiças, índias e negras, como é o caso dos estados de Goiás, Bahia, Pará e Maranhão — da mesma forma que os conflitos urbanos, em torno de questões básicas de sobrevivência nas cidades, envolvem imensas parcelas de populações, principalmente negras e mestiças.

À luz destes dados foi possível detectar algumas prováveis pistas para explicar o porquê da não manifestação, no Brasil, dos conflitos raciais em seu estilo contemporâneo, ou seja, através de legislações segregacionistas que, ao nível do Estado, a exemplo do que ocorreu nos EUA e continua ocorrendo na África do Sul, organizam e institucionalizam os confrontos entre os cidadãos de raças diferentes: as desigualdades, aqui, são tão grandes que chegam ao ponto de eliminar, pela distância, a competição entre indivíduos de raças diferentes, ao mesmo tempo que a ignorância da realidade racial amplia e consolida os estigmas e preconceitos raciais. Por outro lado, a inferiorização das raças dominadas, determinada pelas desigualdades sociais e a exploração económica dos trabalhadores, passa a ser justificada, como um fato natural, e o racismo passa a ser explicado através da exibição da miséria contínua dos não-brancos.

O conflito racial direto entre os indivíduos é desnecessário no Brasil, exatamente porque o próprio Estado se encarrega de cumprir esse papel, ao privilegiar, em suas políticas de desenvolvimento, as raças de origem européia.

Esse processo se torna muito evidente quando olhamos a história de formação da classe operária brasileira. Desde a metade final do século passado até o início deste, o processo de transição do trabalho escravo para o trabalho livre deu-se a partir da concessão de privilégios aos trabalhadores brancos europeus que, estimulados pelas elites e o governo brasileiro, imigraram para o Brasil. Ainda que a história dos trabalhadores brasileiros revele a alta taxa de opressão, exploração e repressão aos imigrantes, estes trabalhadores brancos receberam, ainda que em parcela reduzida, terras e trabalho e, em uma parcela mais ampla, a partir da década de 40, o direito à cidadania. Ao contrário da população nativa e descendentes de africanos, marginalizados naquele processo, os imigrantes ficaram com os melhores empregos e melhores salários, transformando-se, assim, na base da atual classe média, onde atualmente são recrutados os principais líderes e representantes da sociedade civil — certamente, a parcela da sociedade que será fundamental para a definição dos futuros constituintes.

O outro exemplo de racismo contra os não-brancos e de privilegiamento dos brancos pelo Estado brasileiro é mais recente e foi implementado pela ditadura militar. Trata-se dos PND, planos nacionais de desenvolvimento, que, entre outras coisas, previa — além de uma política desenvolvimentista que aumentou a concentração de riquezas na região Sul do país, majoritariamente branca — a consolidação da ocupação do território brasileiro. Para isto, sob a justificativa de criar novas fronteiras, com a concessão de terras o governo estimulou a migração interna de trabalhadores brancos do Sul para as regiões Centro-oeste e amazónica, com populações até então majoritariamente índias e mestiças. Por fim, a criação dos pólos industriais no Nordeste negro e mestiço se fez não com a qualificação da mão-de-obra local, mas através da "exportação" de trabalhadores brancos do Sul para aquelas regiões, principalmente Bahia e Maranhão. Enquanto estes novos "imigrantes" deslocavam-se para o Norte e Nordeste em troca de altos salários e vantagens funcionais, milhões de trabalhadores locais, mestiços, submetidos a um elevado nível de exploração, acabaram migrando, nas piores condições humanas imagináveis, para o Sul, onde, habitando as periferias das grandes cidades, se tornaram nos dias atuais a espinha dorsal e os maiores interessados na organização do movimento popular.

As muitas faces do racismo

Mais importante, porém, é notar que essas são várias faces do racismo de Estado que, apesar de não legalizado através de leis segregacionistas e do apartheid, expressam uma estratégia sistematizada com vistas a consolidar em todo o território nacional e nos principais setores da economia uma espécie de poder branco brasileiro.

É por isso que um dos pontos de partida da Constituinte deve ser bem explícito: ela deve contestar o poder branco e reconciliar a sociedade que, racista, como mostram os dados, acabou por criar dois mundos: um miserável, onde vivem negros, índios e mestiços, e outro que privilegia os brancos, apesar da exploração capitalista. Um país onde a distribuição racial do trabalho e até mesmo a configuração da ocupação geográfica, pela população, no território nacional, as estruturas são sempre brancas no alto, para enegrecer nas bases.

A Constituinte, portanto, para estabelecer princípios que democratizem essa realidade e indiquem pistas para a unificação dos dois mundos em bases de convivência racial inspiradas nos direitos do cidadão, exigirá, desde já, não só um debate vigoroso envolvendo as vítimas e os agentes do racismo, mas uma opção política definitiva do Estado, enquanto órgão de representação da sociedade, no sentido de destruir os privilégios sociais, assumir e revelar as faces não-brancas da nação.

Não se trata, portanto, de esperar que a Assembléia Nacional Constituinte estabeleça apenas algumas normas para a criação de leis específicas no combate a eventuais manifestações individuais ou mesmo grupais de discriminação racial. Mais que isto, ela terá a tarefa de, através da nova Constituição, estabelecer políticas específicas de Estado, visando superar as desigualdades sociais e económicas entre as raças, além de criar condições objetivas para a imediata e ampla reorganização e manifestação cultural das raças dominadas e oprimidas pela atual sociedade brasileira.

Esta nova política, naturalmente, implicará o estabelecimento de privilégios, ainda que temporários, para as raças que até aqui foram prejudicadas. O problema da qualificação e substituição da mão-de-obra, que vitimou índios, negros e mestiços, em benefício dos trabalhadores europeus brancos, deve ser enfrentado. Os cidadãos das raças oprimidas precisam recuperar o tempo perdido, em busca da igualdade. Para tanto, devem ser arrancados da ignorância para que se possa colocar um fim à sua atual condição de inferioridade criada pela discriminação e pelo racismo de Estado.

Como poderá ser o futuro

Esta é a única forma de nivelar os patamares em relação ao futuro. Se não for assim, melhor será aos não-brancos do Brasil buscarem outros caminhos para a oficialização do seu próprio mundo, onde a miséria econômica e filosófica a que estão submetidos possa ser debelada com as suas próprias mãos. Assumir, independentemente dos brancos, a responsabilidade por seus próprios destinos. E, para isto, dentro da atual realidade brasileira, seria necessário, ainda que pela revolta, o ódio e o racismo "ao contrário", esmagar o poder branco — algo temerário para a construção da democracia.

Afinal, como deverá dizer a primeira Constituição realmente democrática que este país vier a ter, "o Brasil é uma república democrática, federativa, multirracial e pluri-cultural, cujas populações, formadas por negros, brancos, índios e mestiços, vivem com iguais direitos e condições para seu desenvolvimento autônomo, individual e coletivo, nos estados, territórios e municípios...".

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Dez 1985
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