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O sonho do servo

INTEGRAÇÃO E DESINTEGRAÇÃO NA AMÉRICA LATINA

CONTO

O sonho do servo* * Traduzido por Maria José Silveira.

José Maria Arguedas

Escritor e etnólogo peruano, é considerado um dos maiores escritores de seu país. É autor de vários ensaios etnográficos e romances, um dos quais já publicado no Brasil: Os Rios Profundos (Ed. Paz e Terra). Este conto foi contado a Arguedas por um velho comuneiro de Qaqta, perto de Cuzco, Peru

Um homenzinho caminhou até a casa -grande de seu patrão. Como era servo, ia cumprir o seu período de servente na grande residência. Era pequeno, de corpo miserável, ânimo fraco, todo lamentável; suas roupas eram velhas.

O grão -senhor, dono da fazenda, não pôde conter o riso quando o homenzinho o saudou, no alpendre da residência.

- És gente ou outra coisa? - perguntou -lhe diante de todos os homens e mulheres que estavam de serviço.

Humilhando -se, o servo não respondeu. Apavorado, com os olhos gelados, ficou de pé.

- Vamos ver! - disse o patrão. - Pelo menos saberá lavar panelas, ou talvez manejar uma vassoura, com essas mãos que parecem não ser de nada. Leva embora essa porcaria! - ordenou ao capataz da fazenda.

Ajoelhando -se, o servo beijou as mãos do patrão e, todo curvado, seguiu o capataz até a cozinha.

O homenzinho tinha o corpo pequeno, no entanto as suas forças eram as de um homem comum. Tudo o que lhe mandavam fazer, fazia bem. Mas havia um quê de espanto no seu rosto; alguns servos riam ao vê -lo assim, outros se apiedavam. "Órfão dos órfãos; filho do vento da lua deve ser o frio de teus olhos; o coração, pura tristeza", dissera ao vê -lo a mestiça cozinheira.

O homenzinho não falava com ninguém; trabalhava calado; comia em silencio. Tudo o que lhe ordenavam, fazia. "Sim, senhorzinho; sim senhorinha", era tudo o que costumava dizer.

Talvez por ter uma certa expressão de espanto, e por sua roupa tão esfarrapada e talvez, também, porque não queria falar, o patrão sentia um desprezo especial pelo homenzinho. Ao anoitecer, quando os servos se reuniam no alpendre da casa -grande para rezar a ave -maria, nessa hora, o patrão sempre martirizava o servo diante de toda a criadagem; sacudia -o como um pedaço de pele.

Empurrava -o pela cabeça e o obrigava a se ajoelhar, e assim, quando já estava agachado, dava -lhe pequenos golpes na cara.

- Pareces um cão. Ladra! - dizia -lhe. O homenzinho não conseguia ladrar.

- Fica de quatro pés - ordenava -lhe, então.

O servo obedecia e dava uns passos em quatro pés.

- Trota de lado, como cão - continuava ordenando o fazendeiro.

O homenzinho sabia correr imitando os cães pequenos dos paramos.

O patrão ria com gosto; o riso lhe sacudia o corpo.

- Volta! - gritava quando o criado alcançava, trotando, o extremo do grande alpendre.

O servo voltava, de ladinho. Chegava cansado.

Alguns de seus semelhantes, os criados, enquanto isso rezavam a ave -maria, devagar, com o vento interior no coração.

- Levanta as orelhas agora, lebre! És uma lebre! - ordenava o senhor ao cansado homenzinho. - Senta sobre os dois pés; junta as mãos!

Como se no ventre de sua mãe houvesse sofrido a influência modeladora de alguma lebre, o servo imitava exatamente a figura de um desses animaizinhos, quando ficam quietos entre as rochas, como se rezassem. Mas não conseguia levantar as orelhas.

Golpeando -o com as bolas, sem chutá -lo forte, o patrão derrubava o homenzinho sobre o piso de tijolos do alpendre.

- Rezemos o pai -nosso - dizia, então, o patrão a seus índios criados que esperavam em fila.

O servo se levantava aos poucos, mas não podia rezar porque não estava no lugar que lhe correspondia e nem esse lugar correpondia a ninguém.

Ao escurecer, os criados desciam do alpendre ao pátio e se dirigiam ao casario da fazenda.

- Vai embora, tripinha! - costumava ordenar, depois, o patrão ao servo.

E assim, todos os dias, diante da criadagem, o patrão maltratava seu novo servo. Obrigava -o a rir, a fingir o pranto. Entregou -o à mofa de seus iguais, os empregados da fazenda.

Mas... uma tarde, na hora da ave -maria, quando o alpendre estava cheio com toda a gente da fazenda, quando o patrão começou a olhar o servo com seus olhos densos, esse... esse homenzinho falou muito claramente. Seu rosto continuava como se estivesse um pouco espantado.

- Grão -senhor, dá -me tua licença; senhorzinho meu, quero falar - disse.

O patrão não ouviu o que ouvia.

- O quê? Foste tu quem falou ou um outro? - perguntou.

- Tua licença, senhorzinho, para te falar. É a ti a quem quero falar - repetiu o servo.

- Fala... se é que podes - respondeu o fazendeiro.

- Meu pai, senhor meu, coração meu - começou a falar o homenzinho. - Sonhei esta noite que havíamos morrido os dois juntos; juntos havíamos morrido.

- Comigo? Tu? Conta tudo, índio - disse -lhe o grande senhor.

- Como éramos homens mortos, senhor meu, aparecemos desnudos, os dois juntos, desnudos, diante de nosso grande Pai São Francisco.

- E depois? Fala! - ordenou o patrão, entre irritado e inquieto pela curiosidade.

- Vendo -nos mortos, desnudos, juntos, nosso grande Pai São Francisco nos examinou com seus olhos que alcançam e medem não se sabe até que distância. A ti e a mim nos examinava, pesando, creio, o coração de cada um e o que éramos e o que somos. Como homem grande e rico tu enfrentavas esses olhos, meu pai.

- E tu?

- Não posso saber como estive, grão -senhor. Eu não posso saber o que valho.

- Bem, continua contando.

- Então, depois, nosso Pai disse com sua boca: "De todos os anjos, que venha o mais formoso. Que acompanhe a esse incomparável outro anjo pequeno, que seja também o mais formoso. Que o anjo pequeno traga uma taça de ouro, e a copa de ouro cheia do mel mais transparente".

- E então? - perguntou o patrão.

Os índios ouviam, ouviam o servo com atenção sem medidas, mas atemorizados.

- Dono meu: assim que nosso grande Pai São Francisco deu a ordem, apareceu um anjo, brilhando, alto como o sol; veio até chegar diante de nosso Pai, caminhando devagar. Atrás do anjo maior, marchava outro pequeno, belo, de luz suave como o esplendor das flores. Trazia nas mãos uma taça de ouro.

- E então? - repetiu o patrão.

- Dizendo: "Anjo Maior, cobre a este cavalheiro com o mel que está na taça de ouro; que tuas mãos sejam como plumas quando passarem sobre o corpo do homem", nosso grande Pai ordenou. E assim o anjo excelso, levantando o mel com suas mãos, embelezou teu corpinho, todo, desde a cabeça até a unha dos pés. E te ergueste, só; no esplendor do céu, a luz do teu corpo sobressaía, como se fosse feito de ouro transparente.

- Assim tinha que ser - disse o patrão; e logo perguntou: - E a ti?

- Quando tu brilhavas no céu, nosso grande Pai São Francisco tornou a ordenar: "Que de todos os anjos do céu, venha o de menor valor, o mais ordinário. Que esse anjo traga, numa lata de gasolina, excremento humano".

- E então?

- Um anjo que já não prestava, velho, de pés escamosos, a quem não alcançavam as forças para manter as asas no lugar, chegou diante de nosso grande Pai; chegou bem cansado, com as asas caídas, trazendo nas mãos uma lata grande. "Olha aqui, velho" - ordenou nosso grande Pai a esse pobre anjo, - "mela o corpo desse homenzinho com o excremento que está na lata que trouxeste; todo o corpo, de qualquer jeito; cobre -o como possas. Rápido!" Então, com suas mãos nodosas, o velho anjo, tirando o excremento da lata, me cobriu o corpo, desigual, assim como quem joga barro na parede de uma casa vagabunda, sem cuidado. E apareci envergonhado na luz do céu, fedendo...

- Assim mesmo tinha que ser - afirmou o patrão. Continua! Ou tudo termina aí?

- Não, senhorzinho meu, senhor meu. Quando novamente, ainda que de outro modo, nos vimos juntos os dois, diante de nosso grande Pai São Francisco, ele tornou a nos olhar, também novamente ora a ti, ora a mim, muito tempo. Com seus olhos que enchiam o céu, não sei até que profundidade nos alcançou, juntando a noite com o dia, o esquecimento com a memória. E depois disse: "Tudo o que os anjos deviam fazer com vocês, já está feito. Agora, lambam -se um ao outro! Devagar, por muito tempo". O velho anjo rejuvenesceu nesse instante; suas asas recuperaram sua cor negra, sua grande força. Nosso Pai encarregou -o de vigiar para que se cumprisse sua vontade.

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    Traduzido por Maria José Silveira.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Jan 2011
    • Data do Fascículo
      Out 1990
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