Resumos
Um dos intelectuais mais importantes do PSDB reflete, a partir da condição de militante e de ministro de Estado no atual governo, sobre as tarefas que se impõem a um partido que se define como social-democrata neste final de século.
One of the most important intelectuais of the PSDB reflects, from the condition of a party member and of a Secretary in the present Administration, on the tasks which a party defining itself as social-democratic at this end of the century has to face.
GOVERNO & DIREITOS
Por um partido democrático, de esquerda e contemporâneo
For a democratic and contemporary left party
Luiz Carlos Bresser Pereira
Ministro da Administração e Reforma do Estado e professor da Fundação Getúlio Vargas
RESUMO
Um dos intelectuais mais importantes do PSDB reflete, a partir da condição de militante e de ministro de Estado no atual governo, sobre as tarefas que se impõem a um partido que se define como social-democrata neste final de século.
ABSTRACT
One of the most important intelectuais of the PSDB reflects, from the condition of a party member and of a Secretary in the present Administration, on the tasks which a party defining itself as social-democratic at this end of the century has to face.
Esquerda e direita, liberalismo e intervencionismo, socialismo e capitalismo são ideologias e instituições que possuem um conceito universal, invariável no tempo, e outro historicamente situado. Em conseqüência, quando examinados do ponto de vista histórico, as relações entre essas variáveis mudam. O liberalismo sempre esteve associado à prevalência do mercado no plano econômico e da liberdade no plano político, enquanto o intervencionismo atribui um papel maior para o Estado na coordenação da economia; a esquerda foi sempre uma posição política que privilegia a justiça social e a igualdade, enquanto a direita sempre prioriza a ordem. Nos séculos XVIII e boa parte do século XIX, o liberalismo era revolucionário e estava associado às idéias de esquerda; neste século identificou-se com a direita, enquanto a esquerda, capturada pela burocracia, se tornava intervencionista e, no limite, estatista. O capitalismo industrial foi na Inglaterra um projeto liberal, nos países de industrialização tardia, um projeto intervencionista. O intervencionismo, desde que moderado, era tanto de esquerda quanto de direita. A direita foi intervencionista em todos os regimes autoritários e totalitários que patrocinou. Neste século a esquerda foi estatista nos países comunistas ou de economia de comando, foi desenvolvimentista nos países em desenvolvimento, e foi social-democrática nos países desenvolvidos. Todas essas concepções históricas da esquerda, entretanto, entraram em crise nos últimos 20 anos. Agora no Brasil temos um partido social-democrático e moderno, o PSDB. Como defini-lo neste momento de crise de velhos valores e de mudança tecnológica mais acelerada do que nunca? E, mais amplamente, como conceituar os movimentos de esquerda moderada deste final de século?
Para definir o que é o PSDB sem repetir simplesmente que é um partido social-democrático, poderíamos dizer que é um partido democrático, de esquerda e contemporâneo. Se pensarmos no significado destas três palavras, teremos um caminho para analisarmos a natureza deste partido que surgiu no final dos anos 80 identificado com uma proposta ética e anti-populista de modernização da centro-esquerda no Brasil.
O PSDB é um partido democrático. Quanto a isto não há dúvida, e portanto podemos ser breves a respeito. O grupo que formou o núcleo fundador do PSDB, em 1988, lutou a vida inteira pela democracia, contra o autoritarismo sob todas as formas possíveis, fossem elas de direita ou de esquerda. Muitos de nós talvez não fôssemos tão democráticos nos anos 50, quando insistíamos em diferenciar a democracia formal da substantiva e a menosprezar a primeira. Os anos de ditadura, entretanto, foram uma maravilhosa escola democrática para a esquerda, que aprendeu que a democracia formal - a afirmação dos direitos civis e políticos - já é uma grande conquista - uma conquista que não pode ser trocada por taxas de desenvolvimento eventualmente maiores ou por programas sociais mais amplos. A etapa seguinte - a defesa dos direitos sociais - foi a grande tarefa da esquerda neste último século, mas não pode ser cumprida ao custo do abandono dos dois outros avanços: os direitos civis, defendidos pelos liberais ainda no século dezoito, e os direitos políticos, conquistados pelos democratas tanto liberais quanto de esquerda no século dezenove. A democracia é um valor universal que se tornou economicamente viável a partir do século XIX, quando o excedente econômico deixou de ser apropriado de forma violenta por uma pequena classe dominante armada e passou a ser apropriado via mercado pela troca de equivalentes. Nesse momento tornou-se também politicamente desejável, na medida que os regimes democráticos, além de garantirem a liberdade, revelavam-se mais estáveis do que os regimes autoritários.
Já em relação ao segundo ponto - a social-democracia estar identificada com a esquerda -, parto de um pressuposto: ou alguém é de esquerda ou é de direita. Pode-se ocupar politicamente o centro, como ocorre hoje com a coalizão que apóia o governo Fernando Henrique, pode-se pensar que existe um espaço localizado no centro do espectro ideológico, mas, na verdade, ou se está basicamente comprometido com os princípios da esquerda ou da direita; em última instância, ou se é progressista ou se é conservador. O centro é um lugar virtual, um espaço de acordos, que são necessários mas não constituem uma opção ideológica. Na verdade, os governos geralmente acabam ocupando o centro. Em princípio só se consegue ter a maioria e ser governo quando se ocupa o centro. Mas, enquanto pessoa ou enquanto partido, ou somos de esquerda ou de direita. O PSDB, embora, como todo grande partido abrigue uma amplo espectro ideológico, é essencialmente um partido de centro-esquerda.
CONCEITO UNIVERSAL DE ESQUERDA E DIREITA
Mas o que é ser de esquerda ou ser de direita? O que é ser progressista ou conservador? Em um livro recente, Esquerda e direita, Norberto Bobbio (1994) procura definir os dois termos. Embora leitor e admirador de Bobbio, não concordo inteiramente com sua definição, mesmo reconhecendo que seja semelhante àquela que vou apresentar. Simplificando dramaticamente, Bobbio diz que é de esquerda quem defende a igualdade, quem luta por uma distribuição de renda mais igual, por uma maior justiça social. E é de direita quem não tem este objetivo como prioridade, vendo a desigualdade como inevitável e sob muitos aspectos desejável. Bobbio pretende que esta seja uma definição neutra - ideologicamente, axiologicamente, valorativamente neutra -, embora, no final do livro, declare sua preferência por uma esquerda moderada, ou seja, por uma esquerda social-democrática. Como, porém, pode ser neutra uma distinção que define uma das posições pela negativa?
Em seu lugar proponho uma outra definição de esquerda e de direita , que não sofre dessa limitação, que, ao invés de opor um uma afirmação a uma negação, opõe dois valores afirmativos. É de esquerda quem está disposto a arriscar a ordem em nome da justiça. É de direita quem prioriza a ordem em relação à justiça social. Além da liberdade, que não divide a esquerda da direita, há dois outros valores absolutamente fundamentais para as sociedades contemporâneas. Um é a ordem o outro é a justiça. Todos desejam a ordem, a segurança, a estabilidade, e todos também querem a justiça, a equidade, senão a igualdade pelo menos a igualdade de oportunidade. Mas quando a ordem é tão importante para alguém a ponto de não arriscar nada em nome dela, essa pessoa será conservadora, será de direita. Quando, porém, estiver disposta a arriscar a ordem (e a democracia no limite já é um risco à ordem) em nome da justiça, então será de esquerda. Falo em arriscar, não acabar com a ordem. Quem quer acabar com a ordem é um extremista ou um revolucionário, que busca instalar uma outra ordem. Extremista se sua perspectiva for autoritária, se a ordem que busca destruir for democrática; revolucionário, se seu compromisso for com a democracia, se a ordem que precisa derrubar é opressiva. De esquerda, se seu objetivo for a igualdade plena, de direita, se sua aspiração maior for apenas restaurar uma ordem que julga perdida ou ameaçada.
Esta distinção entre esquerda e direita com base na prioridade atribuída à justiça ou à ordem parte de um perspectiva lógico-dedutiva. É um conceito a-histórico, que vale em qualquer momento, lugar e circunstância. Como todo conceito derivado do método lógico-dedutivo, tem origem em uma definição, em um pressuposto, a partir do qual tudo o mais se deduz logicamente. O pressuposto está baseado em uma convenção, que naturalmente se refere a alguma realidade ou a alguma experiência, mas esta é colocada em segundo plano, para que o conceito ganhe o máximo de generalidade, para que se torne o mais abstrato e universal possível.
Quando afirmo que o PSDB é um partido de esquerda, ou, mais precisamente, de centro-esquerda, estou simplesmente dizendo que seus membros estão dispostos a arriscar a ordem em nome da justiça. Com moderação, com prudência, mas com determinação. Valorizam a ordem, mas valorizam tanto ou mais a justiça, e sabem que para alcançá-la é preciso, muitas vezes, colocar em jogo a ordem, uma ordem quase sempre marcada pela desigualdade e o privilégio, pelo monopólio da riqueza nacional, do poder, do patrimônio do Estado por parte de grupos ou classes minoritárias. Afinal, o que se quer mudar, assumindo-se os riscos da mudança, não é outra coisa senão um determinado tipo de ordem: a ordem estabelecida.
A distinção entre esquerda e direita a partir de um ponto de vista histórico recebeu um grande avanço com a contribuição de Albert Hirschman, em seu livro The Rhetoric of Reaction (1991). Hirschman procurou em seu livro detectar quais os principais argumentos retóricos conservadores através dos tempos, e chegou a três grandes argumentos ou teses: a Tese do Efeito Perverso, a Tese da Futilidade, e a Tese do Risco ou do Perigo (Jeopardy Thesis). Como contrapartida destas três teses, a esquerda adotou historicamente a Tese da Crise Eminente, a Tese da Necessidade Histórica e a Tese do Apoio Mútuo. Através de seus argumentos, a direita procurou, em três momentos fundamentais, que correspondem às etapas de T.H. Marshall, se opor à mudança: opôs-se, através de Burke, à afirmação dos direitos civis no século dezoito; opôs-se a afirmação dos direitos políticos no século dezenove através de Mosca e Pareto; e está se opondo aos direitos sociais neste século através de intelectuais como Hayek, Friedman e Stigler.
O conservador é contra a mudança social; é a favor da ordem. Por isso se oporá sistematicamente a todas as tentativas de mudar a sociedade para melhor. O primeiro argumento é a Tese do Efeito Perverso. É arriscado mudar a ordem. Pode ter efeitos perversos, não intencionais. Conforme Burke e Tocqueville procuraram demonstrar, a revolução francesa, ao defender os direitos civis, teria conduzido a sociedade "à tirania e ao terror"; a grande luta pelo sufrágio universal levaria ao "despotismo das massas"; a implantação neste século do Welfare State teria distorcido os preços, provocado de forma "populista" o desequilíbrio fiscal, e estimulado a "desídia e depravação" daqueles que são ajudados. Além de negar a necessidade do efeito perverso, que pode ser evitado, a esquerda argumentou com a Tese do Perigo Iminente de conturbação ou revolução social, que só poderiam ser evitadas se reformas sociais forem adotadas. O argumento é atrativo, generoso, mas, na maioria dos casos, tão falso quanto o dos efeitos perversos.
As tentativas de mudança podem, também, pecar pela futilidade, argumenta o conservador. De acordo com a Tese da Futilidade, todas as ações para mudar a sociedade para melhor seriam cosméticas, de fachada. O sufrágio universal seria uma ilusão já que leis profundas e inevitáveis, como a lei de Pareto sobre a distribuição de renda; ou a lei de Mosca sobre o domínio necessário das elites, particularmente da "classe política", evitarão que um regime novo realmente ocorra. Da mesma forma, o Welfare State seria um engano. Os benefícios não chegarão ao seu objetivo - os pobres - sendo desviados pela burocracia estatal que tem o papel de distribuí-los. Segundo a "lei de Director", enunciada por Stigler: "as despesas públicas beneficiam principalmente a classe média, embora financiadas por impostos pagos em grande parte pelos pobres e pelos ricos".
A contrapartida do argumento da futilidade das tentativas de mudança esta na Tese da Necessidade Histórica. Esta foi uma teoria marxista que marcou profundamente a esquerda, e a levou a equívocos e contradições. Se a emergência do proletariado e a vitória do socialismo são historicamente inevitáveis, a rigor não há razão para lutar por eles. Ou, quando se luta, se é investido, de uma segurança pessoal, de um certeza de estar com a verdade - a verdade da história - que é tão deletéria quanto as teorias imobilistas dos conservadores. Hirschman observa que os conservadores buscam leis da estabilidade dos sistemas sociais, e assim sustentam seu argumento da futilidade, enquanto que os progressistas buscam as leis do movimento, e assim sustentam seu argumento da necessidade histórica, ou da futilidade da reação contra o progresso.
Finalmente o conservador, em sua paixão pela ordem, argumenta em relação ao risco que reformas sociais representam. Estas podem ser desejáveis em si mesmas, mas poriam em risco conquistas anteriores. No século dezenove o sufrágio universal e a democracia poriam em perigo os direitos civis anteriormente conquistados; no século vinte, as reformas sociais ameaçariam a democracia conquistada. Os argumentos são variados: Hayek argumentou que a democracia exige consenso, e o consenso só é possível quando o Estado é mínimo; já Huntington argumenta que é exatamente esse consenso que é perigoso, porque permite que as demandas dos pobres sejam maiores do que a capacidade da sociedade, através do Estado, atender. Foi assim que Huntington explicou senão justificou os regimes militares instalados na América Latina nos anos 60. A contrapartida de esquerda ao argumento do perigo ou do risco é a Tese dos Apoios Mútuos. As reformas não são contraditórias entre si, mas se apoiam mutuamente. Este pensamento pode ser verdadeiro em muitos casos, mas, quando levado ao exagero, produz um tipo de pensamento utópico perigoso.
O conservador, na sua defesa da ordem, está, assim, sempre alertando contra os efeitos imprevistos da mudança, quanto ao perigo que ela representa, ou quanto a inutilidade de tentá-la. Em contrapartida, o progressista, preocupado com a justiça, minimiza os riscos de alcançá-la, imagina que as reformas têm externalidades positivas apoiando-se mutuamente, e, no limite, acreditam que a vitória de suas teses é historicamente inevitável.
Nesse sentido o conservador é um pessimista, que acredita que o homem é o lobo do homem, que seu egoísmo é avassalador, que homens e mulheres só se motivam para obter ganhos pessoais, enquanto que o progressista é um otimista, que acredita na possibilidade de solidariedade, e que em certos casos está disposto a sacrificar interesses pessoais em nome dos interesses gerais. Tanto um quanto outro têm como valor maior um valor social realmente fundamental: a ordem e a justiça social. O problema, como a esquerda bem observa, é que a conservação da ordem geralmente também implica a manutenção de privilégios. Ou a dificuldade, conforme retruca a direita, está no fato de que a obtenção da justiça é arriscada senão impossível.
A justiça social, para a esquerda, é sinônimo de igualdade. De igualdade relativa, de igualdade política, social e econômica como uma compensação das desigualdades individuais, que necessariamente existem. É mais do que igualdade de oportunidade, porque esta não neutraliza as desigualdades individuais intrínsecas a cada indivíduo. Ora, o objetivo de um progressista é neutralizá-las ou compensá-las, ainda que parcialmente. Neutralizá-las inteiramente além de impossível, seria desaconselhável, já que eliminaria a motivação individual que para a esquerda também é um fator importante.
É exatamente essa falta de motivação que leva o conservador a abominar a justiça social. Ou, mais precisamente, a dizer que é a seu favor, mas que mais importante é motivar os indivíduos a serem trabalhadores, inovadores, capazes e aceitar riscos nos negócios. E isto só será possível se todos os ganhos que obtiverem forem exclusivamente seus, não tiverem que ser divididos pelas políticas sociais do Welfare State.
O conservador, no século dezoito e em boa parte do século dezenove, era contra o liberalismo porque a afirmação dos direitos civis ameaçava a ordem estabelecida. Quando os direitos civis passaram a fazer parte da ordem, opuseram-se à democracia tornando-se aos poucos liberais porque o sufrágio universal ameaçava a nova ordem. Finalmente, quando a democracia passou a fazer parte da ordem vigente, colocaram-se contra a nova ameaça a ela - o socialismo ( que na sua corrupção estatista era, de fato, uma ameaça) e a defesa dos direitos sociais - e tornaram-se definitivamente liberais: neoliberais. Contraditoriamente não se aperceberam ainda que a afirmação dos direitos sociais já é parte da ordem em que vivemos, e que o ameaçador, o perigoso, é querer destruí-la.
A social-democracia é de esquerda porque, embora valorizando a ordem, está disposta a arriscá-la em nome da justiça. Por isso defende os direitos sociais, por isso se insurge contra a desigualdade que é ainda tão grande no mundo e principalmente no Brasil. Mas adota uma posição de esquerda liberada, propõe reformas graduais, acredita no mercado como um bom alocador de recursos, defende radicalmente a democracia, tem horror às soluções gerais e definitivas para toda a sociedade, é tolerante e retalhista por definição. Por isso tudo compartilha com os liberais alguns dos seus princípios clássicos - exatamente aqueles princípios que permitiram que no século dezoito e na primeira metade de século dezenove os liberais fossem progressistas e tenham dado uma contribuição tão importante ao desenvolvimento econômico e à democracia.
Adam Przeworski (1985: 239), em sua pesquisa hoje já clássica sobre a social-democracia, partindo do pressuposto de que seu objetivo é, ainda que a longo prazo e por via reformista, o socialismo, identificou um paradoxo que poderia ser chamado de "Paradoxo de Przeworski": "os social-democratas fizeram o melhor que poderiam ter feito sob as circunstâncias históricas sob as quais atuaram... mas eu duvido que seus esforços levariam suas sociedades ao socialismo... Creio ter demonstrado que os trabalhadores provavelmente não optarão pelo socialismo se agirem exclusivamente na defesa de seus interesses... Já que eu vejo a combinação de capitalismo com democracia a forma de sociedade mais adequada aos seus interesses econômicos imediatos, sou cético a respeito da possibilidade de se alcançar o socialismo através da ação deliberada de sindicatos, partidos políticos ou governos".
O paradoxo de Przeworski pode, entretanto, ser resolvido se não entendermos socialismo como o sistema econômico e social em que necessariamente é abolida a propriedade privada dos meios de produção, muito menos como um sistema econômico estatal, como a esquerda burocrática deste século pretendeu. Em vez disto podemos entendê-lo mas como um sistema em que os direitos sociais são respeitados a um ponto de produzir uma razoável igualdade não apenas de oportunidade mas de padrões de vida entre todos. Neste caso a luta da social-democracia deixa de ser paradoxal, porque os seus objetivos são também os objetivos imediatos dos pobres e dos trabalhadores.
E neste caso, a luta de uma esquerda moderna, socialista, democrática e liberal tem amplo espaço. Para isto, entretanto, é preciso não correr no erro da esquerda tradicional, burocrática, que subestima o papel dos mercados em promover melhores condições de vida para os trabalhadores e da democracia para promover a igualdade. E é preciso compreender que, embora a igualdade, como a liberdade e a justiça, seja uma das utopias básicas da humanidade, para ser alcançada não basta ser idealista, é preciso trabalhar, não apenas no Estado mas em todos os níveis da sociedade e particularmente nas organizações públicas não-estatais, com os instrumentos que nos permitem definir políticas públicas igualitárias adequadas e, em seguida, administrá-las de forma competente. Conforme observa Fernando Henrique Cardoso (1995: D3) "O debate sobre o alcance do ideal da igualdade não morreu, embora se tenha tornado mais concreto, voltado para problemas de gestão e eficiência... Aqui entra o ideário social-democrata. Se o objetivo é distribuir renda, abandonando as vias radicais, o problema que se coloca é duplo: o da eficiência e o da equidade, que devem ser combinados".
ESQUERDA E DIREITA DOS ANOS 30 AOS 50
Além de democrático e de centro-esquerda, o PSDB é um partido contemporâneo. Contemporâneo, porque inserido na história. Contemporâneo porque comprometido com a resolução dos problemas concretos que a nação brasileira enfrenta neste final de século. Contemporâneo porque apoiado em uma concepção moderna, adequada aos nossos dias, do que seja a esquerda, do que seja lutar pela democracia e por uma distribuição de renda mais igual.
Uma coisa é pensar tão abstratamente como acabei de fazer ao definir lógico-dedutivamente esquerda e direita, e concluir que o PSDB é de esquerda. Outra coisa, é, a partir dessa visão muito geral e muito ampla, cuidar dos problemas concretos, reais, contemporâneos do país. Neste caso, deve-se ser histórico e não abstrato. Ser histórico, indutivo, concreto, viver sua realidade contemporaneamente, sem perder suas referências mais universais e abstratas.
Muitas vezes, quando discutimos o que é esquerda e direita, pensamos historicamente e não abstratamente. Na verdade é preciso pensar segundo os dois métodos. É preciso não perder o referencial histórico e universal dos conceitos, mas não confundi-lo ou identificá-lo com as formas históricas que assume através do tempo. Por exemplo, a esquerda nos anos 50 era nacionalista, desenvolvimentista, protecionista, além de estar preocupada com a justiça social. Não se preocupava muito com a democracia, já que a democracia existente era considerada "formal". Por outro lado, a direita autoritária dos nos anos 70, a direita dos militares, era também nacionalista, desenvolvimentista e protecionista.
Este fato nos sugere, primeiro, que o fato de ser nacionalista, desenvolvimentista e protecionista não distingue esquerda de direita. Segundo, que essa era a resposta que a esquerda dava aos problemas do Brasil em um momento em que o país estava realizando a transição de um regime pré-capitalista, mercantilista, para um regime capitalista, entre os anos 30 e os anos 50. Um sistema econômico mercantilista através da industrialização se tornava capitalista. Como toda industrialização tardia, era obrigatoriamente uma industrialização dirigida pelo Estado, implementada à base da proteção à indústria nacional. Não havia outra alternativa naquela época. E a esquerda, corretamente, adotava esta perspectiva, apoiava esta política - uma política que, aliás, não era exclusiva da esquerda: era também dos empresários, que, naquele momento histórico, haviam temporariamente deixado de se identificar com o liberalismo econômico, e também da direita tradicional, patrimonialista e autoritária, que nunca fora liberal.
A CRISE DO ESTADO
Mas o tempo passou, o mundo e o Brasil mudaram. A grande mudança foi a grande crise do Estado e, em conseqüência, o ressurgimento do liberalismo, imediatamente reivindicado como exclusividade de uma nova direita neoliberal, embora também a esquerda dele necessite - uma crise do Estado que foi a causa fundamental da grande crise econômica nos anos 80. Uma crise que se inicia nos anos 70 e que atinge seu auge na década seguinte. Uma crise que atingiu principalmente a América Latina e o Leste Europeu, onde o endividamento externo foi maior. Atingiu também a África e parte da Ásia. A rigor só escapou o Leste e Sudeste Asiático. Também no mundo desenvolvido houve crise. Não uma crise tão grave, mas suficiente para que as taxas de crescimento dos países da OCDE baixassem para a metade do que foram nos 20 anos após a Segunda Guerra Mundial. Na América Latina a renda permaneceu estagnada por 15 anos. Nunca a região havia sido atingido por uma crise tão grave quanto esta. A grande depressão dos anos 30, que golpeou tão duramente o mundo desenvolvido, foi muito menos forte na América Latina.
Ora, diante desta crise, o fundamental é saber porque ela ocorreu e porque, diante dela, torna-se preciso repensar as estratégias para alcançar a justiça social.
Está claro que a causa fundamental da grande crise econômica dos anos 80 foi a crise do Estado. Nesta década o Estado entrou em uma profunda crise, assim como nos anos 30 fora o mercado que entrara em grande crise. As economias capitalistas contemporâneas são coordenadas pelo mercado e pelo Estado. Os liberais defendem uma maior coordenação via mercado; os intervencionistas, uma coordenação em que o Estado tenha um papel relevante. No limite temos os neoliberais, que querem a retirada total do Estado da coordenação da economia, e os estatistas, que pretendem controlar tudo através do plano. Quando mercado ou Estado entram em crise, entra em crise a economia como um todo. E entra em crise a respectiva ideologia de coordenação econômica.
Nos anos 30 foi o mercado que entrou em crise, e, conseqüentemente, os liberais entraram em crise. Nos anos 80 quem entrou em crise foi o Estado, e, em conseqüência entraram em crise os intervencionistas, entre os quais estávamos nós, os social-democratas, intervencionistas moderados, desenvolvimentistas e defensores do Welfare State. Diante das novas realidades, todos tiveram que se ajustar, que realizar suas transições intelectuais. A direita brasileira que, nos anos 70, também apoiava firmemente a intervenção do Estado, rapidamente se ajustou porque lembrou que a burguesia, a classe empresarial, é originalmente uma classe liberal, e que a direita, no século XX, identifica-se necessariamente com ela. Já a esquerda, inclusive a moderada, social-democrática, teve mais dificuldade em ajustar-se, já que, estava historicamente identificada com o intervencionismo - um intervencionismo defendido em nome do desenvolvimento da defesa dos trabalhadores, mas que estava também intrinsecamente ligado aos interesses da nova classe média burocrática, assalariada, que neste século emergiu ao nível do Estado e das grandes organizações privadas, propondo-se, politicamente, estar identificada com os interesses da classe trabalhadora.
A primeira dificuldade foi diagnosticar a crise, perceber que sua origem estava no Estado - um Estado que crescera demais, e que fora privatizado, submetido aos interesses especiais, ao rent-seeking de empresários, pequenos proprietários, e pela nova classe média, inclusive os funcionários públicos.
Quando falo crise do Estado, estou me referindo a uma coisa muita precisa. Refiro-me, em primeiro lugar, a uma crise fiscal do Estado. O Estado quebrou. Não tinha mais condições de pagar corretamente suas dívidas, Estado perdeu o crédito público, deixou de acumular poupança pública, e, conseqüentemente, não teve mais liberdade de executar políticas públicas. A sua capacidade de intervir na economia e na sociedade diminuiu dramaticamente. Isto é a crise fiscal do Estado.
Em segundo lugar, é uma crise da forma de intervenção. O modelo segundo o qual o Estado, no Brasil, promoveu a intervenção na economia foi fundamentalmente o da substituição de importações, uma estratégia essencialmente protecionista, que, afinal, pouca coisa teve a ver com a esquerda: foi uma forma de acumulação primitiva que implicou substancial concentração de renda. Esta estratégia já estava esgotada no começo dos anos 60, quando grave crise econômica atingiu o país e toda a América Latina. Não havia mais sentido para o país e a região montar toda a sua estratégia de desenvolvimento baseando-se na proteção à indústria nacional. A indústria não era mais uma indústria infante. Estava na hora de competir internacionalmente.
E, terceiro, a crise do Estado é uma crise da forma burocrática de administrá-lo. Nos anos 60 já era tempo de pensar em uma administração gerencial muito mais eficiente, muito mais moderna - voltada para a descentralização e o controle dos resultados, ao invés do controle legal dos processos. Como a reforma não foi realizada, nos anos 80 esta era uma causa fundamental da crise.
LIBERALISMO E INTERVENCIONISMO
Um questão interessante na distinção entre esquerda e direita e mais precisamente, entre intervencionistas e liberais está relacionada com a defesa dos direitos sociais e dos direitos individuais. A social-democracia e a esquerda estão baseadas na afirmação dos direitos sociais, tal qual foram definidos no século XIX e implantados no mundo no século XX. Ao passo que os liberais, que não podem ser simplesmente identificados com a direita, estão ligados à afirmação dos direitos civis ou direitos individuais, que foram definidos no século XVIII e introduzidos nas constituições dos países no século XIX. Na verdade, nessa época a "esquerda" era formada pelos liberais, lutando contra a direita tradicional; os intervencionistas ou os socialistas estavam então apenas surgindo.
Então, temos a afirmação dos direitos individuais ou civis definindo, no século XIX, o Estado Liberal. E temos a afirmação dos direitos sociais definindo, no século XIX, o Estado Social.
O Estado Liberal do século XIX entrou em crise com a Primeira Guerra Mundial. Aproveitando a brecha provocada por essa crise surgiu o movimento comunista internacional, definido por um intervencionismo radical, pelo estatismo. Os estatistas identificaram socialismo com estatismo e disseram que havia uma contradição absoluta entre as idéias sociais ou socialistas, e as idéias liberais. É falso. Se a defesa dos direitos individuais representou a implantação do Estado Liberal e um grande avanço da democracia no século XIX, a defesa dos direitos sociais e a afirmação dos direitos sociais representou um segundo grande avanço dos ideais democráticos neste século que está prestes a terminar. Há conflitos entre a afirmação dos dois direitos, mas não há incompatibilidade. Na verdade, direitos individuais e direitos sociais, liberalismo e intervencionismo moderados, capitalismo e socialismo democrático são valores e instituições mais complementares do que conflitantes. O conflito só é radical quando o socialismo e o intervencionismo são identificados com o estatismo, como fizeram os comunistas, ou quando o capitalismo e o liberalismo são radicalizados e transformados em um neoconservadorismo, como fazem os neoliberais. Há complementaridade mais do que conflito se os direitos civis e liberalismo, direitos sociais e intervencionismo são pensado e praticados em termos moderados; quando não se pensa em formas puras de capitalismo e de socialismo, mas em formas mistas, como um capitalismo social e um socialismo de mercado.
DIREITOS PÚBLICOS E A RES PUBLICA.
Nesta segunda metade do século XX, entretanto, além dos direitos individuais e dos direitos sociais, um novo direito precisa ser melhor definido e implementado: o direito do patrimônio público, a res publica, aquilo que é de todos e para todos, a ser de fato público, a não ser privatizado por grupos especiais de interesses, a não ser vítima do rent-seeking. Em função da defesa dos direitos sociais, o Estado cresceu muito neste século. O Estado Liberal só tinha quatro ministérios: o Ministério da Justiça, com a polícia, o da Defesa, com as forças armadas, o das Relações Exteriores com a diplomacia e o das Finanças, provendo os recursos. Isto mais o poder legislativo e o judiciário compunham o Estado clássico, o Estado que garante a propriedade e os contratos.
No século XX, porém, surge o Estado Social, ou Social-Burocrático, com papéis e objetivos muito mais complexos e amplos. Aumentou o número de ministérios, surgiram os ministérios que cuidam da área social - educação, saúde, previdência, cultura, esportes, ciência e tecnologia, meio-ambiente - , os ministérios de infra-estrutura - transportes, comunicações, minas e energia, e os ministérios que cuidam do próprio Estado: planejamento e administração. Dessa forma, a res publica aumentou brutalmente. A carga tributária, que representava cerca de 5 a 10 por cento, passou para 30 a 50 por cento do PIB.
A partir de então, a cobiça sobre a coisa pública tornou-se enormemente forte. Grupos de interesse de todos os tipos, grupos de capitalistas, de funcionários, de assalariados de classe média em geral, passaram a lutar ferozmente para se apropriar da coisa pública, que é antes de mais nada a carga tributária, o volume de impostos que Estado arrecada anualmente e transfere para os setores julgados politicamente prioritários. Porque é bom lembrar: a atividade econômica essencial do Estado consiste em transferências, que só podem ser decididas politicamente. Distingue-se, nesse ponto, radicalmente do mercado, onde ao invés de transferências temos trocas de equivalentes.
Na segunda metade do século XX surge, portanto, um problema fundamental: a defesa da coisa pública. Um problema tão antigo quanto o Estado, mas que começa a ser definido quando, no século XIX, o avanço do capitalismo e da democracia leva à clara separação entre o patrimônio público e o privado. Que encontra sua primeira resposta no Estado de direito e na administração pública burocrática. Mas que só se torna central quando a dimensão da res publica torna o problema central para o capitalismo contemporâneo. Vai se tornando claro que um terceiro direito precisa ser defendido. Além dos direitos individuais, além dos direitos sociais, agora é necessário definir com clareza e afirmar o direito que todo cidadão tem à coisa pública. Que a coisa pública seja de fato pública. Que a coisa pública não seja apropriada por grupos especiais.
Essa idéia surge na esquerda como a luta contra a privatização do Estado. Foi um intelectual do nosso partido, Luciano Martins, quem primeiro usou essa expressão "privatização do Estado", em um artigo publicado em Ensaios de Opinião em 1978. Um pouco antes uma intelectual conservadora, neoliberal, a economista americana Ann Krueger (1974), criou a expressão rent seeking (busca de rendas), que é a ação desenvolvida pelos grupos de interesse para lograr "rendas", ou seja vantagens extra-mercado, que não derivam do trabalho ou do capital aplicados no mercado, mas do controle das transferências do Estado. Mais amplamente, rent-seeking seria a busca de vantagens monopolistas, mas Krueger limita-as ao ganhos de quem monopoliza o Estado no seu próprio interesse. Ora, isto é privatização do Estado com outro nome. É a apropriação do Estado realizada por capitalistas e burocratas que, por representantes da classe alta e da classe média, que obtêm subsídios e proteções indevidas do Estado, ou que recebem remunerações de todo tipo do Estado sem contrapartida correspondente. É privatização do Estado com uma conotação teórica diferente, nos termos do pensamento neoclássica, que caracteriza a teoria microeconômica.
Nestes termos, a esquerda e a direita começam a perceber, nos anos 70, que a defesa da coisa pública tornara-se um problema fundamental do nosso tempo. Um problema que exige a definição de um terceiro tipo de direito, além dos direitos individuais e sociais. Venho propondo chamar esses direitos de "direitos públicos", no plural, para significar o direito que todos nós, cidadãos, temos de que a coisa pública seja de fato pública e não privada. Enquanto os direitos civis são direitos do cidadão contra o Estado, os direitos públicos são direitos do cidadão a favor do Estado - do Estado enquanto res publica.
A defesa desses direitos é parte fundamental do processo de construção da democracia. Um partido social-democrático como o nosso deve defender os direitos individuais, que constituem a base democracia liberal; deve defender os direitos sociais, que constituem a substância da democracia social; e devem defender os direitos públicos, que garantem que a democracia seja ao mesmo tempo liberal e social, que os recursos do Estado estejam a serviço da sociedade e não de grupos privilegiados.
A ALTERNATIVA SOCIAL-DEMOCRATICA
Assim, se a crise fundamental que nós vivemos é uma crise do Estado, um Estado que foi privatizado por muitos, quatro alternativas se colocam para resolver essa crise: a alternativa neoliberal, a alternativa liberal, a alternativa social-democrática contemporânea, e a alternativa populista.
A primeira e a última são alternativas extremas. A alternativa neoliberal é a do Estado Mínimo. Já que o Estado se tornou um problema, já que o Estado em crise não logra mais (ou, mais precisamente, nunca logrou) promover o desenvolvimento e da justiça social, mas, pelo contrário, representa um obstáculo a esse objetivo, vamos reduzir o Estado ao mínimo e entregar toda a coordenação da economia ao mercado. Na verdade, os neoliberais fizeram uma critica inteligente e aguda do Estado, mas sua proposta é mera ideologia dogmática. Em nenhum país do mundo se logrou instalar um Estado neoliberal, voltar-se ao Estado Liberal do século passado. O país que mais se esforçou nessa direção foi a Grã-Bretanha. Reformas importantes foram realizadas, mas a redução do Estado foi muito pequena. Esta não é realmente uma solução.
No outro extremo, temos a alternativa populista, que ignora a crise e pretende retomar as velhas idéias dos anos 50. É a alternativa da esquerda arcaica. De quem não compreendeu os novos tempos. De quem não percebeu a crise do Estado.
A alternativa liberal é a alternativa pragmática da direita, que sabe que o Estado tem papéis importantes na área social e econômica. Que é de direita não porque vise o Estado mínimo mas porque privilegia os direitos individuais sobre os sociais, porque dá mais importância aos estímulos individuais do que à proteção dos mais fracos.
Finalmente, temos a alternativa social-democrática contemporânea. A alternativa do PSDB. Se a crise é do Estado, se é a crise do Estado que está provocando a crise na economia, temos de reformar e reconstruir o Estado.
A primeira condição para reconstrução do Estado é termos um estado fiscalmente forte e administrativamente capaz. São estas duas características que dão ao Estado governança: capacidade de governo. A defesa do déficit público como solução geral para os problemas econômicos é uma tolice sem nome atribuída ao maior economista deste século por populistas inveterados. Keynes, que foi o maior economista deste século, jamais adotou tal idéia. O déficit público era um recurso temporário e excepcional para enfrentar a insuficiência da demanda agregada. O déficit público crônico só enfraquece o Estado. Para nós social-democratas, que precisamos de um Estado forte, capaz de compensar os desequilíbrios provocados pelo mercado, nada é mais importante do que ajuste fiscal. Sem recursos, sem poupança pública, o Estado estará imobilizado. Por outro lado, não basta ter recursos, é preciso saber usá-los com competência administrativa. O argumento fundamental dos neoliberais contra a intervenção do Estado não é o de que não existem falhas no mercado, mas que as falhas do Estado são por definição mais graves. Ora, isto não é necessariamente verdade. Só o é quando falta capacidade administrativa ao Estado. Quando sua burocracia é incompetente, quando suas instituições são rígidas e hierárquicas. Porque neste caso, como no caso de falta de poupança pública, o Estado não terá governança.
Na verdade existe uma segunda circunstância em que os neoliberais têm razão: quando falta governabilidade ao Estado. As falhas do Estado nestas circunstancias tenderão a ser maiores do que as falhas do mercado. Esta é também é a segunda condição para a reconstrução do Estado: dotá-lo de governabilidade, seja através da definição de objetivos para sua intervenção consistentes com suas possibilidades financeiras e técnicas, seja através da implantação de instituições políticas que garantam legitimidade a seu governo, de forma que os políticos no poder sejam de fato representantes ou agentes dos interesses da nação.
É impossível reconstruir o Estado sem ter claros os objetivos a serem atingidos. E estes objetivos têm que ser historicamente situados. Não faz sentido insistir em objetivos para o Estado que eram adequados no início da industrialização, quando a acumulação primitiva não havia sido ainda realizada. Não faz sentido, também, atribuir ao Estado missões que o Estado não tem condições fiscais de cumprir, ou que eram recomendáveis quando o mercado e não o Estado estava em crise. Hoje está claro que o Estado deve intervir principalmente na área econômica para dar condições às empresas para que concorram internacionalmente, ao invés de protegê-las da concorrência. Por outro lado, na área social, como na área econômica, a intervenção do Estado não deve ser direta, não deve implicar na execução dos serviços pela própria burocracia do Estado. Se economias externas ou direitos humanos relevantes justificam a intervenção do Estado, este deve contratar os serviços sociais com organizações públicas não-estatais em termos competitivos ao invés de conceder o monopólio daquele serviço a um grupo de burocratas do Estado.
Finalmente, reconstruir o Estado e dotá-lo de governabilidade significa criar instituições que garantam que os eleitores sejam de fato o principal e os governantes, os seus agentes. Que os políticos no poder tenham incentivos para representar os interesses dos seus eleitores. No PSDB lutamos pelo parlamentarismo porque acreditamos que esta seja uma instituição política que garante melhor governabilidade. Da mesma forma, defendemos um sistema eleitoral distrital misto, formas mais transparentes de financiar eleições, horário gratuito no rádio e na televisão para os partidos políticos, limitações ao número de partidos, fidelidade partidárias apenas para questões doutrinárias fundamentais, e contínuo aperfeiçoamento dos métodos internos de democracia partidária, porque acreditamos que estas instituições políticas dão legitimidade ao governo, e permitem que ele governe melhor.
AS REFORMAS
Temos de partir dessas idéias para pensar o PSDB e o Brasil. E para rebater as críticas de que o PSDB e a grande coalizão de centro que hoje apóia o governo Fernando Henrique Cardoso esteja realizando uma política neoliberal. Que as reformas defendidas pelo governo sejam conservadoras. À luz da análise que acabamos de realizar opiniões desse tipo não subsistem um segundo. Desde quando eliminar monopólios estatais, desde quando eliminar privilégios na previdência e recuperar seu equilíbrio financeiro, desde quando reformar o aparelho do Estado e tornar a burocracia mais responsável perante o governo e a nação, desde quando privatizar, desde quando abrir o país comercialmente de forma pragmática, desde quando lutar dia a dia pelo ajuste fiscal e a estabilidade da moeda é estar engajado em reformas neoliberais? Estas são reformas liberais apenas para uma esquerda arcaica e populista. Ou para um patrimonialismo conservador, que quer manter o Estado a serviço de suas clientelas. Se essas fossem reformas neoliberais, os neoliberais deteriam o monopólio da contemporaneidade e do bom senso.
É óbvio que o Brasil tinha de fazer sua abertura comercial, e que esta foi extremamente bem sucedida. Criou alguns problemas mas foi a principal causa do impressionante aumento da produtividade ocorrido na industria brasileira nestes últimos cinco anos. Em certos casos temos de ser pragmáticos. Recuar um pouco, como o fizemos. Porque não podemos ser dogmáticos em reforma nenhuma. As reformas que realizamos são corretamente orientadas para o mercado, mas são também orientadas para o interesse nacional.
A privatização é outra reforma que está em curso e que está sendo bem feita, com respeito ao patrimônio público. Quando o Estado tinha poupança pública sobrando e podia investir ou reinvestir seus lucros, as empresas estatais eram um solução ideal para promover o desenvolvimento. No momento em que o Estado perde a capacidade de realizar poupança pública, chegou a hora de privatizar.
A reforma administrativa - pela qual eu sou diretamente responsável - é uma reforma fundamental para o país, seja para garantir o ajuste fiscal e a recuperação da poupança pública, seja para viabilizar uma administração do Estado eficiente e moderna, na qual servidores públicos competentes e motivados atendam os cidadãos ao invés de se constituir em uma burocracia isolada da sociedade, com um sistema de remuneração desvinculado do mercado de trabalho privado, auto-referida ao invés de voltada para o cidadão, lenta e ineficiente porque presa a uma racionalidade de procedimentos rígida, legal, em uma burocracia que por todas essas razões é desvalorizada pela sociedade a quem deve servir. O sentido da reforma constitucional proposta e das propostas contidas no Plano Diretor da Reforma do Estado (1995) é exatamente o de restabelecer a capacidade administrativa do Estado, dotá-lo de um corpo de funcionários nas carreiras de Estado que administre e fortaleça o núcleo estratégico do Estado, ao mesmo tempo que viabilize a descentralização dos serviços do Estado para as agências executivas e as organizações públicas não-estatais.
A reforma da previdência, finalmente, é essencial para restabelecer o equilíbrio financeiro do sistema e para eliminar privilégios, que são manifestos principalmente no sistema de aposentadorias e pensões dos funcionários públicos. Esta reforma só será uma reforma de esquerda, social-democrática, se lograr estabelecer um princípio de maior igualdade entre o setor público e o setor privado, em substituição a um sistema previdenciário em que o setor público é privilegiado quando comparado com setor privado.
Estas são reformas que não têm nada de neoliberais. São reformas necessárias para o país. São social-democráticas. São reformas de uma esquerda democrática e contemporânea. São reformas de quem fez uma transição intelectual e ideológica, de quem continua fiel à esquerda porque comprometido com a justiça social, disposto a arriscar a ordem em nome da justiça, mas são reformas de um partido contemporâneo, de um partido que sabe que o mundo mudou, que o Estado entrou em crise, e que é preciso, diante dessas mudanças, responder com políticas novas. Ficarmos presos aos anos 50, quando estamos nos anos 90, é uma loucura. Estamos quase no século XXI, e temos desafios enormes para enfrentar, que exigem coragem, imaginação e contemporaneidade.
GLOBALIZAÇÃO
Entre os desafios que teremos que enfrentar, o da globalização talvez seja maior. Um tema sobre o qual o presidente Fernando Henrique Cardoso fez notáveis discursos recentemente. A globalização não é nenhuma conspiração da direita. A globalização é um problema sério, perigoso. É um fato histórico que está aí, que decorre fundamentalmente da redução brutal do custo dos transportes e das comunicações nestes últimos 50 anos. Por essa razão os países ficaram muito mais próximos, a concorrência entre eles aumentou enormemente. Isto é a globalização: um aumento da competição internacional em escala nunca vista. A tese corrente é a de que esta globalização vai provocar um aumento do desemprego, o que é verdade no curto prazo, mas não creio que o seja no longo prazo. A grande ameaça da globalização está antes concentração de renda que provoca. Ao expor os países à competição, a globalização tem o efeito dos mercados imperfeitos: faz com que os mais fortes fiquem mais fortes e os mais fracos mais fracos. Esta é a lei do mercado, que não tem nenhuma preocupação com a justiça. Por isso o mercado precisa ser controlado pelo Estado. O mercado é eficiente na alocação de recursos, mas é incrivelmente injusto. Só quer saber da oferta e da demanda. Se existe uma oferta maior de mão-de-obra não qualificada do que a demanda, os salários vão para baixo. Se a demanda de mão-de-obra qualificada de técnicos, de altos especialistas é menor do que a demanda, os salários sobem vertiginosamente. Se as empresas multinacionais detêm uma vantagem tecnológica e de escala, eliminam as empresas nacionais.
Por isso é fundamental reconstruir o Estado. Com a globalização diminuiu a autonomia do Estado de fazer políticas, dado um determinado grau governabilidade e governança. Se diminui a crise fiscal do Estado, se aumenta sua capacidade administrativa, se sua missão é definida de acordo os tempos em que vivemos e se assegura legitimidade para seus governantes, o Estado será mais forte e terá condições de contrabalançar os efeitos desestabilizadores e distorsivos da globalização.
Estas são missões de um partido democrático, de esquerda e contemporâneo, como é o PSDB. São desafios que enfrentamos hoje, dia a dia, como o partido do governo, como um partido que faz parte da coalizão política que apóia o governo. São missões que estão sendo cumpridas com firmeza, são desafios que estão sendo enfrentados com determinação.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
19 Nov 2010 -
Data do Fascículo
1997