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Retrato do Brasil

COMUNICAÇÃO

Retrato do Brasil

Entrevista de Raimundo Pereira a Tullo Vigevani e Liana Hoffmann

Será esta entrevista apenas um documento para a história? Talvez, mas não apenas isto. O entusiasmo audaz de Raimundo Pereira — cujo jornal deixa de ser diário já em dezembro de 1986 — espelha um projeto: o da necessidade de um meio de comunicação de massas que escape ao controle e interesses das classes dominantes. Mas, como foi discutido nesta mesma entrevista, as dificuldades para isso são maiores, às vezes, que o próprio entusiasmo e audácia.

TULLO VIGEVANI — A pergunta que inicialmente gostaria de fazer é relativa ao espaço de mercado, político, social e cultural de um projeto tipo Retrato do Brasil.

RAIMUNDO PEREIRA — Acho que o estamos descobrindo agora, na prática. Nós achamos que a imprensa atual é muito conservadora, do ponto de vista jornalístico. Ela é monoliticamente conservadora. Tão conservadora que não cabe nessa imprensa nem mesmo um projeto liberal, como os de Ulysses Guimarães, Orestes Quércia, Franco Montoro, sem falar, naturalmente, dos projetos de cunho nacionalista como os de Miguel Arraes, Francisco Pinto, e muito menos ainda os de um partido de esquerda, de um partido popular, da pequena burguesia, do PT, do PC do B. Começamos no início de 1982, há cinco anos, a trabalhar para articular politicamente o projeto. Tentamos unificar politicamente todas estas forças, mesmo que não seja monoliticamente, todas as correntes, todos os partidos que compõem esse espectro mais ou menos amplo que descrevi com esses nomes. Existem pessoas interessadas, que precisam de um jornal diário. Um jornal diário sempre tem um papel informativo e político muito importante. Achamos que há espaço político e é fundamental partir desta constatação. Trabalhamos para fazer um jornal que tecnicamente corresponda, e isto já é uma outra coisa. É verdade que há risco de se fazer um jornal que politicamente dê certo e que tecnicamente não corresponda. Mas do ponto de vista político existe este espaço. Do ponto de vista técnico também existe. Essa "brecha técnica", vamos dizer assim, ajuda ainda mais o projeto.

TULLO — O que significa projeto técnico?

RAIMUNDO — Capacidade de produção, modelo de jornal. Acho os atuais modelos de jornais tecnicamente ineficientes. Isto tem razões políticas. Mas acho que são jornais muito ruins do ponto de vista técnico. O melhor deles ainda é o jornal O Estado de S. Paulo, mas mesmo o melhor deles é um jornal em decadência. As reformas que começou a fazer, como o Caderno 2, parecem ir num sentido oposto ao que se precisa num jornal moderno. Nós temos um estudo técnico sobre essa questão, sobre os problemas de um jornal, extremamente interessante. Por isso nós temos a convicção política de que é necessário e possível a publicação do jornal. Temos um projeto, além de político, é um programa técnico. Por isto tudo resolvemos tentar.

LIANA HOFFMANN — Vocês acham que alcançaram estes objetivos iniciais?

RAIMUNDO — Não! Estamos longe de ter atingido plenamente esses objetivos, tanto do ponto de vista da articulação política e menos ainda do ponto de vista técnico. Do ponto de vista da articulação política, que consumiu a maior parte de nosso tempo nesses cinco anos, ainda há muitas dificuldades a serem vencidas.

Quando fizemos a festa de inauguração na sede do jornal, nós demos uma certa demonstração de que a articulação foi mais ou menos bem realizada. Estavam aqui discursando o dr. Ulysses Guimarães e o dr. Hélio Bicudo. Assinaram cotas o Suplicy, o Dirceu, o Fernando Henrique, o Bresser Pereira, também subscreveram cotas integrantes do PCB e do PC do B. Aquela foi uma festa significativa para nós. Já no dia da inauguração, tivemos um show que foi muito importante, o Chico Buarque não fazia nenhum há doze anos, mas esta atividade não nos deu os resultados esperados para vender cotas e para arrecadação de fundos.

Posso então dizer que não atingimos todos os objetivos. Ainda temos que lutar muito para fazer nosso jornal sobreviver à fase critica. Imagino que se sobrevivermos ao primeiro meio ano, esse jornal terá até grandes chances de permanência. Poderemos continuar. Seu destino está mais ou menos associado ao destino da situação política do país. Vencermos problemas internos dependerá de como o país vai se desenvolver.

TULLO — Gostaria de colocar o seguinte: quando tomei conhecimento desse projeto, surgiu-me na memória a experiência do Jornal da República, inclusive o Mino Carta, digamos, seria um elo de ligação com aquele projeto, que se deu em 1980. Qual a diferença?

RAIMUNDO — Há duas diferenças fundamentais. Acho que o Jornal da República não tinha um projeto técnico-jornalístico diferente dos outros jornais. Não havia um projeto de organização de redação que tivesse em conta um estudo técnico dos problemas que os jornais diários enfrentam hoje. O Jornal da República era mais um projeto político, tratava-se de fazer um jornal mais independente, mas liberal, que desse vez às reivindicações dos trabalhadores e tal... Isso foi muito positivo, mas não bastou. A situação atual do país é muito difícil para que prevaleçam idéias mais acertadas. Há um peso conservador muito grande. Além disso, o Jornal da República não mobilizou as forças que poderiam ajudá-lo. Foi um projeto empresarial, tentando resolver-se empresarialmente. É uma situação muito diferente da nossa. Nós, aqui, temos muitos anos de trabalho, temos uma certa herança da imprensa popular: Movimento, Opinião. Cultivamos isso. Hoje temos uns vinte núcleos de vendas pelo Brasil afora, com uma capacidade de venda relativamente grande. Vamos lançar uma campanha de assinaturas do jornal e temos, inclusive, como fazer isso. É uma coisa diferente do Movimento. O Movimento tinha uma capacidade de venda muito pequena. Você tem que ter meios materiais, uma organização capaz de canalizar o apoio potencial. Nós temos hoje, digamos, nacionalmente, condições importantes. E isso faz uma diferença muito grande. O próprio empresário que fez o Jornal da República, que é o Domingos Alzugaray, que é um grande amigo meu e do Mino Carta, diz isso. Nós mostramos o projeto para ele, mostramos o orçamento, o plano econômico-financeiro, e ele destacou esta diferença, muito importante. Nossa idéia, para garantir a sobrevivência do Retrato do Brasil, é um plano de vendas de assinaturas, para atingir a meta, difícil mas realizável, de 40 mil, até o fim do ano que vem.

TULLO — Agora uma questão que obviamente está relacionada com o Retrato do Brasil, mas que vai além.., A imprensa de esquerda realmente não consegue se implantar mesmo onde há grandes estruturas operárias, sindicais, grandes partidos, socialistas, comunistas, etc. Ela tem sérias dificuldades de se implantar como imprensa comercial, isto é, com uma venda que independa da militância. Você vê, por exemplo, L'Humanité, mas mesmo na Itália, L'Unitá se viabiliza e tem uma grande venda, no domingo vende mais de um milhão de cópias, graças à venda militante, isso em 1986! Mesmo na América Latina, a situação não é muito diferente. Em países como Uruguai e Chile, a imprensa de esquerda vendeu-se muito em base à militância, ou o público permanece restrito. O Retrato do Brasil não está apoiado em uma estrutura partidária, pelo contrário, ele procura ser um elemento de unificação e polarização de diferentes tendências políticas. Você acha que no Brasil, hoje, há condições de se modificar esta situação de venda restrita de uma publicação de esquerda?

RAIMUNDO — Este é um problema que eu não domino completamente, mas sobre o qual tenho algumas idéias. Você tem dois tipos de vendas. A venda em banca, na qual você explora a estrutura comercial existente e o interesse popular pela publicação, de tipo espontâneo. Por exemplo, vou à banca para comprar certas publicações e procuro aquelas pelas quais tenho interesse. Mesmo que sejam difíceis de se encontrar, há publicações que eu leio, que eu compro, mesmo que tenha que voltar três ou quatro vezes para achar. A revista científica ou geográfica, por exemplo; enfim, algumas coisas que leio e que gosto. Tendo a achar que esta é uma das vendas mais interessantes, porque é de interesse da pessoa, você explora aquilo que é interessante para ela. Mas há outra venda, aquela que é do vendedor para o comprador, o vendedor faz certa pressão sobre o comprador. O comprador adquire por habilidade do vendedor ou por militância, ele força: "Você precisa...". Acho que os dois tipos de venda são muito importantes para um projeto como o nosso. Nós temos uma certa venda em banca, que é pequena. Para você ter uma idéia, vendemos mais de 60 mil coleções do Retrato do Brasil, em fascículos. Vamos imprimir mais 20 mil agora. É um enorme sucesso editorial. Mas vendemos em banca menos de 5 mil. O resto vendemos diretamente ao público e a instituições. O Ministério da Educação comprou 5 mil coleções, o governador Franco Montoro colocou uma em cada escola de São Paulo, o Hélio Garcia comprou, também Jarbas Vasconcelos, Dante de Oliveira, Saturnino Braga. Veja então que temos uma certa militância difusa. É até muito interessante, porque muita gente que encontra nos atuais partidos brasileiros sérias limitações vê no Retrato lugar para uma certa militância social. Se identifica. O sujeito está perdido por aí, encontra naquele lugar uma possibilidade de trabalho político sem um compromisso maior. Esse é um aspecto interessante do projeto. Temos agregado muita gente assim, gente de muito valor que acha aqui um espaço. Muitos dissidentes de todos os gostos, e é um papel importante, porque nós temos muita coisa a dar, a contribuir, e é melhor que estejam aqui do que isolados, perdidos, em caminhos sem muita saída. Então trata-se de um trabalho político que é fundamental a todo tipo de pessoa. Certamente o jornal tem uma certa militância, mesmo que difusa: a habilidade nossa será a de manter este caráter e não fazer o que já aconteceu em outras épocas, uma militância que só torna possível a participação de certos tipos de pessoas. Nós tivemos, na história do Movimento, este tipo de problema. E aqui não, acho que nós aprendemos com esse passado. Agora acho muito importante este tipo de venda.

Tenha-se em conta que o grau de desenvolvimento político-cultural do povo brasileiro ainda é relativamente baixo e o conservadorismo de nossas elites é absolutamente brutal. Veja você! Pegue um estado dos mais politizados e desenvolvidos politicamente, que é o caso de São Paulo, e veja o que foram esses meses de propaganda eleitoral. Dava a impressão que os "salvadores da pátria", aqui em São Paulo, para 80% da população, eram Antonio Ermírio e Paulo Maluf, isto fruto de uma propaganda ideológica maciça. Se pregava tanto as qualidades destes candidatos quanto as desvirtudes de Quércia e Suplicy, assim, maciçamente! Isto acabou formando, até entre gente culta, a idéia de que essas candidaturas estavam acabadas.

TULLO — Principalmente entre gente culta...

LIANA — Você disse que esse jornal não tem uma nítida conotação partidária, pois é feito por pessoas com conotações partidárias distintas. Como são os profissionais do Retrato?

RAIMUNDO — Nós não temos o jornalista militante do PT, PCB, etc., porque esses partidos têm até grande dificuldade de ter quadros em sua própria imprensa. Nós tivemos um empenho muito grande em trazer para cá gente que estivesse diretamente ligada aos partidos, às correntes que nós tentamos atrair para o projeto. Quando há pessoas destes partidos, elas são tão indispensáveis em suas próprias organizações que estas não podem nos ceder.

TULLO — Não é bem assim. Há muitos jornalistas comunistas ou petistas, etc., na grande imprensa, nas televisões, etc.

RAIMUNDO — Eu sei. Todo jornalista tem um certo grau de simpatia política. Mas eu falei daquele que está na militância, do sujeito integrado ao partido. Isto só pode ser conseguido com um certo grau de militância. Nós só teríamos condição de trazer militantes inexperientes. Mas, infelizmente, não temos nem condições de ter estagiários, gente muito jovem. Porque temos que começar a batalha mostrando uma certa competência. Nas redações em geral, nos níveis mais altos há jornalistas que ganham muito bem. Claro, não há jornalistas muito ricos. Assalariado no Brasil não é rico. Rico é um bando de gente que não trabalha. Mas eu digo que do ponto de vista dos salários..., o salário máximo aqui da redação é o meu, que é de 30 mil cruzados por mês. Mas eu sou ao mesmo tempo diretor de redação, faço seis laudas por dia, e sou o diretor da empresa. Sou o principal executivo aqui. E tenho vinte e um anos de experiência profissional, não só de imprensa alternativa. Depois de mim, o salário máximo é de 25 mil cruzados e não se compara ao salário dos grandes editores. Mesmo de gente que já trabalhou no Movimento ou no Opinião.

TULLO — Não há grandes assinaturas no jornal.

RAIMUNDO — É. Temos dificuldades de vários níveis. Você vê que o jornal está cheio de problemas técnicos. Convidamos profissionais com mais experiência. Encontrei-me com um deles num dia desses, me apontou uma série de problemas. Eu respondi: "Se você estivesse lá esse problema não haveria". Não estou falando isso para criticar meus companheiros de profissão. Eu sei que comigo aconteceu isso. Há dificuldade em se rebaixar o padrão de vida. Você não abaixa o seu padrão de vida de repente. Não é um problema só seu. Você tem uma série de relações familiares complexas, não dá nem para pensar nisso. Então nós temos essas dificuldades, que são as mesmas do resto do modelo brasileiro, que concentrou a renda. É uma minoria que tem salários mais altos. Isso dificulta também para a gente. Principalmente no nível da direção é preciso gente competente — e competência só se adquire com muitos anos de experiência — para fazer as coisas.

TULLO — Como você disse no início, todo o projeto do Retrato do Brasil está muito ligado ao quadro político brasileiro...

RAIMUNDO — Mas não só isso. Depende de nós a resolução de uma série de coisas relativas ao jornal. Poderá vir a ser um jornal muito informativo e que possa ser um concorrente dos outros jornais.

A gráfica onde estamos imprimindo tem algumas limitações. O estamos fazendo na do Diário Popular. É uma gráfica muito boa, que fez o Jornal da Tarde e O Estado de São Paulo.

Temos um pequeno projeto administrativo, financeiro. Tenho uma certa experiência técnica também na área.

Fui progressivamente me pondo a par e passando a conhecer os problemas de administração da empresa. Se você conhecer o projeto nosso, se você o examinar do ponto de vista administrativo, econômico e financeiro, ele é um certo milagre. Não digo que ele não venha eventualmente a fracassar. Nós estamos num projeto bastante arriscado. As nossas chances de sobrevivência são grandes, mas existe o risco de, como muitos dizem por aí, que esse jornal venha a falir. Mas se você examinar este projeto desde o momento em que nós, Mino Carta e eu, representando um grupo de pessoas interessadas nesse tipo de imprensa, começamos a discutir, desde o final de 1981 e início de 1982, até agora, realizamos um trabalho empresarial muito importante. Temos uma empresa que opera um movimento de mais de 4 milhões de cruzados por mês, e não temos nenhuma dívida na praça. O único apoio financeiro obtido deve-se a Domingos Alzugaray, que nos ajudou a fazer o Retrato do Brasil em fascículos e apoiou o nosso trabalho, fez investimento na pesquisa necessária durante algum tempo e depois nos deu crédito para rodar 20 mil coleções do Retrato do Brasil. Fora isso, nós não tivemos financiamento algum, de lugar nenhum, de banco algum, e fizemos o jornal até agora. Tudo isso sem um tostão pessoal. E só agora fizemos uma campanha de venda de cotas, para transformar a empresa inicial numa Sociedade Anônima. E não estamos devendo, as dívidas que temos são as normais de uma empresa comercial. Isso porque nós também encaramos com seriedade o problema da administração, finança e da venda. Estamos desenvolvendo uma série de experiências. Achamos que através do Retrato do Brasil é possível que este extenso movimento democrático e popular possa montar uma distribuidora a nível nacional ou fortalecer uma pequena, independente, sobre a qual tenhamos uma participação. Essa será uma próxima etapa, se for bem-sucedida a experiência do jornal.

TULLO — O problema da distribuição, você o considera como um problema-chave?

RAIMUNDO — É um problema-chave. É preciso chegar às pessoas às quais não há acesso pela via da distribuição comercial normal. Porque o acesso à banca é comandado pela televisão, pela propaganda e pelo senso comum. Você tem que criar um circuito alternativo, um circuito de vendas. É como para a revista LUA NOVA, vocês. Se esta estrutura se desenvolve, fica mais fácil vender. Ao mesmo tempo é preciso oferecer pela mala direta, ter promotores que vão às casas, etc...

Em São Paulo temos quinhentos pontos de venda. Quinhentos locais que nós visitamos e nos quais já vendemos cerca de 15 mil coleções do Retrato do Brasil. Em todos esses locais de trabalho há pessoas que nos facilitam a entrada, o acesso, assim chegamos de mesa em mesa e oferecemos o produto. Isso é muito importante.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Mar 2011
  • Data do Fascículo
    Mar 1987
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