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Lendo: Benjamin

NOVAS DEMOCRACIAS E VELHO PROGRESSO

Lendo Benjamin*

Horacio González

Professor de Sociologia na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires

Como um autor ingressa em nossas vidas ou, para evitar a sensação biográfica, como um autor entra em nosso regime de leituras? É possível dar uma resposta: aos pedaços, através de fendas no tempo, quando estamos distraídos ou em ocasiões em que um livro puxa outro numa cadeia, que só pode se estabelecer se nosso interesse se mantém vivo ou se esses livros estão à mão. Podemos acrescentar: com certos autores, nos detemos sempre em um lugar, em trecho, em certa página. E se avançamos, pode ocorrer que tenhamos a impressão de que já havíamos passado por ali.

Walter Benjamin não se aproxima, mas entra de repente, numa incursão maciça, como uma saraivada de flechas. Surpreende como um objeto afiado adentrando em membranas flexíveis e receptivas. Mas é assim mesmo que estamos, membranosos, quando lemos; ainda não existem leitores conquistados por uma crueldade tal que leiam e, ao mesmo tempo, fechem essa confiada porosidade, que faz com que o lido se vá acomodando num monólogo interior que às vezes citamos e outras apenas confessamos. Por exemplo, o trabalho sobre Baudelaire é o mais lido, dentre tudo aquilo que Benjamin escreveu. Escreveu-o duas vezes, e não foi seu único texto refeito e duplicado em outra versão, destinado a atender à crítica, à solicitação ou às exigências dos diretores de revistas (neste caso, a de Theodor Adorno, alguém com quem Benjamin desenvolve uma luta formidável, sempre sob o auspício da cortesia, da influência mútua e da homenagem).

Em Baudelair, tratava-se de examinar o funcionamento da experiência perceptiva e gestual suscitada pela vida nas grandes metrópoles, como se ela fosse o tecido interno, o eco complementar ou a homologação literária de tudo o que ocorre na fábrica capitalista. Mas descrever assim este ensaio não o favorece, pois Benjamin escreve precisamente para que o leitor nunca se situe diante da possibilidade da descrição. Em um raptus, num excesso repentino que o leva a seqüestrar conceitos, em certo momento Benjamin decide pensar o artista como produtor, isto é, como uma consciência destinada a validar-se junto à última fronteira das sociedades, ali onde encontramos sua capacidade de novidade produtiva ou sua modernidade. Por isso, a leitura de Benjamin exige um leitor sobressaltado, traído, frustrado, um leitor que deve estar sempre alerta diante de uma leitura que está pensada como experiência. Isto é, Benjamin supôs que entregava aos leitores um texto capaz de suscitar a mesma emoção material que se encontrava interligada à vida social sensitiva, ou seja, a esse conjunto de experiências desconectadas, fugazes e desmemoriadas que têm tanta intensidade como capacidade de dissolver-se no tempo social. Seus escritos são, então, absolutamente realistas, pois pretendem conter o núcleo que compõe esse fluxo de experiências que realizam as vidas em estado de "choque moderno".

Esta maneira de apresentar um texto, submetendo-o a ataques contínuos de artilharia, enxertos botânicos e transplantes de órgãos, através de citações, aforismos, adivinhações, soluções enigmáticas, ourivesarias de colecionador doentio e ninharias que se comprazem em enumerar recordações com ímpetos de neurose proustiana, supõe uma concepção bem desesperadora do ato de ler-escrever. Esse ato era uma "iluminação profana" ou, se se. quer, uma catástrofe única que cai como seqüela às nossas costas.

Atrás de quem? Dizia que um autor às vezes nos parece embaraçado num momento de sua relação conosco. Como se disséssemos, "perturbado". Assim perturbado pode ficar Benjamin. Perturbado, para nós, por acaso, em certo parágrafo das Teses sobre a história, num certo folhear do artigo sobre a Reprodução técnica da obra de arte, em alguma frase de Origem do Drama Barroco Alemão ou naquele outro parágrafo que agora temos na ponta da língua, que pode ser "a cultura como conjunto de documentos de barbárie" ou este outro, que diz o contrário: "com o fim da experiência se abrirá uma época de nova barbárie".

Benjamin é um pensador do sagrado, da memória e do nome. Por isso relaciona objetos diferentes no vôo, para produzir novos conceitos. Ainda mais: pensar é unir o diferente no vôo. Ou, o que é a mesma coisa, pensar é converter o atmosférico no intelectual, o maiúsculo no minúsculo, o fragmentário no histórico, o técnico no profético e o revolucionário em um ato de memória involuntária.

Ao longo de muitos anos e de muitos dias, enquanto dava aulas nesta e em outras faculdades, aprendi a respeitar o momento em que um autor se torna pétreo para nós, seus leitores. Esse momento em que, para nós, ele se detém para sempre num conceito ou numa frase. Weber, para mim, são certos tons de uma conferência póstuma e de Durkheim sempre se me escapa uma estranha sentença que escreveu em O Suicídio. Quando com Benjamin nos ocorre o mesmo, aparece esse ponto comum, onde um leitor e um autor se detêm para sempre. Só então sentimos que Benjamin escreveu para que isso ocorresse, para fazermos sentir essa temível possibilidade com. a qual sempre nos defrontamos enquanto leitores. Que não possamos seguir adiante, que um texto fique com seus pedaços perdidos, fixo ante nossos olhos desolados. Benjamin nos diz que, quando isso ocorre, devemos ficar tranqüilos. Que ali mesmo começa a soberania do leitor que sabe tolerar seus próprios naufrágios.

  • * Texto publicado originalmente em Ciências Sociales (Boletín de Informaciones de la Facultad de Ciências Sociales-Universidade de Buenos Aires), nş 5, novembro, 1990,

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jan 2011
  • Data do Fascículo
    Dez 1992
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