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O empenho de Antonio Vieira

Antonio Vieira's endeavor

Resumos

O artigo apresenta o pensamento político do padre Antonio Vieira. Parte-se da premissa de que sua prática e seus escritos visam acima de tudo ao interesse do Reino de Portugal. O objetivo principal do artigo é mostrar a concepção de Estado do jesuíta a partir de uma compreensão católica da Razão de Estado. Busca-se relacionar a ação e o discurso do padre Vieira, tendo-se em conta suas heranças tridentinas, bem como o ambiente português durante os séculos XVI e XVII.

Razão de Estado; História de Portugal; Antonio Vieira


The article presents the political thought of Father Antonio Vieira. Its premiss is that, above all, the Father's practice and writings strive for the interests of the Kingdom of Portugal. The article's intention is to show his conception of the State out of a Catholic understanding of the Reason of State. The author approaches the action and the discourse of Father Vieira, taking into account his Tridentine heritage, as well as the Portuguese context of the sixteenth and seventeenth centuries.

Reason of State; History of Portugal; Antonio Vieira


O empenho de Antonio Vieira* * Este artigo é uma parte reduzida e modificada de um capítulo da minha Dissertação de Mestrado em Ciência Política na Universidade de São Paulo que trata sobre Razão de Estado e o Pensamento Político de Antonio Vieira. Aproveito a oportunidade para agradecer os comentários e apontamentos dos professores Istvan Jancsó e Cicero Araújo, que realizaram uma discussão muito proveitosa, por ocasião da defesa.

Antonio Vieira's endeavor

Alessandro Manduco Coelho

Historiador, doutorando do Departamento de Ciência Política da USP

RESUMO

O artigo apresenta o pensamento político do padre Antonio Vieira. Parte-se da premissa de que sua prática e seus escritos visam acima de tudo ao interesse do Reino de Portugal. O objetivo principal do artigo é mostrar a concepção de Estado do jesuíta a partir de uma compreensão católica da Razão de Estado. Busca-se relacionar a ação e o discurso do padre Vieira, tendo-se em conta suas heranças tridentinas, bem como o ambiente português durante os séculos XVI e XVII.

Palavras-chave: Razão de Estado; História de Portugal; Antonio Vieira.

ABSTRACT

The article presents the political thought of Father Antonio Vieira. Its premiss is that, above all, the Father's practice and writings strive for the interests of the Kingdom of Portugal. The article's intention is to show his conception of the State out of a Catholic understanding of the Reason of State. The author approaches the action and the discourse of Father Vieira, taking into account his Tridentine heritage, as well as the Portuguese context of the sixteenth and seventeenth centuries.

Keywords: Reason of State; History of Portugal; Antonio Vieira.

Os filósofos antigos chamaram ao homem mundo pequeno; porém S. Gregório Nazianzeno, melhor filósofo que todos eles e por excelência o teólogo, disse que o mundo comparado com o homem é o pequeno e o homem em comparação do mundo, o mundo grande; mas um é um mundo e são muitos mundos grandes que estão dentro do pequeno. Basta por prova o coração humano, que sendo uma pequena parte do homem, excede na capacidade a toda a grandeza e redondeza do mundo (...) Nesta máquina do mundo, entrando também nela os céus, as estrelas têm seu curso ordenado que não pervertem; o sol tem seus limites e trópicos fora dos quais não passa; o mar, com ser um monstro indômito, em chegando às areias, pára; as árvores, onde as põem não se mudam; os peixes contentam-se com o mar, as aves com o ar; os outros animais com a terra. Pelo contrário o homem, monstro e quimera de todos os elementos, em nenhum lugar pára, com nenhuma fortuna se contenta, nenhuma ambição, nem apetite o farta; tudo perturba, tudo perverte, tudo excede, tudo confunde, e como é maior que o mundo não cabe nele.

Antonio Vieira

Este artigo busca evidenciar a presença de um pensamento político em Antonio Vieira. Procurar-se-á demonstrar que, além de existente, há um sério e poderoso arsenal intelectual atinado e concatenado, passível de reconstrução nas intervenções produzidas por este jesuíta que viveu ao longo de quase todo o século XVII (1608-1697).

Amplamente conhecido, o tom pragmático marca indelével a figura do padre Vieira. Exemplo explícito é sua ênfase na necessidade tanto do cabedal quanto da tolerância para com os homens de nação, com vistas à mais perfeita saúde financeira do Reino português.1 1 Alguns exemplos desta defesa e da visão do comércio com um papel de redenção encontram-se em suas propostas e pareceres. Sobre as mesmas, pode-se colher tais referências à edição estabelecida, organizada e prefaciada por Alcir Pécora em Escritos Históricos e Políticos.

Por ora, ressalta-se o Vieira mais doutrinário, menos conhecido e apreciado.2 2 Faz-se necessário lembrar das anotações e alertas de Pécora em Teatro do Sacramento quanto ao ''esquartejamento'' produzido pela fortuna crítica do padre Vieira. Nesse livro, o autor mostra que, mais que partes e compartimentos, a figura e o pensamento de Antonio Vieira pode e deve ser entendido e compreendido a partir de uma totalidade. Sempre retórico, político e teológico, o discurso e a prática do inaciano se fundem e combinam com expressão máxima na relevância e centralidade dos Sacramentos, particularmente o da Eucaristia. Para tanto, ordeno o texto em dois planos. No primeiro, a discussão se refere ao recursivo apelo de Vieira no tocante à união das gentes. Este ponto é fundamental, pois indica o modo pelo qual ocorre a passagem da vantagem particular para o único interesse que tem valor na argumentação de Vieira: o geral, da monarquia absoluta.

Isso conduz ao segundo ponto. Na seqüência, valho-me de uma análise mais detida sobre a concepção de Estado possível de ser reescrita no pensamento de Antonio Vieira. Para adiantar algo que mais à frente deve ficar claro, o Estado é o lugar que condensa vontades: Divina e humana; neste espaço não há laicização, ele é eminentemente místico.

ACOMODAÇÃO E AJUSTAMENTO

Na ação de Antonio Vieira e em sua decidida batalha em torno da aceitação dos judeus e do abrandamento e mudança dos estilos da Inquisição, despontam algo mais, e não significam, unicamente, um empenho de ordem econômica. Este ponto parece encerrar interesses da monarquia portuguesa, envolvida que estava num plano salvífico que repõe a integração das comunidades católicas e hebraicas, base do reino consumado de Cristo na Terra, o V Império. Esta 'união' de todos em favor de um 'interesse nacional' é o que se verá.

Deste modo coloca-se a inventio3 3 Refiro-me aí a invenção, como parte do discurso relativo ao estoque de tópicos e seus esquemas argumentativos básicos com vistas à persuasão, conforme o sentido técnico nas retóricas clássicas. No caso de Vieira, para Pécora é correto o que diz Adma Fadul Muhana, particularmente, na análise de sua obra profética: ''há uma simbiose entre os argumentos utilizados com o propósito não exclusivamente intelectual de convencer e, inversamente, uma utilização dos afetos não com a função exclusiva de comover''. Teatro do Sacramento, pp.44. de Vieira. Direcionar e colocar em marcha a rígida composição social hierárquica do Reino, isto é o que se quer. Mudança, várias delas são imprescindíveis, mas todas dentro da ordem providencial.

Por vez, sua fala tem como alvo a fidalguia. Esta deve sacrificar seu tempo e compartir a tarefa de remissão econômica do Reino. Afinal, todos fazem parte do mesmo corpo, segundo a unificação e pacto de todos, dada pela universalidade divina, conforme todo o esforço dos contra-reformistas. A união de todos, em torno de um único interesse, é o que se coloca no Sermão de Santo Antonio.4 4 Também aqui as referências textuais foram colhidas à edição estabelecida, organizada e prefaciada por Alcir Pécora, In : VIEIRA, Antonio. Sermões, Tomo II, pp.315-334. Porém, há que se notar a data e o local da pregação do Sermão, pois o título ''Santo Antonio'' aparece nomeando outros sermões. No caso em análise, refere-se ao proclamado na Igreja das Chagas de Lisboa, no ano de 1642, em ocasião da reunião das Cortes do Reino de Portugal.

E não é só a fidalguia que merece sua atenção. Vieira está disposto a reformar o modo pelo qual os impostos são cobrados. Deste ponto de vista, sua preocupação é mais larga e requer uma reforma tributária geral no Reino. De início, isto implica penetrar no 'campo minado' que eram os privilégios da nobreza, bem como a isenção eclesiástica. Sua coragem em denunciar e proferir os remédios necessários para o bem-estar do Reino levam-no a defender a tributação igual. Porém, a igualdade aí não significa atingir e abalar as estruturas do Antigo Regime, como se verá adiante. Pois é a conservação a 'tarefa mãe' de que o governo deve se ocupar.

No Sermão de Santo Antonio, pregado no mesmo ano em que Hobbes publica o De Cive e o cardeal Mazzarino seu Breviário dos Políticos, a figura deste santo é utilizada como metáfora. ''Ao Defensor da Fé, ao Lume da Igreja, à Maravilha de Itália, à Honra de Espanha, à Glória de Portugal, ao melhor filho de Lisboa, ao Querubim mais eminente da Religião Seráfica'', o padre Vieira inclui os adjetivos: fiel e estadista. Assim, como português, Santo Antonio de Lisboa é fiel e, como italiano, Santo Antonio de Pádua é estadista. Além disso, mais que tudo, como a matéria do Sermão é a conservação do Reino, Santo Antonio é o próprio sal terrae.5 5 Conforme Matheus 5,13: ''Vós sois o sal da terra.''

Porque ''o sal é o remédio da corrupção, mas remédio preservativo: não remedeia o que se perdeu: mas conserva o que se pudera perder, que é o que temos necessidade''. Assim, ao seguir em comparar as diferentes tarefas impostas a Portugal e Espanha, o jesuíta esclarece que: ''Os intentos de Castela, são recuperar o perdido; os intentos de Portugal são conservar o recuperado.'' Como já notado, a marcação sobre o estado geral do Reino de Portugal é uma constante. O que preocupa Vieira é a manutenção da independência. Por meio do processo político que culmina na Restauração, em 1640, o dever português é, agora, acima de tudo, 'conservar o recuperado'.

Ainda metaforicamente, Vieira discorre sobre a maneira pela qual se há de conseguir a conservação. Deus tirara de Adão a costa para a fábrica de Eva, mas como a tirou, pergunta o jesuíta. Immisit Deus saporem in Adam, é o que está escrito no Texto Sagrado. E por que havia se tirar a costa de Adão dormindo, volta a questionar. Direto ao ponto, Vieira encerra a contenda dizendo que:

A costa de que se havia de formar Eva, tirou-a Deus a Adão dormindo e com quanta suavidade se deve tirar ainda o que é para seu proveito. Da criação e fábrica de Eva dependia não menos que a conservação e propagação do gênero humano (...) Deus tirou a costa de Adão, não acordado, senão dormindo: adormeceu-lhe os sentidos, para lhe escusar o sentimento.6 6 VIEIRA, Antonio. ''Sermão de Santo Antonio'', p.322.

A montagem não pára por aí. Por analogia, em relação ao corpo político, continua Vieira,

Com tanta suavidade como isto, se há de tirar aos homens o que é necessário para sua conservação. Se é necessário para a conservação da Pátria, tire-se a carne, tire-se o sangue, tirem-se os ossos, que assim é razão que seja; mas tire-se com tal indústria, com tal suavidade, que os homens não o sintam, nem quase o vejam.7 7 Ibidem.

Os conselhos de Antonio Vieira avançam na questão tributária do Reino. Este seria o remédio, a 'indústria' pela qual seria suave e fácil levar adiante a forçosa conservação. Santo Antonio, como sal terrae, é quem estabelece a 'dinâmica política' mais adequada. Pois, se é necessário que os meios de conservação sejam os mais tênues possíveis que ''não sejam os remédios particulares, sejam universais: não carreguem os tributos somente sobre uns, carreguem sobre todos'' e, voltando à alegoria do sal, ''não se trate de salgar só um gênero de gente''.

A mensagem parece encontrar fundamento nos 'explosivos' ensinamentos de Cristo que prega a igualdade de todos, ''e obriga a todos sem privilégio: ao grande e ao pequeno, ao alto e ao baixo, ao rico e ao pobre, a todos mede pela mesma medida.''8 8 VIEIRA, Antonio. ''Sermão de Santo Antonio'', p.323.

Vieira sabe que o maior jugo de um Reino, ''a mais pesada carga de um República, são os imoderados tributos'' e, por assim saber, o jesuíta aconselha que se repartam todos entre todos. Neste sentido é que Antonio Vieira assemelha os tributos à morte. ''Não há tributo mais pesado que o da morte, e, contudo, todos o pagam, e ninguém se queixa, porque é tributo de todos.''9 9 VIEIRA, Antonio. ''Sermão de Santo Antonio'', p.324.

Como não há privilegiados, não há queixosos. Com tal simplicidade, Vieira quer dizer que a origem das lamúrias são as vantagens individuais, representadas nos benefícios das ordens. Somente a distribuição eqüitativa e igualitária dos tributos por todos os membros da sociedade é capaz de apaziguar os descontentamentos. Assim, importa ao governo temporal aplicar e implementar as políticas regidas conforme o governo natural do Criador: Qui solem suum orri facit super bonos et malos, et pluit super justos et injustos.10 10 ''O que faz nascer o seu sol sobre bons e maus, e manda a chuva sobre justos e injustos''.

O pregador reconhece a dificultosa missão que é a de igualar a todos. Porém, engenho é o que não falta a Antonio Vieira. A sua Razão de Estado atende as conveniências do bem comum que transforma a natureza dos homens, segundo o dever e a obrigação requeridas pela condição social e política destes. Resume-se: ''Deixem de ser o que são, para serem o que é necessário, e iguale a necessidade os que desigualou a fortuna''11 11 VIEIRA, Antonio. ''Sermão de Santo Antonio'', p.326. .

Se os três estados do Reino, atendendo a suas preeminências, são desiguais, atendam a nossas conveniências, e não o sejam, eis o conselho de Vieira. Dotado de uma particular 'capacidade alquímica', o jesuíta confronta os três estados do Reino (Eclesiástico, Nobreza e Povo) aos três elementos que compõem o sal (fogo, ar e água).

Assim como o sal é uma junta de três elementos, fogo, ar e água, assim a República é uma união de três estados, eclesiástico, nobreza e povo. O elemento do fogo representa o estado eclesiástico, elemento mais levantado que todos, mais chegado ao céu e apartado da terra; elemento a quem todos os outros sustentam, isento ele de sustentar ninguém. O elemento do ar representa o estado da nobreza, não por ser a esfera da vaidade, mas por ser o elemento da respiração, porque os fidalgos de Portugal foram o instrumento felicíssimo por que respiramos, devendo este reino eternamente à resolução de sua nobreza os alentos com que vive, os espíritos com que se sustenta. Finalmente, o elemento da água representa o estado do povo: Aquae sunt populi12 12 ''As águas são os povos''. – diz um texto do Apocalipse – e não como dizem os críticos, por ser elemento inquieto e indômito, que à variedade de qualquer vento se muda, mas por servir o mar de muitos e mui proveitosos usos à terra, conservando os comércios, enriquecendo as cidades, sendo o melhor vizinho que a natureza deu às que amou mais.13 13 VIEIRA, Antonio. ''Sermão de Santo Antonio'', p.326.

Como o interesse maior é sempre pela conservação do Reino, entende-se por que os elementos naturais deixam de ser o que eram para converterem-se numa espécie nova, conservadora das coisas: o sal. Analogamente, ''os três elementos políticos hão de deixar de ser o que são, para se reduzirem unidos a um estado que mais convenha à conservação do Reino''.

Nesse passo impõe-se o tema da concórdia. Conceito político entendido como superação das facções e dos interesses privados, no caso de Vieira, longe se está de compreender a concórdia, a união de todos, univocamente do ponto de vista moral. Apontado por Pécora, no pensamento de Antonio Vieira, há sempre ''uma razão virtuosa acima dos interesses particulares das ordens; a virtus administrativa exige a consideração de uma Ordem capaz de equilibrar as demais, e que se repõe analogamente na função real da Cabeça que zela pela saúde inteira, a concórdia, do corpo místico do Reino.''14 14 PÉCORA, Alcir. ''Política do Céu, Anti-Maquiavel'', In: Ética, p.137.

O equilíbrio entre os diferentes estados que compõem o Reino é o que pretende o jesuíta. Primeiramente, do Estado Eclesiástico, Vieira propõe que deixe de ser o que é por imunidade, e seja o que convém à necessidade comum. Ora, o que se quer dizer é que a ocasião15 15 O termo ocasião é central na argumentação de Vieira. Como evidenciado por João Adolfo Hansen: ''Escolasticamente, a ocasião é uma circunstância ou conjunto de circunstâncias que favorecem a ação de uma causa livre. Diferencia-se da condição, pois esta se refere a qualquer causa eficiente. Supõe-se que a ocasião atua sobre a vontade do agente de modo imediato, uma vez que remove obstáculos interpostos em sua ação e, ainda, porque induz a vontade a cooperar positivamente. A ocasião é um incentivo para a ação. No século XVII, é um conceito político, com o sentido de concurso de causas que abre caminho à grandeza.'' A sátira e o engenho, p.402. Neste ponto, cabe salientar as semelhanças com a clássica construção de Nicolau Maquiavel, concernente a ''fortuna'' e a '' virtù''. Como se sabe, descrito no penúltimo capítulo do Príncipe, diz o próprio florentino: ''Não desconheço que muitos têm tido, e têm, a opinião de que as coisas do mundo são governadas pela fortuna e por Deus, de modo que a prudência dos homens não as poderia corrigir nem lhes ofertaria algum remédio. Dessa maneira, poder-se-ia pensar que ninguém deve se importar muito com elas, deixando-se simplesmente reger pela fortuna. Essa opinião é muito aceita na nossa época, pela grande variação das coisas, o que se percebe diariamente, fora de toda conjetura humana. Em algumas ocasiões, quando considero o assunto, tendo a aceitá-lo. Apesar disso, e uma vez que nosso livre-arbítrio permanece, acredito poder ser verdadeiro o fato de que, mesmo assim, ela nos permita governar a outra metade quase inteira''. confere uma prática determinada aos eclesiásticos. Tributário da segunda escolástica, o orador sacro anuncia o dever da Igreja e seus integrantes seguindo a lógica e a interpretação dada pelo neotomismo: o direito natural precede o direito positivo. Entende-se, assim, ''porque quando estão em necessidade os Reis, é bem que os bens Eclesiásticos os socorram, e que tirem os Sacerdotes o pão da boca para o sustentarem a ele, e a seus soldados.''16 16 VIEIRA, Antonio. ''Sermão de Santo Antonio'', p.331.

Mais uma vez de modo 'alquímico', projetando a concórdia e o bem comum de todo o corpo político, ordenado este pela cabeça representada pelo Rei, Vieira se encarrega de fazer mover a sociedade de sua época, com vistas à conservação do Reino de Portugal:

A água deixando de ser água, faz-se sal, e o sal desfazendo-se do que é, torna a ser água. Neste círculo perfeito consiste a nossa conservação e restauração. Deixem todos de ser o que eram, para se fazerem o que devem; desfaçam-se todos como devem, tornarão a ser o que eram. Este é em suma o espírito das nossas quatro palavras: Vos, estis, sal, terrae.17 17 Idem, p.333.

Deste modo, o pertencer ao corpo político do Estado implica a imediata responsabilidade pessoal para com os demais homens. A concórdia com o Pai não é suficiente, se não houver também a concórdia de cada um consigo mesmo. ''É preciso reduzir a uma unidade comum da tranqüilidade da alma a diversidade dos apetites individuais que concorrem na situação social de concórdia''.18 18 Segundo HANSEN, J. A. ''O tema estóico, retomado do Sêneca do De tranquillitate animi, tem intensa circulação na literatura do século XVII, aliás, sendo adaptado ao desenvolvimento político de temas correlatos, como o do desengano e o da concórdia ausente da sociedade vivida como teatro de enganos. A paz social do corpo do Estado, perfeita integração de suas partes e funções, combina a concórdia de todos no bem comum e a adesão de cada membro ao corpo político pelo controle da vontade''. Para conferir: ''Positivo/Natural: sátira barroca e anatomia política''. In: Revista de Estudos Avançados da USP, n.6, p.69-73. Desta maneira, o modo de união mais perfeito do corpo político do Estado é a paz, como conformitas e proportio dos apetites: ''Es el império unión de voluntades em la potestad de uno; si éstas si mantienen concordes, vive y cresce; si se dividen, cae y muere, porque no es outra cosa la muerte sino uma discórdia de las partes.''19 19 FERROL, F. M. Saavedra Fajardo y la política del Barroco, Madrid, Instituto de Estudios Políticos, 1957. Citado em: HANSEN, João Adolfo. ''Positivo/Natural: sátira barroca e anatomia política'', p.70.

No Sermão Santíssimo Sacramento pregado em 166220 20 VIEIRA, Antonio. ''Sermão do Santíssimo Sacramento'', pp.155-176. , o tema da união volta a aparecer. Neste, a questão transpõe a chave do sacramento, ou seja, a comunhão eucarística que é união com Cristo só se efetiva porque ocorre a união entre os homens, numa trilogia sempre presente em Vieira: retórica, teológica e política.

Logo de início, neste seu escrito, o público escolhido por Vieira é anunciado: ''Ouça-me a Nobreza Ilustríssima de Portugal; porque com ela é o caso.'' O jesuíta protesta contra o modo com que estes ilustres do Reino desagradam o mistério divino do sacramento. E desagradam porque desunidos. Pois, não basta a comunhão com Cristo que é particular. Dessa união particular deve nascer a união comum, de todos. Por isso é possível entender a afirmação de insuficiência da comunhão que nos une somente a Cristo, porque este sacramento deve ultrapassar seus limites e abranger todos.

Sendo, pois o fim de Cristo naquele sacramento ou naquela oficina de amor não só unir-se conosco, senão unir-nos entre nós: sendo o fim de Cristo em se nos dar a comer, ou a comungar, introduzir-se aos nossos corações para os concordar e unir entre si: e sendo mesmo Cristo, não só o mediatário, senão também o meio dessa união, vede se tem justas causas de estar queixoso, de estar ofendido, e de estar agravado.21 21 VIEIRA, Antonio. ''Sermão do Santíssimo Sacramento'', p.160.

Depois de percorrer e demonstrar o agravo, Antonio Vieira busca persuadir ao remédio. E se o agravo é a desunião, o desagravo só pode ser a união. Por isso mesmo é que o público escolhido é a nobreza. Pois, ''entre os unidos sempre a união está da parte do mais nobre, e entre os desunidos sempre a desunião está da parte do mais vil''. Aos nobres é preciso cuidado. Porque ''Nobreza e desunida não pode ser, porque em sendo desunida, logo deixa de ser nobreza, logo é vileza''. Assim como ''por mais alta que esteja a cabeça, se não está unida, é pés; por mais ilustre que seja o ouro, se não está unido é barro''.

A desunião é uma ferida que corrói e consome. Para Vieira ela é o contrário de conservação:

As obras da natureza e as da arte todas se conservam e permanecem na união: e todas na desunião se desfazem, se destroem e se acabam. Esta máquina tão bem composta do mundo, como ser obra de braço onipotente, que é o que sustenta e a conserva, senão a perpétua e constante união de suas partes? (...) Esse foi o pensamento profundo do grão Príncipe da Igreja, S. Pedro, o qual chamou ao fim do mundo desunião do universo.22 22 VIEIRA, Antonio. ''Sermão do Santíssimo Sacramento'', p.168.

As razões marcadas pelo padre Vieira para que a união seja elevada a condição de essencialidade da vida, continuam sendo expressas na sua coerente e corrente tríade argumentativa (retórica, teológica e política).

Toda a vida não é mais que uma união. Uma união de pedras é edifício: uma união de tábuas é navio: uma união de homens é exército. E sem esta união tudo perde o nome, e mais o ser. O edifício sem união, é ruína: o navio sem união, é naufrágio: o exército sem união, é despojo. Até o homem (cuja vida consiste na união da alma e corpo) com união é homem, sem união é cadáver. A maior obra da Sabedoria, e da Onipotência divina, que foi o composto infalível de Cristo, consistia em duas uniões: uma união entre o corpo e a alma, e outra união entre a humanidade e o Verbo. Quando perdeu a primeira união, deixou de ser homem; se perdera a segunda, deixava de ser Deus. Oh Deus! Oh homens! Que só a vossa união vos há de conservar, é só a vossa desunião vos pode perder.23 23 VIEIRA, Antonio. ''Sermão do Santíssimo Sacramento'', p.169.

A herança neotomista e a Razão de Estado catolicamente concebida são manifestas na afirmação de que: ''O que sustenta e conserva os Reinos é a união''. Por isso a desgraça maior é que se vejam portugueses contra portugueses: Omne Regnum in se ipsum divisum deolabitur.24 24 ''Todo Reino dividido contra si mesmo será desolado''.

Como apontado por Hansen, na Ibéria do século XVII, a virtus unitiva do amor do bem comum aparece traduzida na metáfora estóica-aristotélica da amizade. Mais ainda,

os temas entrelaçados da unidade, do bem comum e da amizade das partes do corpo político são centrais na sátira barroca seiscentista, aliás, que os dispõe como oposição de mundo das relações pessoais virtuosas e, também, da ordem definida pelas relações econômicas impessoais e viciosas, que tiram de si mesmas sua justificação, traduzindo como 'amor falso', 'moral ódio'.25 25 HANSEN, João Adolfo. ''Positivo/Natural: sátira barroca e anatomia política'', p. 73.

Nesse sentido é possível mesmo entender os dois elementos que concorrem para a paz social do corpo do Estado: primeiro, o da concórdia, depois, o da tranqüilidade da alma, ou sossego interno dos apetites. Não por acaso, exemplarmente, um filósofo como Spinoza, mostrando o seu momento, propõe que o ''bem supremo'' passível e possível de ser almejado pelos homens é unicamente o da ''tranqüilidade interior''.

Todos unidos com e em Cristo, e todos unidos entre nós, este é o remédio para os males da discórdia e da ruína dos reinos. Afinal, o Sacramento da Eucaristia é, ao mesmo tempo, o do amor e da união. E se a natureza faz de muitos um único mesmo, é pelo milagre da união que os portugueses, sempre poucos, são transformados em muitos. De tal modo que a Nobreza Ilustríssima de Portugal deve entender que só a união pode causar sua glória. Conseqüentemente, uma tarefa é imposta a essa nobreza, qual seja: ''domai, abatei, sujeitai e ponde rendido a vossos pés tudo aquilo que pode impedir a verdadeira concórdia e união deste Reino todo vosso.''26 26 VIEIRA, Antonio. ''Sermão do Santíssimo Sacramento'', p.164.

Isso tudo mostra que o fundamental no tema da união encerra a questão da dualidade, ou seja, a mediação entre o humano e o divino. Quer se dizer com isso o seguinte: os homens procuram a Deus reconhecendo sua associação hierárquica-instituicional como desdobramento natural da razão e vontade comum. É o estabelecimento da união entre os homens, via comunhão com Deus, a recorrente imagem que Antonio Vieira quer produzir e fazer efeito.

O que se viu até aqui, num primeiro momento deste artigo, foi a maneira qual por meio da 'alquimia perfeita' entre os diferentes estados do Reino, a alternativa que melhor e mais adequadamente apontava para o cumprimento da tarefa portuguesa de conservar e legitimar o restaurado era a união e a comunhão de todas as gentes.

Para dar prosseguimento e encarar a concepção de Estado elaborada por Vieira, faço uma anotação sobre o contexto português do seiscentos. Este era um ambiente que estava fortemente impregnado por crenças de fundo messiânico-milenarista, presença marcante na argumentação de Vieira, como atestam vários de seus sermões e cartas. De toda ordem, a junção das profecias que penetravam o imaginário português recobria a percepção sobre o Reino, dotando-o de uma exclusividade. Este seria dono e proprietário singular da missão de cristianizar todo o mundo. A dimensão e confiança da realização deste destino é proporcional ao aparecimento de variadas crenças, as quais aponta-se mais à frente. Faz-se necessário, assim, passar em revista essa atmosfera intelectual. Remonta-se ao ano de 1641, quando o padre Vieira volta a Portugal pela primeira vez. O encontro mostra um país em verdadeira efervescência visionária, mantida em alta pela confluência do messianismo sebastianista e as novidades da Restauração.27 27 Quanto ao período da União Ibérica e da Restauração Portuguesa, nos quadros da História de Portugal, há uma infinidade de livros. Para o estudo em questão me utilizei, em específico, de dois autores: FRANÇA, Eduardo D'Oliveira em Portugal na Época da Restauração e HESPANHA, Antonio Manuel. História de Portugal: O Antigo Regime e A Restauração e sua Época. Esse é o lugar em que os sinais, muitos na visão de Vieira, da eleição portuguesa podem ser abundantemente detectados.

Quando se fala no clima místico e no ambiente carregado de prenúncios e presságios messiânicos encontrado e desenvolvido em Portugal, é preciso ter em conta que tais crenças estariam apoiadas, basicamente, em três correntes de pensamento: as milenaristas joaquimitas,28 28 Esta crença tem origem nos escritos do abade italiano Joaquim di Fiori, que viveu entre os anos de 1145 e 1202. Ele elaborou um sistema escatológico que se fundiria com as ''Sibilinas Cristãs''. Para Di Fiori, as alegorias bíblicas serviriam como um método de compreender e prever o desenrolar da história, ultrapassando assim seus fins morais e religiosos. O milenarismo de sua obra reside no fato de Joaquim di Fiori ter formulado uma teoria acerca das três idades da humanidade: a primeira, antes da lei ou tempo do pai; a segunda, sob a lei ou tempo do filho e, por fim, a última redentora, sob a graça ou tempo do espírito. Desse modo, por exemplo, é que Jean DELEMEAU no seu A História do Medo no Ocidente afirma o joaquimismo como possuidor de três elementos que possibilitaram sua utilização pelos milenaristas mais radicais: 1) o refortalecimento dos temas apocalípticos, 2) a idéia de que a igreja dos clérigos seria substituída pela dos contemplativos e 3) a de que os menos favorecidos reinariam no mundo. Nota-se, ainda, que foram os franciscanos os responsáveis pela difusão do joaquimismo na Idade Média, sendo que muitos esperavam a ressurreição de São Francisco como o prelúdio de uma nova era. É a partir deste momento que se pode identificar os traços messiânicos junto aos ideais milenaristas. o judaísmo29 29 O messianismo judaico parte de profecias que encaram a concepção de história formulada a partir dos judeus, os quais se consideravam como o povo 'eleito' e 'escolhido' por Deus. O mais antigo apocalipse conhecido seria o Sonho de Daniel, no qual, pela primeira vez, se imaginara um reino glorioso que não se limitaria à Palestina, mas que englobaria toda a Terra, ultrapassando a glória de todos os reinos anteriores. Para acompanhar a discussão sobre este assunto, ver: COHN, Norman. Na senda do milênio. A elaboração das teorias acerca do Quinto Império seria o início do messianismo judaico. Ao contrário do desejo da Igreja Romana, que queria o reino nos céus, a crença dos judeus apontava para um império terrestre. No século XV tem-se uma drástica mudança de atitude da população judaica em relação ao messianismo, pois, ao contrário do que ocorria com o judaísmo antigo e devido às perseguições sofridas na Península Ibérica, passa-se a acreditar na possibilidade de interferência do homem no processo divino, abreviando-se assim a vinda do redentor. Sobre as relações entre judaísmo e Vieira vale conferir o estudo de SARAIVA, Antonio José. ''Antonio Vieira, Menasseh Ben Israel e o Quinto Império''. e o messianismo português30 30 Para o chamado messianismo português ver, especialmente, A evolução do Sebastianismo de João Lúcio de Azevedo. propriamente dito.

Além de todo esse material acumulado e em ebulição por séculos, duas dessas crenças, que concebiam o Reino português dotado da especificidade providencial, serão as mais prontamente empregadas por Vieira em seu esforço de convencimento e de fazer mover seus conterrâneos.

É a partir do ''milagre de Ourique''31 31 O evento conta que em 25 de julho de 1139, um ano antes de D. Afonso Henriques de Borgonha começar a usar o título de Rei, cristãos portugueses conseguiram vencer a batalha contra o mais numeroso exército mouro de então. Este evento ganha contornos milagrosos a partir do século XV, como traço fundador da nacionalidade, buscando ilustrar as conquistas quase inexplicáveis empreendidas por um país tão pequeno e um povo tão reduzido. Por meio desse 'mito' poderia se indicar o destino de glória reservado a Portugal, confirmando a 'vontade de Deus' em fazer dele um país livre e dedicado a levar a fé por todo o mundo. Vale lembrar que, sobre o 'milagre de Ourique', o primeiro texto escrito foi de Duarte Galvão, publicado em 1505 com o título de Crônica d'El-Rei D. Afonso Henriques. que se firma em definitivo a aliança entre Deus e a nação portuguesa. Momento primeiro da história de Portugal, no qual o próprio Cristo aparece para D. Afonso Henriques e, ao proferir as palavras de alento e estímulo, diante a batalha em jogo, sinaliza a particularidade do Reino que daquele instante para frente viu marcar em sua identidade a intervenção sagrada.

O afortunado século XV inflou de otimismo os primórdios do século seguinte. O momento de expansão marítima tornou o pequeno Reino uma das maiores potências navais e comerciais de toda a Europa. Durante o século XVI, junto ao 'mito de Ourique', o ambiente português é tomado dessa atmosfera messiânica.

O favor divino único, encontrado somente na história portuguesa, manifesto no impulso voluntário para sair do próprio e abranger o mundo, universaliza e equipa, de modo único e exclusivo, os lusitanos em sua missão planetária. A etimologia preparada por Vieira é impressionante:

Tubal, como dizem todos os intérpretes daquela primeira língua – que era a hebraica – quer dizer orbis et mundanus: homem de todo o mundo, (...) porque este homem era o primeiro português, (...) assim o português se chama mundanus, porque é todo o mundo, e se chama orbis, porque é toda a redondeza da terra, (...) toda a terra é sinônimo de Portugal.32 32 VIEIRA, Antonio. Sermão Gratulatório e Panegírico, p.44.

A intervenção divina em Portugal é imanente. Atinado, o pregador e conselheiro régio reforça o ambiente e conteúdo milenarista-messiânico vivido pelo Reino para desferir suas proposições universalistas.

A segunda outra dessas crenças, aproveitada por Antonio Vieira, são as ditas ''Trovas do Bandarra''33 33 Algumas palavras sobre Gonçalo Eanes Bandarra. Nascido em Trancoso, pequena cidade comercial da região das Beiras, no início do século XVI. Sua biografia é pouco conhecida, destacando-se sua profissão: sapateiro, e o fato de ser humilde e sua prodigiosa memória. Leitor das Escrituras Sagradas, logo ganhou fama em sua cidade, sendo considerado como uma espécie de 'Rabi' local, interpretando a Bíblia e suas profecias para os cristãos-novos da região. O apelo profético e messiânico marca suas trovas. Conforme Hermann, a discussão acerca das Trovas seria a identificação do D. João, citado por ele, a quem o Padre Antonio Vieira interpretará como sendo D. João IV. Ainda, segundo essa autora, o que garantiu a sobrevivência das 'Trovas de Bandarra' foi justamente o mistério e a impossibilidade de se identificar com certeza qual seria o rei predestinado apontado pelo seu autor. Para este tema, ver: HERMANN, Jacqueline. No Reino do Desejado. . A mais popular das profecias que versa sobre o volta do Encoberto – rei português que guiaria todos os povos em direção a uma única fé. Essas quadras populares ganharam força com o desaparecimento de D. Sebastião34 34 No ano de 1572, D. Sebastião tinha 18 anos. Este também foi o ano em que Camões dedicara Os lusíadas ao monarca. Como se sabe, o épico logo se tornou o símbolo da alma portuguesa daquele período conturbado. Tristeza, ressentimento e inconformismo, este o quadro em Portugal nos fins do século XVI. A 'missão' conferida em Ourique precisava urgentemente ser retomada. Parece que foi exatamente isso que D. Sebastião tomou para si: o dever de retomar a expansão ultramarina, bem como o de resgatar as possessões em terras africanas. Como se sabe, dessas jornadas, ele não voltou. na famosa batalha africana de Alcácer-Quibir. Ora serão utilizadas para legitimar herdeiros, ora para restaurar o Reino, ora para atiçar os cristãos-novos na busca de maior autonomia e independência.

Partindo da interpretação das trovas e de um ambiente extremamente afeito ao mistério, o empenho de Antonio Vieira passa pelo reforço do papel do Estado. Basicamente, o que importa é a ordenação e a hierarquização do modelo monárquico de poder. O Portugal de Vieira precisava renascer, restaurar-se, fazer valer sua identidade tal e qual nascida no momento mesmo de sua fundação providencial, conforme Ourique.

POLÍTICO E TEOLÓGICO: O ESTADO EM VIEIRA

A retomada do tomismo pelos ibéricos produzira um arcabouço teórico que elevou a própria monarquia católica como corpo místico de ordens naturalmente subordinadas à cabeça real, pressupondo a alienação do poder na persona ficta do monarca, imediatamente sagrada porque figura da soberania popular nela alienada. O missionário Vieira participa desse universo montado a partir de Trento e, por que não recuar um pouco mais, identificando na própria fundação da Companhia de Jesus os primeiros enfrentamentos para com ''todos esses hereges''.

Assim, pode-se entender como o poder do Imperium, aquele identificado pelo jesuíta Francisco Suárez, vem instantaneamente integrar a força da razão natural, no momento mesmo em que o corpo político é constituído.35 35 SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno, p. 243. Ora, em Vieira há uma interpenetração total entre aspectos religiosos e políticos, tanto a favor de uma justificação da sociedade de ordens quanto de uma monarquia absoluta. Assim sendo, em se tratando de Portugal, Nação e Estado figuram simples e exatamente como a mesma substância. Nestes termos, o Estado surge para Vieira como uma ''unidade de vida tão organicamente constituída quanto a própria lei moral e a crença religiosa, isto é, um prolongamento da razão natural.''36 36 PÉCORA, Alcir. Teatro do Sacramento, p.223.

Tudo isso remete a uma concepção política que procura trazer para o centro todas as decisões. Interesse aqui é Interesse coletivo, mais prontamente e bem dizendo, monárquico. Por isso mesmo é que o Estado é tão importante na construção de Antonio Vieira. A linha seguida pelo jesuíta é a da jurisprudência neo-escolástica de seus irmãos inacianos. Mas, não é só a consideração jurídica do Estado que importa em Vieira.

O que de fato torna-se relevante é sua forma monárquica, que produz a necessária organização e adequação do povo em relação aos governantes, ou melhor, ao próprio Deus. E por isso também é que qualquer consideração mais democrática deve imediatamente ser rechaçada. Veja-se, sempre retórico, teológico e político, um único exemplo, no Sermão da Epifania:

Dizem que os que governam são espelho da República: não é assim, senão ao contrário. A República é o espelho dos que a governam. Porque assim como o espelho não tem ação própria, e não é mais que uma indiferença de vidro, que está sempre exposta a retratar em si os movimentos de quem tem diante, assim o Povo, ou República sujeita, se se move, ou não se move, é pelo movimento ou sossego de quem a governa.37 37 VIEIRA, Antonio. ''Sermão de Santo Antonio'', p.597.

Neste ponto, importa dizer que as instituições são legais porque fundamentadas na legitimidade do poder consentido da população em favor e na pessoa do Rei, estabelecendo a cabeça do corpo político, ou seja, integração e admissão das partes em favor da totalidade do Estado monárquico.

A partir dessas afirmativas é possível estabelecer duas diferenças entre o discurso e perspectiva adotada por Vieira em relação a grande parte dos neo-escolásticos. A primeira refere-se à questão da tolerância para com os judeus.

Uma segunda diz respeito, exatamente, ao fortalecimento das monarquias nacionais. A despeito da tendência de convergência e do espírito que tomou conta do período, e que impediu que o poder residente no pontífice maior fosse deslocado para os monarcas absolutos nacionais, Vieira, a isto, se coloca quase em oposição.

Ao contrapor uma teocracia imobilizadora, defendida pela Inquisição e pelos grupos nobiliárquicos mais tradicionais, Antonio Vieira revestia-a de um sentido transformador, garantindo um espaço de maior poder ao monarca. Seria isto a ''radicalização'' de que Pécora nos fala:

Vieira não se opõe propriamente a Suárez por divinizar o poder de um rei particular, o que, de fato, não é seu propósito imediato. O que Vieira faz é radicalizar a posição característica dos mesmos neotomistas a respeito da vontade comum unificada do 'corpo místico' até o ponto de alto risco em que, ao mesmo tempo, ela adquire máxima analogia com a vontade divina e máxima particularidade enquanto nação: o corpo ordenado do Estado ganha em substância universal cristã (aumenta sua participação mística no Ser) à medida que segue a sua vocação nacional distinta.38 38 PÉCORA, Alcir. Teatro do Sacramento, p.241.

Neste sentido, Vieira não rivaliza com o pensamento corrente da segunda escolástica, mas, ao mesmo tempo, também não adere totalmente aos pressupostos estabelecidos pelos trentistas. Sua posição é clara: há um Estado escolhido que não pode fugir de sua missão, e não um único rei, o que conduziria à consideração herética dos luteranos que queriam a concessão direta ao príncipe do poder divino. No caso de Antonio Vieira, é o Estado que ganha preeminência. Este corpo de ordens hierarquicamente constituído, a partir de uma cabeça, é o singular agente histórico capaz de realizar a tarefa, missão mesma de atualização da semelhança entre o mundo criado e sua Causa Primeira.

Igreja e Estado são ambos integrados na militância da nação eleita, no pensamento do inaciano. Praticamente identificadas as instituições da Igreja e do Estado português, o padre Vieira estabelece uma forma de composição entre os dois Estados (ou as duas Igrejas): o modelo é a própria Companhia de Jesus, ou seja, Portugal está para a Igreja, como a Companhia está para o conjunto das Ordens eclesiásticas e a hierarquia de seu corpo místico.

O Estado forte de Antonio Vieira é o lugar privilegiado de atuação das vontades divina e humana. Aqui, Estado é mais que conciliador de interesses, sendo ele mesmo quem compõe e reconhece os interesses mais apropriados. Referem-se, esses interesses, os relativos à conservação e perpetuação da monarquia temporal.

Vale atentar que, em nenhum instante, pode-se confundir a ordenação desse Estado, sem a devida providência da qual ele é espaço único de manifestação. A intervenção do divino sob solo português faz com que Vieira aproxime o primeiro momento da Igreja do primeiro momento de Portugal. Diz assim no Sermão de Santo Antonio: ''Como o Reino de Portugal havia de ser tão filho da Igreja Católica, e lhe havia de fazer no mundo tão relevantes serviços, quis Cristo que a sua instituição fosse muito semelhante à da mesma Igreja.''39 39 Pregado em Roma, na Igreja dos Portugueses, no ano de 1670. Este sermão refere-se à missão apostólica dos portugueses, Vos estis Lux Mundi (Vós sois a luz do Mundo). VIEIRA, Antonio. ''Sermão de Santo Antonio'', In: Sermões, Tomo I, pp.277-293.

Para Pedro, disse Cristo: ''Quero fundar em ti uma Igreja, não tua, senão minha''; a D. Afonso a manifestação do Senhor implica também um querer: ''Quero fundar em ti um Império, não para ti, senão para mim.'' Se, de um lado, quis Deus o Império da Igreja que é universal sobre todas as nações do mundo, do outro, quis o Reino de Portugal. Este, porém, foi instituído por Cristo para ser ''um Reino particular de uma só nação, quis que fosse hereditário, e não eletivo, para que continuasse na sucessão e descendência do mesmo sangue. E por quê tudo isto, e para quê? Não para o fim político, que é comum a todos os Reinos e a todas as nações, senão para o fim Apostólico, que é particular deste Reino, e desta nação.''40 40 VIEIRA, Antonio. ''Sermão de Santo Antonio'', p.282.

Essa missão apostólica pertencente aos portugueses é ajustada no Estado. Assim é possível entender por que Antonio Vieira fala em ''glória singular do Reino de Portugal''. O cumprimento da vocação é sinal de santidade. Por isso, qualquer mudança na vocação instituída por Cristo ao Reino de Portugal desde sua fundação é considerada negação da própria vontade divina.

Uma vez mais, a revelação da Providência se dá por formas terrenas. Como se vê no Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal contra as de Holanda, pregado na Igreja de N.Sra. da Ajuda da Cidade da Bahia, no ano de 1640:

Desperta! Por que dormes, Senhor? Acorda! Não nos rejeites para sempre? Por que escondes a face e te esqueces da nossa miséria e da nossa opressão? Levanta-te em nosso auxílio e resgata-nos por amor das tuas misericórdias.41 41 VIEIRA, Antonio. ''Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal Contra as de Holanda'', In: Sermões Tomo I, pp.441-462.

Essa conjugação estabelece o modo principal de entendimento do pensamento político de Antonio Vieira. A Razão de Estado pretendida por Vieira é definida de modo positivo. Isto é, determina-se ''como uma possibilidade concreta de conciliação dos valores cristãos com a eficácia a obter-se nas operações temporais em que se joga a soberania do rei e Reino.''42 42 PÉCORA, Alcir. ''Política do Céu (Anti-Maquiavel)'', p.139.

Ainda, nesses termos, a Razão de Estado seria o ''justo fim'' politicamente produzido pelos homens para vingar sua própria história, ou melhor, para moldar e enquadrar ética e cristãmente sua ação no mundo. E se a aplicação vieriana da Razão de Estado, ''supõe que ela busca atender aos seus fins tendo em vista uma reordenação dos meios historicamente utilizados para fins distintos e mesmo opostos''43 43 Idem, p.141. , nesta ordem, funda-se uma tradição de enfrentamento político que busca aproveitar e faz valer os mesmos instrumentos que são colocados contrários à prática e aos propósitos da cristandade para um fim benigno.

Em termos do governo das gentes, a Razão de Estado expressa no pensamento de Antonio Vieira dispõe providencialmente dos mais adequados meios, limitados e finitos por certo, mas aplicados de forma a incorporar o reto fim que conduz a Deus. Desta maneira, em vez de atitudes, princípios ou intenções, a Razão de Estado, em Vieira, atende às práticas circunstanciadas da ocasião e das pessoas, os hábitos que reduzem os meios e um projeto teleológico que a todos condiciona.

Dizer tudo isso não deve conduzir a uma compreensão na qual a Política pregada por Vieira é 'pouca política'. Nada mais falso. Em suas formulações é inadmissível uma contradição entre os domínios da moral e da política. Aliás, não há dois domínios. Seria anacrônico, para dizer o mínimo, imaginar o mundo de Antonio Vieira regido pela autonomia de uma ou outra instância do agir humano. Ambos os domínios são atributos naturais que se harmonizam segundo a ordenação providencial que os institui. No caso, a proposta de Vieira coloca em relevo ''uma Política Moral que atenda às virtudes ensejadas pelo cristianismo, como o de propor-se a própria Cristandade como uma Política, isto é, como uma maneira de conquista real sobre os meios do mundo até o ponto de sua completa Restauração para a Bem-Aventurança.''44 44 PÉCORA, Alcir. ''Política do Céu (Anti-Maquiavel)'', p.142.

A supremacia do Estado é certa. Não é o rei figura desprovidencializada que absolutamente determina os caminhos para seu 'corpo político'. Na verdade, o Estado entendido como espaço e elemento de revelação da união sacramental entre Providência e ação humana é quem se apresenta como chave do modo de pensar em Vieira.

As obras humanas são os fins almejados. Por isso mesmo é que ''não há fim sem meios''. Estas obras estão ligadas à lei natural, produzindo meios de realização que assemelham a 'política do céu'. Sendo assim, em suas formulações sempre há margem para o ato humano, o qual está garantido na equivalência e na conexão perfeita entre o plano providencial e as ações humanas. Na visão de Vieira, há uma íntima conexão entre esses planos. Providência Divina e prudência humana harmonizam-se em sua Razão de Estado.

Essa conexa interdependência, uma vez mais, aparece no Sermão do Santíssimo Sacramento, diz Vieira:

O Maná que comiam os filhos de Israel não era um só em todos, senão diverso para cada um deles: e como os Manás comidos eram muitos, ficavam também muitos os que os comiam. Dava-lhes o Maná os sabores, porque os tinha, mas não lhes dava, nem lhes podia dar a unidade, porque a não tinha. Porém o corpo de Cristo, a quem comungamos, como é um só e o mesmo em todos os que comungam, a mesma unidade que tem e conserva comido, comunica a todos os que o comem. E assim todos, por mais e mais que sejam, ficam não já muitos, senão um só: Qui manducat.45 45 VIEIRA, Antonio. ''Sermão do Santíssimo Sacramento'', p.175.

Diferentemente da desprovidencialização maquiavélica e, ainda mais a hobbesiana que acaba por constituir um modelo ''artificial'' de Estado46 46 MORSE, Richard. O Espelho de Próspero, p.63. , no caso de Vieira, tudo se passa ao inverso. Na afirmação de Pécora:

O artifício político pressupõe uma harmonização natural, e não tirânica ou imaginária, das vontades da coletividade e do Príncipe no todo ordenado do Estado. Aqui, não é que não haja artifício, cálculo de poder ou enfim, Razão de Estado a ser considerada pelo Príncipe cristão em sua política de estabelecimento do Bem comum, apenas que esse cálculo não pode se dissociar da santidade de seus fins e das injunções da reta razão. Quer dizer, para os tratadistas católicos, não há artifício de uma política verdadeiramente cristã que não termine por mostrar-se como uma atualização providencial; não há gesto político do Estado cristão que não remeta organicamente à sua missão co-participativa dos desígnios de Deus para a história.47 47 PÉCORA, Alcir. ''Sermões: a pragmática do mistério'', p.23.

Por toda essa insistência pode-se compreender por que essencial para Antonio Vieira é a união coletiva figurando, de um lado, a participação das vontades de todas as ordens, o todo unificado; e, de outro, essa participação é determinada por estamentos que jamais se dissolvem, antes, tornam-se ainda mais nítidos com a união.48 48 PÉCORA, Alcir. Teatro do Sacramento, p.209.

CONCLUSÃO

Neste artigo se tratou da expressão e construção do pensamento político do padre Antonio Vieira. A conformação da noção de Razão de Estado foi elaborada por dois pontos. Em primeiro plano, verificou-se o que representa a união de todos em torno de uma organização política. O compromisso mais justo, como no caso da tributação, ou a 'alquimia' elaborada pelo padre Vieira com referência aos diferentes estados e ordens. Como se viu, essa 'ordenação sacramental' é chave para entender o pensamento do jesuíta.

Este arranjo e organização hierarquicamente constituídos manifestam-se no Estado Providencial, infuso na monarquia lusitana. Confluindo em aspectos teológicos, retóricos e políticos, há uma missão especial que somente o Estado Português, o único e nenhum outro mais, pode realizar. Nesse espaço projeta-se o Rei Encoberto. A condução política perfeita realizada pela cabeça do Reino acaba por ser representada na subordinação dos interesses dispersos e individuais em torno de algo maior: o interesse coletivo, o bem comum. Em tom profético, Vieira ainda tem a capacidade de demonstrar, não somente aos lusos, mas a todo o Mundo, seu próprio destino.

Com esse tipo de ação, decidida em torno de um centro irradiador de força e poder, que é o Estado, revela-se a Providência no reino deste mundo, ou seja, é a ação humana que desvenda a própria história escondida que a guia.

Assim, se procurou evidenciar, no sempre indissolúvel político, retórico e teológico pensamento de Vieira, que o Estado é o veículo do fim maior: a realização da Providência que, segundo o modo sacramental, harmoniza-se pela afirmação da plena função do humano: partes que se juntam num todo único e místico, acima e além das vontades individuais.

Porém, qualquer ação humana dá-se na Terra; deste modo, a construção de um império aqui e agora, o 'Reino deste Mundo', de um Estado cristão forte como condição para uma era de paz e harmonia universais, não depende única e exclusivamente da Graça divina. Sua consumação está sujeita à realização da justa ação dos homens que, no fundo, revela a própria Providência.

  • AZEVEDO, J. Lúcio de. História de Antonio Vieira (2 vols.), Lisboa, Ed. Livraria. Clássica, 1931.
  • _________ . Evolução do Sebastianismo Lisboa, Ed. Livraria Clássica, 1947.
  • COHEN, T.M. The fire of tongues, Antonio Vieira and the missionary church in Brazil and Portugal. Stanford, Stanford University, 1998.
  • COHN, Norman. Na senda do milênio: milenarismo, revolucionários e anarquistas místicos da Idade Média Lisboa: Presença, 1970.
  • DELEMEAU, Jean. A História do Medo no Ocidente São Paulo, Companhia das Letras, 1999.
  • FRANÇA, Eduardo D'Oliveira. Portugal na Época da Restauração São Paulo. Hucitec, 1997.
  • GRAHAM, Thomas R. The jesuit Antonio Vieira and his plans for de economic rehabilita-tion of seventeenth century Portugal São Paulo, Divisão de Arquivo do Estado, 1978.
  • HANSEN, João Adolfo. ''Positivo/Natural: sátira barroca e anatomia política''. Revista de Estudos Avançados da USP, São Paulo, n.6, 1989.
  • _______ . A Sátira e o Engenho: Gregório de Matos e a Bahia do Século XVII. São Paulo, Companhia das Letras/Secretaria de Estado da Cultura, 1989.
  • HERMANN, Jacqueline. No reino do desejado, a construção do sebastianismo em Portugal São Paulo, Companhia das Letras, 1998.
  • HESPANHA, Antonio Manuel (Org.). História de Portugal: O Antigo Regime Lisboa, Estampa, 1998.
  • _______ . Às vésperas do Leviathan: instituições e poder político: Portugal, século XVII, Coimbra, Livraria Almedina, 1994.
  • MORSE, Richard. O Espelho de Próspero São Paulo, Companhia das Letras, 1988.
  • PÉCORA, Alcir. Teatro do Sacramento: a unidade teológico-retórico-política dos sermões de Antonio Vieira. São Paulo, Edusp, 1994.
  • _______ . ''Política do Céu (Anti-Maquiavel)'', In: NOVAES, Adauto (org.) Ética. São Paulo, Companhia das Letras/Prefeitura do Município de São Paulo, 1992.
  • SARAIVA, Antonio José. ''Antonio Vieira, Menasseh Ben Israel e o Quinto Império'', In: História e Utopia: estudos sobre Vieira Lisboa, Ministério da Educação, 1992.
  • SKINNER, Quentin. As Fundações do Pensamento Político Moderno São Paulo, Companhia das Letras, 1996.
  • VIEIRA, Antonio. Escritos Históricos e Políticos. (Prefácio, organização e estabelecimento dos textos) Alcir Pécora, São Paulo, Martins Fontes, 1995.
  • _______ . História do Futuro Introdução e atualização de texto e notas por M. Leonor C. Buescu, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1982.
  • _______ . Obras Escolhidas. (12 volumes), Prefácio e notas de António Sérgio e Hernâni Cidade Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1951.
  • _______ . Sermões. (15 volumes), Porto, Lello & Irmão, 1959.
  • _______ . Sermões: Padre Antonio Vieira. Tomo I e II. Organização e introdução de Alcir Pécora, São Paulo, Hedra, 2000.
  • *
    Este artigo é uma parte reduzida e modificada de um capítulo da minha Dissertação de Mestrado em Ciência Política na Universidade de São Paulo que trata sobre
    Razão de Estado e o Pensamento Político de Antonio Vieira. Aproveito a oportunidade para agradecer os comentários e apontamentos dos professores Istvan Jancsó e Cicero Araújo, que realizaram uma discussão muito proveitosa, por ocasião da defesa.
  • 1
    Alguns exemplos desta defesa e da visão do comércio com um papel de redenção encontram-se em suas propostas e pareceres. Sobre as mesmas, pode-se colher tais referências à edição estabelecida, organizada e prefaciada por Alcir Pécora em
    Escritos Históricos e Políticos.
  • 2
    Faz-se necessário lembrar das anotações e alertas de Pécora em
    Teatro do Sacramento quanto ao ''esquartejamento'' produzido pela fortuna crítica do padre Vieira. Nesse livro, o autor mostra que, mais que partes e compartimentos, a figura e o pensamento de Antonio Vieira pode e deve ser entendido e compreendido a partir de uma totalidade. Sempre retórico, político e teológico, o discurso e a prática do inaciano se fundem e combinam com expressão máxima na relevância e centralidade dos Sacramentos, particularmente o da Eucaristia.
  • 3
    Refiro-me aí a
    invenção, como parte do discurso relativo ao estoque de tópicos e seus esquemas argumentativos básicos com vistas à persuasão, conforme o sentido técnico nas retóricas clássicas. No caso de Vieira, para Pécora é correto o que diz Adma Fadul Muhana, particularmente, na análise de sua obra profética: ''há uma simbiose entre os argumentos utilizados com o propósito não exclusivamente intelectual de convencer e, inversamente, uma utilização dos afetos não com a função exclusiva de comover''.
    Teatro do Sacramento, pp.44.
  • 4
    Também aqui as referências textuais foram colhidas à edição estabelecida, organizada e prefaciada por Alcir Pécora, In
    : VIEIRA, Antonio.
    Sermões, Tomo II, pp.315-334. Porém, há que se notar a data e o local da pregação do Sermão, pois o título ''Santo Antonio'' aparece nomeando outros sermões. No caso em análise, refere-se ao proclamado na Igreja das Chagas de Lisboa, no ano de 1642, em ocasião da reunião das Cortes do Reino de Portugal.
  • 5
    Conforme
    Matheus 5,13: ''Vós sois o sal da terra.''
  • 6
    VIEIRA, Antonio. ''Sermão de Santo Antonio'', p.322.
  • 7
    Ibidem.
  • 8
    VIEIRA, Antonio. ''Sermão de Santo Antonio'', p.323.
  • 9
    VIEIRA, Antonio. ''Sermão de Santo Antonio'', p.324.
  • 10
    ''O que faz nascer o seu sol sobre bons e maus, e manda a chuva sobre justos e injustos''.
  • 11
    VIEIRA, Antonio. ''Sermão de Santo Antonio'', p.326.
  • 12
    ''As águas são os povos''.
  • 13
    VIEIRA, Antonio. ''Sermão de Santo Antonio'', p.326.
  • 14
    PÉCORA, Alcir. ''Política do Céu, Anti-Maquiavel'',
    In: Ética, p.137.
  • 15
    O termo
    ocasião é central na argumentação de Vieira. Como evidenciado por João Adolfo Hansen: ''Escolasticamente, a ocasião é uma circunstância ou conjunto de circunstâncias que favorecem a ação de uma causa livre. Diferencia-se da condição, pois esta se refere a qualquer causa eficiente. Supõe-se que a ocasião atua sobre a vontade do agente de modo imediato, uma vez que remove obstáculos interpostos em sua ação e, ainda, porque induz a vontade a cooperar positivamente. A ocasião é um incentivo para a ação. No século XVII, é um conceito político, com o sentido de concurso de causas que abre caminho à grandeza.''
    A sátira e o engenho, p.402. Neste ponto, cabe salientar as semelhanças com a clássica construção de Nicolau Maquiavel, concernente a ''fortuna'' e a ''
    virtù''. Como se sabe, descrito no penúltimo capítulo do
    Príncipe, diz o próprio florentino: ''Não desconheço que muitos têm tido, e têm, a opinião de que as coisas do mundo são governadas pela fortuna e por Deus, de modo que a prudência dos homens não as poderia corrigir nem lhes ofertaria algum remédio. Dessa maneira, poder-se-ia pensar que ninguém deve se importar muito com elas, deixando-se simplesmente reger pela fortuna. Essa opinião é muito aceita na nossa época, pela grande variação das coisas, o que se percebe diariamente, fora de toda conjetura humana. Em algumas ocasiões, quando considero o assunto, tendo a aceitá-lo. Apesar disso, e uma vez que nosso livre-arbítrio permanece, acredito poder ser verdadeiro o fato de que, mesmo assim, ela nos permita governar a outra metade quase inteira''.
  • 16
    VIEIRA, Antonio. ''Sermão de Santo Antonio'', p.331.
  • 17
    Idem, p.333.
  • 18
    Segundo HANSEN, J. A. ''O tema estóico, retomado do Sêneca do
    De tranquillitate animi, tem intensa circulação na literatura do século XVII, aliás, sendo adaptado ao desenvolvimento político de temas correlatos, como o do desengano e o da concórdia ausente da sociedade vivida como teatro de enganos. A paz social do corpo do Estado, perfeita integração de suas partes e funções, combina a concórdia de todos no bem comum e a adesão de cada membro ao corpo político pelo controle da vontade''. Para conferir: ''Positivo/Natural: sátira barroca e anatomia política''. In:
    Revista de Estudos Avançados da USP, n.6, p.69-73.
  • 19
    FERROL, F. M.
    Saavedra Fajardo y la política del Barroco, Madrid, Instituto de Estudios Políticos, 1957. Citado em: HANSEN, João Adolfo. ''Positivo/Natural: sátira barroca e anatomia política'', p.70.
  • 20
    VIEIRA, Antonio. ''Sermão do Santíssimo Sacramento'', pp.155-176.
  • 21
    VIEIRA, Antonio. ''Sermão do Santíssimo Sacramento'', p.160.
  • 22
    VIEIRA, Antonio. ''Sermão do Santíssimo Sacramento'', p.168.
  • 23
    VIEIRA, Antonio. ''Sermão do Santíssimo Sacramento'', p.169.
  • 24
    ''Todo Reino dividido contra si mesmo será desolado''.
  • 25
    HANSEN, João Adolfo. ''Positivo/Natural: sátira barroca e anatomia política'', p. 73.
  • 26
    VIEIRA, Antonio. ''Sermão do Santíssimo Sacramento'', p.164.
  • 27
    Quanto ao período da União Ibérica e da Restauração Portuguesa, nos quadros da História de Portugal, há uma infinidade de livros. Para o estudo em questão me utilizei, em específico, de dois autores: FRANÇA, Eduardo D'Oliveira em
    Portugal na Época da Restauração e HESPANHA, Antonio Manuel.
    História de Portugal: O Antigo Regime e A Restauração e sua Época.
  • 28
    Esta crença tem origem nos escritos do abade italiano Joaquim di Fiori, que viveu entre os anos de 1145 e 1202. Ele elaborou um sistema escatológico que se fundiria com as ''Sibilinas Cristãs''. Para Di Fiori, as alegorias bíblicas serviriam como um método de compreender e prever o desenrolar da história, ultrapassando assim seus fins morais e religiosos. O milenarismo de sua obra reside no fato de Joaquim di Fiori ter formulado uma teoria acerca das três idades da humanidade: a primeira, antes da lei ou tempo do pai; a segunda, sob a lei ou tempo do filho e, por fim, a última redentora, sob a graça ou tempo do espírito. Desse modo, por exemplo, é que Jean DELEMEAU no seu
    A História do Medo no Ocidente afirma o joaquimismo como possuidor de três elementos que possibilitaram sua utilização pelos milenaristas mais radicais: 1) o refortalecimento dos temas apocalípticos, 2) a idéia de que a igreja dos clérigos seria substituída pela dos contemplativos e 3) a de que os menos favorecidos reinariam no mundo. Nota-se, ainda, que foram os franciscanos os responsáveis pela difusão do joaquimismo na Idade Média, sendo que muitos esperavam a ressurreição de São Francisco como o prelúdio de uma nova era. É a partir deste momento que se pode identificar os traços messiânicos junto aos ideais milenaristas.
  • 29
    O messianismo judaico parte de profecias que encaram a concepção de história formulada a partir dos judeus, os quais se consideravam como o povo 'eleito' e 'escolhido' por Deus. O mais antigo apocalipse conhecido seria o Sonho de Daniel, no qual, pela primeira vez, se imaginara um reino glorioso que não se limitaria à Palestina, mas que englobaria toda a Terra, ultrapassando a glória de todos os reinos anteriores. Para acompanhar a discussão sobre este assunto, ver: COHN, Norman.
    Na senda do milênio. A elaboração das teorias acerca do Quinto Império seria o início do messianismo judaico. Ao contrário do desejo da Igreja Romana, que queria o reino nos céus, a crença dos judeus apontava para um império terrestre. No século XV tem-se uma drástica mudança de atitude da população judaica em relação ao messianismo, pois, ao contrário do que ocorria com o judaísmo antigo e devido às perseguições sofridas na Península Ibérica, passa-se a acreditar na possibilidade de interferência do homem no processo divino, abreviando-se assim a vinda do redentor. Sobre as relações entre judaísmo e Vieira vale conferir o estudo de SARAIVA, Antonio José. ''Antonio Vieira, Menasseh Ben Israel e o Quinto Império''.
  • 30
    Para o chamado messianismo português ver, especialmente,
    A evolução do Sebastianismo de João Lúcio de Azevedo.
  • 31
    O evento conta que em 25 de julho de 1139, um ano antes de D. Afonso Henriques de Borgonha começar a usar o título de Rei, cristãos portugueses conseguiram vencer a batalha contra o mais numeroso exército mouro de então. Este evento ganha contornos milagrosos a partir do século XV, como traço fundador da nacionalidade, buscando ilustrar as conquistas quase inexplicáveis empreendidas por um país tão pequeno e um povo tão reduzido. Por meio desse 'mito' poderia se indicar o destino de glória reservado a Portugal, confirmando a 'vontade de Deus' em fazer dele um país livre e dedicado a levar a fé por todo o mundo. Vale lembrar que, sobre o 'milagre de Ourique', o primeiro texto escrito foi de Duarte Galvão, publicado em 1505 com o título de
    Crônica d'El-Rei D. Afonso Henriques.
  • 32
    VIEIRA, Antonio.
    Sermão Gratulatório e Panegírico, p.44.
  • 33
    Algumas palavras sobre Gonçalo Eanes Bandarra. Nascido em Trancoso, pequena cidade comercial da região das Beiras, no início do século XVI. Sua biografia é pouco conhecida, destacando-se sua profissão: sapateiro, e o fato de ser humilde e sua prodigiosa memória. Leitor das Escrituras Sagradas, logo ganhou fama em sua cidade, sendo considerado como uma espécie de 'Rabi' local, interpretando a Bíblia e suas profecias para os cristãos-novos da região. O apelo profético e messiânico marca suas trovas. Conforme Hermann, a discussão acerca das Trovas seria a identificação do D. João, citado por ele, a quem o Padre Antonio Vieira interpretará como sendo D. João IV. Ainda, segundo essa autora, o que garantiu a sobrevivência das 'Trovas de Bandarra' foi justamente o mistério e a impossibilidade de se identificar com certeza qual seria o rei predestinado apontado pelo seu autor. Para este tema, ver: HERMANN, Jacqueline. No Reino do Desejado.
  • 34
    No ano de 1572, D. Sebastião tinha 18 anos. Este também foi o ano em que Camões dedicara
    Os lusíadas ao monarca. Como se sabe, o épico logo se tornou o símbolo da alma portuguesa daquele período conturbado. Tristeza, ressentimento e inconformismo, este o quadro em Portugal nos fins do século XVI. A 'missão' conferida em Ourique precisava urgentemente ser retomada. Parece que foi exatamente isso que D. Sebastião tomou para si: o dever de retomar a expansão ultramarina, bem como o de resgatar as possessões em terras africanas. Como se sabe, dessas jornadas, ele não voltou.
  • 35
    SKINNER, Quentin.
    As fundações do pensamento político moderno, p. 243.
  • 36
    PÉCORA, Alcir.
    Teatro do Sacramento, p.223.
  • 37
    VIEIRA, Antonio. ''Sermão de Santo Antonio'', p.597.
  • 38
    PÉCORA, Alcir.
    Teatro do Sacramento, p.241.
  • 39
    Pregado em Roma, na Igreja dos Portugueses, no ano de 1670. Este sermão refere-se à missão apostólica dos portugueses,
    Vos estis Lux Mundi (Vós sois a luz do Mundo). VIEIRA, Antonio. ''Sermão de Santo Antonio'',
    In: Sermões, Tomo I, pp.277-293.
  • 40
    VIEIRA, Antonio. ''Sermão de Santo Antonio'', p.282.
  • 41
    VIEIRA, Antonio. ''Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal Contra as de Holanda'',
    In: Sermões Tomo I, pp.441-462.
  • 42
    PÉCORA, Alcir. ''Política do Céu (Anti-Maquiavel)'', p.139.
  • 43
    Idem, p.141.
  • 44
    PÉCORA, Alcir. ''Política do Céu (Anti-Maquiavel)'', p.142.
  • 45
    VIEIRA, Antonio. ''Sermão do Santíssimo Sacramento'', p.175.
  • 46
    MORSE, Richard.
    O Espelho de Próspero, p.63.
  • 47
    PÉCORA, Alcir. ''Sermões: a pragmática do mistério'', p.23.
  • 48
    PÉCORA, Alcir.
    Teatro do Sacramento, p.209.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Fev 2004
    • Data do Fascículo
      2003
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