Resumo:
Este artigo apresenta um estudo do problema da igualdade na teoria democrática de Pierre Rosanvallon, a partir de uma análise circunstanciada da obra La Société des égaux, confrontando-a com as outras teorias da justiça. Além da introdução e da conclusão, o artigo está dividido em três segmentos. No primeiro, é oferecida uma visão panorâmica das três primeiras partes de La Société des égaux; no segundo, examinamos os argumentos utilizados por Rosanvallon para mostrar (i) a prescrição da teoria rawlsiana a partir da noção de “dilaceramento do véu de ignorância”; (ii) a ambiguidade da teoria da igualdade radical de chances, a partir do diálogo com a obra de Ronald Dworkin; e (iii) a impossibilidade de uma concepção de justiça entre os teóricos da sociedade da concorrência generalizada. No terceiro, explicamos a concepção rosanvalloniana de “igualdade-relação” e argumentamos que a dimensão histórico-conceitual da abordagem rosanvalloniana permite uma concepção de igualdade que evita as falhas das teorias normativas, abrindo um campo de novas possibilidades para a reflexão sobre o problema da igualdade nas democracias contemporâneas.
Palavras-chaves: Pierre Rosanvallon; Sociedade de Iguais; Igualdade-relação; John Rawls; Ronald Dworkin
Abstract:
This article conducts an in-depth examination of the issue of equality within Pierre Rosanvallon’s democratic theory. The focus is on his work La Société des égaux, juxtaposed with other theories of justice. Alongside the introduction and conclusion, the article is structured into three distinct sections. The initial section offers an overview of the first three segments of La Société des égaux. Rosanvallon’s arguments to demonstrate (i) the limitations of the Rawlsian theory centered on the concept of “rending of the veil of ignorance”; (ii) the inherent complexities in the theory of radical equal opportunity, influenced by Ronald Dworkin’s ideas; and (iii) the challenges of establishing a conception of justice among theorists operating within a society characterized by widespread competition. The third section elaborates on Rosanvallon’s notion of “equality as relation”. The article contends that Rosanvallon’s historical-conceptual approach offers a unique viewpoint on equality, circumventing the limitations of normative theories, thus offering new avenues for contemplating equality in modern democracies.
Keywords: Pierre Rosanvallon; Society of Equals; Equality as Relation; John Rawls; Ronald Dworkin
Introdução
A publicação de Uma Teoria da Justiça (1971) de John Rawls, há pouco mais de meio século, restaurou a respeitabilidade da teoria política normativa. Desde então, as “teorias da justiça” emergiram como um subcampo prolífico, vasto e diversificado da teoria política. Nosso propósito é investigar uma de suas manifestações, qual seja, o problema da igualdade na teoria democrática de Pierre Rosanvallon, por meio da análise de sua obra La Société des égaux, publicada em 2011 2 . Duas questões servirão de eixo para o desenvolvimento da nossa reflexão: (i) quais são os problemas identificados pelo teórico francês nas principais teorias normativas da justiça? (ii) Em que medida sua própria concepção, fundamentada na noção de “igualdade-relação”, possibilita a configuração de uma “filosofia da igualdade social” apta a contribuir para a abordagem dos desafios contemporâneos da democracia? Apesar dessa problemática na obra de Rosanvallon ter recebido escassa atenção fora da França (Moyn, 2015 ), pensamos que sua abordagem oferece uma contribuição valiosa e incontornável para a teoria política.
La société des égaux é o terceiro volume de uma tetralogia que compõe o que Rosanvallon chamou de sua “teoria da indeterminação democrática”. O termo “indeterminação” está ligado ao fato de o objeto e os procedimentos da democracia serem estruturalmente associados a tensões, aporias e incompletudes. À pergunta se é possível fazer a teoria de um objeto indeterminado, o próprio autor responde negativamente. Uma teoria, diz ele, “deve ser de âmbito universal e impactar todas as mentes […], deve permitir uma reinterpretação unificada das etapas históricas precedentes da consideração do fenômeno em questão” (Rosanvallon, 2015 , p. 361). Daí, no caso da democracia, a necessidade de superar essa impossibilidade elaborando uma teoria dos elementos que estruturam o seu caráter aporético. Tal teoria é desenvolvida ao longo de vários volumes publicados progressivamente durante as últimas quatro décadas, em que a ideia de democracia foi complexificada por meio do seu desdobramento em várias dimensões: a da atividade cidadã, teorizada em Le Sacre du citoyen ( 1992 ) e A Contrademocracia ( 2022 [2006]); a do regime político, examinada em Le Peuple introuvable ( 1998 ), La Démocratie inachevée ( 2000 ) e A Legitimidade Democrática ( 2024 [2008]); da ação executiva, estudada em Le Bon gouvernement ( 2015 ); e a democracia como forma de sociedade, que começou a ser apreendida desde Le Sacre du citoyen ( 1992 ), mas foi aprofundada em La Société des égaux ( 2011 ), objeto deste artigo.
Metodologicamente, Rosanvallon adota uma perspectiva por ele mesmo desenvolvida e sistematizada, que ele chamou de história conceitual do político ( 2000 ), demarcando-se dos teóricos normativos. É uma abordagem que coloca a historicidade em seu âmago —, não apenas como “pano de fundo”, mas como “laboratório em atividade” do presente. Assim, em vez de descrever preceptivamente quais deveriam ser os critérios universalmente admitidos de justiça, como faz a teoria normativa, o teórico francês parte da complexidade do real e da sua dimensão aporética, o que o leva ao âmago da “própria coisa” do político, conceito entendido como o lugar de onde procede a instituição do social (Rosanvallon, 2003 , p. 12). Ao reconstituir as tensões e aporias da ideia de igualdade, desde o século XVIII aos dias atuais por meio de uma história conceitual do político, Rosanvallon oferece uma base realista para a construção de uma filosofia da igualdade social, na qual a mesma é concebida como uma forma social e não como modo de repartição de bens divisíveis ou privatizáveis. Em nosso estudo, argumentamos que tal concepção da igualdade (i) permite abarcar um amplo leque de problemáticas colocadas por uma diversidade de teóricos da justiça — do problema da redistribuição ao reconhecimento, passando pelo da capabilidade e das diferentes formas de discriminação e desigualdade, assim como dos novos desafios a serem enfrentados, tal qual a questão ecológica; (ii) secundariza o problema da redistribuição estritamente material subordinando-o ao necessário estabelecimento de uma igualdade-relação que passa prioritariamente pela redefinição dos direitos e deveres de cada um; e (iii) supera a suposta incompatibilidade entre igualdade e liberdade sem cair na cilada dworkiana, conforme veremos adiante.
Como forma de encaminhar nossa leitura, segmentamos as questões em três estágios. No primeiro, é oferecida uma visão panorâmica das três primeiras partes de La Société des égaux, que cobre o período que vai de meados do século XVIII até a publicação de Uma teoria da justiça, de John Rawls. No segundo, examinamos os argumentos utilizados por Rosanvallon para mostrar (i) a prescrição da teoria rawlsiana a partir da noção de “dilaceramento do véu de ignorância”; (ii) a ambiguidade da teoria da igualdade radical de chances, a partir do diálogo com a obra de Ronald Dworkin; e (iii) a impossibilidade de uma concepção de justiça entre os teóricos da sociedade da concorrência generalizada. No terceiro, finalmente, propomos uma explicação para a concepção rosanvalloniana de “igualdade-relação” a partir da discussão dos seus três fundamentos: a singularidade, a reciprocidade e a comunalidade.
A igualdade: esperanças e patologias, do século XVIII a Rawls
O ponto de partida de La Société des égaux é o presente. O livro se inicia com uma sentença tão curta quanto direta e alarmante: “A democracia afirma a sua vitalidade como regime no [mesmo] momento em que morre lentamente como forma de sociedade” (Rosanvallon, 2011 , p. 9, acréscimo nosso) 3 . A distinção entre as diferentes dimensões da democracia é estabelecida de imediato e o objeto é circunscrito. A democracia como regime vai bem 4 , o cidadão soberano multiplicando suas modalidades de atuação; mas esse povo político forma cada vez menos um corpo. Esse dilaceramento é uma das maiores ameaças da contemporaneidade e pode levar ao desmoronamento da democracia como regime. As estatísticas, utilizadas para corroborar seu argumento, não deixam dúvidas a respeito da crise da igualdade: a partir da década de 1970, em todas as partes do mundo, o abismo em termos de riqueza e renda entre a ponta e a base da pirâmide social só fez aumentar a passos largos. Convém não negligenciar a dimensão dessa transformação. Trata-se de uma ruptura com relação àquilo que fez a essência do ideal democrático desde às revoluções fundadoras da modernidade política no final do século XVIII.
Com efeito, para os revolucionários franceses e americanos não havia distinção entre a democracia como regime da soberania do povo e a democracia como forma de uma sociedade de iguais. Naquele momento, os ideais de igualdade e de liberdade (junto com o de independência no caso norte-americano), hoje apresentados como antinômicos, eram indissociáveis, o primeiro sendo inclusive matricial. Era-se livre porque se era igual. Ao longo de dois séculos, as coisas mudaram consideravelmente. Não só a desigualdade social aumentou, como também pesquisas de opiniões apontaram para um dado curioso, que Rosanvallon chamou de “paradoxo de Bossuet” 5: se, por um lado, as desigualdades são amplamente condenáveis, por outro se aceita a sua inevitabilidade para que uma economia seja dinâmica e desde que elas remunerem méritos individuais. É urgente, portanto, refundar a ideia de igualdade. É dessa missão ambiciosa que Rosanvallon se encarrega. Não há em La Société des égaux uma receita universal para a instauração de um desenho institucional justo, mas antes um esboço cujo fundamento é pensar a igualdade enquanto relação. Tal concepção é da ordem de uma qualidade democrática e não apenas uma medida de distribuição de riquezas (Rosanvallon, 2011 ). Esse trabalho de refundação, na perspectiva rosanvalloniana da história conceitual do político, exige um retorno às origens da modernidade, condição para uma reflexão informada sobre o problema da igualdade no mundo contemporâneo.
As origens são as revoluções francesa e americana. Rosanvallon retraça a maneira como a ideia de igualdade foi sendo progressivamente construída desde o século XVII, vindo a se cristalizar nos eventos revolucionários do final do século seguinte. Naquele momento, a igualdade-relação tinha se articulado em torno da similaridade, da independência e da cidadania. A primeira era da ordem de uma igualdade-equivalência: ser semelhante significava apresentar as mesmas propriedades essenciais; a segunda era uma igualdade-autonomia: ela se definia negativamente como ausência de subordinação e positivamente como equilíbrio da troca; a terceira era uma igualdade-participação: é a comunidade de pertencimento e de atividade cívica que a constitui. O projeto de uma igualdade-relação tinha, portanto, se declinado no modo de um mundo de semelhantes, de uma sociedade de indivíduos autônomos e de uma comunidade de cidadãos. A distribuição de riquezas ficou naquele momento em segundo plano, embutida nas relações de troca. É importante salientar que se estava nos estertores do mundo pré-industrial e são justamente as consequências sociais dessa revolução que vão implodir o mundo da igualdade-relação do final do século XVIII.
Entra-se então no longo século XIX, período que conhecerá o que Rosanvallon considera serem as diferentes “patologias da igualdade”: o liberalismo-conservador, o comunismo utópico, o nacional-protecionismo e, nos Estados Unidos, o racismo constituinte. O primeiro vai se esforçar em justificar as desigualdades a partir da defesa daquelas consideradas naturais e da condenação daquelas “artificiais” que tinham caracterizado o Antigo Regime. Para isso, a ideologia liberal-conservadora vai operar uma dilatação ao extremo da interpretação das noções de virtude e talento. Isso levou à redução progressiva da dimensão propriamente social das desigualdades (Rosanvallon, 2011 ). Na margem oposta, o comunismo utópico vai apostar na luta por um mundo uno, homogêneo e desindividualizado. Predominava entre os arautos dessa ideologia a crença num mundo em que o governo dos homens seria substituído pela administração das coisas, onde haveria abundância e não existiria inveja e egoísmo. Ou seja, um mundo utópico fundado na tripla extinção do político, do econômico e do psicológico. A ideologia nacional-protecionista emerge no final do século XIX e vai defender uma forma de igualdade-identidade como exaltação da nação homogênea, substituindo o conflito de classes pelo que opunha os trabalhadores nacionais aos estrangeiros (Rosanvallon, 2011 ). Finalmente, houve uma forma ainda mais restrita de se estabelecer uma distinção entre o “nós” e o “eles”: a segregação racial nos Estados Unidos. Nesse país, a identidade racial se substituiu à igualdade social para produzir um sentimento de similaridade no universo dos brancos.
A progressiva implementação dos Estados de Bem-Estar Social na Europa, a partir no início dos anos 1900, concomitante à generalização do sufrágio universal, encerrou o período das negações e redefinições perversas da ideia de igualdade. Entrou-se então no “século da redistribuição”, quando a desigualdade é espetacularmente reduzida graças a fatores históricos e uma transformação intelectual e moral que justificou a instituição do imposto progressivo sobre a renda, a implementação de mecanismos de seguridade social e a instauração de procedimentos de representação e de regulação coletiva do trabalho (Rosanvallon, 2011 ). As mudanças geradas pela ampliação das taxas de imposição foram impressionantes 6 , podendo ser consideradas uma verdadeira revolução, realizada num curtíssimo intervalo de tempo e que mudou profundamente a natureza das sociedades capitalistas ocidentais 7 .
Após as novas tentações de um ideal radicalizado de igualdade e de homogeneidade do entreguerras – o comunismo, o fascismo e o nacional-socialismo – o “Estado social-redistribuidor” se consolida (Rosanvallon, 2011 , p. 271). Como ocorreu com a experiência do primeiro conflito mundial, um sentido reforçado de solidariedade e a crítica do capitalismo se impuseram novamente após a derrota do Eixo. Em alguns países, as taxas de imposição justificadas pelo necessário esforço de guerra foram mantidas após o fim do conflito e o sistema de seguridade social e as políticas de redução da desigualdade se universalizaram. Além do mais, surgiram teorias que apontavam para uma convergência entre socialismo e capitalismo, como pode se constatar nos escritos de Raymond Aron e de Peter Drucker, que indicam uma conversão do capitalismo à planificação e não do socialismo à economia de mercado (Rosanvallon, 2011 , p. 279).
A virada da década de 1960 para a de 1970 assinala o limiar de uma nova revolução intelectual, política e cultural que vai colocar abaixo esse modelo de bem-estar social e o imperativo de uma necessária redução da desigualdade. É nesse contexto que John Rawls publica a sua grande obra.
Pierre Rosanvallon e as teorias da justiça
Vários esforços de síntese testemunham a riqueza, amplitude e diversificação do campo das teorias da justiça, ainda que tendam a ser bastante uniformes em relação às correntes e aos autores que o compõem. Will Kymlicka ( 2003 ) categoriza as teorias da justiça em correntes, retomada com pouca variação por Roberto Gargarella ( 2008 ); já Feres Júnior e Pogrebinschi ( 2010 ), em seu manual de teoria política contemporânea, dedicam um capítulo às teorias da justiça focalizando seus nomes proeminentes. Em todas essas obras, os mesmos autores se sucedem, com poucas variações: John Rawls, Robert Nozick, Ronald Dworkin, Amartya Sen, Michael Walzer, Nancy Fraser, teóricas e teóricos comunistaristas, republicanos, marxistas analíticos, feministas, etc.
Entre esses nomes, Rosanvallon vai privilegiar o diálogo com dois deles, John Rawls e Ronald Dworkin, assim como vai dedicar uma parte da sua reflexão a uma crítica da “sociedade da concorrência generalizada”. Impõe-se explicar essa escolha, já que ela não é justificada em La Société des égaux. Pela leitura da obra é possível inferir que, aos olhos de Rosanvallon, os trabalhos de Rawls e Dworkin incarnaram um período histórico bem determinado. Nesse sentido, sendo a perspectiva rosanvalloniana histórico-conceitual e sua problemática a de uma refundação da ideia de igualdade adaptada ao século XXI, é essencial demonstrar as aporias e os problemas daqueles que marcaram as etapas anteriores. Esse entendimento é colocado de forma clara numa entrevista dada a Godmer e Smadja. Ele diz:
É sobretudo Dworkin que deve ser abordado, pois foi ele, mais do que Rawls, que deu um novo impulso ao liberalismo de esquerda. Rawls representa um ponto de chegada a partir de um determinado ponto de vista, enquanto os grandes artigos de Dworkin sobre a igualdade nos anos 1980 constituem claramente um ponto de partida para uma redefinição do liberalismo. Os críticos mais eloquentes de Dworkin foram Michael Sandel, Alasdair MacIntyre e Charles Taylor. Mas em que consiste a sua crítica radical? Todos eles se opõem à visão liberal com o argumento de que é “individualista”, e que o que lhes parece decisivo gira em torno de uma visão da identidade social. E nestes três autores, de formas bastante diferentes, há tanto uma visão identitária como uma visão religiosa subjacente a sua argumentação […] Parece-me um debate um pouco antiquado. Estou mais interessado em reformular uma perspectiva democrática que vá para além desse campo. Quero ser ao mesmo tempo pós-liberal e pós-comunitário.
(Godmer e Smadja, 2011 , pp. 179-180, grifo nosso).
Nesse sentido, a superação de uma teoria da justiça por uma filosofia da igualdade social passa especialmente pelo diálogo com John Rawls, em seguida com Ronald Dworkin e, enfim, por uma crítica à “sociedade da concorrência generalizada”. Para Rosanvallon, esses sistemas de pensamento são problemáticos, não apenas intrinsecamente, em função de suas próprias implicações lógicas, como também por serem indissociáveis do modelo do Bem-Estar Social dos anos 1950-1970, no caso do primeiro; e do liberalismo progressista, no caso do segundo. Já com relação à sociedade da concorrência generalizada, constata-se o seu fracasso em estruturar qualquer ideal de justiça e igualdade.
Rosanvallon, leitor de Rawls: o dilaceramento do véu de ignorância
A recepção da obra de Rawls na França foi lenta e gradual, conforme mostrou Mathieu Hauchecorne ( 2019 ). Em La Gauche américaine en France. La réception française de John Rawls et des théories de la justice (1971-2010), o autor identificou quatro fases na recepção francesa das teorias da justiça rawlsiana e pós-rawlsiana. A primeira se estendeu de 1971, data de lançamento de Uma Teoria da Justiça, até 1987, data da sua publicação na França; a segunda, mais política, se iniciou em meados dos anos 1980, tendo a publicação de Uma Teoria da Justiça na França gerado importantes debates na esfera pública e intelectual; a terceira se inicia na década de 1990, graças a filósofos francófonos radicados no Canadá e na Bélgica, a exemplo de Philippe Van Parijs e Daniel Weinstock, que contribuíram para popularizar Rawls entre os franceses (Hauchecorne, 2019 ); a quarta e última se estende do final dos anos 1990 a 2010, momento em que as teorias da justiça entram nos cânones da filosofia francesa (Hauchecorne, 2019 ).
Foi no final da década de 1970 que Rosanvallon entrou em contato com Uma Teoria da Justiça, portanto, ainda na primeira fase da recepção de Rawls na França. O filósofos americano já aparece em La Crise de l’État-Providence (1992 [1981]), publicado pela primeira vez em 1981, e, mais tarde, em La Nouvelle question sociale: repenser l’État-Providence (1992). A tese defendida por Rosanvallon no primeiro trabalho é que o Estado de Bem-Estar Social é o prolongamento direto do Estado protetor moderno e ultrapassa, assim, a esfera do social para abarcar os domínios da fiscalidade, do desenvolvimento econômico e das infraestruturas. Esse Estado é reconceitualizado como um sistema político que se insere numa ideia mais ampla da democracia e do contrato social, e não unicamente no contexto do capitalismo e do socialismo do século XX (Aucante, 2015 ). O filósofo americano é caracterizado (e criticado) como o autor que contribuiu com a legitimação da sociedade de mercado graças à sua concepção de justiça distributiva. Segunda a leitura de Rosanvallon, a distribuição dos “bens primários” decidida na “largada” em detrimento de sua redistribuição permanente acabava se tornando uma alternativa ao Estado de Bem-Estar Social redistributivo. Ele argumentava que o problema democrático não se resolve por meio de uma concepção puramente lógica, “supra-ética”, da justiça social. Nesse sentido, a obra de Rawls tem uma ambição intelectual que vai além da apreensão da legitimidade das intervenções econômicas e sociais do Estado, o que fazia dele o último autor da dissolução do político no econômico e no cálculo racional (Rosanvallon, 1992 , p. 92 e seguintes).
Em La Nouvelle Question Sociale, Rosanvallon aprofunda suas reflexões sobre a crise do Estado de Bem-Estar Social e propõe uma refundação intelectual de alguns dos seus princípios norteadores, assim como novas formas de solidariedade. É também nesse trabalho que ele dá um lugar central à tensão entre igualdade e responsabilidade que, como afirmou Nicolas Duvoux ( 2015 ), é a chave da dinâmica política, social e cognitiva das nossas sociedades. Sobre Rawls especificamente, Rosanvallon usa pela primeira vez a expressão “dilaceramento do véu de ignorância” para argumentar que o aumento do conhecimento a respeito daquilo que afeta o futuro dos indivíduos, assim como de um crescente processo de diferenciação social, tornava a teoria rawlsiana problemática. Nessas duas obras, Rosanvallon recorre a Rawls sobretudo para pensar o funcionamento, crise e possível refundação do Estado de Bem-Estar Social. Em seguida, o filósofo americano adquire um lugar mais importante no pensamento do teórico francês, não mais para pensar o Estado, mas sim a própria elaboração da sua filosofia da igualdade social. Analisemos de forma circunstanciada o tratamento que é dado à questão em La Société des égaux.
Um primeiro dado a ser observado são os acontecimentos que mudaram as sociedades ocidentais a partir da década de 1970. Rosanvallon destaca três: a crise moral das instituições de solidariedade, o advento de um novo capitalismo e as metamorfoses do individualismo (Rosanvallon, 2011 ). Deixaremos o primeiro desses três pontos para analisar por último, uma vez que ele é central para o diálogo com Rawls. Começando pelas mutações do capitalismo, Rosanvallon argumenta que se passou do “capitalismo de organização”, nos anos 1960, para o “capitalismo de singularidade” ou de “inovação”, nos anos 1990. Este último, ao valorizar as capacidades individuais de criação e de reatividade, conduziu a uma singularização do trabalho e à perda da identificação do trabalhador a uma “classe”, o que transformou radicalmente o sentimento de exploração e de injustiça no trabalho (Rosanvallon, 2011 , p. 303).
Como o capitalismo, o individualismo, antes “universal”, também se singularizou. O individualismo de universalidade, que se consolidou na virada do século XVIII, foi substituído pelo individualismo de singularidade. Esse individualismo contemporâneo é caracterizado pelo fato de os indivíduos serem agora muito mais determinados por sua história do que por sua condição, ou pela forma como enfrentam os acontecimentos, as provações ou oportunidades da vida. A natureza da desigualdade se individualizou criando novas expectativas com relação ao regime democrático: na democracia vinculada ao individualismo de universalidade, o sufrágio universal significava que cada um detinha a mesma porção da soberania; na democracia como forma social do individualismo de singularidade, existe a aspiração e o desejo das pessoas em ser consideradas importantes e únicas.
Podemos voltar agora ao tema da crise moral das instituições de solidariedade, terceiro elemento que, aos olhos de Rosanvallon, fez caducar a teoria rawlsiana. Essa crise foi resultado da destruição do caráter universalista do paradigma da seguridade, substrato técnico e filosófico do Estado de Bem-Estar Social, o que levou, por sua vez, ao questionamento da sua legitimidade. Essa perda do caráter universalista da seguridade se deveu à ascensão do desemprego de massa e a novas formas de insegurança social, fenômeno que teve duas consequências. A primeira foi a perda da percepção da aleatoriedade e da igual repartição dos riscos entre as pessoas, que se desfez quando a pobreza deixou de ser da ordem de situações individuais aleatórias para ser reconstituída como uma condição que afetava de forma estável e durável partes consideráveis das populações. A segunda foi o fim de uma certa opacidade do social, condição implícita do sentimento de equidade. Esse ponto é fundamental para compreender o que Rosanvallon quer dizer com a expressão “dilaceramento do véu de ignorância”. Segundo ele, houve uma progressiva difusão do conhecimento no público sobre o estado da sociedade e as condutas individuais. Cada vez mais as pessoas tomaram consciência da sua esperança de vida e dos vínculos entre os comportamentos individuais e as situações objetivas. Como sugere o Rosanvallon ( 2011 , p. 290), “se os homens são naturalmente solidários diante de um destino que eles ignoram, ele o são menos se eles percebem as situações como ligadas à comportamentos e a escolhas individuais”. Essa situação torpedeia a concepção procedimental de justiça. Exploremos essa crítica de forma mais circunstanciada.
Para o teórico francês, a exigência do princípio da diferença está em sua capacidade de engendrar uma redistribuição, mas isso só é possível sob o véu de ignorância. Os indivíduos aderem aos princípios da justiça como equidade quando sabem que podem ser desfavorecidos. Mas a partir do momento em que o conhecimento das situações futuras é adquirido, tal concepção cai por terra, sendo a equidade de resultados preferível à equidade de procedimento. Isso levou a uma dissociação entre seguridade e solidariedade, uma vez que os “grupos de risco” passaram a ser cada vez mais restritos e permanentes. Portanto, se o véu da ignorância tem uma função de agregação e de socialização, o acesso às informações responsáveis pelo seu “dilaceramento” leva à desolidarização. Esse elemento é crucial para compreender a associação feita entre a concepção de justiça rawlsiana com os mecanismos de solidariedade do Estado de Bem-Estar Social. Até os anos 1970, houve uma sobreposição entre regras de equidade e mecanismos de redistribuição ou, em outras palavras, entre justiça e solidariedade ou ainda entre norma de equidade e procedimento de solidariedade. Com o dilaceramento do véu de ignorância, a noção de justiça voltou a se tornar problemática. A partir daí, “o justo não foi mais passível de ser definido a piori a partir do momento que as diferenças não foram mais simplesmente derivadas do acaso” (Rosanvallon, 2011 , p. 292). Rosanvallon afirma em seguida, de forma contundente:
Entramos por essa razão numa era pós-rawlsiana da reflexão sobre o social nos anos 1990. Com a sua Teoria da Justiça fundada na definição de um princípio de justiça formulado sob o véu da ignorância, Rawls havia teorizado o antigo tipo de Estado de Bem-Estar Social que se despedaçou a partir desse período.
(Rosanvallon, 2011 , p. 282).
Se o progressivo conhecimento público das condutas individuais levou ao dilaceramento do véu de ignorância, o mundo da singularidade levou a uma atenção redobrada à relação entre a ação dos indivíduos e sua condição, a legitimidade das situações individuais sendo apreciada do ponto de vista da conduta de cada um. Ou seja, o que se viu por trás do véu da ignorância, uma vez dilacerado, foi o papel da responsabilidade individual como uma variável central a ser levada em consideração nas elaborações sobre qualquer organização de sociedade com pretensão a ser considerada justa 8 . Com a cristalização da ideia de responsabilidade individual, emergem na esteira da crise do Estado de Bem-Estar Social dois modelos de sociedade democrática: a da igualdade radical de chances e a da concorrência generalizada.
A perversão da responsabilidade individual como ideologia da meritocracia: a teoria da igualdade de chances e o diálogo com Ronald Dworkin
Como é sabido, a crise da socialdemocracia foi seguida por uma “modernização” dos seus partidos, que buscaram conciliar o capitalismo de livre mercado e o socialismo democrático, num processo que Anthony Giddens ( 2007 ) chamou de “terceira via”. Emergiu assim, do interior da esquerda liberal, um novo progressismo que pretendia, por um lado, compensar o acaso da origem social e da loteria genética, ou seja, o talento – recurso “interno” que deve fazer objeto de um processo de igualização –, e, por outro lado, acentuava a responsabilidade individual – sustentando que cada um deve assumir as consequências de suas escolhas ao invés de transferir os seus custos para os outros. O ideal de uma sociedade justa passa então a ser a de uma sociedade que igualiza as circunstâncias e os contextos nos quais os indivíduos se encontram, sem deixar de pedir que assumam as consequências de suas escolhas, decisões, gostos e vontades.
Autores diversos se debruçaram sobre a ideia de responsabilidade individual no final do século XX 9 , e as ações corretoras foram pensadas de modos diversos, seja em termos de dotação de capital humano (Gøsta Esping-Andersen), em numerário (asset-based welfare), bens primários (direitos e bens materiais em John Rawls), capacidades (Amartya Sen), meios de acesso (a instituições, redes, seguros em Gerald Cohen). Esses elementos de conceitualização constituíram o pano de fundo para vários debates e proposições, mas sem constituir, aos olhos de Rosanvallon, uma teoria da justiça propriamente dita. Para Sen ( 2021 ), isso não é um problema, uma vez que o combate pela desigualdade é sempre situado, havendo a necessidade de se analisar as reformas a serem feitas na especificidade de cada situação. Rosanvallon, embora reconheça a nobreza do pragmatismo militante de Sen, defende, diferentemente do nobel de economia, a necessidade de uma refundação teórica das políticas de redistribuição social. Quem se encarregou disso da forma mais sistemática e profunda foi Ronald Dworkin ( 1981a , 1981b , reflexão desdobrada em 2011 e 2014).
Dworkin publicou seus artigos mais conhecidos sobre o tema em plena ascensão do neoliberalismo, quando as ideias de liberdade individual e de eficácia econômica ocupavam o centro do palco. Na contramão desse novo consenso, Dworkin argumentava que era o conceito de igualdade que devia ser central na filosofia política liberal, desde que ele fosse adequadamente definido. Ele sustenta que os conceitos de igualdade e liberdade não são independentes, sendo o de liberdade interno ao de igualdade, contando que se estabeleça um sentido normativo a eles, e não meramente descritivo. Para explicar a sua concepção, Dworkin propõe a ideia de igualdade de recursos e, para explicá-la, lança mão do conhecido expediente hipotético do leilão imaginário. O autor pede para imaginarmos um leilão no qual todos os membros da sociedade seriam convidados a participar, possuindo inicialmente a mesma quantidade de fichas com as quais eles podem adquirir bens. Os recursos são dispersados e a venda é reiniciada com um ajuste de preços até que repartição obtida satisfaça o que Dworkin chama de um “teste de inveja”: ninguém inveja o pacote de recursos dos outros pois, por definição, cada um também teria podido comprá-lo com os recursos iniciais que dispunha. Também os custos de oportunidade devem ser iguais para todos 10 . Finalmente, é necessário se assegurar que ninguém seja prejudicado por algum tipo de deficiência, má sorte ou falta de talento, fatores que são compensados graças a um mecanismo de redistribuição de recursos cujos montantes são determinados pela quantidade que os indivíduos queiram investir numa espécie de seguro (a incidência desses três fatores para si mesmo e para os outros estaria escondida atrás de um véu de ignorância). As desigualdades de recursos ligados à ação desses três fatores não seriam, portanto, eliminados, mas as que subsistiriam teriam sido escolhidas pelas próprias partes. Por outro lado, essas desigualdades se legitimariam em função das escolhas individuais. Assim, a repartição dos recursos não está dissociada das escolhas individuais determinadas por ambições, projetos e riscos assumidos por cada pessoa (Dworkin, 2014 , 2019 ).
O que significa, para Dworkin, estabelecer uma concepção normativa exigente de igualdade e liberdade? Spitz ( 2005 ) sintetiza a argumentação de concepção dworkiana de forma esclarecedora. Há duas estratégias interpretativas possíveis. A primeira, que ele chama de “estratégia em duas etapas”, consiste em partir dos interesses dos indivíduos e definir uma distribuição que satisfaça esses interesses. Há, nesse caso, uma primeira etapa – a da igualdade – que seria seguida de uma segunda etapa que consiste em mostrar que as liberdades são os instrumentos adequados para a satisfação igual de interesses. Cronologicamente secundária, a liberdade seria um meio para a realização de uma distribuição justa. Essa concepção apresenta um problema de monta: parte de um pressuposto contestável, qual seja, que os interesses serão sempre melhor satisfeitos onde as liberdades são garantidas do que onde elas não são. Não é difícil imaginar indivíduos prontos a renunciar a algumas liberdades que não usem para favorecer a satisfação de outros interesses. No exemplo utilizado por Spitz ( 2005 ), é perfeitamente plausível que alguém prefira que o Estado gaste o máximo para lhe garantir o acesso a tratamentos de saúde de qualidade, mas, em contrapartida, essa pessoa abre mão do seu direito de manifestar, já que ela está disposta a reorientar para os hospitais os fundos que o Estado deveria ter alocado para garantir a segurança desse tipo de participação cívica. Esse exemplo mostra que as liberdades só serão defendidas e garantidas se os indivíduos tiverem efetivamente os interesses que a teoria lhes atribui. Dworkin resume a inconsistência dessa estratégia lembrando que simplesmente não faz sentido comprar recursos sem saber de que forma ele poderá ser usado.
A segunda estratégia, que ele chama de “constitutiva”, consiste em mostrar que o contexto inicial que permitirá chegar à igualdade de recursos é o que contém o conjunto das liberdades fundamentais. Tal estratégia exige a liberdade como condição da igualdade. Isso se explica pelo fato de a teoria dworkiana não conceber a igualdade na forma de uma estrutura de repartição de recursos, mas como resultado de um procedimento que teria certas características, entre as quais a mais importante é a proteção das liberdades individuais. Partindo da constatação de que existem diferentes contextos iniciais especificando diferentes sistemas de liberdades que governam leilões distintos e cujos resultados serão diferentes, deve-se buscar um critério que permita definir o melhor sistema inicial de liberdades e compará-lo com outros. Para Dworkin, o contexto mais capaz de responder às exigências do princípio igualitarista abstrato e de tratar os indivíduos com um respeito e uma atenção iguais é aquele equivalente ao leilão uma vez que o contexto inicial do qual ele partirá compreenderá o conjunto das liberdades de base consideradas fundamentais. O apelo a exemplos concretos auxilia na compreensão do argumento. Suponha-se que um contexto de base não compreenda as liberdades fundamentais e que os cidadãos não têm a liberdade de se deslocar de um ponto a outro. A compra de recursos se efetuará no contexto dessa proibição e é perfeitamente possível que os indivíduos adquiram cada um seu pacote de bens sem invejar o do outro (assim como é provável que nenhum utilize suas fichas na compra de bilhetes de trem). Nesse caso, passa-se pelo teste da inveja, mas o custo de oportunidade será desigual. Ou seja, os amantes de viagens serão discriminados com relação aos indivíduos “caseiros”. Se o leilão tivesse ocorrido num contexto de liberdade, os “amantes de viagem” teriam podido gastar suas fichas com passagens aéreas e não teriam sido invejados pelos “caseiros”. Os exemplos poderiam ser multiplicados. É por isso que Dworkin defende o “princípio de abstração”, a liberdade de escolha a mais completa possível. Podemos agora estabelecer a diferença entre o sentido descritivo e normativo de igualdade: este último é aquele de uma sociedade que tem por propriedade respeitar o princípio segundo o qual a sociedade deve considerar todos os cidadãos com um respeito e uma atenção iguais. O expediente do leilão não só demonstra a necessidade da liberdade como garantia da igualdade, mas coloca o papel da responsabilidade individual em seu cerne mostrando que os cidadãos devem se responsabilizar por suas escolhas e aceitar suas consequências.
O problema da teoria dworkiana, segundo Rosanvallon ( 2011 , p. 339), por mais sedutora que seja, é que ela é portadora de um paradoxo que a torna insustentável. Ele argumenta que é impossível a tradução de compensações do acaso e das circunstâncias em políticas corretoras do que pode ser considerado desvantagens, pois isso geraria uma dinâmica ilimitada. Isso ocorre porque não existe “escolha pura”, todas elas possuindo uma dimensão social subjacente e estando necessariamente embutidas em encadeamentos e determinismos. Esse é o mesmo problema identificado por Spitz ( 2009 ), que argumenta que não há como integrar a questão da responsabilidade pessoal numa política de redistribuição e de equidade.
Mas esse não é o único problema da teoria dworkiana identificado por Rosanvallon. Há outro, com implicações perversas, que é a forma como ela apresenta uma visão idealizada do indivíduo e da sua responsabilidade. Segundo o teórico francês, na antípoda da generosidade do Estado redistribuidor se encontra a extrema insensibilidade diante das consequências de escolhas julgadas autenticamente pessoais. Rosanvallon se apoia num exemplo ilustrativo dessa dificuldade, fornecido por Roemer ( 1995 ), que é o caso dos fumantes: é justo que outros paguem pela escolha (e vício) de um fumante (como um tratamento público de qualidade para câncer de pulmão)? Muitos argumentam que não, que o Estado não deve arcar com os custos de uma pessoa que sabia que o fumo causa câncer de pulmão e que ainda assim fez a escolha de fumar. O problema, como sublinha Rosanvallon, é que fumar é de fato uma escolha, mas também um comportamento socialmente determinado. Nos Estados Unidos, por exemplo, os operários afro-americanos constituem a maior categoria de fumantes (Rosanvallon, 2011 ) 11 .
A terceira consequência perversa da teoria da igualdade de chances se funda na distinção entre o voluntário e o involuntário: ela instaura, nas palavras de Rosanvallon, “uma máquina infernal de produzir a desconfiança” ( 2011 , p. 341). A exacerbação da atenção ao comportamento do outro alimenta o ressentimento, a estigmatização e a desconfiança, criando uma contradição entre justiça distributiva e ética da vida comum, em que a primeira se funda naquilo que mina a segunda. A sua análise conclui, portanto, que uma teoria da igualdade de chances leva a um impasse, tornando-a impossível de fundar uma teoria política da justiça. O mundo governado pelo princípio meritocrático é um mundo profundamente hierárquico, em que a base da associação, lembrou Enfantin numa crítica aos saint-simonianos, é a própria desigualdade. Ou como colocou Michael Young, é a substituição de uma aristocracia de nascimento por uma aristocracia de talento ainda mais dominadora, pois mais facilmente legitimada (apud Rosanvallon, 2011 ). A crítica de Rosanvallon a seu respeito é severa, pois ele estima que, em que pese seus princípios progressistas, ela está ainda menos apta do que a sociedade da concorrência generalizada a refundar a ideia de igualdade.
A sociedade da concorrência generalizada: a impossibilidade de uma concepção de justiça
Há hoje uma produção significativa sobre o “neoliberalismo”, assim como a sua relação com a democracia (Audier, 2012 ; Dardot e Laval, 2016 ; Brown, 2019 ; Slobodian, 2022 ). Para Rosanvallon, o termo “neoliberalismo” é problemático, dada a heterogeneidade das referências teóricas a ele associadas (Rosanvallon, 2011 , 2018 ; Freller, 2023 ). Ele prefere o de “sociedade da concorrência generalizada”, uma forma social definidora de um modo de organização social. É necessário distingui-la tanto da sociedade de mercado quanto da ordem de mercado.
A ideia de uma sociedade de mercado nasceu no final do século XVIII, definindo uma forma de organização social, e não meramente uma técnica de regulação da atividade econômica. Acreditava-se então na possibilidade da instituição do social por meio do mercado, sem a necessidade da autoridade e do comando. Isso fazia da filosofia de Adam Smith uma alternativa àquelas do contrato social. É nesse sentido que ele era considerado por Rosanvallon ( 1999 [1979]) como o anti-Rousseau por excelência, o primeiro filósofo do “desaparecimento da política” [dépérissement du politique]. Segundo o autor de A Riqueza das Nações, o mercado teria uma capacidade organizadora ao realizar ajustes automáticos, transferências e distribuições sem a vontade dos homens, o que permitia “desdramatizar o face a face dos indivíduos, desapaixonar suas relações, desarmar a violência virtual das relações de força” ( 1999 [1979], p. 322). É importante lembrar que sob o absolutismo pré-capitalista, o “mercado” aparecia então como uma ideia nova.
Quando se parte de Smith, a profundidade da ruptura operada por Friedrich Hayek se torna evidente. Não encontramos, no teórico austríaco, a linguagem da ordem natural e da harmonia de interesses, e sim a necessidade de intervenção constante, condição de possibilidade da instituição permanente do mercado. Além disso, a informação é um elemento central em seu pensamento. Para o economista austríaco, ela está sempre disseminada no corpo social e, por essa razão, é só através do mercado que ela pode ser utilizada em proveito de todos. Essa foi a base da crítica da intervenção do Estado: este seria incapaz de reunir informações tão dispersas para poder agir da melhor forma. Enfim, o mercado é um processo adaptativo e cumulativo da experiência humana, o que faz de Hayek mais tributário de Edmund Burke do que de Smith (Rosanvallon, 2011 ).
Para Rosanvallon, a sociedade de concorrência generalizada é uma forma radicalizada da sociedade de mercado e da ordem de mercado, aprofundando suas características de três formas: fundando-se numa filosofia e numa antropologia do risco e da autonomia; instituindo o consumidor em figura e medida do interesse geral; e fazendo da concorrência a forma social “que estabelece uma verdadeira relação entre os homens” ( 2011 , p. 325). No que se refere à primeira, Rosanvallon mostra como filósofos como François Ewald e Denis Kessler transformaram o risco numa condição ontológica do homem e a autonomia num sinônimo de independência e emancipação. A segunda sacraliza a imagem do consumidor, “a figura, a medida e a verdade do interesse geral” ( 2011 , p. 326), sendo a sua proteção incondicional o ideal do bem. Finalmente, a concorrência como forma genérica do vínculo social implica a ideia segundo a qual “basta ser igual para entrar no jogo e participar da competição” ( 2011 , p. 327). Rosanvallon mostra como a ideia de uma concorrência como a verdadeira relação entre os homens foi uma ideologia que se impôs não por meio de um golpe de força, mas antes se afirmou paralelamente ao enfraquecimento da vontade política. Ou seja, a ideologia da concorrência generalizada prosperou no terreno do “vazio político”.
Rosanvallon critica a ideologia da concorrência generalizada simplesmente por ela ser “incapaz de refundar positivamente uma ordem aceitável do mundo” ( 2011 , p. 328). Trata-se de uma crítica “interna” aos fundamentos da ideologia, pois ela não se limita a uma denúncia moral. Ou seja, ele vai mostrar como o capitalismo real está longe da imagem propagada pelos defensores da sociedade da concorrência generalizada. Em primeiro lugar, a política continua a impor sua lei na vida econômica; em segundo lugar, não há uma justificativa plausível e razoável para os enormes abismos em termos de renda e patrimônio. Não é a competição econômica que explica as altas remunerações, e sim as relações de poder: colusão entre dirigentes e administradores, cumplicidade entre CEO e acionários ou efeitos de comunicação que levam a assimilar, para o mercado, a empresa ao seu dirigente. O exemplo das altíssimas remunerações de alguns atletas ou financistas é ilustrativo. Os salários dos atletas mais bem pagos não têm nada a ver com leis de mercado, mas antes com uma “economia dos superstars”, ligada a efeitos de polarização e de hierarquização provocados pela constituição midiática de um palco mundializado. Há um trabalho de constituição de ídolos planetários que explica que diferenças mínimas de talento acarretem diferenças vertiginosas em termos de remuneração. O mesmo ocorre com os especuladores. Não foi nenhuma lei do mercado, mas antes a capacidade dos hedge funds de concentrar a gestão global das antecipações econômicas que explica a quantidade extraordinária dos lucros por eles angariados.
Esses exemplos demonstram que não é nem o mérito nem o talento que determina a posição de cada um na hierarquia social. Trata-se antes, parafraseando Rosanvallon, de “ardilosidade, manipulação, relação de forças, conivência, até mesmo da corrupção, que exerceram o papel essencial nesse crescimento” ( 2011 , p. 332). E conclui, afirmando que aquilo que impede a sociedade da concorrência generalizada de se validar e se legitimar é seu fracasso total em se ligar a uma teoria da justiça.
Por uma filosofia da igualdade social: os fundamentos da igualdade-relação
Estabelecidas as razões do esgotamento da concepção rawlsiana – após o “dilaceramento do véu da ignorância” –, da perversidade da ideia de igualdade de chances – que igualiza por meio da consagração da desigualdade – e da incapacidade da sociedade da concorrência generalizada em propor qualquer concepção de justiça, Rosanvallon defende a necessidade de uma refundação da ideia de igualdade. Central em seu pensamento é a convicção que a desigualdade não tem apenas uma dimensão individual – o que as teorias da justiça tendem a ressaltar –, mas sobretudo societal. Esse é, para ele, o ponto essencial.
Deve-se, portanto, voltar a considerar a igualdade enquanto noção política, e não apenas econômica. A proposta de Rosanvallon é retomar o que ele chama de “espírito revolucionário da igualdade” do final do século XVIII e que evoluiu no século XIX assumindo a forma de uma “sociedade sem classes” cuja ilustração mais célebre foi Manifesto do Partido Comunista. Tratava-se de uma igualdade fundamentada nos ideais de emancipação e autonomia, em que o trabalho não devia ser um meio de exploração e em que a dignidade de todos deveria ser garantida. Outros autores seguiram posteriormente essa linha de raciocínio, colocando a qualidade da relação acima do cálculo da distribuição econômica, a exemplo de Richard Tawney ( 1979 [1952]), Anthony Crosland ( 2006 [1956]) e George Orwell ( 2012 [1938]).
Rosanvallon se inscreve na esteira desses autores para refundar a ideia de igualdade. Para isso, ele volta à segunda metade do século XVIII, quando o espírito revolucionário da igualdade tinha se articulado em torno dos princípios de similaridade, independência e cidadania. As duas primeiras devem ser ampliadas para se adequarem a uma sociedade da singularidade. Assim, se o sufrágio universal foi conquistado em toda a parte, é a cidadania que precisa agora ser enriquecida por meio da criação de uma comunalidade. Já a ideia de autonomia, num mundo de interdependência, perde sua importância em proveito da de reciprocidade. A singularidade, a reciprocidade e a comunalidade são, para o teórico francês, os três princípios que devem fundamentar uma sociedade de iguais (Rosanvallon, 2011 ).
A singularidade é determinada por uma variável de relação. Ela suscita a vontade de compreender o outro, ao mesmo tempo em que supõe a manifestação de cada um naquilo que lhe é próprio. A igualdade na singularidade significa, portanto, que “cada indivíduo é igualmente único” (Rosanvallon, 2011 , p. 359). Tal forma de igualdade só se realiza mediante o reconhecimento dinâmico das particularidades, distante tanto da universalização abstrata quanto do comunitarismo identitário. É ela que leva os indivíduos a quererem fazer sociedade, criando a expectativa de uma reciprocidade e de um reconhecimento mútuo.
Rosanvallon entra aqui plenamente no debate que tem animado teóricos como Axel Honneth, Iris Marion Young ou Nancy Fraser e defende que toda democracia deve ser uma democracia de reconhecimento. Dois exemplos destruidores da singularidade são ressaltados pelo autor: o problema da discriminação e da desigualdade entre os sexos. No primeiro, a causa de um tratamento desigual está ligada à assimilação negativa de uma pessoa a uma das suas características, o que faz do sujeito que sofre a discriminação um “indivíduo-categoria” (“a mulher”, “a pessoa de cor”, “o homossexual”, etc.). Isso torna a discriminação uma “patologia da singularidade” na medida em que categoriza e reduz um indivíduo numa “classe de singularidade” julgada depreciativa. Ao indivíduo discriminado se é negado tanto a similaridade quanto a singularidade, pois não só ele não é considerado alguém [quelq’un], como lhe é recusado a qualidade do indivíduo qualquer [quiconque] (Rosanvallon, 2011 , p. 361, acréscimo nosso). As “discriminações positivas” podem ser um corretor dessa patologia, na medida em que possibilita transformar o fator de estigmatização em orgulho ou o sujeito discriminado em portador de direitos. Rosanvallon alerta, contudo, que a luta contra a discriminação, se radicalizada, pode levar aos polos opostos do separatismo (por meio da constituição de comunidades de identidade) e da indistinção (abstração do social), ambos desembocando numa negação do individualismo de singularidade.
A questão da igualdade de sexos, por sua vez, se encontra numa dupla encruzilhada: o das relações entre singularidade e similaridade, por um lado, e o de singularidade e diferença, por outro lado. Para determinar a condição e os direitos da mulher, sua singularidade foi essencializada e negou-se a similaridade, estabelecendo-se entre o homem e a mulher uma diferença qualitativa. Mesmo hoje, em que pese algumas conquistas do combate feminista, se homem e mulher são plenamente reconhecidos como semelhantes, a qualificação daquilo que funda a sua igualdade permanece imprecisa (Rosanvallon, 2011 ), o que é testemunhado pela persistência das discriminações sofridas pelas mulheres em vários domínios.
Rosanvallon sublinha a necessidade de um combate político pela garantia da singularidade dos indivíduos, o que implica uma redefinição das políticas sociais. Ele reconhece que essa reflexão já foi elaborada por teóricos como Martha Nussbaum, Amartya Sen e Gøsta Esping-Andersen, que buscaram apreender as políticas sociais como dispositivos de constituição do sujeito. Tais políticas se fundam numa personalização da ação pública, o que a torna cara e prenhe de consequências, na medida em que redefine a noção de direitos (Rosanvallon, 2011 ). A saída passa por um direito procedural pensado em termos de equidade de tratamento, que permite levar em consideração o indivíduo singular. Para Rosanvallon, essa questão não foi enfrentada. É necessário distinguir duas dimensões da ética da singularidade: a elaboração de regras justas (o polo da generalidade) e a determinação de comportamentos de atenção ao outro (polo da particularidade). Isso implica uma gestão individualizada portadora de uma forma de judicialização do social de modo a evitar tratamentos arbitrários 12 .
O segundo fundamento da igualdade-relação é a reciprocidade. A fragilidade da teoria da escolha racional é hoje amplamente compartilhada (Shapiro e Green, 1996 ; Baert, 1997 ; Carvalho, 2013 ; Herfeld, 2022 ). Para Rosanvallon o homem pode ser egoísta ou altruísta, dependendo das circunstâncias e contextos; mas ele é essencialmente recíproco ( 2011 , p. 372). A reciprocidade é definida como “igualdade de interação” e organiza como troca ou implicação. A primeira, estudada desde a Ética a Nicômaco, de Aristóteles, é uma relação que se realiza por meio de transações materiais ou bens simbólicos. Já a segunda tem por objeto a própria relação social, sendo simultaneamente produção e consumação dessa relação. Ela pode tomar a forma de uma coprodução de bens relacionais ou de uma paridade de engajamento na vida social.
A noção de bem relacional foi forjada nos anos 1980 por autoras como Martha Nussbaum ( 2010 ) e Carole Uhlaner ( 1989 ) e designa bens que só podem ser possuídos se forem compartilhados e cuja produção e consumação são simultâneas, como o amor e a amizade (Rosanvallon, 2011 ). Mas esses são bens eletivos que não podem ser universalizáveis, diferentemente do respeito e do reconhecimento. Estes sim são bens propriamente sociais, pois fundados no princípio de uma relação de reciprocidade. É o que permite que uma infinidade de indivíduos, permanecendo em sua singularidade, façam sociedade. Isso faz da singularidade o princípio da igualdade, e sua destruição, ao contrário, um ataque à vida comum. Daí a necessidade de promover e proteger o respeito e o reconhecimento por meio de leis que sancionem severamente as formas de desprezo, humilhação e assédio (Rosanvallon, 2011 ). Concretamente, a reciprocidade como igualdade de implicação se traduz num equilíbrio de engajamento na vida social. É ela que deve ser buscada, uma vez que a igualdade econômica-aritmética e a igualdade-independência não são possíveis numa economia complexa. Nas palavras de Rosanvallon, “ela corresponde a uma atenção a que os direitos e os deveres sejam os mesmos para todos, e, portanto, a uma aversão por tudo aquilo que rompe a igualdade das relações que os indivíduos mantêm com as instituições e as regras” ( 2011 , p. 376). Tal igualdade é a própria negação do free-rider, dos privilégios e dos comportamentos daqueles que buscam se aproveitar do sistema.
O risco à igualdade de reciprocidade se coloca hoje com o aumento generalizado da desconfiança a respeito do engajamento do outro na vida cívica, tanto com relação aos direitos como aos deveres. Há a percepção que os ricos conseguem escapar facilmente aos deveres junto à coletividade – notadamente por meio de brechas para não pagar os impostos devidos; existe também uma desconfiança, por parte das classes médias, com relação à base da pirâmide social, vistos como “aproveitadores” do sistema. Esse é o cenário de uma “crise da reciprocidade”. Nesse sentido, uma política da reciprocidade deve visar o restabelecimento da confiança. A garantia da transparência na ordem fiscal e social e a punição vigorosa dos usos abusivos e fraudulentos da máquina fiscal e social seriam medidas a serem adotadas para os casos mais evidentes dessa crise.
O terceiro fundamento da igualdade-relação é a comunalidade. A cidadania é em geral concebida em sua dimensão jurídica, e remete aos direitos de cada indivíduo tanto como membro de uma coletividade protegido por leis, quanto fazendo parte da soberania. Mas a cidadania é também uma forma social. Essa segunda dimensão foi ganhando progressivamente centralidade e remete ao cidadão definido por sua relação com os outros, ou seja, como concidadão (Rosanvallon, 2011 , p. 281). O que Rosanvallon chama de comunalidade é essa cidadania como forma social.
Nesse ponto, o autor aprofunda a ideia de comunalidade negativamente, ou seja, a partir daquilo que a ameaça e que ele define como uma “desnacionalização das democracias”. A democracia se desnacionaliza quando os fundamentos sociológicos e antropológicos do vivre-ensemble, do conviver, são ameaçados. Uma das formas é a “secessão” dos ricos em termos fiscais, que se traduz numa retirada material da solidariedade nacional. Ao fazer isso, eles permanecem “juridicamente cidadãos, mas não fazem mais parte da comunalidade” (Rosanvallon, 2011 , p. 383). Embora esse exemplo diga respeito a uma parte muito reduzida da sociedade, ela é carregada de simbolismo, e não deve levar a uma simplificação do problema reduzindo-o a uma oposição entre ricos e excluídos. O mesmo mecanismo se disseminou em todo o corpo social. Tomando a França como exemplo, Rosanvallon mostra como em todos os níveis da escala social se desenvolveu o que ele chama de “comportamentos de exclusão e de distinção” ( 2011 , p. 384) e vive-se num “separatismo social generalizado” ( 2011 , p. 385).
A segunda forma de desnacionalização das democracias é a despolitização. Ela reveste algo mais profundo do que deixa imaginar uma dimensão que seria meramente ideológica, qual seja, um apagamento das fronteiras entre a direita e a esquerda ou a abstenção eleitoral. Trata-se na realidade de uma “desvitalização da organização de uma vida comum entre as pessoas” (Rosanvallon, 2011 , p. 386). Rosanvallon retorna à Antiguidade para mostrar como os gregos, de Clístenes a Aristóteles, tinham condicionado a realização do ideal democrático a uma homogeneização de agrupamentos humanos até então presos a lógicas familiares e governado por tradições ancestrais. Havia a percepção de que, além das leis e instituições, o regime democrático precisava se apoiar em formas de sociabilidades que aproximassem seus membros. O que Rosanvallon busca ressaltar com o exemplo grego é que um agrupamento humano que não se pensa como coletividade/homogeneidade não só não é democrático, mas, sobretudo, não é político. O desmoronamento da cidadania democrática faz ressurgir o cidadão-proprietário, figura que no século XIX personificava a identificação entre cidadania e propriedade.
Como remédio às ameaças ao terceiro fundamento da igualdade-relação, Rosanvallon defende a necessidade de uma “produção do comum” ( 2011 , p. 393). Contudo, ele adverte, essa produção não deve ser assimilada a uma identidade, que é sempre passiva e conservadora. O que se necessita é de criatividade, que permite complicar a noção de comum. O teórico francês declina-a em três dimensões: a participação, a intercompreensão e a circulação. O “comum-participação” é a mais evidente e se exprime no fato de viver conjuntamente os acontecimentos (desde espetáculos de música popular, passando por manifestações esportivas e carnavais, por exemplo) e de se estar submetido a um mesmo fluxo de informações a respeito da comunidade. O “comum-intercompreensão” é fundado no conhecimento recíproco ( 2011 , p. 394), formado por imagens, enquetes, narrativas de vida, estatísticas, etc. O “comum-circulação”, enfim, se refere a um compartilhamento de espaços, locus de civilidade, conhecimentos difusos, de trocas furtivas e do sentimento de se estar lado-a-lado. São os transportes, praças, calçadas. Esse comum é permanentemente ameaçado pelas formas de privatização do espaço público e pelo abandono dos serviços públicos.
O ponto de chegada da reflexão rosanvalloniana coloca dificuldades consideráveis. Ela pode ser sintetizada na pergunta: “como ser semelhante e singular, igual e diferente, igual sob certas relações e desiguais sob outras?” (Rosanvallon, 2011 , p. 397). Se, no mundo pré-capitalista das revoluções americana e francesa os ideais de similaridade, de autonomia e de cidadania tinham se acomodado sem choque, num tempo de “igualdade feliz”, as mesmas condições não estão postas no século XXI. A complexidade da economia e o individualismo de singularidade tensionam a relação entre as diferentes dimensões da igualdade, o que dificulta a definição das instituições adaptadas à sua implementação.
A primeira dificuldade a ser afrontada é a da relação entre diferença e igualdade. Os riscos de se cair numa indistinção dissolvente ou numa diferenciação ameaçadora não são negligenciáveis. A primeira foi defendida por autores como Rousseau, Emerson e Thoreau que idealizaram a vida solitária, Max Stirner com o “eu todo poderoso”, ou ainda Roland Barthes com a sua “utopia de um socialismo das distâncias”, ou a “idioritmia” ( 2011 , p. 399). No segundo, temos a “política da amizade”, teorizada particularmente por Aristóteles ( 2009 ) e retomada contemporaneamente por Jacques Derrida ( 1994 ). Com efeito, a amizade oferece um modelo fascinante para se pensar uma sociedade de iguais, na medida em que incarna a realização dos três princípios da igualdade-relação. Além disso, o vínculo de amizade é dissociado de toda apreensão aritmética ou de normas redistributivas, podendo ser acomodada com uma certa desigualdade econômica. Contudo, se a idealização da vida solitária ou da amizade oferecem modelos para pensarmos uma sociedade de iguais, elas não podem fundar uma política propriamente dita. A articulação entre igualdade e diferença precisa ser pensada em termos políticos, jurídicos e institucionais.
A igualdade é sempre plural e faz com que os indivíduos sejam sempre iguais e desiguais. Dado o fato da pluralidade, qualquer reflexão sobre a igualdade implica delimitar quais dos seus aspectos considerar, assim como uma hierarquização das suas diferentes propriedades para determinar aquelas socialmente mais importantes. Um trabalho de igualização pode privilegiar a redistribuição ou igual acesso à saúde e educação ou, mais subjetivamente, questões ligadas à dignidade ou estima de si. Nesse sentido, tal trabalho, se bem-sucedido, embaralha as categorias de “inferior” e “superior”, assim como as de “igual” e “desigual” 13 . Mas Rosanvallon alerta que há um ponto de equilíbrio que, se ultrapassado, transforma a desigualdade numa contranatureza. Aqui a sua reflexão se aproxima da “igualdade complexa” de Michael Walzer ( 2015 ). Em outras palavras, o crescimento das diferenças individuais aumenta as chances de equilíbrio, numa abordagem negativa da igualdade. Por outro lado, positivamente, a igualdade-relação declinada numa posição relativa, numa interação e num vínculo de participação permite a articulação desses elementos tendo em vista a otimização das relações, ao invés de “valores” a serem conciliados, como tentado por Nancy Fraser ( 2011 ). Os tipos de relação não são concorrenciais e podem ser cumulativos. Isso faz da igualdade-relação, além de plural, absoluta, pois suscetível de realizar completamente o conceito, fazendo de uma sociedade de iguais uma “utopia realista” (Fraser, 2011 , p. 405).
Pluralidade implica ordenação e, aos olhos de Rosanvallon, a ordem lexical é clara: a igualdade-relação deve vir em primeiro lugar, não só por definir o “espírito da igualdade”, mas também por ter uma dimensão universalizante. Mas, também porque tal perspectiva permite a inclusão do ideal de liberdade no de igualdade, uma vez que a liberdade também se define como uma relação na qual a autonomia e a reciprocidade são preservadas. Como coloca o autor,
igualdade e liberdade não são contrárias senão se a primeira é estruturalmente vinculada ao Estado como agente de realização ao passo que a segunda não é senão uma capacidade atribuída ao indivíduo. Quando igualdade e liberdade são compreendidas conjuntamente como qualidades sociais, como relações, elas tendem ao contrário a se sobrepor (Rosanvallon, 2011 , p. 406).
Colocar em segundo plano a ideia de redistribuição significa que são admissíveis desigualdades de salários e de recursos desde que não minem a igualdade-relação em suas três dimensões. Significa também que uma eventual limitação de altos salários ou patrimônios herdados é uma forma legítima de se evitar a destruição da participação ou da comunalidade. Não é possível determinar uma mesma cifra ou uma mesma percentagem de alíquota de imposição em vista de uma redistribuição que seria universal na medida em que tal determinação quantitativa deve ser objeto de debate e deliberação em cada contexto nacional. Por essa razão, a construção e o funcionamento de uma igualdade-relação devem vir antes de uma política de redistribuição.
Os elementos que destroem a igualdade-relação são a reprodução social, o excesso e os separatismos. São os “limites para além dos quais”, como coloca Rosanvallon, “as desigualdades econômicas se tornam venenos destruidores” ([-#39], p. 407). Esse fechamento da reflexão rosanvalloniana faz um elo com o seu ponto de partida no final do século XVIIII, para mostrar como esses elementos destruidores já existiam naquela época na forma do privilégio, do luxo e da corrupção do elo cívico. Mas no século XXI, suas condições de tratamento se modificam.
A reprodução social transforma as diferenças sociais existentes num dado momento em destinos inelutáveis, sendo o equivalente moderno do privilégio ([-#39], p. 407). O excesso, e sua limitação, não podem mais ser colocados, como no século XVIII, em termos do elogio da frugalidade. A exigência do mundo atual é infinitamente mais urgente, pois diz respeito à preservação do meio ambiente, o que exige levar em consideração os limites ecológicos do crescimento econômico. A sobriedade se torna então uma condição de sobrevivência da espécie humana e a necessária “desmercantilização do mundo” aumenta a importância dos bens públicos e do espaço público. Enfim, o desenvolvimento das secessões e dos separatismos minam o fundamento do comum. A resposta, nesse caso, está ligada à organização e à estrutura do território. Não há política da igualdade que não comece por uma política da cidade visando multiplicar os espaços públicos e assegurar a diversidade social (Rosanvallon, 2011 , p. 408).
Considerações finais
A proposta deste texto foi fazer um mergulho na teoria democrática de Pierre Rosanvallon, especialmente a partir do seu entendimento do problema da igualdade. Partiu-se da hipótese que seu método histórico-conceitual apresentava potencialidades para uma abordagem original do problema, ao mesmo tempo em que evitava as falhas das teorias normativas da justiça. Pode-se objetar a necessidade de um retorno a meados do século XVIII para a construção de uma filosofia apropriada para o século XXI. Mas tal objeção indicaria um desconhecimento da démarche rosanvalloniana. Para ele, os problemas contemporâneos mais candentes e prementes não podem ser dissociados de uma meticulosa reconstrução da sua gênese (Rosanvallon, 2003 , p. 18). É isso que ele fez com o problema da igualdade: identificou-a – no caso, a sua crise – como um problema do presente, retraçou a sua genealogia até chegar novamente à contemporaneidade, enriquecido com os ensinamentos do passado. Foi esse longo caminho que deu a profundidade indispensável à análise e mostrou ao menos dois pontos que consideramos essenciais. O primeiro é que, na origem, não havia uma antinomia entre os ideais de igualdade e de liberdade. Como vimos, eles se sobrepunham na época da Revolução Francesa e sua incompatibilidade foi uma criação do século XIX que se estende até os dias de hoje e que se trata de desconstruir. O segundo é que o resgate histórico dos problemas, aporias e inacabamentos do ideal de igualdade mostram as suas perversões, desde o comunismo utópico à experiência totalitária do século XX, passando pelo nacional-protecionismo. Tais experiências alertam para os riscos inerentes à busca por homogeneidade e identidade. Assim, no lugar de mais uma teoria da justiça pensada no modo de repartição de bens divisíveis ou privatizáveis, Rosanvallon construiu uma filosofia da igualdade social. Enquanto as primeiras definem as desigualdades legítimas entre indivíduos, a segunda define a igualdade como uma forma social. Só uma filosofia da igualdade social pode construir uma política. La Société des égaux abre assim o caminho para uma renovação dos estudos sobre a igualdade e suas condições de possibilidade na democracia contemporânea.
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Uma versão preliminar deste artigo foi apresentada no Encontro Comemorativo do Centenário de Rawls e do Cinquentenário de “Uma Teoria da Justiça ” intitulado “O Legado de Rawls”, realizado em 2021. Posteriormente, uma versão revisada foi apresentada no 13º Encontro da Associação Brasileira de Ciência Política, em 2022. O autor gostaria de expressar sua gratidão a todos os participantes de ambos os eventos pelas valiosas sugestões e críticas que contribuíram significativamente para o aprimoramento deste trabalho. Em particular, um agradecimento especial a San Romanelli Assumpção pelos comentários incisivos e enriquecedores.
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Essa obra está prevista para ser publicada no Brasil em agosto de 2024 pelo Ateliê de Humanidades Editorial.
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Todas as traduções da obra de Rosanvallon são nossas, salvo indicação em contrário.
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O livro foi redigido entre 2009 e 2010 e publicado em 2011. Logo, antes da década de 2010 que viu a ascensão dos populismos autoritários – e a consolidação de algumas lideranças populistas no poder –, o Brexit e a eleição de Trump. Foi também em meados dessa década – logo, depois da publicação do livro – que se observou uma tendência global de recessão democrática.
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A escolha dessa expressão é explicada por Rosanvallon em nota de rodapé: “Com efeito, Bossuet dizia celebremente que ‘Deus ri dos homens que reclamam das consequências das quais eles adulam suas causas’. Esse paradoxo também pode ser compreendido no modo de um efeito de composição: os descontentamentos podem adicionar apreciações heterogêneas, ao passo que os objetos ou as razões de agir devem ser positivamente determinadas” ( 2011 , p. 17).
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Para citar apenas alguns exemplos, o autor fornece dados que mostram como o imposto progressivo sobre a renda subiu de taxas irrisórias de 0,5 a 6% em países como Estados Unidos, França e Reino Unido, no começo do século XX, para a taxas marginais superiores de 60% na França em 1924; 77% nos Estados Unidos em 1918 e 94% no mesmo país em 1942 (Rosanvallon, 2011 ).
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Entre os fatores históricos ressaltam as reformas sociais profundas vindas do alto, fruto do medo da revolução socialista, mas também de baixo, com a constituição de um militantismo reformista; a reação socialista ao nacional-protecionismo do final do século XIX, que acabou por se tornar portadora de um ideal de emancipação; e a experiência da Primeira Guerra Mundial, que levou a uma nacionalização das existências por meio da constituição da nação numa comunidade de provação imediatamente sensível (Rosanvallon, 2011 ). A revolução intelectual e moral, por sua vez, remete a uma “desindividualização do mundo”, trabalho fundado numa ruptura com as visões precedentes da economia e da sociedade, que levou à reavaliação do lugar até então concedido às noções de responsabilidade individual ou de talento (Rosanvallon, 2011 , p. 259).
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Essa mudança não foi devidamente levada em conta por parte dos teóricos do Estado do Bem-Estar Social, que se limitaram a denunciar problema da loteria das origens sociais e os fatores de imobilismo daí decorrentes nas posições que os indivíduos acabavam ocupando no decorrer de suas existências (Spitz, 2009 ; Kymlicka, 2006 ). A partir de um certo ponto, como sublinhou Spitz ( 2009 ), tornou-se intolerável para partes cada vez mais significativas da sociedade que alguns quisessem transferir aos outros as consequências de suas escolhas. Não obstante, a socialdemocracia não enfrentou essa questão por considerá-la condicionada à origem social. Ainda mais grave, ao denunciar a responsabilidade individual como uma invenção da direita para penalizar os pobres, a esquerda passou a ser vista por parte da sociedade como fomentadora da irresponsabilidade. Tal postura não só descreditou a socialdemocracia, como também engendrou uma forma de suspeita e de desconfiança generalizada, levando os cidadãos a afirmar de maneira agressiva normas de responsabilidade individual (Kymlicka, 2006 ) dando combustível para a retórica da direita, tanto liberal quanto radical.
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Ou seja, o que custa para alguém possuir X é igual ao que custa para outra pessoa possuir Y, sendo X e Y pacotes de recursos comprados com a mesma quantidade de fichas iniciais.
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Note-se que a retórica da “responsabilidade pessoal” se tornou hegemônica a partir dos anos 1980, como mostrou Sandel ( 2020 , pp. 96-97), cobrindo todo o arco do espectro político, de Reagan a Clinton, passando por Blair e chegando a Obama.
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Em contrapartida, é importante ter cuidado para que a singularidade não se converta numa nova forma de exploração, particularmente nas relações de trabalho na iniciativa privada, em que a realização individual pode facilmente se transforar em ordens (“sejam autônomos!”, “tomem iniciativas!”) ( 2011 , p. 370).
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Os exemplos dados por Rosanvallon falam por si: alguém pode receber um salário bem menor do que seu vizinho sem se sentir “inferior”, se se acredita “superior” culturalmente; ou pode-se, ainda, desprezar a ostentação de um “novo-rico” ( 2011 , p. 404).
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
13 Set 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
29 Nov 2023 -
Aceito
26 Jun 2024