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Autogestão: associação na produção ou a democracia econômica

Autogestão: associação na produção ou a democracia econômica

Paulo-Edgar A. Resende

Professor de Ciência Política da PUC/SP e organizador do livro Proudhon, Editora Ática, 1986

Há uma categoria filosófica que se buscou formular, com muitos percalços, desde a antiguidade: a de presença histórica.

A reflexão grega deu passos importantes nesta direção, embora não pudesse praticar a história no ritmo moderno.

A história antiga transcorre em ritmo lento em comparação com os padrões de aceleração moderna. Esta "invisibilidade histórica" permite a afirmação da "naturalidade" dos acontecimentos. Se vivo em sociedade, é porque, naturalmente, sou inclinado a viver em sociedade. A escravidão, a servidão, as desigualdades entre os homens são naturalizadas. É desta forma que a consciência antiga se expressa.

Será no mundo moderno que ganhará plena vitalidade a antológica afirmação, atribuída a Protágoras, que servirá de divisa aos mais variados humanismos: o homem é a medida de todas as coisas, do ser daquelas que existem e do não-ser daquelas que não existem.

A afirmação da historicidade da vida econômica, social e política introduz-nos no drama da história enquanto correlação de forças. As diferenças de interesses na sociedade cindida são de problemático ajustamento, podendo se esticar até à incompatibilidade radical, antagônica. A unidade natural — dada a predisposição para a vida em sociedade do homem animal político de Aristóteles — é desvelada. Caem os véus e se dá o desnudamente: os homens nascem iguais, tornam-se desiguais. A unidade de objetivos entre os desiguais é sumamente problematizada. E a política, em sua versão moderna, mostra-se de modo menos sublime: é concebida, na leitura mais favorável, como unificação, que é uma unidade precária, sujeita a desfazer-se e a refazer-se. Se não há uma pré-ordenação, se não vigora um arranjo de natureza, se a desigualdade entre os homens não é um fenômeno natural, a questão do poder tem de ser apreendida então em sua realidade histórica. Por esta trilha é flagrada a política, é repensado o poder.

Sociedade do capital versus sociedade do trabalho

Com Proudhon, na primeira metade do século passado, emerge, de modo dinâmico, a partir de um movimento operário crescentemente revigorado, a idéia socialista de insuficiência da política: são colocados, de modo claro, os limites do pacto social na sociedade do capital e enfatizadas as potencialidades da sociedade do trabalho.

A Revolução Francesa proclamou o advento da igualdade, da liberdade, mas, segundo Proudhon, sob o manto dos formalismos de participação. Deixa como legado a autoridade: não consolidou a sociedade, antes esmerou-se no seu governo. A potencialidade do movimento revolucionário esterilizou-se nas constituições políticas. Foi tão-só uma revolução política, com reposição da autoridade em outros termos.

O regime estabelecido nivela politicamente os indivíduos pelo sufrágio universal e esgota a mudança neste nível, deixando intatas a não-reciprocidade social, as desproporções sociais. O povo sobe um furo na ordem política. A burguesia parece descer na mesma proporção, mas o que ela perde de um lado, recupera em dobro do outro: permanecem as garantias relacionadas com a inferioridade do trabalho em relação ao capital.

Mas se 1789 não foi uma revolução, ao ser alcançado o sufrágio universal, a venda monárquica cai dos olhos do povo, desenvolve-se sua consciência, e ele se percebe envolto numa grande contradição: participa da soberania política e está subjugado economicamente.

Regime governamental versus regime econômico: da revolução política à revolução social

O que Proudhon postula é uma outra revolução, capaz de gerar um regime econômico que será o contrário de um regime governamental. Porém não se trata, para o revolucionário, de imaginar ou de combinar no cérebro autarcizado um sistema que se implanta em seguida. Não é com sistemas fechados de idéias ou com projetos prontos, doados por vanguardas iluminadas, que falam em nome do povo, que se revoluciona o mundo. O sistema da humanidade só se dará a conhecer, cabalmente, no fim da humanidade. Mas é plausível detetar o movimento, a direção da história.

Tudo bem, nos diz Proudhon, os primeiros a levantar a questão social não foram operários, e há contribuições importantes de filósofos.

Mas 1848 traz um fato novo. O povo adquire consciência mais desenvolvida de suas potencialidades. Após muitas lutas, com a aquisição dos direitos políticos, foram experimentados seguidos insucessos na vida política, duas correntes de opinião circulam entre os trabalhadores: o sistema comunista governamental e o sistema mutualista proudhoniano.

Socialismo estatal versus socialismo libertário

Para Proudhon a comunidade uniformizada do comunismo estatal é concebida sob a influência direta do próprio preconceito da propriedade.

Os membros da comunidade nada têm de seu, mas a comunidade é proprietária não só dos bens, mas também das pessoas, das vontades. A vida, o talento, as faculdades do homem são propriedade do Estado e se colocam, unilateralmente, a serviço do interesse geral, estabelecido de cima para baixo, de modo transcendente. O movimento operário é subordinado a desígnios superiormente fixados pela vanguarda social, convertida em burocracia opressora, que restabelece a autoridade e restringe a liberdade. Tal comunismo confunde nivelamento com igualdade.

Temos de um lado o desenvolvimento capitalista à base da concentração da propriedade. De outro o comunismo estatal, que postula a extensão da propriedade. Não se trata, no entanto, nem de purificar o capitalismo, nem tampouco de se deixar seduzir pela profilaxia do Estado. O trabalho será a referência básica da reversão: o trabalho explica a formação da riqueza e a existência da sociedade, pois os homens estão associados na produção, antes mesmo de o estarem através das convenções. Antes de legislar, de administrar, a sociedade trabalha, produz. O homem isolado não pode prover senão pequena parte de suas próprias necessidades. Seu poder reside na sociedade enquanto combinação inteligente de esforço coletivo. A sociedade se constitui, então, pela solidariedade econômica de todos seus membros, e será fundamentalmente na análise de sua economia que se desvelará seu significado.

O fato é que, seja no regime de propriedade, seja no sistema estatal comunista, o coletivo é construído de modo transcendente, contrariamente à espontaneidade da força coletiva dos membros de determinada comunidade. Reunidos de modo ativo pelo trabalho, no momento em que as condições objetivas lhes permitem ter uma auto-imagem positiva, SEM as vendas tradicionais que lhes foram postas pelos proprietários e pelas autoridades, são capazes de se organizar, assumindo a iniciativa da ordem, sem necessidade de delegá-la a instâncias superiores.

Em sua fase mais radical, logo após 1848, Proudhon nega a política como forma necessária de desatrelamento da força social dos limites que a anulam. A força coletiva do trabalho é, em conseqüência, algo concreto enquanto força de um grupo de homens no trabalho. A retomada do poder social imanente, de modo descentralizado, realiza, em alto grau, a liberdade dos produtores no sentido do que chamamos hoje de autogestão, em anteposição à heterogestão.

Após descrer das virtudes do poder político, como forma de deliberação social, Proudhon recupera a política e a redefine. Ao mutualismo autogestionário em nível econômico, corresponde o federalismo descentralizador no nível político. A federação é um ponto de chegada. A dinâmica da federação está na diversidade e na autonomia das unidades federadas, articuladas de modo não-burocrático. A autoridade federal carece de poder público no sentido clássico, embora seja chamada ao exercício de determinadas funções de serviço. Quem diz liberdade, quem diz república, socialismo, diz, para Proudhon, federação. A era constitucional é chamada a ceder lugar à era federativa, cujo princípio é o oposto ao de compactação dos povos, dos grupos, dos indivíduos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Mar 2011
  • Data do Fascículo
    Mar 1987
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