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Os temas malditos

PENSANDO O BRASIL

DESAFIO CONSTITUINTE

Os temas malditos

Uma coletividade só pode ser efetivamente livre e democrática se a sua criatividade, a possibilidade de renovação permanente da sociedade, for assegurada através da garantia das liberdades individuais de pensamento, expressão e opção.

Para discutir a questão das liberdades individuais, Edison Nunes, de LUA NOVA, entrevistou Caty Koltai e Beaco Vieira, dois ex-candidatos nas eleições de 1982 — ela, pelo PT de São Paulo e ele, pelo PTB de Santa Catarina — que, na época, abordaram esse tema em suas plataformas políticas.

Ambos tiveram a coragem de trazer a público, para discussão, certos temas considerados tabu pela sociedade: a descriminalização da maconha, a legalização do aborto e a questão do serviço militar opcional.

Suas propostas chocaram muitos setores conservadores, e os dois candidatos — cada um em seu estado e em instâncias diferentes — foram processados sob a acusação de "incitamento ao uso de drogas".

Os dois processos terminaram com a absolvição dos acusados e com o reconhecimento — expresso nas sentenças — de que todo cidadão tem o direito de questionar e propor modificações na legislação vigente no país.

EDISON: Por que tratar dos "temas malditos"?

CATY: Os chamados "temas malditos" são temas das liberdades individuais. Existem algumas coisas que são exclusivas da área individual do cidadão: gosto sexual, gosto de comida, gosto de bebida, a sua relação com o próprio corpo, a sua escolha filosófica ou religiosa... são coisas que não têm nada a ver com o Estado, ele não pode interferir. As liberdades individuais precisam ser reconhecidas e garantidas.

O mote do meu panfleto de campanha, o Desobedeça, foi inspirado na teoria da desobediência civil criada por Henry Thoreau, no século passado, nos Estados Unidos, que propunha uma oposição pacífica às leis com as quais o cidadão não-concorda. E, desse ponto de vista, o meu panfleto tratava exata-mente das liberdades individuais e dos direitos das minorias: os negros, os índios, os jovens, as mulheres, os homossexuais, a questão do aborto e... a descriminalização da maconha, a bendita da maconha!

Todos esses temas têm que ser debatidos publicamente, para que não aconteçam os mal-entendidos que a gente está acostumada a ver.

EDISON: Especificamente, quanto à questão da maconha, quais são esses mal-entendidos?

CATY: Para começo de conversa: eu falo em descriminalização e sou contra a legalização da maconha. Descriminalizar é "para que o usuário não sofra pena". Porque o uso ou não uso da maconha deve ser uma opção livre de cada indivíduo. Mas o tráfico... tem que ser reprimido mesmo!

Só se consegue fazer uma separação entre uso e tráfico quando existem leis que descriminalizam o uso da maconha e permitem uma repressão violenta ao tráfico. Tirar a maconha da mão do traficante é uma medida de proteção ao usuário.

EDISON: Que tipo de proteção essa medida pode trazer?

CATY: Como é que o traficante funciona? Ele trabalha, principalmente visando o lucro. Primeiro, põe a maconha no mercado. Depois, quando a maconha não está mais dando lucro, ele passa a oferecer — para os mesmos indivíduos para quem ele vendia a maconha — a cocaína. E quando a coca deixa de ser lucrativa, tiram tudo do mercado e jogam heroína. Como aconteceu na Itália. Em Roma, encontram-se as pessoas caídas, mortas, nas esquinas, com uma agulha espetada na veia. E isso, para mim, é assassinato!

Acredito que descriminalizar a maconha é proteger a liberdade e a vida do indivíduo. O uso ou não uso da maconha deve ser uma escolha de cada um. Até hoje ninguém conseguiu provar que a maconha causa dano. Se algum dia conseguirem provar, eu até posso mudar de opinião. Mas hoje, eu considero que descriminalizar o seu uso é tirá-la das mãos daqueles que vendem droga da morte.

EDISON: O tema da descrimina-lização da maconha ainda é muito controvertido. Numa sociedade como a nossa, há ainda muitos se-tores desta que se chocam quando se fala em descriminalização?

CATY: Sim. é por isso que ela só vai ser legítima se a sociedade se informar e debater antes. Existe uma campanha de contra-informa-ção que só interessa aos órgãos de repressão, a setores da polícia e ao tráfico. é preciso que as pessoas se informem corretamente: o que é maconha, faz bem, faz mal, quem é a população que consome, etc. No Brasil, as classes populares sempre fumaram maconha; ela só se tornou um acontecimento histórico quando a classe média a descobriu. E aí ela passou a fazer parte da cultura moderna. Virou moda cultural.

Numa sociedade em que não há debate sobre o tema e onde, de repente, grande parte da literatura publicada é composta por obras que falam sobre experiências de artistas com a maconha, ou com o LSD, ou com o ópio... isso também funciona como contra-informação. O leitor desinformado pode dizer: "Ah, então vou me chapar, também, eu também vou me tornar um artista genial". Não é verdade. é preciso trazer o debate a público para que todos possam saber sobre o que estão opinando.

EDISON: E você, Beaco, como defende a maconha?

BEACO: Nesse ponto a gente tem uma posição um pouco diferente. Eu sou visceralmente contra a legalização de qualquer droga. Acontece que, para mim, maconha não é droga, é apenas um produto natural. Tendo em vista que o movimento do qual eu participo é bastante centrado na natureza, a nossa defesa se restringe à erva medicinal cannabis sativa, a maconha. E, por ela ser um produto natural, somos favoráveis à sua legalização.

CATY: Ainda do ponto de vista da liberdade individual, eu sou contra a legalização. Isso porque, na minha opinião, se legalizarem a maconha, vão começar a fazer propaganda na televisão, como se faz do álcool, do cigarro, e essa pequena área de liberdade individual vai acabar de novo, porque os indivíduos vão começar a sofrer pressão de consumo por parte do Estado.

EDISON: O que mais entra na área das liberdades individuais? O aborto, por exemplo?

CATY: Em princípio, quando falam da vida e da morte, as pessoas são movidas a ideologia. Por exemplo, muitas pessoas se dizem contra o aborto, justificando que o aborto tira uma vida humana; essas mesmas pessoas, entretanto, se declaram, com a maior tranqüilidade, a favor da pena de morte. Vida e morte são coisas importantes demais para serem usadas ideologicamente!

No caso do aborto, a última palavra, a decisão final, deve ser da mulher. O corpo é dela, é ela que deve decidir, em cada caso. A partir do momento que existir uma campanha séria de educação para a contracepção e que todos tiverem condições econômicas de sustentar os filhos que quiserem, obviamente, o índice de abortos vai diminuir.

Entretanto, mesmo tendo todas essas condições, pode acontecer de uma mulher engravidar e não querer ter esse filho. é um direito dela, nem o Estado nem a Igreja têm o direito de interferir.

O aborto é sempre uma enorme violência. Nenhuma mulher escolhe o aborto sem se ferir de alguma forma. Assim, se for mesmo uma opção indiscutível, que sejam garantidas a ela as melhores condições possíveis.

Por outro lado, deve ser respeitado o direito dos médicos que, por convicção, não querem fazer aborto. O médico não pode ser obrigado a praticar um ato contra o qual ele é visceralmente contra. Isso também seria violento e autoritário. Entretanto, o hospital, a instituição deveria, por obrigação, ter em seus quadros médicos que façam aborto.

EDISON: Beaco, você concorda?

BEACO: Eu concordo com quase tudo que a Caty disse, apenas ressaltando que, no Brasil, a questão do aborto atinge com muito mais intensidade as camadas mais pobres da população. é uma realidade que temos que reconhecer: ilegal ou não, se fazem quatro milhões de abortos por ano neste país!

Eu concordo também em que a decisão de abortar ou não deve estar sempre com o indivíduo e não com o Estado. Mas tenho uma restrição a um ponto que a Caty colocou: para mim, o problema do aborto não toca só à mulher, toca ao parceiro também; deve ter uma consulta. Se a minha companheira, por exemplo, não tem condições de ter um filho, eu posso ter e posso querer esse filho. Cabe ao casal discutir.

CATY: é lógico que a discussão cabe ao casal. Quando eu digo que a última palavra cabe à mulher é porque é na barriga dela que está a criança e é ela que vai sofrer a violência do aborto. Porque, até para aquela que deseja fazer um aborto, ele é uma violência. Ninguém tira algo, que pode vir a se tornar um filho, numa boa, como se fosse ao cinema. é uma loucura pensar assim.

EDISON: Beaco, na sua plataforma de campanha você abordava uma questão extremamente polêmica que nunca antes havia sido tocada por nenhum político do Brasil: o tema do serviço militar opcional e remunerado. Como é que as pessoas entenderam essa proposta? Ninguém considerou isso como uma afronta ao dever de patriota do cidadão?

BEACO: é claro que houve uma rejeição muito grande por parte dos militares. E eu acredito que esse tenha sido o motivo real do meu processo, que foi aberto pela polícia federal, mas — como que cheguei a saber depois — foi aberto após um pedido verbal do Exército. é claro que eles não tinham interesse em chamar a atenção para a questão do serviço militar e, por isso, o meu processo só menciona os temas da legalização da maconha e do aborto.

EDISON: Por que você defendeu esse ponto?

BEACO: Baseado na minha própria experiência. Aos 18 anos eu fui retirado do meu convívio particular e educacional, para servir à Pátria. Para mim, tudo aquilo foi um prejuízo, não acrescentou nada. O serviço militar não pode ser uma coisa forçada, obrigatória.

EDISON: Que alternativas poderiam ser encontradas, nesse caso, que, respeitado o indivíduo, não prejudicassem os interesses do pais?

CATY: O reconhecimento da objeção de consciência, em grande parte das democracias do mundo, é um fato. E a objeção de consciência é o quê? é reconhecer o direito que um indivíduo tem — por motivos religiosos, filosóficos, culturais — de se recusar a pegar em armas e matar o seu semelhante. O Estado não pode obrigá-lo a matar, quando o indivíduo é totalmente contra isso.

Há outras maneiras de servir à Pátria, como um serviço civil, por exemplo. Nos países desenvolvidos, os objetores de consciência, aqueles que não querem fazer serviço militar, vão trabalhar como voluntários civis em países subdesenvolvidos. Vão contribuir de algum jeito. Aliás, essa é a grande bandeira dos anarquistas, não é mesmo?

No Brasil, o caso do serviço militar obrigatório é particularmente mais grave, porque o Exército acaba sendo uma válvula de escape, uma oportunidade de ascensão social para as classes mais pobres. Normalmente, os que têm uma posição social mais privilegiada conseguem dar um jeitinho de escapar do serviço militar...

EDISON: Para você, qual é o sentido histórico de todas essas propostas?

CATY: Na verdade, para mim, todas essas propostas vieram muito mais de posições filosóficas que eu tentei politizar. Era a velha pergunta: como juntar a liberdade individual com a liberdade coletiva? Pergunta que refletia, na verdade, as grandes preocupações do existencialismo, as relações do indivíduo e da sociedade.

Não podemos ignorar que as vitórias da revolução burguesa foram importantes. Elas não podem ser vistas como algo pejorativo. Elas, de alguma forma, levaram em conta as liberdades individuais. A minha preocupação básica continua sendo o socialismo mas, para mim, o socialismo ainda é uma utopia. Um sonho.

EDISON: Então, você não concorda com o John Lennon. O sonho não acabou?

CATY: Várias vezes tentaram acabar com ele. Depende da gente, de cada um de nós, evitar que ele acabe. Eu que, com muito orgulho, me considero o protótipo da geração 68, acho que essa utopia é possível novamente. é claro que não se trata de repetir o que houve em 1968. Mas esse sonho de liberdade não acabou.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Set 1985
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