Resumo:
Este artigo discute o conceito de polarização social, dividindo o Brasil contemporâneo em polos que se identificam com Lula ou Bolsonaro. Com base na hipótese de que os desafios à consolidação democrática do Brasil têm impacto nesse contexto, analisamos cinco processos sócio-históricos, tendo como marco a fundação da Nova República. São eles: a constituição e as reformas do sistema político institucional; a mudança do contexto econômico nacional; as mudanças estruturais na sociedade brasileira; a estrutura da mídia tradicional e o surgimento de novas tecnologias de informação; e a mudança do contexto político internacional. A análise apoia a hipótese de que o fenômeno Bolsonaro é um sintoma que aprofunda, e não a origem, da polarização contemporânea.
Palavras-chave: Polarização; Comportamento eleitoral; Crise política; Partidos políticos; Democratização
Abstract:
This article discusses the concept of social polarization dividing contemporary Brazil into poles identifying with Lula or Bolsonaro. Based on the hypothesis that the challenges to Brazil’s democratic consolidation have an impact on this context, we analyze five historical social processes, taking the founding of the New Republic as a milestone. These are: the constitution and reforms of the institutional political system; the changing national economic context; the structural changes in Brazilian society; the structure of traditional media and the emergence of new information technologies; and the changing international political context. The analysis supports the hypothesis that the Bolsonaro phenomenon is a symptom that deepens, rather than the origin of, contemporary polarization.
Keywords: Polarization ; Electoral behavior ; Political crisis ; Political parties ; Democratization
1. Introdução
Este artigo 1 analisa o suposto recrudescimento da polarização do Brasil contemporâneo como efeito associado à incidência do “bolsonarismo” e parte da constatação de macrotendências relativas à percepção dos próprios brasileiros a respeito do atual momento da vida política do país. Pesquisas recentes apontam, por exemplo, que 83% dos entrevistados consideram que o Brasil está “mais dividido” em 2024 (Genial/Quaest, 2024a apud Nicoceli e Pinhoni, 2024) e, segundo outros 72%, o nível de conflito social e de polarização entre pessoas que apoiam partidos políticos diferentes está “muito forte” ou “forte” (AtlasIntel, 2024 ). Esse quadro contrasta principalmente dois grupamentos de entrevistados, destacados nas pesquisas por meio de suas preferências políticas nas eleições de 2022. O primeiro é composto por brasileiros que votaram e/ou têm simpatia por candidatos do Partido dos Trabalhadores (PT) ou de outros partidos políticos cujas candidaturas foram apoiadas pelo atual presidente Luiz Inácio “Lula” da Silva. O segundo grupo é constituído por entrevistados que votaram e/ou têm simpatia por candidatos do Partido Liberal (PL) ou que foram apoiados pelo ex-presidente Jair Messias Bolsonaro em 2022 (AtlasIntel, 2024 ). Sem serem exaustivos, esses resultados ilustram a hipótese da “calcificação da polarização social brasileira” (Nunes e Traumann, 2023 ), que pressupõe hoje uma maior interpenetração dos antagonismos políticos no cotidiano dos brasileiros, representando uma transformação na configuração política e social do país nos últimos trinta anos. Aos desafios remanescentes à plena consolidação democrática desde a fundação da Nova República, somam-se hoje os efeitos sociais da configuração da polarização política tal qual é percebida e vivenciada pelos próprios brasileiros. Por isso o interesse renovado no debate acadêmico sobre o assunto.
Nesse contexto, pressupõe-se que a polarização política identificada nos períodos eleitorais compreendidos entre 1994 e 2006 2 – de tipo “político-partidária” e descrita como mais circunscrita aos períodos de campanha eleitoral (Nicolau, 2020 ; Singer, 2002 , 2012 ) –, teria se transformado gradualmente em “polarização social” de 2006 a 2018 (Nunes e Traumann, 2023 ). Outrossim, o antagonismo político-social geralmente estimulado pelas campanhas teria passado a se estender para além das eleições (Nunes e Traumann, 2023 ; Nicolau, 2020 ), em um processo que foi se intensificando de 2018 a 2023 (Nunes e Traumann, 2023 ). Conquanto as pesquisas de opinião mobilizadas por essas análises não determinem o estado das relações sociais no Brasil, elas apontam para certas tendências da percepção dos brasileiros que, por sua vez, produzem impactos sobre as primeiras (Lefort, 1986 ). Estudos recentes concluem, portanto, que o país estaria “socialmente dividido e emocionalmente polarizado” (Nunes e Traumann, 2023 , p. 26), dado que o posicionamento político de cada indivíduo se tornou parte constituinte da sua identidade, bem como um dos principais marcadores do seu processo de diferenciação “do outro” (Nunes e Traumann, 2023 ).
Essa leitura sobre a hipótese da transformação contemporânea da polarização pode esclarecer, em parte, as macrotendências supracitadas notadas nas percepções dos brasileiros (Genial/Quaest, 2024a apud Nicoceli e Pinhoni, 2024); bem como parece contestar, não sem cautela, a “teoria do voto econômico” (Gramacho, 2009 ) como modelo explicativo predominante do comportamento eleitoral brasileiro (Nicolau, 2020 ). Entretanto, não se trata de hipótese nova, nem incontestada. Propõe-se, portanto, analisar a ideia da transformação da polarização à luz de estudos críticos recentes que desafiam tal acepção (Borges e Vidigal, 2018 ), questionando a suposta singularidade da situação política atual e sua associação com o advento e a ascensão ao poder do fenômeno Bolsonaro. Busca-se assim contribuir aos estudos sobre a polarização do Brasil contemporâneo a partir da análise de suas possíveis origens sociais e políticas, por meio da revisão bibliográfica de trabalhos recentes publicados sobre o tema. Tomando como marco a transição democrática culminando na fundação da Nova República (1985-1988), foram identificados cinco processos cujas transformações nos últimos 40 anos podem esclarecer sobre a percepção vigente de um “Brasil dividido”. Por fim, sem a pretensão de esgotar as análises sobre o tema, busca-se abordar alguns eventos-chave desses cinco processos associados à consolidação da atual configuração política e social brasileira, ao passo que se nota que o esgarçamento do tecido social do país não constitui um fato novo.
2. Um país dividido?
Os supostos agravamento e enrijecimento do antagonismo político no Brasil contemporâneo, resumidos pela noção de “calcificação da polarização social”, são apontados como um dos corolários da ascensão do fenômeno Bolsonaro e da consolidação do “bolsonarismo” no país (Nunes e Traumann, 2023 ). Partindo de uma breve discussão acerca da definição dessa ideia, esta seção propõe analisar a hipótese da transformação da configuração da polarização sociopolítica brasileira, questionando sua singularidade histórica e associação direta com o advento do bolsonarismo. Por fim, com base nessas discussões, serão enumerados os cinco processos tratados ao longo deste artigo, cujas transformações parecem esclarecer sobre a configuração política e social do Brasil contemporâneo.
A definição do fenômeno bolsonarista é objeto de debate na literatura e, embora diversos pesquisadores tenham destacado seu surgimento e prováveis efeitos sociopolíticos ao longo da última década (Dieguez, 2016 ), o crescente interesse acadêmico pelo tema é notável com a vitória de Bolsonaro nas eleições presidenciais de 2018. O bolsonarismo foi assim definido como um movimento popular ultraconservador (Dieguez, 2022 ), cuja lógica paradoxal se nota por sua perspectiva antissistêmica impossível, aliada ao seu apoio popular incerto e sua constituição por uma miríade de forças da nova direita 3 , em conflito umas com as outras (Rocha; Solano e Medeiros, 2021 ). Foi também estabelecido como um fenômeno populista radical de direita (Lynch e Cassimiro, 2022 ; Stefanoni, 2022 ), como um movimento fascista-ultraneoliberal (Violin, 2022 ) e como movimento político que opera por meio da fabricação de fatos alternativos, produzindo dissonância cognitiva coletiva (Rocha, 2023 ). Outras análises situam o fenômeno no contexto de emergência e ascensão de movimentos populistas antidemocráticos e interconectados, ao longo da última década, nas Américas do Norte e Latina, bem como na Europa; e que estariam intimamente ligados à crise contemporânea das democracias ocidentais (Levitsky e Ziblatt, 2019 ). Essas definições divergem em parte das concepções originais sobre a configuração do populismo histórico no Brasil, uma vez que os governos assim identificados mobilizaram estratégias de ação política que teriam permitido a integração parcial de novos setores sociais nas esferas públicas do país entre 1940 e 1960 (Linden, 2018 ), ainda que simultaneamente à onda de reorganização dos movimentos integralistas à época (Barros e Lagos, 2022 ).
Sem pretender encerrar o debate, elementos apontados pelas análises mobilizadas inspiram uma compreensão abrangente do bolsonarismo para os fins deste artigo. Trata-se de um fenômeno cujas características populistas radicais e antidemocráticas (Lynch e Cassimiro, 2022 ; Stefanoni, 2022 ; Levitsky e Ziblatt, 2019 ), sustentadas por princípios ultraconservadores com raízes históricas (Barros e Lagos, 2022 ; Dieguez, 2016 , 2022 ), conquistaram o apoio de uma parcela significativa da população na última década (Rocha, 2023 ; Rocha; Solano e Medeiros, 2021 ). Tal escalada parece expressar mudanças profundas na sociedade brasileira (Avritzer, 2020 ) que, por sua vez, teriam um possível impacto na configuração dos antagonismos políticos no país (Nunes e Traumann, 2023 ), impulsionando a percepção de um “Brasil dividido” (Genial/Quaest, 2024a apud Nicoceli e Pinhoni, 2024). Entretanto, os estudos sobre a polarização política e social na Nova República remontam a um período anterior ao advento do bolsonarismo.
O termo “polarização” era empregado, em geral, para descrever a organização do conflito político característico ao período de consolidação democrática, quando do fortalecimento do modelo do “partido político moderno” (Lamounier e Meneguello, 1986 ). Analisado por meio do estudo das eleições presidenciais de 1989 a 1994 (Singer, 2002 ) e, posteriormente, até 2006 (Singer, 2012 ) e 2014 (Nicolau, 2020 ), o termo fazia sobretudo referência ao antagonismo protagonizado pelos principais partidos políticos da época, que era descrito como mais circunscrito aos períodos de campanha eleitoral e definido como de tipo “político-partidário”. Segundo Marcos Nobre ( 2022 ), de 1994 até meados de 2010, o termo polarização descrevia a organização do sistema político institucional em “dois polos”, representados pelo PT e o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), onde “[ o ] partido que vencia a eleição se tornava líder da coalizão de governo” (Nobre, 2022 , p. 9, acréscimo nosso); protegia suas áreas consideradas estratégicas e repartia o restante entre as diferentes forças políticas em sua órbita, seguindo o modelo do “presidencialismo de coalizão” de Sérgio Abranches ( 2018 ). Ressalta-se, entretanto, que a literatura sobre a polarização que se concentra na evolução do comportamento eleitoral na Nova República com enfoque único na afinidade partidária padece de fragilidades metodológicas e teóricas (Borges e Vidigal, 2018 ). Refuta-se assim a hipótese de que essa polarização de 1994 a 2014 entre o PT e o PSDB seria o “reflexo de uma crescente divisão do eleitorado em dois blocos claramente diferenciados e polarizados” (Borges e Vidigal, 2018 , p. 54), o que explicaria o surgimento do bolsonarismo como uma alternativa eleitoralmente viável na ausência de um candidato tucano forte. Borges e Vidigal ( 2018 ) mostram que as simpatias partidárias são um fator explicativo do voto no período, mas não corroboraram um suposto enraizamento do PT ou PSDB no eleitorado, apesar da tendência de estabilização dos votos pró-PT nas eleições presidenciais de 2006 a 2018 (Nicolau, 2020 ).
A hipótese de que a “polarização político-partidária” de 1994 a 2006 teria se transformado gradualmente em “polarização social” de 2006 a 2018 tem como base a análise de indicadores de que o antagonismo político estimulado pelas campanhas presidenciais teria passado a se estender para além das eleições, em um processo que se intensificou de 2018 a 2023, com o advento do bolsonarismo e da ascensão da própria ideia de que o Brasil estaria mais polarizado politicamente (Nunes e Traumann, 2023 ). Em trabalhos recentes, Jairo Nicolau ( 2020 ) e Felipe Nunes e Thomas Traumann ( 2023 ) abordam esse processo a partir do cruzamento dos dados coletados por uma série de pesquisas de opinião recenseadas 4 , com os resultados eleitorais do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) (Nicolau, 2020 ). Os autores buscaram esclarecer, respectivamente, sobre o perfil dos eleitores de Bolsonaro em 2018, dada a ascensão do bolsonarismo (Nicolau, 2020 ); e sobre os perfis-tipo dos eleitores de cada um dos dois campos políticos majoritários concorrentes em 2018 e 2022, bem como os possíveis impactos destas no cotidiano dos brasileiros (Nunes e Traumann, 2023 ). Três constatações principais emergem da leitura desses trabalhos. Em primeiro lugar, a eleição de 2018 representou uma ruptura histórica com o padrão das campanhas eleitorais desde 1994, uma vez que o partido do candidato eleito não contava, como até então, com os “três requisitos” da vitória eleitoral: um sólido financiamento de campanha, além de um bom tempo de propaganda na televisão e uma vasta rede de apoio nos estados mais populosos (Nicolau, 2020 , pp. 15-16). Paralelamente, para Nobre ( 2022 ), a maneira de se conceber a polarização do sistema político brasileiro mudou definitivamente em 2018, posto que o ano marca o momento em que a convergência entre a crise do peemedebismo, a obsolescência do presidencialismo de coalizão e a sequência de crises no período pós-junho de 2013, criou condições favoráveis para a vitória de Bolsonaro (ver seção 3 3. Política, economia e a transformação da configuração da polarização brasileira No que concerne o processo (i) de constituição e reformas do sistema político institucional brasileiro, destaca-se que as transformações estruturais deste tiveram impactos na configuração da oferta política nacional e no rearranjo das forças em oposição (Nicolau, 2020 ; Avritzer, 2019 ; Rodrigues, 2006 ). Esses tornaram o campo de disputas políticas permeável ao (re)ssurgimento de um sentimento de desconfiança institucional (Avritzer e Filgueiras, 2011 ), cenário em que floresceram discursos galvanizando polarizações políticas e sociais. A reestruturação do sistema partidário pós-ditadura foi marcada por uma grande instabilidade desde a primeira década pós-1988, expressa na ultrafragmentação dos partidos, já associada à “crise dos partidos tradicionais” (Nicolau, 2018 , 2017 ). Nicolau ( 2018 , 2017 ) mostra que, dos 68 partidos organizados entre 1985 e 1994, os já consolidados apresentaram fraca expressão eleitoral à época. Ademais, tinha-se que a identificação da população aos partidos brasileiros era de tipo “negativa”, contrastando com as tendências de identificação positiva observadas em outros regimes democráticos, como no Reino Unido, na Alemanha e nos Estados Unidos (Nicolau, 2020 ) 9 . De 1994 a 2014, ainda que marcado por uma forte fragmentação e fisiologismo, esse sistema se estabilizou em torno da predominância da competição bipartidária excessivamente focada em eleições nacionais, opondo o PT ao PSDB (Nicolau, 2020 ). Nicolau ( 2020 ) mostra que, desde pelo menos as eleições presidenciais de 2006, houve um recrudescimento da retórica antagônica/polarizante, reforçada pelo processo de ultraprofissionalização das campanhas eleitorais. Para atrair votos, ambos os partidos adotaram estratégias para reduzir a dispersão de seus grupos de eleitores, galvanizando a rejeição do grupo oposto (Borges, Vidigal, 2018 ), como ilustram os exemplos dos slogans “PT-pró social contra o PSDB-anti-políticas redistributivas”; ou do “PSDB-íntegro contra o PT-corrupto”. As mudanças no perfil sociológico dos eleitores pró-PT e pró-PSDB entre 2006 e 2014 destacaram a crescente polarização do eleitorado brasileiro, marcada pela condição socioeconômica e região de residência do eleitor, e menos pela identificação positiva a uma ideologia própria a cada partido (Nicolau, 2020 ; Borges, Vidigal, 2018 ). As campanhas eleitorais adotadas na época fomentaram essa lógica, tornando-se mais agressivas, o que culminou na acirrada disputa de 2014, interpretada como um grande ponto de inflexão no rearranjo eleitoral (Borges, Vidigal, 2018 ). É a esse período que se atribui a ascensão e consolidação do sentimento de rejeição específico ao PT, o antipetismo (Nicolau, 2020 ). Embora reforçado desde 2014 pela ascensão de movimentos populistas reacionários de direita que impulsionaram o fenômeno bolsonarista (Lynch e Cassimiro, 2022 ), tem-se que o antipetismo cresceu “em função das crises econômicas e das avaliações negativas do governo do PT” (Bello, 2023 , p. 48). O PSDB não conseguiu mobilizar totalmente esse eleitorado heterogêneo e sem perfil ideológico claro (Borges e Vidigal, 2018 , p. 79); e a estratégia petista de organização “de cima para baixo” de suas bases, associada à crise de junho de 2013, à recessão econômica e aos desdobramentos dos escândalos de corrupção nos anos seguintes, resultou na estagnação e no declínio da hegemonia eleitoral do PT (Samuels e Zucco, 2018 ), como veremos. Não obstante, este quadro não impediu que os candidatos do PT ganhassem consecutivamente as eleições presidenciais de 2006 a 2014. Enquanto as análises da expressão eleitoral do fenômeno do “lulismo” – conceito de André Singer ( 2012 ) referente à associação do “pacto conservador” à “reforma gradativa” e implementação de políticas de redistribuição de renda e de fácil acesso ao crédito consignado – acolado à vigência do modelo do presidencialismo de coalizão (Abranches, 2018 ) esclarecem sobre as condições que tornaram essas vitórias possíveis, dois outros efeitos contundentes das transformações estruturais abordadas devem ser destacados no caso do PT: sua profissionalização e financeirização. Um dos corolários da profissionalização do partido foi o afastamento, ou mesmo a perda, de suas raízes militantes (Ribeiro, 2008 ), fato destacado pela incompreensão e má administração dos petistas da crise iniciada quando das manifestações constituídas por um complexo mosaico de atores, sem direção única, de junho de 2013 (Alonso, 2023 ). Avritzer ( 2016 ) atribui as origens destas aos limites históricos da participação política no Brasil que foram, em alguns aspectos, evidenciados durante as administrações executivas do PT. Por exemplo, entre 2009 e 2012, a incapacidade do governo de gerenciar o conflito político engendrado pelas mobilizações que se opunham ao plano de construção da usina hidrelétrica de Belo Monte operou uma ruptura no campo político da esquerda (Avritzer, 2016 ). Segundo Lincoln Secco ( 2018 ), a progressão de manifestações em 2012 e a eclosão das de junho do ano seguinte evidenciaram a defasagem entre as formas históricas de mobilização social preconizadas pelo PT e as “novas”, mais autonomistas e ativas no meio digital, de 2013 (Secco, 2018 , p. 270). Se para uns, junho de 2013 inaugurou uma sequência de eventos que desestabilizou o pacto democrático brasileiro (Nobre, 2022 ), para outros, 2013 evidenciou as falhas de gestão dos governos estaduais e federais da década anterior (Cocco e Cava, 2018 ; Cava e Pereira, 2016 ). A “questão de 2013” está ligada a três dos cinco processos identificados. Primeiramente, às (iv) transformações da mídia e das tecnologias da informação, que provocaram mudanças na estrutura de sociabilidade dos brasileiros (ver seção 4 ). No que concerne às (iii) transformações da sociedade brasileira, nota-se que a contínua ultra-urbanização do país nos anos 1990-2000 revelou a incapacidade da estrutura pública das cidades de integrarem a população crescente (Nicolau, 2020 ). Este processo está associado à profunda fragmentação social e ao desmantelamento da composição da força de trabalho (Cocco, 2023 ), culminando na “situação híbrida” onde as “melhorias significativas nas condições de vida”, “na saúde básica, com políticas voltadas para grupos desfavorecidos”, não foram suficientes para eliminar os riscos de um retorno à precariedade para a população de baixa renda (Lima, 2017 , p. 323, tradução nossa). As (ii) evoluções do contexto econômico, especialmente no período entre os mandatos de Dilma Rousseff I e II (PT), reforçaram essa conjuntura. O fim do ciclo de expansão das commodities e o aumento dos gastos públicos no final do governo Lula II, fizeram com que a carga tributária sobre a população aumentasse a partir de 2010 (Carvalho, 2018 ). O programa econômico de Rousseff, que defendia o ajuste fiscal e a redução dos gastos públicos enquanto estimulava o setor privado por meio de concessões de lucros, enfrentou um contexto internacional menos favorável, culminando na recessão de 2014 (Carvalho, 2018 ). Embora diante de um quadro menos promissor, resta que o PT no Executivo não teve a mesma capacidade de mobilizar suas bases militantes como nas décadas de 1980 e 1990. Ainda assim, de início, as diversas organizações de junho de 2013 não eram, necessariamente ou propriamente, anti-PT. Elas estavam ligadas às lutas (principalmente) urbanas pelo acesso a serviços públicos de qualidade, inspiradas pelos movimentos de ocupação e revoltas internacionais da década, do Occupy Wall Street à(s) primavera(s) árabe(s) (Cocco, 2023 ; Cocco e Cava, 2018 ). As respostas do governo federal petista e dos estaduais ligados ao PT recrudesceram as tensões entre estes e a sociedade organizada, fomentando a aguda crise de representação política da época (Alonso, 2023 ), que não se resumia unicamente à questão de 2013. Ademais, as organizações de direita ativas no espaço digital à época conseguiram aproveitar o sentimento de insatisfação generalizada contra um sistema “ineficaz” e “corrompido”, propondo alternativas institucionais em oposição ao status quo petista (Nobre, 2022 ; Stefanoni, 2022 ) e suscitando a reorganização política de movimentos conservadores (Vilas Boas, 2023 ). Por outro lado, a crescente dependência do Estado e do capital privado que resumiram a financeirização do PT (Ribeiro, 2008 ) estão ligadas ao envolvimento de membros na rede de corrupção dos partidos brasileiros – bem que tal acepção seja aqui empregada com cautela (Avritzer; et al ., 2012 ; Avritzer e Filgueiras, 2011 ). Na época da fundação e institucionalização do PT (1980-1990), o sistema de financiamento dos partidos políticos brasileiros passou a ser misto, permitindo a arrecadação de recursos das esferas privada e pública. Ribeiro ( 2008 ) mostra que, até 1995, os recursos públicos disponibilizados aos partidos políticos pelo Fundo Especial de Assistência Financeira aos Partidos Políticos (Fundo Partidário) eram escassos; mas a alteração advinda com a promulgação da Lei 9.096/95 mudou rapidamente esse quadro, aumentando os valores disponíveis. Na época, o PT foi o partido que mais se beneficiou desses recursos, segundo Ribeiro ( 2008 ), pois eles se baseavam, entre outros, no número de deputados eleitos pelos partidos. Esses recursos sempre foram controlados pela direção nacional do PT e, apesar da imposição da Lei 9.096/95 referente ao repasse de 80% do valor total recebido do Fundo às instâncias regionais dos partidos, ele nunca obedeceu a essa regra (Ribeiro, 2008 ). Além disso, mesmo tendo sido historicamente uma questão controversa e mesmo tabu no partido (Secco, 2018 ), até 2015, o PT não proibia estatutariamente as doações de pessoas jurídicas privadas, desde que aceito pela legislação eleitoral (Partido dos Trabalhadores, 2015 ). Com suas derrotas nas presidenciais de 1994 e 1998, a direção nacional do PT mudou progressivamente o método de captação de recursos (Secco, 2018 ; Ribeiro, 2008 ); e, em 2000, foi introduzida uma política de captação por meio de doações privadas, com foco em grandes construtoras, bancos e outras empresas do setor de serviços (Ribeiro, 2008 ). Por exemplo, até 1999, menos de 1% da receita total do PT era proveniente de doações de pessoas jurídicas privadas; em 2000, esse número subiu para 13%, em 2002 para 17% e em 2004 para 27% (Ribeiro, 2008 ). Sem entrar em detalhes, este processo parece estar ligado à implicação deste e de outros partidos nos ditos “escândalos de corrupção” dos últimos 15 anos, cujos mais relevantes no debate público nacional foram os chamados “Mensalão” (2005-2012) e “Petrolão”, revelado pela controversa e hoje extinta “Operação Lava-Jato” (2014-2021). Demonstrou-se que o PT foi submetido a um lawfare em um cenário de crescente “judicialização da política” e “espetacularização da justiça” (Leite, 2015 ), em um processo que foi impulsionado pelas linhas editoriais dos grupos de mídia nacionais mais tradicionais que hiper-mediatizavam os casos implicando petistas (Amorim, 2015 ; Summa, 2009 ; Nassif, 2003 ). Não obstante, fato é que houve envolvimento do PT e que esses elementos, associados à contínua falta de regulamentação pública da estrutura oligopolista da mídia, ajudaram a consolidar o antipetismo. Se o PT esteve à frente de grandes e inéditas reformas institucionais que permitiram a melhora dos processos públicos de investigação e julgamento dos casos de corrupção desde Lula I, paradoxalmente, a percepção da população de que esta aumentara durante os mandatos do PT no Executivo é demonstrada nas pesquisas de opinião da época (Avritzer; et al ., 2012 ; Avritzer e Filgueiras, 2011 ). Voltaremos às questões das (iv) transformações da mídia e das tecnologias da informação na seção 4 . Para além do impacto da retórica moralista anti-corrupção no comportamento eleitoral, a pressão fiscal sofrida particularmente pela classe média a partir de 2014 foi um fator importante da consolidação do antipetismo, demonstrando que a teoria do voto econômico não caiu em obsolescência. Em setembro de 2022, quando perguntados sobre “o principal problema do Brasil hoje”, 37% dos respondentes disseram ser a “economia” e, 21%, as “questões sociais”; 14% responderam a “saúde”; 7%, a “corrupção”; e apenas 5% e 4%, respectivamente, disseram ser a “violência” e a “educação” (Genial/Quaest, 2023 ). Por fim, como o outrora “polo oposto” ao PT, representado pelo PSDB, não sobreviveu à exposição de seu próprio envolvimento nos casos de corrupção dos últimos 15 anos, o caminho ficou livre para que uma alternativa eleitoral viável emergisse no cenário político nacional. Há ainda uma última observação a ser feita sobre as (i) transformações no sistema político. Em 2015, durante a análise parlamentar do projeto de reforma na legislação sobre campanhas eleitorais, o Congresso Nacional votou pela retirada do artigo referente à proibição do financiamento privado de campanhas (Passarinho, 2015 ). Posteriormente, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) a consideraram inconstitucional (STF, 2015 ). Como resultado, o texto final, publicado em 2017, manteve a proibição de doações de “pessoas jurídicas públicas e privadas de qualquer espécie” (Brasil, 2017 a, Art. 31), além de vedar coligações partidárias nas proporcionais, estabelecer normas de acesso aos recursos do fundo partidário e restrições ao tempo de rádio e TV. Os efeitos das reformas de 2015 e 2017 foram sentidos em um cenário de ascensão da extrema-direita nas eleições de 2018 e 2022, o que ajudou a consolidar a hegemonia institucional das posições bolsonaristas sobre o campo da direita e da centro-direita brasileiras (Nobre, 2022 ). O sistema político outrora marcado pela polarização PT/PSDB e pela governança via presidencialismo de coalizão entre 1994 e 2013, tornou-se obsoleto (Nobre, 2022 ; Nicolau, 2020 ; Abranches, 2018 ). Se as reformas eleitorais eram necessárias, a liminar do STF de 2017 provocou ávida resposta do Legislativo, que homologou um fundo público homérico de financiamento eleitoral e partidário (Senado Federal, 2017 ) e o Orçamento Impositivo (Câmara dos Deputados, 2020 ), que está na origem do dito “Orçamento Secreto”, sob Bolsonaro (Neiva, 2022 ). Desde pelo menos 2015, com a eleição de Eduardo Cunha (do então Partido do Movimento Democrático Brasileiro, PMDB) à presidência da Câmara, o Legislativo foi se tornando mais independente do Executivo e mais polarizado ideologicamente (Nicolau, 2020 ). Essas são as possíveis condições para a chamada crise institucional dos poderes republicanos – Executivo, Legislativo e Judiciário – de 2014 a 2018, à qual se somou, a partir de 2015, o papel desempenhado pelas Forças Armadas (Victor, 2022 ). Segundo Fabio Victor ( 2022 ), a implicação dos militares na política brasileira não fora atenuada no processo de transição, mas progressivamente amplificada a partir do mandato interino do presidente Michel Temer (PMDB, 2016-2018), tomando proporções excepcionais durante o mandato presidencial de Bolsonaro. Em 2018, a aliança selada entre este e os representantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, impulsionaram, assim, a “politização da caserna” e a “militarização da Esplanada”, atestando para o fato de que a “questão militar” ainda constitui um desafio à consolidação da democracia brasileira (Victor, 2022 ). ).
Em segundo lugar, destaca-se a transformação da configuração do antagonismo político no país de 2006 a 2022, ressaltando-se a necessidade de revisão dos modelos explicativos do comportamento eleitoral predominantes até então (Nicolau, 2020 ). Nesse contexto, as eleições presidenciais de 2006 foram um marco, posto que a identificação de um “realinhamento” do perfil-tipo do eleitor de Lula (Singer, 2012 ), ou de outros candidatos petistas às presidenciais (Nicolau, 2020 ), representou então um aumento do interesse por estudos sobre a configuração do comportamento eleitoral no Brasil. Sem insistir nos detalhes da inversão do perfil socioeconômico do eleitor petista operada em 2006, ou da incidência da ascensão e queda do “lulismo” e do “petismo” no comportamento eleitoral (Singer, 2012 , 2018 ; Samuels e Zucco, 2018 ), destaca-se que, nas eleições de 2006 a 2022 5 , a preferência por um candidato à presidência passou a ser mais associada a indicadores relativos à condição socioeconômica, ao grau de escolaridade formal e à região de residência do eleitor nas pesquisas (Nunes e Traumann, 2023 ; Nicolau, 2020 ; Singer, 2012 ). Se tal constatação não permite afirmar que os brasileiros apresentam um “perfil ideológico claramente diferenciado” (Borges e Vidigal, 2018 , p. 80), ou que a dinâmica eleitoral passou a ser determinada por esses indicadores (Bello, 2023 ; Nicolau, 2020 ), ela desafia a predominância de um modelo explicativo único do comportamento eleitoral brasileiro. Foram os casos da premissa supracitada dos “três requisitos” para a vitória em eleições presidenciais (Nicolau, 2020 ) e da teoria do voto econômico, que buscava explicar o voto a partir da relação entre a situação da economia durante um mandato presidencial, a popularidade do governo vigente e a capacidade de seu partido de apresentar um candidato viável (Gramacho, 2009 ). Esses modelos não devem ser interpretados de maneira absoluta, mas interdependente. As preferências eleitorais decorrem de diferentes motivos; e a ideia de que o eleitor é um agente econômico puramente racional é tão ideal-típica quanto a de que sua afinidade política se deve exclusivamente à sua afeição por um candidato (Dormagen e Mouchard, 2023 ).
Por fim, embora Nicolau ( 2020 ) não empregue o termo “polarização social” como Nunes e Traumann ( 2023 ), a última das três constatações anunciadas diz respeito à identificação de uma tendência parcial à formação de “dois grupos”, nos quais estariam associados a preferência eleitoral (pró-Lula/PT ou Bolsonaro), certos marcadores do perfil sociológico (como identidade de gênero e denominação religiosa) e o apego do eleitor a valores morais, sociais e políticos específicos 6 , aproximando cada grupo entre si e aumentando sua rejeição do outro, para além dos períodos de campanha (Nunes e Traumann, 2023 ). No 2° turno de 2022, Nunes e Traumann ( 2023 ) mostram, por exemplo, que Lula (PT) obteve vitória mais expressiva nos seguintes segmentos da população, por categoria: mulheres (49% contra 38%), pretos (58% contra 31%), católicos (52% contra 39%), pessoas com ensino fundamental (54% contra 35%) e cuja renda familiar total não ultrapassa dois salários mínimos (SM) (52% contra 36%). Bolsonaro (então PL), por sua vez, obteve a maioria dos votos entre os homens (48% contra 42%), bem menos expressiva; mas sobretudo entre brancos (50% contra 39%), evangélicos (56% contra 32%), com ensino superior (51% contra 37%) e com renda familiar total entre dois e cinco SM (49% contra 40%) ou superior a cinco SM (50% contra 40%).
Nunes e Traumann ( 2023 ) reagruparam esses dados para decodificar o espectro de perfis ideais-típicos dos eleitores de cada “polo”, concluindo que a vitória acirrada de Lula se deu graças à conquista de um grupo minoritário de eleitores, denominados “liberais sociais” 7 (Nunes e Traumann, 2023 , p. 163). Quase um ano após as eleições, os autores identificaram diversos impactos destas sobre as relações sociais e familiares dos brasileiros, bem como sobre seus estilos de vida e de consumo. Por exemplo, tem-se que 17% e 54% afirmaram, respectivamente, ter rompido relacionamentos amicais ou familiares ou conhecer alguém que os rompeu em função das eleições de 2022; e outros 75% declararam não se arrepender de ter se envolvido em brigas por causa de política à época (Nunes e Traumann, 2023 , p. 172). Ademais, 23% e 20% declararam, respectivamente, que se sentiriam mal ao ouvir um artista ou comprar um produto de uma marca que apoiou o candidato adversário (Nunes e Traumann, 2023 , p. 173). É precisamente por conta da permanência e do teor dessas cisões que se pressupôs que o antagonismo político extrapolou os períodos eleitorais e que o posicionamento político se tornou um elemento constitutivo da identidade do brasileiro (Nunes e Traumann, 2023 ).
Entretanto, as pesquisas permitindo tais associações são recentes, o que impede uma análise comparativa em uma série histórica de médio prazo (Nunes e Traumann, 2023 ; Nicolau, 2020 ). Ademais, as denominações e composições desses “grupos polarizados” (pró-Lula/PT ou Bolsonaro) variam de acordo com a metodologia de coleta de dados utilizada pelos institutos de pesquisa mobilizados; e os próprios autores (Nunes e Traumann, 2023 ; Nicolau, 2020 ) enfatizam a dificuldade metodológica imposta às análises pela falta de dados censitários atualizados do Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Nicolau ( 2020 ) aponta ainda para o problema de interpretação dos dados referentes a certos marcadores do perfil sociológico dos entrevistados, como “renda” ou “raça”, devido ao impacto de diferentes formulações de questionários nas respostas. Há também um problema de definição de determinadas categorias sociológicas mobilizadas por cada instituto (Nicolau, 2020 ), ou mesmo de uma mesma categoria, ao longo do tempo, como é o caso da noção de “classe média” (Cocco, 2023 ). Assim, embora as tendências identificadas ajudem a entender o perfil-tipo dos eleitores em 2018 ou 2022, os autores reiteram que elas não determinam a consolidação de dois grupos homogêneos, em contínua oposição (Nunes e Traumann, 2023 ; Nicolau, 2020 ).
Longe de assumir que o comportamento político e social do eleitor brasileiro é determinado por suas preferências nas eleições presidenciais, ou que a polarização social aqui referida seja um fato novo ou comprovadamente consolidado, assume-se a hipótese que as três constatações supracitadas – a ruptura histórica de 2018, a transformação do antagonismo político no país e seus impactos sobre o cotidiano dos brasileiros – esclarecem sobre o quadro atual, tal qual é percebido e vivido pelos próprios respondentes às pesquisas de opinião aqui mobilizadas. Novas abordagens sobre a configuração do sistema político e do comportamento eleitoral brasileiro, como as propostas por Nunes e Traumann ( 2023 ), Bello ( 2023 ), Ortellado et al . ( 2022 ), Fuks e Marques ( 2022 ) ou Nicolau ( 2020 ), mostram que o fenômeno dito de polarização é dinâmico, ligado às afinidades positivas e negativas aos partidos, bem como à identificação, ora convergente, ora divergente, a um(a) candidato(a) que “representa” os valores mais consolidados, ou questões conjunturais mais caras ao eleitor. Estas são as premissas nas quais este artigo se baseia.
Nota-se ainda que a suposta calcificação e spill over do antagonismo político dos grupos hoje distintos por sua simpatia por Lula ou Bolsonaro tem por pano de fundo as múltiplas crises sociopolíticas dos últimos anos. Inúmeros estudos sobre estas tomam por marco inicial as mobilizações de junho de 2013 e seus corolários em termos de organização política de diferentes setores da sociedade, à esquerda, ou à direita do espectro político nacional, apesar de divergirem sobre a análise destas (ver seção 3 3. Política, economia e a transformação da configuração da polarização brasileira No que concerne o processo (i) de constituição e reformas do sistema político institucional brasileiro, destaca-se que as transformações estruturais deste tiveram impactos na configuração da oferta política nacional e no rearranjo das forças em oposição (Nicolau, 2020 ; Avritzer, 2019 ; Rodrigues, 2006 ). Esses tornaram o campo de disputas políticas permeável ao (re)ssurgimento de um sentimento de desconfiança institucional (Avritzer e Filgueiras, 2011 ), cenário em que floresceram discursos galvanizando polarizações políticas e sociais. A reestruturação do sistema partidário pós-ditadura foi marcada por uma grande instabilidade desde a primeira década pós-1988, expressa na ultrafragmentação dos partidos, já associada à “crise dos partidos tradicionais” (Nicolau, 2018 , 2017 ). Nicolau ( 2018 , 2017 ) mostra que, dos 68 partidos organizados entre 1985 e 1994, os já consolidados apresentaram fraca expressão eleitoral à época. Ademais, tinha-se que a identificação da população aos partidos brasileiros era de tipo “negativa”, contrastando com as tendências de identificação positiva observadas em outros regimes democráticos, como no Reino Unido, na Alemanha e nos Estados Unidos (Nicolau, 2020 ) 9 . De 1994 a 2014, ainda que marcado por uma forte fragmentação e fisiologismo, esse sistema se estabilizou em torno da predominância da competição bipartidária excessivamente focada em eleições nacionais, opondo o PT ao PSDB (Nicolau, 2020 ). Nicolau ( 2020 ) mostra que, desde pelo menos as eleições presidenciais de 2006, houve um recrudescimento da retórica antagônica/polarizante, reforçada pelo processo de ultraprofissionalização das campanhas eleitorais. Para atrair votos, ambos os partidos adotaram estratégias para reduzir a dispersão de seus grupos de eleitores, galvanizando a rejeição do grupo oposto (Borges, Vidigal, 2018 ), como ilustram os exemplos dos slogans “PT-pró social contra o PSDB-anti-políticas redistributivas”; ou do “PSDB-íntegro contra o PT-corrupto”. As mudanças no perfil sociológico dos eleitores pró-PT e pró-PSDB entre 2006 e 2014 destacaram a crescente polarização do eleitorado brasileiro, marcada pela condição socioeconômica e região de residência do eleitor, e menos pela identificação positiva a uma ideologia própria a cada partido (Nicolau, 2020 ; Borges, Vidigal, 2018 ). As campanhas eleitorais adotadas na época fomentaram essa lógica, tornando-se mais agressivas, o que culminou na acirrada disputa de 2014, interpretada como um grande ponto de inflexão no rearranjo eleitoral (Borges, Vidigal, 2018 ). É a esse período que se atribui a ascensão e consolidação do sentimento de rejeição específico ao PT, o antipetismo (Nicolau, 2020 ). Embora reforçado desde 2014 pela ascensão de movimentos populistas reacionários de direita que impulsionaram o fenômeno bolsonarista (Lynch e Cassimiro, 2022 ), tem-se que o antipetismo cresceu “em função das crises econômicas e das avaliações negativas do governo do PT” (Bello, 2023 , p. 48). O PSDB não conseguiu mobilizar totalmente esse eleitorado heterogêneo e sem perfil ideológico claro (Borges e Vidigal, 2018 , p. 79); e a estratégia petista de organização “de cima para baixo” de suas bases, associada à crise de junho de 2013, à recessão econômica e aos desdobramentos dos escândalos de corrupção nos anos seguintes, resultou na estagnação e no declínio da hegemonia eleitoral do PT (Samuels e Zucco, 2018 ), como veremos. Não obstante, este quadro não impediu que os candidatos do PT ganhassem consecutivamente as eleições presidenciais de 2006 a 2014. Enquanto as análises da expressão eleitoral do fenômeno do “lulismo” – conceito de André Singer ( 2012 ) referente à associação do “pacto conservador” à “reforma gradativa” e implementação de políticas de redistribuição de renda e de fácil acesso ao crédito consignado – acolado à vigência do modelo do presidencialismo de coalizão (Abranches, 2018 ) esclarecem sobre as condições que tornaram essas vitórias possíveis, dois outros efeitos contundentes das transformações estruturais abordadas devem ser destacados no caso do PT: sua profissionalização e financeirização. Um dos corolários da profissionalização do partido foi o afastamento, ou mesmo a perda, de suas raízes militantes (Ribeiro, 2008 ), fato destacado pela incompreensão e má administração dos petistas da crise iniciada quando das manifestações constituídas por um complexo mosaico de atores, sem direção única, de junho de 2013 (Alonso, 2023 ). Avritzer ( 2016 ) atribui as origens destas aos limites históricos da participação política no Brasil que foram, em alguns aspectos, evidenciados durante as administrações executivas do PT. Por exemplo, entre 2009 e 2012, a incapacidade do governo de gerenciar o conflito político engendrado pelas mobilizações que se opunham ao plano de construção da usina hidrelétrica de Belo Monte operou uma ruptura no campo político da esquerda (Avritzer, 2016 ). Segundo Lincoln Secco ( 2018 ), a progressão de manifestações em 2012 e a eclosão das de junho do ano seguinte evidenciaram a defasagem entre as formas históricas de mobilização social preconizadas pelo PT e as “novas”, mais autonomistas e ativas no meio digital, de 2013 (Secco, 2018 , p. 270). Se para uns, junho de 2013 inaugurou uma sequência de eventos que desestabilizou o pacto democrático brasileiro (Nobre, 2022 ), para outros, 2013 evidenciou as falhas de gestão dos governos estaduais e federais da década anterior (Cocco e Cava, 2018 ; Cava e Pereira, 2016 ). A “questão de 2013” está ligada a três dos cinco processos identificados. Primeiramente, às (iv) transformações da mídia e das tecnologias da informação, que provocaram mudanças na estrutura de sociabilidade dos brasileiros (ver seção 4 ). No que concerne às (iii) transformações da sociedade brasileira, nota-se que a contínua ultra-urbanização do país nos anos 1990-2000 revelou a incapacidade da estrutura pública das cidades de integrarem a população crescente (Nicolau, 2020 ). Este processo está associado à profunda fragmentação social e ao desmantelamento da composição da força de trabalho (Cocco, 2023 ), culminando na “situação híbrida” onde as “melhorias significativas nas condições de vida”, “na saúde básica, com políticas voltadas para grupos desfavorecidos”, não foram suficientes para eliminar os riscos de um retorno à precariedade para a população de baixa renda (Lima, 2017 , p. 323, tradução nossa). As (ii) evoluções do contexto econômico, especialmente no período entre os mandatos de Dilma Rousseff I e II (PT), reforçaram essa conjuntura. O fim do ciclo de expansão das commodities e o aumento dos gastos públicos no final do governo Lula II, fizeram com que a carga tributária sobre a população aumentasse a partir de 2010 (Carvalho, 2018 ). O programa econômico de Rousseff, que defendia o ajuste fiscal e a redução dos gastos públicos enquanto estimulava o setor privado por meio de concessões de lucros, enfrentou um contexto internacional menos favorável, culminando na recessão de 2014 (Carvalho, 2018 ). Embora diante de um quadro menos promissor, resta que o PT no Executivo não teve a mesma capacidade de mobilizar suas bases militantes como nas décadas de 1980 e 1990. Ainda assim, de início, as diversas organizações de junho de 2013 não eram, necessariamente ou propriamente, anti-PT. Elas estavam ligadas às lutas (principalmente) urbanas pelo acesso a serviços públicos de qualidade, inspiradas pelos movimentos de ocupação e revoltas internacionais da década, do Occupy Wall Street à(s) primavera(s) árabe(s) (Cocco, 2023 ; Cocco e Cava, 2018 ). As respostas do governo federal petista e dos estaduais ligados ao PT recrudesceram as tensões entre estes e a sociedade organizada, fomentando a aguda crise de representação política da época (Alonso, 2023 ), que não se resumia unicamente à questão de 2013. Ademais, as organizações de direita ativas no espaço digital à época conseguiram aproveitar o sentimento de insatisfação generalizada contra um sistema “ineficaz” e “corrompido”, propondo alternativas institucionais em oposição ao status quo petista (Nobre, 2022 ; Stefanoni, 2022 ) e suscitando a reorganização política de movimentos conservadores (Vilas Boas, 2023 ). Por outro lado, a crescente dependência do Estado e do capital privado que resumiram a financeirização do PT (Ribeiro, 2008 ) estão ligadas ao envolvimento de membros na rede de corrupção dos partidos brasileiros – bem que tal acepção seja aqui empregada com cautela (Avritzer; et al ., 2012 ; Avritzer e Filgueiras, 2011 ). Na época da fundação e institucionalização do PT (1980-1990), o sistema de financiamento dos partidos políticos brasileiros passou a ser misto, permitindo a arrecadação de recursos das esferas privada e pública. Ribeiro ( 2008 ) mostra que, até 1995, os recursos públicos disponibilizados aos partidos políticos pelo Fundo Especial de Assistência Financeira aos Partidos Políticos (Fundo Partidário) eram escassos; mas a alteração advinda com a promulgação da Lei 9.096/95 mudou rapidamente esse quadro, aumentando os valores disponíveis. Na época, o PT foi o partido que mais se beneficiou desses recursos, segundo Ribeiro ( 2008 ), pois eles se baseavam, entre outros, no número de deputados eleitos pelos partidos. Esses recursos sempre foram controlados pela direção nacional do PT e, apesar da imposição da Lei 9.096/95 referente ao repasse de 80% do valor total recebido do Fundo às instâncias regionais dos partidos, ele nunca obedeceu a essa regra (Ribeiro, 2008 ). Além disso, mesmo tendo sido historicamente uma questão controversa e mesmo tabu no partido (Secco, 2018 ), até 2015, o PT não proibia estatutariamente as doações de pessoas jurídicas privadas, desde que aceito pela legislação eleitoral (Partido dos Trabalhadores, 2015 ). Com suas derrotas nas presidenciais de 1994 e 1998, a direção nacional do PT mudou progressivamente o método de captação de recursos (Secco, 2018 ; Ribeiro, 2008 ); e, em 2000, foi introduzida uma política de captação por meio de doações privadas, com foco em grandes construtoras, bancos e outras empresas do setor de serviços (Ribeiro, 2008 ). Por exemplo, até 1999, menos de 1% da receita total do PT era proveniente de doações de pessoas jurídicas privadas; em 2000, esse número subiu para 13%, em 2002 para 17% e em 2004 para 27% (Ribeiro, 2008 ). Sem entrar em detalhes, este processo parece estar ligado à implicação deste e de outros partidos nos ditos “escândalos de corrupção” dos últimos 15 anos, cujos mais relevantes no debate público nacional foram os chamados “Mensalão” (2005-2012) e “Petrolão”, revelado pela controversa e hoje extinta “Operação Lava-Jato” (2014-2021). Demonstrou-se que o PT foi submetido a um lawfare em um cenário de crescente “judicialização da política” e “espetacularização da justiça” (Leite, 2015 ), em um processo que foi impulsionado pelas linhas editoriais dos grupos de mídia nacionais mais tradicionais que hiper-mediatizavam os casos implicando petistas (Amorim, 2015 ; Summa, 2009 ; Nassif, 2003 ). Não obstante, fato é que houve envolvimento do PT e que esses elementos, associados à contínua falta de regulamentação pública da estrutura oligopolista da mídia, ajudaram a consolidar o antipetismo. Se o PT esteve à frente de grandes e inéditas reformas institucionais que permitiram a melhora dos processos públicos de investigação e julgamento dos casos de corrupção desde Lula I, paradoxalmente, a percepção da população de que esta aumentara durante os mandatos do PT no Executivo é demonstrada nas pesquisas de opinião da época (Avritzer; et al ., 2012 ; Avritzer e Filgueiras, 2011 ). Voltaremos às questões das (iv) transformações da mídia e das tecnologias da informação na seção 4 . Para além do impacto da retórica moralista anti-corrupção no comportamento eleitoral, a pressão fiscal sofrida particularmente pela classe média a partir de 2014 foi um fator importante da consolidação do antipetismo, demonstrando que a teoria do voto econômico não caiu em obsolescência. Em setembro de 2022, quando perguntados sobre “o principal problema do Brasil hoje”, 37% dos respondentes disseram ser a “economia” e, 21%, as “questões sociais”; 14% responderam a “saúde”; 7%, a “corrupção”; e apenas 5% e 4%, respectivamente, disseram ser a “violência” e a “educação” (Genial/Quaest, 2023 ). Por fim, como o outrora “polo oposto” ao PT, representado pelo PSDB, não sobreviveu à exposição de seu próprio envolvimento nos casos de corrupção dos últimos 15 anos, o caminho ficou livre para que uma alternativa eleitoral viável emergisse no cenário político nacional. Há ainda uma última observação a ser feita sobre as (i) transformações no sistema político. Em 2015, durante a análise parlamentar do projeto de reforma na legislação sobre campanhas eleitorais, o Congresso Nacional votou pela retirada do artigo referente à proibição do financiamento privado de campanhas (Passarinho, 2015 ). Posteriormente, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) a consideraram inconstitucional (STF, 2015 ). Como resultado, o texto final, publicado em 2017, manteve a proibição de doações de “pessoas jurídicas públicas e privadas de qualquer espécie” (Brasil, 2017 a, Art. 31), além de vedar coligações partidárias nas proporcionais, estabelecer normas de acesso aos recursos do fundo partidário e restrições ao tempo de rádio e TV. Os efeitos das reformas de 2015 e 2017 foram sentidos em um cenário de ascensão da extrema-direita nas eleições de 2018 e 2022, o que ajudou a consolidar a hegemonia institucional das posições bolsonaristas sobre o campo da direita e da centro-direita brasileiras (Nobre, 2022 ). O sistema político outrora marcado pela polarização PT/PSDB e pela governança via presidencialismo de coalizão entre 1994 e 2013, tornou-se obsoleto (Nobre, 2022 ; Nicolau, 2020 ; Abranches, 2018 ). Se as reformas eleitorais eram necessárias, a liminar do STF de 2017 provocou ávida resposta do Legislativo, que homologou um fundo público homérico de financiamento eleitoral e partidário (Senado Federal, 2017 ) e o Orçamento Impositivo (Câmara dos Deputados, 2020 ), que está na origem do dito “Orçamento Secreto”, sob Bolsonaro (Neiva, 2022 ). Desde pelo menos 2015, com a eleição de Eduardo Cunha (do então Partido do Movimento Democrático Brasileiro, PMDB) à presidência da Câmara, o Legislativo foi se tornando mais independente do Executivo e mais polarizado ideologicamente (Nicolau, 2020 ). Essas são as possíveis condições para a chamada crise institucional dos poderes republicanos – Executivo, Legislativo e Judiciário – de 2014 a 2018, à qual se somou, a partir de 2015, o papel desempenhado pelas Forças Armadas (Victor, 2022 ). Segundo Fabio Victor ( 2022 ), a implicação dos militares na política brasileira não fora atenuada no processo de transição, mas progressivamente amplificada a partir do mandato interino do presidente Michel Temer (PMDB, 2016-2018), tomando proporções excepcionais durante o mandato presidencial de Bolsonaro. Em 2018, a aliança selada entre este e os representantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, impulsionaram, assim, a “politização da caserna” e a “militarização da Esplanada”, atestando para o fato de que a “questão militar” ainda constitui um desafio à consolidação da democracia brasileira (Victor, 2022 ). ). Ressalta-se que a consolidação e o fortalecimento da democracia brasileira conheceram, a partir de 2013, uma inversão de quadro (Avritzer, 2017 ) e o recrudescimento dos conflitos entre os poderes republicanos (Avritzer, 2016 ). A crise atingiu seu ápice em 8 de janeiro de 2023, mostrando que a galvanização do antagonismo social operada durante o mandato presidencial de Bolsonaro (Partido Social Liberal, PSL; depois, PL; 2018-2022) não se tratava de fenômeno conjuntural passageiro (Summa, 2023 ). Esses eventos, associados, corroboram a percepção dos brasileiros de um “Brasil dividido” em meio a uma profunda crise democrática.
Propõe-se assim que a análise da aparente polarização contemporânea não tome o fenômeno do bolsonarismo como específico ou na raiz dessa crise, mas como um dos problemas do processo de consolidação democrática. Segundo Marcos Nobre ( 2022 ) a “situação-limite” em que o país se encontra hoje não é apenas resultado das recentes transformações próprias à conjuntura nacional; mas um reflexo do “confronto de dois mundos” emergente no cenário internacional na última década, opondo forças democráticas e antidemocráticas. Se o governo de Bolsonaro operou uma “política da catástrofe” (Cocco, 2023 , tradução nossa) cuja estratégia de produção do caos inspiradas nas táticas da “guerra híbrida/informacional” norte-americana (Rocha; Solano e Medeiros, 2021 ; Bentes, 2018 ; Delgado, 2022 ) visou “destruir as bases culturais e institucionais do pacto de 1988 […] de forma abertamente autoritária” (Rocha; Solano e Medeiros, 2021 , p. 141, tradução nossa); o esgarçamento do tecido social brasileiro é mais profundo. A persistência do abismo histórico entre “os Brasis” de Ariano Suassuna (1927/2013) é expressa na análise da lógica dicotômica da evolução do pensamento social brasileiro (Santos, 1978 ), que refuta a possibilidade de uma “história única” de constituição das ideias políticas e sociais no país. Assim, a aparente polarização contemporânea deve ser analisada enquanto fenômeno sociopolítico histórico, fruto de processos estruturais e conjunturais, nacionais e internacionais, que influi sobre a consolidação democrática brasileira e que é, hoje, aprofundada e reforçada pelo advento do bolsonarismo.
Tomando como marco o período de transição democrática, pode-se identificar ao menos cinco processos, cujas transformações nas últimas quatro décadas esclarecem sobre o quadro contemporâneo do “Brasil dividido”. São eles: (i) a constituição e reformas do sistema político institucional; (ii) a evolução do contexto econômico nacional; (iii) a estrutura da sociedade brasileira; (iv) a estrutura dos meios de comunicação e das tecnologias da informação; e (v) influências do contexto político internacional. Este artigo se concentrará na análise dos quatro primeiros, limitando-se a destacar os trabalhos de autores que se dedicam ao contexto internacional ( seção 4 4. Transformações sociais, novas tecnologias e a polarização social A estrutura vigente da mídia brasileira e a atividade das organizações políticas e sociais que apoiavam Bolsonaro no meio digital desempenharam um importante papel na galvanização do sentimento de antipetismo e no impulsionamento de alternativas eleitorais ao PT (Nobre, 2022 ; Stefanoni, 2022 ). Abordamos os problemas relacionados à persistente constituição oligopolista da mídia brasileira e sua influência na percepção da população brasileira na seção anterior. Em termos de comunicação, a última década foi sobretudo marcada pelos avanços do acesso às novas tecnologias da informação. Estes não somente se deram de maneira súbita e exponencial, como provocaram mudanças na estrutura das relações sociais dos brasileiros (Nobre, 2022 ). Tem-se que a transformação das relações sociais na “era da informação” é marcada pelo advento e ampla difusão do acesso à internet e, por consequência, da emergência das “sociedades em rede” de Manuel Castells ( 2012 ). Paolo Gerbaudo ( 2012 ), em crítica a Castells, aprofunda a análise sobre o impacto do acesso à internet nas relações sociais a partir do estudo das mobilizações de ocupação dos anos 2010, do Occupy Wall Street à(s) primavera(s) árabe(s). Gerbaudo ( 2012 ) propõe que os limites entre a vida on-line e off-line não somente tornaram-se porosos, como passaram a ser elementos constituintes das relações sociais. Marcos Nobre ( 2022 ) atualiza o debate no contexto da desigualdade do acesso à internet no Brasil, introduzindo, à oposição de Gerbaudo entre “ outsiders conectados” e “ insiders desconectados”, a categoria dos “ outsiders desconectados”, sem nenhum acesso, cujo contingente somava, em 2023, 29 milhões de pessoas (NIC.br, 2023 ). Dos mais de 80% de brasileiros conectados, 99% utilizam a internet parcial ou unicamente pelo celular, e o uso de “aplicativos zerados” como WhatsApp e Facebook é significativo (Nobre, 2022 ). Não obstante, o número de domicílios brasileiros com acesso à internet quadruplicou entre 2008 e 2020, ultrapassando 80% do total destes e alcançando 156 milhões de usuários em 2023 (NIC.br, 2023 ). Em 2024, 34% dos brasileiros disseram se informar sobre política pela televisão, contra 32% pelas redes sociais e outros 16% por sites, blogs e portais de notícias (Genial/Quaest, 2024b ). Segundo esta pesquisa, nota-se ainda que, entre os respondentes que votaram em Lula no 2º turno das presidenciais de 2022, 43% declararam se informar sobre política pela televisão, contra 23% pelas redes sociais e 11% em sites. Quanto aos eleitores de Bolsonaro, 44% se informaram pelas redes sociais, contra 25% pela televisão e 13% em sites. Somente 4% dos eleitores de Lula e 3% dos eleitores de Bolsonaro declararam não ter costume de se informar sobre política. É interessante notar que não somente houve inversão do quadro da afinidade do grupo dos simpatizantes de Lula quanto à fiabilidade das informações veiculadas pelas mídias tradicionais desde o advento da crise da Lava Jato, como houve êxito do “partido digital bolsonarista” (Nobre, 2022 ) em galvanizar aderentes do grupo dos simpatizantes a Bolsonaro aos meios de comunicação via redes sociais. Marcos Nobre ( 2022 ) mostra que, sem qualquer base fundamentada no sistema de partidos políticos tradicionais, o bolsonarismo conseguiu captar o zeitgeist da nova “era da informação”. Sua atuação contínua nas redes – mesmo que, após as reformas do de 2015 e 2017, tenha sido conduzida por meio de compras ilegais de pacotes de disparos em massa de mensagens contra o PT (Mello, 2018 ) – constituiu um elemento importante da vitória de Bolsonaro em 2018 (Nunes e Traumann, 2023 ; Nobre, 2022 ). O debate acerca da regulamentação das regras de conteúdo e gestão das plataformas digitais, sobretudo das redes sociais, contou com esforços institucionais notáveis nos últimos anos (Amadeu, 2024 ). Entretanto, Amadeu ( 2024 ) ressalta que, aos desafios ordinários de aplicação da legislação vigente, soma-se hoje a forte politização dos casos, erroneamente identificados como “cerceamento da liberdade de expressão”. Essa retórica é frequentemente impulsionada por forças políticas aliadas a Bolsonaro, que criticam o forte papel desempenhado pelo STF na matéria e que recentemente contaram com o “apoio” controverso do multibilionário sul-africano e proprietário do X (antigo Twitter), Elon Musk (Sá Pessoa e Ortutay, 2024 ). Ademais, a contribuição em termos de expertise técnica de contestação das regras democráticas de Steve Bannon ao Bolsonaro teve um papel fundamental nas campanhas de desinformação sobre o processo eleitoral de 2022 e nas mobilizações em prol dos ataques do 8 de janeiro de 2023 (Kranish e Stanley-Becker, 2023 ; Dwoskin e Sá Pessoa, 2022 ). Assim, quanto às (v) transformações do contexto político internacional, nota-se que a ascensão de tendências ou movimentos chamados “populistas de direita, extrema-direita ou ultradireita” na América do Norte, na América Latina e na Europa, favoreceu o estabelecimento de vínculos com forças políticas nacionais, ajudando a impulsionar o recrudescimento do quadro político e social brasileiro (Barros e Lagos, 2022 ; Levitsky e Ziblatt, 2019 ). Esses parecem ser os corolários e as forças motrizes por trás da crise contemporânea das democracias ocidentais (Levitsky e Ziblatt, 2019 ). Sem nos aprofundarmos no debate sobre as definições desses grupos ou movimentos, ressalta-se que eles defendem o recrudescimento do antagonismo político como estratégia de ação política e de galvanização de afetos na população, fomentando ímpetos autoritários e antidemocráticos (Barros e Lagos, 2022 ; Levitsky e Ziblatt, 2019 ), contribuindo assim com as transformações da polarização sociopolítica brasileira. Paralelamente, a inegável melhoria nas condições de vida das camadas mais pobres da população entre os anos 2000 e 2010 não foi suficiente para superar os flagelos que esgarçam o tecido social brasileiro (Singer e Rugitsky, 2023 ). As desigualdades socioeconômicas e de acesso a serviços básicos, como saúde pública e segurança, não somente permaneceram, como foram reforçadas pela crise econômica de 2014 (Carvalho, 2018 ) e pela pandemia de covid-19 em 2020 (Carvalho, 2020 ). Se a gestão governamental criminosa durante a pandemia não foi suficiente para tornar Bolsonaro eleitoralmente inviável ou desmobilizar suas bases (Nunes e Traumann, 2023 ), os corolários da gestão catastrófica da “crise de segurança pública” durante os governos do PT (Deluchey, 2017 ) foi um dos “triunfos da campanha bolsonarista” de 2018 (Lynch, 2020 ). Ilustrando esse cenário, de 2000 a 2023, a população carcerária do Brasil aumentou em 257%, tornando-se a terceira maior em termos majoritários do mundo, atrás dos Estados Unidos e da China (Dyvik, 2024 ; Nascimento, 2024 ). No final de 2023, dos 832.295 presos, a maioria era negra (68,2%) e tinha entre 18 e 34 anos (62,6%), em um sistema prisional com um déficit de 230.578 vagas (ABSP/FBSP, 2023 ). Essa política contínua de encarceramento em massa não deve ser associada à pequena queda no número de “mortes violentas intencionais” (MVI) 10 e na taxa de mortalidade entre 2011-2022 (ABSP/FBSP, 2023 ). Isso porque a redução na taxa ponderada de “homicídios” entre 2017-2019 coincide com o aumento na taxa ponderada de “mortes violentas por causa indeterminada” 11 (MVCI); enquanto a redução desta entre 2019-2021 coincide com um novo aumento na taxa de “homicídios” (Cerqueira e Bueno, 2023 ). Assim, entre 2011-2021, o Estado foi incapaz de identificar 39,1% dos óbitos tratados como MVCI, o que representa uma média anual de 4.492 “homicídios ocultos” (Cerqueira e Bueno, 2023 , p. 15). Por fim, apesar dos R$ 124,8 bilhões investidos pelo Estado em segurança pública em 2022 (alta de 11,6% em relação a 2021), nota-se o aumento histórico do número de estupros (74.930 vítimas), de feminicídios (1.437), de registros de desaparecidos (74.061) e de estelionato (1.819.409, em alta de 326,3% desde 2018), segundo os dados do ABSP/FBSP ( 2023 ). Um último elemento importante a ser observado sobre os processos identificados nesta seção que incidem sobre a calcificação da polarização social é o fato de que o Brasil está passando por uma transição religiosa sem precedentes no mundo (Delgado, 2023 ), dita “a onda evangélica” (Oualalou, 2018 ). O número de adeptos a denominações evangélicas aumentou em 61,5% entre 2000 e 2010 e o número de templos evangélicos abertos aumentou em 250% entre 2000 e 2020, ultrapassando a marca de 100 mil em 2020 (Alves, 2023 ). No mesmo ano, o número de estabelecimentos religiosos católicos era de cerca de 15 mil (Alves, 2023 ). Projeções recentes de José Alves 12 ( 2024 , 2023 ) sugerem que os evangélicos representariam hoje 31,8% da população, contra 49,9% de católicos. Segundo Alves ( 2024 , 2023 ), até 2030, os primeiros poderão ultrapassar os segundos, contando, respectivamente, 39,8% de evangélicos, contra 38,6% de católicos. Esse cenário se dá em um contexto em que “fé e voto se tornaram inseparáveis na última década” (Nunes e Traumann, 2023 , p. 180). O reavivamento do fenômeno religioso no século XXI não é exclusivo à conjuntura nacional (Taylor, 2011 ) e o voto evangélico foi identificado como uma variável importante (embora não decisiva) nas eleições de 2002 a 2014 (Nicolau, 2020 ), um prenúncio das profundas mudanças sociais em curso no país (Oualalou, 2018 ). No 2º turno de 2010, Rousseff obteve a maioria dos votos católicos, evangélicos e “outros”, contra José Serra (PSDB); e em 2014, contra Aécio Neves (PSDB), o padrão seguiu, mas com margem reduzida (Nicolau, [-NICOLAU 2020 ] 13 ). Já no 2° turno das eleições de 2018, contra Fernando Haddad (PT), Bolsonaro (então PSL), obteve ampla maioria no segmento evangélico (cerca de 70% dos votos) e uma pequena vantagem entre católicos e “outros” (Nicolau, 2020 ). No 2° turno de 2022, Lula foi vitorioso entre os católicos (52% contra 39%) e, Bolsonaro, entre os evangélicos (56% contra 32%) (Nunes e Traumann, 2023 ). A novidade é que essa transição religiosa ocorre em meio às múltiplas crises da década de 2010-2020 ( seção 3 ) que culminaram na emergência de movimentos conservadores capazes de cativar a população religiosa ao incorporar certas demandas sociais comuns às diversas denominações evangélicas (Rocha; Solano e Medeiros, 2021 ; Nicolau, 2020 ). Além disso, alguns desses líderes religiosos construíram impérios imobiliários graças ao que Bruno Paes Manso chamou de “empreendedorismo transcendental” (Manso, 2023 ) e conseguiram traduzir seu capital social e econômico em capital político, como mostra o avanço do número de líderes religiosos eleitos a cargos Executivos e Legislativos na última década (Hinz; Vinuto e Coutinho, 2020 ). Em 2018, o cenário político era assim favorável ao sucesso da campanha de captação do voto evangélico por Bolsonaro (Manso, 2023 ). Embora católico, ele encarnou a defesa “dos valores da família” e do “povo de Deus”, ganhando o véu de “predestinado” após o atentado contra sua vida e adotou como mote o versículo bíblico de João 8.32, “conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (Manso, 2023 , p. 215). A “guerra santa bolsonarista” (Cruz, 2022 ) foi impulsionada pela disseminação de notícias falsas nas redes sociais – tais quais as associações dos candidatos petistas ao satanismo, ou as declarações falsas sobre o fechamento de igrejas e a legalização do aborto –, através de táticas inspiradas na “guerra híbrida/informacional” ( seção 2 ), cujo alcance aumentou exponencialmente graças ao uso das novas tecnologias da informação (Manso, 2023 ; Nicolau, 2020 ). Não obstante, duas nuances precisam ser levadas em conta. Os dados nos quais se baseiam as análises da relação entre transição religiosa e comportamento eleitoral não estão atualizados, tendendo assim a homogeneizar a ampla miríade de denominações religiosas evangélicas (Alves, 2024 , 2023 ) e exagerar a “hipótese de afinidade conservadora” entre o bolsonarismo e os evangélicos (Nicolau, 2020 ). Por exemplo, a mobilização bolsonarista em São Paulo no dia 25 de fevereiro de 2024 mostrou que o perfil de “crentes mobilizáveis”, adeptos da ideia da “batalha espiritual”, não é homogêneo, sendo a maioria dos presentes de denominação católica (Trigo, 2024 ; Sardinha, 2024 ). Ela também mostrou que a capacidade de mobilização dos líderes religiosos bolsonaristas não só diminuiu, como está mais pulverizada, segundo Leonardo Queiroz (Medo e Delírio, 2024 ), ao passo que muitos fiéis não toleram o uso da religião como “arma política” (Queiroz, 2024 , 2022). ). Deve-se observar também que a distinção proposta visa facilitar a demonstração da análise e, portanto, é ideal-típica e não sistemática, uma vez que os processos não podem ser analisados independentemente e não excluem a incidência de outras variáveis não abordadas neste artigo. Por fim, dado que nos últimos 40 anos o PT conquistou um papel central no “sistema partidário mais fragmentado do mundo” (Nicolau, 2020 , p. 79), a análise proposta não pode se furtar de abordar o papel do PT, exemplificado à luz de uma provocação frequente no debate político “polarizado” nos últimos dez anos: “mas e o PT, hein?” 8 .
3. Política, economia e a transformação da configuração da polarização brasileira
No que concerne o processo (i) de constituição e reformas do sistema político institucional brasileiro, destaca-se que as transformações estruturais deste tiveram impactos na configuração da oferta política nacional e no rearranjo das forças em oposição (Nicolau, 2020 ; Avritzer, 2019 ; Rodrigues, 2006 ). Esses tornaram o campo de disputas políticas permeável ao (re)ssurgimento de um sentimento de desconfiança institucional (Avritzer e Filgueiras, 2011 ), cenário em que floresceram discursos galvanizando polarizações políticas e sociais. A reestruturação do sistema partidário pós-ditadura foi marcada por uma grande instabilidade desde a primeira década pós-1988, expressa na ultrafragmentação dos partidos, já associada à “crise dos partidos tradicionais” (Nicolau, 2018 , 2017 ). Nicolau ( 2018 , 2017 ) mostra que, dos 68 partidos organizados entre 1985 e 1994, os já consolidados apresentaram fraca expressão eleitoral à época. Ademais, tinha-se que a identificação da população aos partidos brasileiros era de tipo “negativa”, contrastando com as tendências de identificação positiva observadas em outros regimes democráticos, como no Reino Unido, na Alemanha e nos Estados Unidos (Nicolau, 2020 ) 9 . De 1994 a 2014, ainda que marcado por uma forte fragmentação e fisiologismo, esse sistema se estabilizou em torno da predominância da competição bipartidária excessivamente focada em eleições nacionais, opondo o PT ao PSDB (Nicolau, 2020 ).
Nicolau ( 2020 ) mostra que, desde pelo menos as eleições presidenciais de 2006, houve um recrudescimento da retórica antagônica/polarizante, reforçada pelo processo de ultraprofissionalização das campanhas eleitorais. Para atrair votos, ambos os partidos adotaram estratégias para reduzir a dispersão de seus grupos de eleitores, galvanizando a rejeição do grupo oposto (Borges, Vidigal, 2018 ), como ilustram os exemplos dos slogans “PT-pró social contra o PSDB-anti-políticas redistributivas”; ou do “PSDB-íntegro contra o PT-corrupto”. As mudanças no perfil sociológico dos eleitores pró-PT e pró-PSDB entre 2006 e 2014 destacaram a crescente polarização do eleitorado brasileiro, marcada pela condição socioeconômica e região de residência do eleitor, e menos pela identificação positiva a uma ideologia própria a cada partido (Nicolau, 2020 ; Borges, Vidigal, 2018 ). As campanhas eleitorais adotadas na época fomentaram essa lógica, tornando-se mais agressivas, o que culminou na acirrada disputa de 2014, interpretada como um grande ponto de inflexão no rearranjo eleitoral (Borges, Vidigal, 2018 ). É a esse período que se atribui a ascensão e consolidação do sentimento de rejeição específico ao PT, o antipetismo (Nicolau, 2020 ). Embora reforçado desde 2014 pela ascensão de movimentos populistas reacionários de direita que impulsionaram o fenômeno bolsonarista (Lynch e Cassimiro, 2022 ), tem-se que o antipetismo cresceu “em função das crises econômicas e das avaliações negativas do governo do PT” (Bello, 2023 , p. 48). O PSDB não conseguiu mobilizar totalmente esse eleitorado heterogêneo e sem perfil ideológico claro (Borges e Vidigal, 2018 , p. 79); e a estratégia petista de organização “de cima para baixo” de suas bases, associada à crise de junho de 2013, à recessão econômica e aos desdobramentos dos escândalos de corrupção nos anos seguintes, resultou na estagnação e no declínio da hegemonia eleitoral do PT (Samuels e Zucco, 2018 ), como veremos. Não obstante, este quadro não impediu que os candidatos do PT ganhassem consecutivamente as eleições presidenciais de 2006 a 2014.
Enquanto as análises da expressão eleitoral do fenômeno do “lulismo” – conceito de André Singer ( 2012 ) referente à associação do “pacto conservador” à “reforma gradativa” e implementação de políticas de redistribuição de renda e de fácil acesso ao crédito consignado – acolado à vigência do modelo do presidencialismo de coalizão (Abranches, 2018 ) esclarecem sobre as condições que tornaram essas vitórias possíveis, dois outros efeitos contundentes das transformações estruturais abordadas devem ser destacados no caso do PT: sua profissionalização e financeirização. Um dos corolários da profissionalização do partido foi o afastamento, ou mesmo a perda, de suas raízes militantes (Ribeiro, 2008 ), fato destacado pela incompreensão e má administração dos petistas da crise iniciada quando das manifestações constituídas por um complexo mosaico de atores, sem direção única, de junho de 2013 (Alonso, 2023 ). Avritzer ( 2016 ) atribui as origens destas aos limites históricos da participação política no Brasil que foram, em alguns aspectos, evidenciados durante as administrações executivas do PT. Por exemplo, entre 2009 e 2012, a incapacidade do governo de gerenciar o conflito político engendrado pelas mobilizações que se opunham ao plano de construção da usina hidrelétrica de Belo Monte operou uma ruptura no campo político da esquerda (Avritzer, 2016 ). Segundo Lincoln Secco ( 2018 ), a progressão de manifestações em 2012 e a eclosão das de junho do ano seguinte evidenciaram a defasagem entre as formas históricas de mobilização social preconizadas pelo PT e as “novas”, mais autonomistas e ativas no meio digital, de 2013 (Secco, 2018 , p. 270). Se para uns, junho de 2013 inaugurou uma sequência de eventos que desestabilizou o pacto democrático brasileiro (Nobre, 2022 ), para outros, 2013 evidenciou as falhas de gestão dos governos estaduais e federais da década anterior (Cocco e Cava, 2018 ; Cava e Pereira, 2016 ).
A “questão de 2013” está ligada a três dos cinco processos identificados. Primeiramente, às (iv) transformações da mídia e das tecnologias da informação, que provocaram mudanças na estrutura de sociabilidade dos brasileiros (ver seção 4 4. Transformações sociais, novas tecnologias e a polarização social A estrutura vigente da mídia brasileira e a atividade das organizações políticas e sociais que apoiavam Bolsonaro no meio digital desempenharam um importante papel na galvanização do sentimento de antipetismo e no impulsionamento de alternativas eleitorais ao PT (Nobre, 2022 ; Stefanoni, 2022 ). Abordamos os problemas relacionados à persistente constituição oligopolista da mídia brasileira e sua influência na percepção da população brasileira na seção anterior. Em termos de comunicação, a última década foi sobretudo marcada pelos avanços do acesso às novas tecnologias da informação. Estes não somente se deram de maneira súbita e exponencial, como provocaram mudanças na estrutura das relações sociais dos brasileiros (Nobre, 2022 ). Tem-se que a transformação das relações sociais na “era da informação” é marcada pelo advento e ampla difusão do acesso à internet e, por consequência, da emergência das “sociedades em rede” de Manuel Castells ( 2012 ). Paolo Gerbaudo ( 2012 ), em crítica a Castells, aprofunda a análise sobre o impacto do acesso à internet nas relações sociais a partir do estudo das mobilizações de ocupação dos anos 2010, do Occupy Wall Street à(s) primavera(s) árabe(s). Gerbaudo ( 2012 ) propõe que os limites entre a vida on-line e off-line não somente tornaram-se porosos, como passaram a ser elementos constituintes das relações sociais. Marcos Nobre ( 2022 ) atualiza o debate no contexto da desigualdade do acesso à internet no Brasil, introduzindo, à oposição de Gerbaudo entre “ outsiders conectados” e “ insiders desconectados”, a categoria dos “ outsiders desconectados”, sem nenhum acesso, cujo contingente somava, em 2023, 29 milhões de pessoas (NIC.br, 2023 ). Dos mais de 80% de brasileiros conectados, 99% utilizam a internet parcial ou unicamente pelo celular, e o uso de “aplicativos zerados” como WhatsApp e Facebook é significativo (Nobre, 2022 ). Não obstante, o número de domicílios brasileiros com acesso à internet quadruplicou entre 2008 e 2020, ultrapassando 80% do total destes e alcançando 156 milhões de usuários em 2023 (NIC.br, 2023 ). Em 2024, 34% dos brasileiros disseram se informar sobre política pela televisão, contra 32% pelas redes sociais e outros 16% por sites, blogs e portais de notícias (Genial/Quaest, 2024b ). Segundo esta pesquisa, nota-se ainda que, entre os respondentes que votaram em Lula no 2º turno das presidenciais de 2022, 43% declararam se informar sobre política pela televisão, contra 23% pelas redes sociais e 11% em sites. Quanto aos eleitores de Bolsonaro, 44% se informaram pelas redes sociais, contra 25% pela televisão e 13% em sites. Somente 4% dos eleitores de Lula e 3% dos eleitores de Bolsonaro declararam não ter costume de se informar sobre política. É interessante notar que não somente houve inversão do quadro da afinidade do grupo dos simpatizantes de Lula quanto à fiabilidade das informações veiculadas pelas mídias tradicionais desde o advento da crise da Lava Jato, como houve êxito do “partido digital bolsonarista” (Nobre, 2022 ) em galvanizar aderentes do grupo dos simpatizantes a Bolsonaro aos meios de comunicação via redes sociais. Marcos Nobre ( 2022 ) mostra que, sem qualquer base fundamentada no sistema de partidos políticos tradicionais, o bolsonarismo conseguiu captar o zeitgeist da nova “era da informação”. Sua atuação contínua nas redes – mesmo que, após as reformas do de 2015 e 2017, tenha sido conduzida por meio de compras ilegais de pacotes de disparos em massa de mensagens contra o PT (Mello, 2018 ) – constituiu um elemento importante da vitória de Bolsonaro em 2018 (Nunes e Traumann, 2023 ; Nobre, 2022 ). O debate acerca da regulamentação das regras de conteúdo e gestão das plataformas digitais, sobretudo das redes sociais, contou com esforços institucionais notáveis nos últimos anos (Amadeu, 2024 ). Entretanto, Amadeu ( 2024 ) ressalta que, aos desafios ordinários de aplicação da legislação vigente, soma-se hoje a forte politização dos casos, erroneamente identificados como “cerceamento da liberdade de expressão”. Essa retórica é frequentemente impulsionada por forças políticas aliadas a Bolsonaro, que criticam o forte papel desempenhado pelo STF na matéria e que recentemente contaram com o “apoio” controverso do multibilionário sul-africano e proprietário do X (antigo Twitter), Elon Musk (Sá Pessoa e Ortutay, 2024 ). Ademais, a contribuição em termos de expertise técnica de contestação das regras democráticas de Steve Bannon ao Bolsonaro teve um papel fundamental nas campanhas de desinformação sobre o processo eleitoral de 2022 e nas mobilizações em prol dos ataques do 8 de janeiro de 2023 (Kranish e Stanley-Becker, 2023 ; Dwoskin e Sá Pessoa, 2022 ). Assim, quanto às (v) transformações do contexto político internacional, nota-se que a ascensão de tendências ou movimentos chamados “populistas de direita, extrema-direita ou ultradireita” na América do Norte, na América Latina e na Europa, favoreceu o estabelecimento de vínculos com forças políticas nacionais, ajudando a impulsionar o recrudescimento do quadro político e social brasileiro (Barros e Lagos, 2022 ; Levitsky e Ziblatt, 2019 ). Esses parecem ser os corolários e as forças motrizes por trás da crise contemporânea das democracias ocidentais (Levitsky e Ziblatt, 2019 ). Sem nos aprofundarmos no debate sobre as definições desses grupos ou movimentos, ressalta-se que eles defendem o recrudescimento do antagonismo político como estratégia de ação política e de galvanização de afetos na população, fomentando ímpetos autoritários e antidemocráticos (Barros e Lagos, 2022 ; Levitsky e Ziblatt, 2019 ), contribuindo assim com as transformações da polarização sociopolítica brasileira. Paralelamente, a inegável melhoria nas condições de vida das camadas mais pobres da população entre os anos 2000 e 2010 não foi suficiente para superar os flagelos que esgarçam o tecido social brasileiro (Singer e Rugitsky, 2023 ). As desigualdades socioeconômicas e de acesso a serviços básicos, como saúde pública e segurança, não somente permaneceram, como foram reforçadas pela crise econômica de 2014 (Carvalho, 2018 ) e pela pandemia de covid-19 em 2020 (Carvalho, 2020 ). Se a gestão governamental criminosa durante a pandemia não foi suficiente para tornar Bolsonaro eleitoralmente inviável ou desmobilizar suas bases (Nunes e Traumann, 2023 ), os corolários da gestão catastrófica da “crise de segurança pública” durante os governos do PT (Deluchey, 2017 ) foi um dos “triunfos da campanha bolsonarista” de 2018 (Lynch, 2020 ). Ilustrando esse cenário, de 2000 a 2023, a população carcerária do Brasil aumentou em 257%, tornando-se a terceira maior em termos majoritários do mundo, atrás dos Estados Unidos e da China (Dyvik, 2024 ; Nascimento, 2024 ). No final de 2023, dos 832.295 presos, a maioria era negra (68,2%) e tinha entre 18 e 34 anos (62,6%), em um sistema prisional com um déficit de 230.578 vagas (ABSP/FBSP, 2023 ). Essa política contínua de encarceramento em massa não deve ser associada à pequena queda no número de “mortes violentas intencionais” (MVI) 10 e na taxa de mortalidade entre 2011-2022 (ABSP/FBSP, 2023 ). Isso porque a redução na taxa ponderada de “homicídios” entre 2017-2019 coincide com o aumento na taxa ponderada de “mortes violentas por causa indeterminada” 11 (MVCI); enquanto a redução desta entre 2019-2021 coincide com um novo aumento na taxa de “homicídios” (Cerqueira e Bueno, 2023 ). Assim, entre 2011-2021, o Estado foi incapaz de identificar 39,1% dos óbitos tratados como MVCI, o que representa uma média anual de 4.492 “homicídios ocultos” (Cerqueira e Bueno, 2023 , p. 15). Por fim, apesar dos R$ 124,8 bilhões investidos pelo Estado em segurança pública em 2022 (alta de 11,6% em relação a 2021), nota-se o aumento histórico do número de estupros (74.930 vítimas), de feminicídios (1.437), de registros de desaparecidos (74.061) e de estelionato (1.819.409, em alta de 326,3% desde 2018), segundo os dados do ABSP/FBSP ( 2023 ). Um último elemento importante a ser observado sobre os processos identificados nesta seção que incidem sobre a calcificação da polarização social é o fato de que o Brasil está passando por uma transição religiosa sem precedentes no mundo (Delgado, 2023 ), dita “a onda evangélica” (Oualalou, 2018 ). O número de adeptos a denominações evangélicas aumentou em 61,5% entre 2000 e 2010 e o número de templos evangélicos abertos aumentou em 250% entre 2000 e 2020, ultrapassando a marca de 100 mil em 2020 (Alves, 2023 ). No mesmo ano, o número de estabelecimentos religiosos católicos era de cerca de 15 mil (Alves, 2023 ). Projeções recentes de José Alves 12 ( 2024 , 2023 ) sugerem que os evangélicos representariam hoje 31,8% da população, contra 49,9% de católicos. Segundo Alves ( 2024 , 2023 ), até 2030, os primeiros poderão ultrapassar os segundos, contando, respectivamente, 39,8% de evangélicos, contra 38,6% de católicos. Esse cenário se dá em um contexto em que “fé e voto se tornaram inseparáveis na última década” (Nunes e Traumann, 2023 , p. 180). O reavivamento do fenômeno religioso no século XXI não é exclusivo à conjuntura nacional (Taylor, 2011 ) e o voto evangélico foi identificado como uma variável importante (embora não decisiva) nas eleições de 2002 a 2014 (Nicolau, 2020 ), um prenúncio das profundas mudanças sociais em curso no país (Oualalou, 2018 ). No 2º turno de 2010, Rousseff obteve a maioria dos votos católicos, evangélicos e “outros”, contra José Serra (PSDB); e em 2014, contra Aécio Neves (PSDB), o padrão seguiu, mas com margem reduzida (Nicolau, [-NICOLAU 2020 ] 13 ). Já no 2° turno das eleições de 2018, contra Fernando Haddad (PT), Bolsonaro (então PSL), obteve ampla maioria no segmento evangélico (cerca de 70% dos votos) e uma pequena vantagem entre católicos e “outros” (Nicolau, 2020 ). No 2° turno de 2022, Lula foi vitorioso entre os católicos (52% contra 39%) e, Bolsonaro, entre os evangélicos (56% contra 32%) (Nunes e Traumann, 2023 ). A novidade é que essa transição religiosa ocorre em meio às múltiplas crises da década de 2010-2020 ( seção 3 ) que culminaram na emergência de movimentos conservadores capazes de cativar a população religiosa ao incorporar certas demandas sociais comuns às diversas denominações evangélicas (Rocha; Solano e Medeiros, 2021 ; Nicolau, 2020 ). Além disso, alguns desses líderes religiosos construíram impérios imobiliários graças ao que Bruno Paes Manso chamou de “empreendedorismo transcendental” (Manso, 2023 ) e conseguiram traduzir seu capital social e econômico em capital político, como mostra o avanço do número de líderes religiosos eleitos a cargos Executivos e Legislativos na última década (Hinz; Vinuto e Coutinho, 2020 ). Em 2018, o cenário político era assim favorável ao sucesso da campanha de captação do voto evangélico por Bolsonaro (Manso, 2023 ). Embora católico, ele encarnou a defesa “dos valores da família” e do “povo de Deus”, ganhando o véu de “predestinado” após o atentado contra sua vida e adotou como mote o versículo bíblico de João 8.32, “conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (Manso, 2023 , p. 215). A “guerra santa bolsonarista” (Cruz, 2022 ) foi impulsionada pela disseminação de notícias falsas nas redes sociais – tais quais as associações dos candidatos petistas ao satanismo, ou as declarações falsas sobre o fechamento de igrejas e a legalização do aborto –, através de táticas inspiradas na “guerra híbrida/informacional” ( seção 2 ), cujo alcance aumentou exponencialmente graças ao uso das novas tecnologias da informação (Manso, 2023 ; Nicolau, 2020 ). Não obstante, duas nuances precisam ser levadas em conta. Os dados nos quais se baseiam as análises da relação entre transição religiosa e comportamento eleitoral não estão atualizados, tendendo assim a homogeneizar a ampla miríade de denominações religiosas evangélicas (Alves, 2024 , 2023 ) e exagerar a “hipótese de afinidade conservadora” entre o bolsonarismo e os evangélicos (Nicolau, 2020 ). Por exemplo, a mobilização bolsonarista em São Paulo no dia 25 de fevereiro de 2024 mostrou que o perfil de “crentes mobilizáveis”, adeptos da ideia da “batalha espiritual”, não é homogêneo, sendo a maioria dos presentes de denominação católica (Trigo, 2024 ; Sardinha, 2024 ). Ela também mostrou que a capacidade de mobilização dos líderes religiosos bolsonaristas não só diminuiu, como está mais pulverizada, segundo Leonardo Queiroz (Medo e Delírio, 2024 ), ao passo que muitos fiéis não toleram o uso da religião como “arma política” (Queiroz, 2024 , 2022). ). No que concerne às (iii) transformações da sociedade brasileira, nota-se que a contínua ultra-urbanização do país nos anos 1990-2000 revelou a incapacidade da estrutura pública das cidades de integrarem a população crescente (Nicolau, 2020 ). Este processo está associado à profunda fragmentação social e ao desmantelamento da composição da força de trabalho (Cocco, 2023 ), culminando na “situação híbrida” onde as “melhorias significativas nas condições de vida”, “na saúde básica, com políticas voltadas para grupos desfavorecidos”, não foram suficientes para eliminar os riscos de um retorno à precariedade para a população de baixa renda (Lima, 2017 , p. 323, tradução nossa). As (ii) evoluções do contexto econômico, especialmente no período entre os mandatos de Dilma Rousseff I e II (PT), reforçaram essa conjuntura. O fim do ciclo de expansão das commodities e o aumento dos gastos públicos no final do governo Lula II, fizeram com que a carga tributária sobre a população aumentasse a partir de 2010 (Carvalho, 2018 ). O programa econômico de Rousseff, que defendia o ajuste fiscal e a redução dos gastos públicos enquanto estimulava o setor privado por meio de concessões de lucros, enfrentou um contexto internacional menos favorável, culminando na recessão de 2014 (Carvalho, 2018 ).
Embora diante de um quadro menos promissor, resta que o PT no Executivo não teve a mesma capacidade de mobilizar suas bases militantes como nas décadas de 1980 e 1990. Ainda assim, de início, as diversas organizações de junho de 2013 não eram, necessariamente ou propriamente, anti-PT. Elas estavam ligadas às lutas (principalmente) urbanas pelo acesso a serviços públicos de qualidade, inspiradas pelos movimentos de ocupação e revoltas internacionais da década, do Occupy Wall Street à(s) primavera(s) árabe(s) (Cocco, 2023 ; Cocco e Cava, 2018 ). As respostas do governo federal petista e dos estaduais ligados ao PT recrudesceram as tensões entre estes e a sociedade organizada, fomentando a aguda crise de representação política da época (Alonso, 2023 ), que não se resumia unicamente à questão de 2013. Ademais, as organizações de direita ativas no espaço digital à época conseguiram aproveitar o sentimento de insatisfação generalizada contra um sistema “ineficaz” e “corrompido”, propondo alternativas institucionais em oposição ao status quo petista (Nobre, 2022 ; Stefanoni, 2022 ) e suscitando a reorganização política de movimentos conservadores (Vilas Boas, 2023 ).
Por outro lado, a crescente dependência do Estado e do capital privado que resumiram a financeirização do PT (Ribeiro, 2008 ) estão ligadas ao envolvimento de membros na rede de corrupção dos partidos brasileiros – bem que tal acepção seja aqui empregada com cautela (Avritzer; et al ., 2012 ; Avritzer e Filgueiras, 2011 ). Na época da fundação e institucionalização do PT (1980-1990), o sistema de financiamento dos partidos políticos brasileiros passou a ser misto, permitindo a arrecadação de recursos das esferas privada e pública. Ribeiro ( 2008 ) mostra que, até 1995, os recursos públicos disponibilizados aos partidos políticos pelo Fundo Especial de Assistência Financeira aos Partidos Políticos (Fundo Partidário) eram escassos; mas a alteração advinda com a promulgação da Lei 9.096/95 mudou rapidamente esse quadro, aumentando os valores disponíveis. Na época, o PT foi o partido que mais se beneficiou desses recursos, segundo Ribeiro ( 2008 ), pois eles se baseavam, entre outros, no número de deputados eleitos pelos partidos. Esses recursos sempre foram controlados pela direção nacional do PT e, apesar da imposição da Lei 9.096/95 referente ao repasse de 80% do valor total recebido do Fundo às instâncias regionais dos partidos, ele nunca obedeceu a essa regra (Ribeiro, 2008 ). Além disso, mesmo tendo sido historicamente uma questão controversa e mesmo tabu no partido (Secco, 2018 ), até 2015, o PT não proibia estatutariamente as doações de pessoas jurídicas privadas, desde que aceito pela legislação eleitoral (Partido dos Trabalhadores, 2015 ). Com suas derrotas nas presidenciais de 1994 e 1998, a direção nacional do PT mudou progressivamente o método de captação de recursos (Secco, 2018 ; Ribeiro, 2008 ); e, em 2000, foi introduzida uma política de captação por meio de doações privadas, com foco em grandes construtoras, bancos e outras empresas do setor de serviços (Ribeiro, 2008 ). Por exemplo, até 1999, menos de 1% da receita total do PT era proveniente de doações de pessoas jurídicas privadas; em 2000, esse número subiu para 13%, em 2002 para 17% e em 2004 para 27% (Ribeiro, 2008 ). Sem entrar em detalhes, este processo parece estar ligado à implicação deste e de outros partidos nos ditos “escândalos de corrupção” dos últimos 15 anos, cujos mais relevantes no debate público nacional foram os chamados “Mensalão” (2005-2012) e “Petrolão”, revelado pela controversa e hoje extinta “Operação Lava-Jato” (2014-2021).
Demonstrou-se que o PT foi submetido a um lawfare em um cenário de crescente “judicialização da política” e “espetacularização da justiça” (Leite, 2015 ), em um processo que foi impulsionado pelas linhas editoriais dos grupos de mídia nacionais mais tradicionais que hiper-mediatizavam os casos implicando petistas (Amorim, 2015 ; Summa, 2009 ; Nassif, 2003 ). Não obstante, fato é que houve envolvimento do PT e que esses elementos, associados à contínua falta de regulamentação pública da estrutura oligopolista da mídia, ajudaram a consolidar o antipetismo. Se o PT esteve à frente de grandes e inéditas reformas institucionais que permitiram a melhora dos processos públicos de investigação e julgamento dos casos de corrupção desde Lula I, paradoxalmente, a percepção da população de que esta aumentara durante os mandatos do PT no Executivo é demonstrada nas pesquisas de opinião da época (Avritzer; et al ., 2012 ; Avritzer e Filgueiras, 2011 ). Voltaremos às questões das (iv) transformações da mídia e das tecnologias da informação na seção 4 4. Transformações sociais, novas tecnologias e a polarização social A estrutura vigente da mídia brasileira e a atividade das organizações políticas e sociais que apoiavam Bolsonaro no meio digital desempenharam um importante papel na galvanização do sentimento de antipetismo e no impulsionamento de alternativas eleitorais ao PT (Nobre, 2022 ; Stefanoni, 2022 ). Abordamos os problemas relacionados à persistente constituição oligopolista da mídia brasileira e sua influência na percepção da população brasileira na seção anterior. Em termos de comunicação, a última década foi sobretudo marcada pelos avanços do acesso às novas tecnologias da informação. Estes não somente se deram de maneira súbita e exponencial, como provocaram mudanças na estrutura das relações sociais dos brasileiros (Nobre, 2022 ). Tem-se que a transformação das relações sociais na “era da informação” é marcada pelo advento e ampla difusão do acesso à internet e, por consequência, da emergência das “sociedades em rede” de Manuel Castells ( 2012 ). Paolo Gerbaudo ( 2012 ), em crítica a Castells, aprofunda a análise sobre o impacto do acesso à internet nas relações sociais a partir do estudo das mobilizações de ocupação dos anos 2010, do Occupy Wall Street à(s) primavera(s) árabe(s). Gerbaudo ( 2012 ) propõe que os limites entre a vida on-line e off-line não somente tornaram-se porosos, como passaram a ser elementos constituintes das relações sociais. Marcos Nobre ( 2022 ) atualiza o debate no contexto da desigualdade do acesso à internet no Brasil, introduzindo, à oposição de Gerbaudo entre “ outsiders conectados” e “ insiders desconectados”, a categoria dos “ outsiders desconectados”, sem nenhum acesso, cujo contingente somava, em 2023, 29 milhões de pessoas (NIC.br, 2023 ). Dos mais de 80% de brasileiros conectados, 99% utilizam a internet parcial ou unicamente pelo celular, e o uso de “aplicativos zerados” como WhatsApp e Facebook é significativo (Nobre, 2022 ). Não obstante, o número de domicílios brasileiros com acesso à internet quadruplicou entre 2008 e 2020, ultrapassando 80% do total destes e alcançando 156 milhões de usuários em 2023 (NIC.br, 2023 ). Em 2024, 34% dos brasileiros disseram se informar sobre política pela televisão, contra 32% pelas redes sociais e outros 16% por sites, blogs e portais de notícias (Genial/Quaest, 2024b ). Segundo esta pesquisa, nota-se ainda que, entre os respondentes que votaram em Lula no 2º turno das presidenciais de 2022, 43% declararam se informar sobre política pela televisão, contra 23% pelas redes sociais e 11% em sites. Quanto aos eleitores de Bolsonaro, 44% se informaram pelas redes sociais, contra 25% pela televisão e 13% em sites. Somente 4% dos eleitores de Lula e 3% dos eleitores de Bolsonaro declararam não ter costume de se informar sobre política. É interessante notar que não somente houve inversão do quadro da afinidade do grupo dos simpatizantes de Lula quanto à fiabilidade das informações veiculadas pelas mídias tradicionais desde o advento da crise da Lava Jato, como houve êxito do “partido digital bolsonarista” (Nobre, 2022 ) em galvanizar aderentes do grupo dos simpatizantes a Bolsonaro aos meios de comunicação via redes sociais. Marcos Nobre ( 2022 ) mostra que, sem qualquer base fundamentada no sistema de partidos políticos tradicionais, o bolsonarismo conseguiu captar o zeitgeist da nova “era da informação”. Sua atuação contínua nas redes – mesmo que, após as reformas do de 2015 e 2017, tenha sido conduzida por meio de compras ilegais de pacotes de disparos em massa de mensagens contra o PT (Mello, 2018 ) – constituiu um elemento importante da vitória de Bolsonaro em 2018 (Nunes e Traumann, 2023 ; Nobre, 2022 ). O debate acerca da regulamentação das regras de conteúdo e gestão das plataformas digitais, sobretudo das redes sociais, contou com esforços institucionais notáveis nos últimos anos (Amadeu, 2024 ). Entretanto, Amadeu ( 2024 ) ressalta que, aos desafios ordinários de aplicação da legislação vigente, soma-se hoje a forte politização dos casos, erroneamente identificados como “cerceamento da liberdade de expressão”. Essa retórica é frequentemente impulsionada por forças políticas aliadas a Bolsonaro, que criticam o forte papel desempenhado pelo STF na matéria e que recentemente contaram com o “apoio” controverso do multibilionário sul-africano e proprietário do X (antigo Twitter), Elon Musk (Sá Pessoa e Ortutay, 2024 ). Ademais, a contribuição em termos de expertise técnica de contestação das regras democráticas de Steve Bannon ao Bolsonaro teve um papel fundamental nas campanhas de desinformação sobre o processo eleitoral de 2022 e nas mobilizações em prol dos ataques do 8 de janeiro de 2023 (Kranish e Stanley-Becker, 2023 ; Dwoskin e Sá Pessoa, 2022 ). Assim, quanto às (v) transformações do contexto político internacional, nota-se que a ascensão de tendências ou movimentos chamados “populistas de direita, extrema-direita ou ultradireita” na América do Norte, na América Latina e na Europa, favoreceu o estabelecimento de vínculos com forças políticas nacionais, ajudando a impulsionar o recrudescimento do quadro político e social brasileiro (Barros e Lagos, 2022 ; Levitsky e Ziblatt, 2019 ). Esses parecem ser os corolários e as forças motrizes por trás da crise contemporânea das democracias ocidentais (Levitsky e Ziblatt, 2019 ). Sem nos aprofundarmos no debate sobre as definições desses grupos ou movimentos, ressalta-se que eles defendem o recrudescimento do antagonismo político como estratégia de ação política e de galvanização de afetos na população, fomentando ímpetos autoritários e antidemocráticos (Barros e Lagos, 2022 ; Levitsky e Ziblatt, 2019 ), contribuindo assim com as transformações da polarização sociopolítica brasileira. Paralelamente, a inegável melhoria nas condições de vida das camadas mais pobres da população entre os anos 2000 e 2010 não foi suficiente para superar os flagelos que esgarçam o tecido social brasileiro (Singer e Rugitsky, 2023 ). As desigualdades socioeconômicas e de acesso a serviços básicos, como saúde pública e segurança, não somente permaneceram, como foram reforçadas pela crise econômica de 2014 (Carvalho, 2018 ) e pela pandemia de covid-19 em 2020 (Carvalho, 2020 ). Se a gestão governamental criminosa durante a pandemia não foi suficiente para tornar Bolsonaro eleitoralmente inviável ou desmobilizar suas bases (Nunes e Traumann, 2023 ), os corolários da gestão catastrófica da “crise de segurança pública” durante os governos do PT (Deluchey, 2017 ) foi um dos “triunfos da campanha bolsonarista” de 2018 (Lynch, 2020 ). Ilustrando esse cenário, de 2000 a 2023, a população carcerária do Brasil aumentou em 257%, tornando-se a terceira maior em termos majoritários do mundo, atrás dos Estados Unidos e da China (Dyvik, 2024 ; Nascimento, 2024 ). No final de 2023, dos 832.295 presos, a maioria era negra (68,2%) e tinha entre 18 e 34 anos (62,6%), em um sistema prisional com um déficit de 230.578 vagas (ABSP/FBSP, 2023 ). Essa política contínua de encarceramento em massa não deve ser associada à pequena queda no número de “mortes violentas intencionais” (MVI) 10 e na taxa de mortalidade entre 2011-2022 (ABSP/FBSP, 2023 ). Isso porque a redução na taxa ponderada de “homicídios” entre 2017-2019 coincide com o aumento na taxa ponderada de “mortes violentas por causa indeterminada” 11 (MVCI); enquanto a redução desta entre 2019-2021 coincide com um novo aumento na taxa de “homicídios” (Cerqueira e Bueno, 2023 ). Assim, entre 2011-2021, o Estado foi incapaz de identificar 39,1% dos óbitos tratados como MVCI, o que representa uma média anual de 4.492 “homicídios ocultos” (Cerqueira e Bueno, 2023 , p. 15). Por fim, apesar dos R$ 124,8 bilhões investidos pelo Estado em segurança pública em 2022 (alta de 11,6% em relação a 2021), nota-se o aumento histórico do número de estupros (74.930 vítimas), de feminicídios (1.437), de registros de desaparecidos (74.061) e de estelionato (1.819.409, em alta de 326,3% desde 2018), segundo os dados do ABSP/FBSP ( 2023 ). Um último elemento importante a ser observado sobre os processos identificados nesta seção que incidem sobre a calcificação da polarização social é o fato de que o Brasil está passando por uma transição religiosa sem precedentes no mundo (Delgado, 2023 ), dita “a onda evangélica” (Oualalou, 2018 ). O número de adeptos a denominações evangélicas aumentou em 61,5% entre 2000 e 2010 e o número de templos evangélicos abertos aumentou em 250% entre 2000 e 2020, ultrapassando a marca de 100 mil em 2020 (Alves, 2023 ). No mesmo ano, o número de estabelecimentos religiosos católicos era de cerca de 15 mil (Alves, 2023 ). Projeções recentes de José Alves 12 ( 2024 , 2023 ) sugerem que os evangélicos representariam hoje 31,8% da população, contra 49,9% de católicos. Segundo Alves ( 2024 , 2023 ), até 2030, os primeiros poderão ultrapassar os segundos, contando, respectivamente, 39,8% de evangélicos, contra 38,6% de católicos. Esse cenário se dá em um contexto em que “fé e voto se tornaram inseparáveis na última década” (Nunes e Traumann, 2023 , p. 180). O reavivamento do fenômeno religioso no século XXI não é exclusivo à conjuntura nacional (Taylor, 2011 ) e o voto evangélico foi identificado como uma variável importante (embora não decisiva) nas eleições de 2002 a 2014 (Nicolau, 2020 ), um prenúncio das profundas mudanças sociais em curso no país (Oualalou, 2018 ). No 2º turno de 2010, Rousseff obteve a maioria dos votos católicos, evangélicos e “outros”, contra José Serra (PSDB); e em 2014, contra Aécio Neves (PSDB), o padrão seguiu, mas com margem reduzida (Nicolau, [-NICOLAU 2020 ] 13 ). Já no 2° turno das eleições de 2018, contra Fernando Haddad (PT), Bolsonaro (então PSL), obteve ampla maioria no segmento evangélico (cerca de 70% dos votos) e uma pequena vantagem entre católicos e “outros” (Nicolau, 2020 ). No 2° turno de 2022, Lula foi vitorioso entre os católicos (52% contra 39%) e, Bolsonaro, entre os evangélicos (56% contra 32%) (Nunes e Traumann, 2023 ). A novidade é que essa transição religiosa ocorre em meio às múltiplas crises da década de 2010-2020 ( seção 3 ) que culminaram na emergência de movimentos conservadores capazes de cativar a população religiosa ao incorporar certas demandas sociais comuns às diversas denominações evangélicas (Rocha; Solano e Medeiros, 2021 ; Nicolau, 2020 ). Além disso, alguns desses líderes religiosos construíram impérios imobiliários graças ao que Bruno Paes Manso chamou de “empreendedorismo transcendental” (Manso, 2023 ) e conseguiram traduzir seu capital social e econômico em capital político, como mostra o avanço do número de líderes religiosos eleitos a cargos Executivos e Legislativos na última década (Hinz; Vinuto e Coutinho, 2020 ). Em 2018, o cenário político era assim favorável ao sucesso da campanha de captação do voto evangélico por Bolsonaro (Manso, 2023 ). Embora católico, ele encarnou a defesa “dos valores da família” e do “povo de Deus”, ganhando o véu de “predestinado” após o atentado contra sua vida e adotou como mote o versículo bíblico de João 8.32, “conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (Manso, 2023 , p. 215). A “guerra santa bolsonarista” (Cruz, 2022 ) foi impulsionada pela disseminação de notícias falsas nas redes sociais – tais quais as associações dos candidatos petistas ao satanismo, ou as declarações falsas sobre o fechamento de igrejas e a legalização do aborto –, através de táticas inspiradas na “guerra híbrida/informacional” ( seção 2 ), cujo alcance aumentou exponencialmente graças ao uso das novas tecnologias da informação (Manso, 2023 ; Nicolau, 2020 ). Não obstante, duas nuances precisam ser levadas em conta. Os dados nos quais se baseiam as análises da relação entre transição religiosa e comportamento eleitoral não estão atualizados, tendendo assim a homogeneizar a ampla miríade de denominações religiosas evangélicas (Alves, 2024 , 2023 ) e exagerar a “hipótese de afinidade conservadora” entre o bolsonarismo e os evangélicos (Nicolau, 2020 ). Por exemplo, a mobilização bolsonarista em São Paulo no dia 25 de fevereiro de 2024 mostrou que o perfil de “crentes mobilizáveis”, adeptos da ideia da “batalha espiritual”, não é homogêneo, sendo a maioria dos presentes de denominação católica (Trigo, 2024 ; Sardinha, 2024 ). Ela também mostrou que a capacidade de mobilização dos líderes religiosos bolsonaristas não só diminuiu, como está mais pulverizada, segundo Leonardo Queiroz (Medo e Delírio, 2024 ), ao passo que muitos fiéis não toleram o uso da religião como “arma política” (Queiroz, 2024 , 2022). .
Para além do impacto da retórica moralista anti-corrupção no comportamento eleitoral, a pressão fiscal sofrida particularmente pela classe média a partir de 2014 foi um fator importante da consolidação do antipetismo, demonstrando que a teoria do voto econômico não caiu em obsolescência. Em setembro de 2022, quando perguntados sobre “o principal problema do Brasil hoje”, 37% dos respondentes disseram ser a “economia” e, 21%, as “questões sociais”; 14% responderam a “saúde”; 7%, a “corrupção”; e apenas 5% e 4%, respectivamente, disseram ser a “violência” e a “educação” (Genial/Quaest, 2023 ). Por fim, como o outrora “polo oposto” ao PT, representado pelo PSDB, não sobreviveu à exposição de seu próprio envolvimento nos casos de corrupção dos últimos 15 anos, o caminho ficou livre para que uma alternativa eleitoral viável emergisse no cenário político nacional.
Há ainda uma última observação a ser feita sobre as (i) transformações no sistema político. Em 2015, durante a análise parlamentar do projeto de reforma na legislação sobre campanhas eleitorais, o Congresso Nacional votou pela retirada do artigo referente à proibição do financiamento privado de campanhas (Passarinho, 2015 ). Posteriormente, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) a consideraram inconstitucional (STF, 2015 ). Como resultado, o texto final, publicado em 2017, manteve a proibição de doações de “pessoas jurídicas públicas e privadas de qualquer espécie” (Brasil, 2017 a, Art. 31), além de vedar coligações partidárias nas proporcionais, estabelecer normas de acesso aos recursos do fundo partidário e restrições ao tempo de rádio e TV.
Os efeitos das reformas de 2015 e 2017 foram sentidos em um cenário de ascensão da extrema-direita nas eleições de 2018 e 2022, o que ajudou a consolidar a hegemonia institucional das posições bolsonaristas sobre o campo da direita e da centro-direita brasileiras (Nobre, 2022 ). O sistema político outrora marcado pela polarização PT/PSDB e pela governança via presidencialismo de coalizão entre 1994 e 2013, tornou-se obsoleto (Nobre, 2022 ; Nicolau, 2020 ; Abranches, 2018 ). Se as reformas eleitorais eram necessárias, a liminar do STF de 2017 provocou ávida resposta do Legislativo, que homologou um fundo público homérico de financiamento eleitoral e partidário (Senado Federal, 2017 ) e o Orçamento Impositivo (Câmara dos Deputados, 2020 ), que está na origem do dito “Orçamento Secreto”, sob Bolsonaro (Neiva, 2022 ). Desde pelo menos 2015, com a eleição de Eduardo Cunha (do então Partido do Movimento Democrático Brasileiro, PMDB) à presidência da Câmara, o Legislativo foi se tornando mais independente do Executivo e mais polarizado ideologicamente (Nicolau, 2020 ). Essas são as possíveis condições para a chamada crise institucional dos poderes republicanos – Executivo, Legislativo e Judiciário – de 2014 a 2018, à qual se somou, a partir de 2015, o papel desempenhado pelas Forças Armadas (Victor, 2022 ). Segundo Fabio Victor ( 2022 ), a implicação dos militares na política brasileira não fora atenuada no processo de transição, mas progressivamente amplificada a partir do mandato interino do presidente Michel Temer (PMDB, 2016-2018), tomando proporções excepcionais durante o mandato presidencial de Bolsonaro. Em 2018, a aliança selada entre este e os representantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, impulsionaram, assim, a “politização da caserna” e a “militarização da Esplanada”, atestando para o fato de que a “questão militar” ainda constitui um desafio à consolidação da democracia brasileira (Victor, 2022 ).
4. Transformações sociais, novas tecnologias e a polarização social
A estrutura vigente da mídia brasileira e a atividade das organizações políticas e sociais que apoiavam Bolsonaro no meio digital desempenharam um importante papel na galvanização do sentimento de antipetismo e no impulsionamento de alternativas eleitorais ao PT (Nobre, 2022 ; Stefanoni, 2022 ). Abordamos os problemas relacionados à persistente constituição oligopolista da mídia brasileira e sua influência na percepção da população brasileira na seção anterior. Em termos de comunicação, a última década foi sobretudo marcada pelos avanços do acesso às novas tecnologias da informação. Estes não somente se deram de maneira súbita e exponencial, como provocaram mudanças na estrutura das relações sociais dos brasileiros (Nobre, 2022 ). Tem-se que a transformação das relações sociais na “era da informação” é marcada pelo advento e ampla difusão do acesso à internet e, por consequência, da emergência das “sociedades em rede” de Manuel Castells ( 2012 ).
Paolo Gerbaudo ( 2012 ), em crítica a Castells, aprofunda a análise sobre o impacto do acesso à internet nas relações sociais a partir do estudo das mobilizações de ocupação dos anos 2010, do Occupy Wall Street à(s) primavera(s) árabe(s). Gerbaudo ( 2012 ) propõe que os limites entre a vida on-line e off-line não somente tornaram-se porosos, como passaram a ser elementos constituintes das relações sociais. Marcos Nobre ( 2022 ) atualiza o debate no contexto da desigualdade do acesso à internet no Brasil, introduzindo, à oposição de Gerbaudo entre “ outsiders conectados” e “ insiders desconectados”, a categoria dos “ outsiders desconectados”, sem nenhum acesso, cujo contingente somava, em 2023, 29 milhões de pessoas (NIC.br, 2023 ). Dos mais de 80% de brasileiros conectados, 99% utilizam a internet parcial ou unicamente pelo celular, e o uso de “aplicativos zerados” como WhatsApp e Facebook é significativo (Nobre, 2022 ).
Não obstante, o número de domicílios brasileiros com acesso à internet quadruplicou entre 2008 e 2020, ultrapassando 80% do total destes e alcançando 156 milhões de usuários em 2023 (NIC.br, 2023 ). Em 2024, 34% dos brasileiros disseram se informar sobre política pela televisão, contra 32% pelas redes sociais e outros 16% por sites, blogs e portais de notícias (Genial/Quaest, 2024b ). Segundo esta pesquisa, nota-se ainda que, entre os respondentes que votaram em Lula no 2º turno das presidenciais de 2022, 43% declararam se informar sobre política pela televisão, contra 23% pelas redes sociais e 11% em sites. Quanto aos eleitores de Bolsonaro, 44% se informaram pelas redes sociais, contra 25% pela televisão e 13% em sites. Somente 4% dos eleitores de Lula e 3% dos eleitores de Bolsonaro declararam não ter costume de se informar sobre política. É interessante notar que não somente houve inversão do quadro da afinidade do grupo dos simpatizantes de Lula quanto à fiabilidade das informações veiculadas pelas mídias tradicionais desde o advento da crise da Lava Jato, como houve êxito do “partido digital bolsonarista” (Nobre, 2022 ) em galvanizar aderentes do grupo dos simpatizantes a Bolsonaro aos meios de comunicação via redes sociais.
Marcos Nobre ( 2022 ) mostra que, sem qualquer base fundamentada no sistema de partidos políticos tradicionais, o bolsonarismo conseguiu captar o zeitgeist da nova “era da informação”. Sua atuação contínua nas redes – mesmo que, após as reformas do de 2015 e 2017, tenha sido conduzida por meio de compras ilegais de pacotes de disparos em massa de mensagens contra o PT (Mello, 2018 ) – constituiu um elemento importante da vitória de Bolsonaro em 2018 (Nunes e Traumann, 2023 ; Nobre, 2022 ). O debate acerca da regulamentação das regras de conteúdo e gestão das plataformas digitais, sobretudo das redes sociais, contou com esforços institucionais notáveis nos últimos anos (Amadeu, 2024 ). Entretanto, Amadeu ( 2024 ) ressalta que, aos desafios ordinários de aplicação da legislação vigente, soma-se hoje a forte politização dos casos, erroneamente identificados como “cerceamento da liberdade de expressão”. Essa retórica é frequentemente impulsionada por forças políticas aliadas a Bolsonaro, que criticam o forte papel desempenhado pelo STF na matéria e que recentemente contaram com o “apoio” controverso do multibilionário sul-africano e proprietário do X (antigo Twitter), Elon Musk (Sá Pessoa e Ortutay, 2024 ).
Ademais, a contribuição em termos de expertise técnica de contestação das regras democráticas de Steve Bannon ao Bolsonaro teve um papel fundamental nas campanhas de desinformação sobre o processo eleitoral de 2022 e nas mobilizações em prol dos ataques do 8 de janeiro de 2023 (Kranish e Stanley-Becker, 2023 ; Dwoskin e Sá Pessoa, 2022 ). Assim, quanto às (v) transformações do contexto político internacional, nota-se que a ascensão de tendências ou movimentos chamados “populistas de direita, extrema-direita ou ultradireita” na América do Norte, na América Latina e na Europa, favoreceu o estabelecimento de vínculos com forças políticas nacionais, ajudando a impulsionar o recrudescimento do quadro político e social brasileiro (Barros e Lagos, 2022 ; Levitsky e Ziblatt, 2019 ). Esses parecem ser os corolários e as forças motrizes por trás da crise contemporânea das democracias ocidentais (Levitsky e Ziblatt, 2019 ). Sem nos aprofundarmos no debate sobre as definições desses grupos ou movimentos, ressalta-se que eles defendem o recrudescimento do antagonismo político como estratégia de ação política e de galvanização de afetos na população, fomentando ímpetos autoritários e antidemocráticos (Barros e Lagos, 2022 ; Levitsky e Ziblatt, 2019 ), contribuindo assim com as transformações da polarização sociopolítica brasileira.
Paralelamente, a inegável melhoria nas condições de vida das camadas mais pobres da população entre os anos 2000 e 2010 não foi suficiente para superar os flagelos que esgarçam o tecido social brasileiro (Singer e Rugitsky, 2023 ). As desigualdades socioeconômicas e de acesso a serviços básicos, como saúde pública e segurança, não somente permaneceram, como foram reforçadas pela crise econômica de 2014 (Carvalho, 2018 ) e pela pandemia de covid-19 em 2020 (Carvalho, 2020 ). Se a gestão governamental criminosa durante a pandemia não foi suficiente para tornar Bolsonaro eleitoralmente inviável ou desmobilizar suas bases (Nunes e Traumann, 2023 ), os corolários da gestão catastrófica da “crise de segurança pública” durante os governos do PT (Deluchey, 2017 ) foi um dos “triunfos da campanha bolsonarista” de 2018 (Lynch, 2020 ).
Ilustrando esse cenário, de 2000 a 2023, a população carcerária do Brasil aumentou em 257%, tornando-se a terceira maior em termos majoritários do mundo, atrás dos Estados Unidos e da China (Dyvik, 2024 ; Nascimento, 2024 ). No final de 2023, dos 832.295 presos, a maioria era negra (68,2%) e tinha entre 18 e 34 anos (62,6%), em um sistema prisional com um déficit de 230.578 vagas (ABSP/FBSP, 2023 ). Essa política contínua de encarceramento em massa não deve ser associada à pequena queda no número de “mortes violentas intencionais” (MVI) 10 e na taxa de mortalidade entre 2011-2022 (ABSP/FBSP, 2023 ). Isso porque a redução na taxa ponderada de “homicídios” entre 2017-2019 coincide com o aumento na taxa ponderada de “mortes violentas por causa indeterminada” 11 (MVCI); enquanto a redução desta entre 2019-2021 coincide com um novo aumento na taxa de “homicídios” (Cerqueira e Bueno, 2023 ). Assim, entre 2011-2021, o Estado foi incapaz de identificar 39,1% dos óbitos tratados como MVCI, o que representa uma média anual de 4.492 “homicídios ocultos” (Cerqueira e Bueno, 2023 , p. 15). Por fim, apesar dos R$ 124,8 bilhões investidos pelo Estado em segurança pública em 2022 (alta de 11,6% em relação a 2021), nota-se o aumento histórico do número de estupros (74.930 vítimas), de feminicídios (1.437), de registros de desaparecidos (74.061) e de estelionato (1.819.409, em alta de 326,3% desde 2018), segundo os dados do ABSP/FBSP ( 2023 ).
Um último elemento importante a ser observado sobre os processos identificados nesta seção que incidem sobre a calcificação da polarização social é o fato de que o Brasil está passando por uma transição religiosa sem precedentes no mundo (Delgado, 2023 ), dita “a onda evangélica” (Oualalou, 2018 ). O número de adeptos a denominações evangélicas aumentou em 61,5% entre 2000 e 2010 e o número de templos evangélicos abertos aumentou em 250% entre 2000 e 2020, ultrapassando a marca de 100 mil em 2020 (Alves, 2023 ). No mesmo ano, o número de estabelecimentos religiosos católicos era de cerca de 15 mil (Alves, 2023 ). Projeções recentes de José Alves 12 ( 2024 , 2023 ) sugerem que os evangélicos representariam hoje 31,8% da população, contra 49,9% de católicos. Segundo Alves ( 2024 , 2023 ), até 2030, os primeiros poderão ultrapassar os segundos, contando, respectivamente, 39,8% de evangélicos, contra 38,6% de católicos. Esse cenário se dá em um contexto em que “fé e voto se tornaram inseparáveis na última década” (Nunes e Traumann, 2023 , p. 180).
O reavivamento do fenômeno religioso no século XXI não é exclusivo à conjuntura nacional (Taylor, 2011 ) e o voto evangélico foi identificado como uma variável importante (embora não decisiva) nas eleições de 2002 a 2014 (Nicolau, 2020 ), um prenúncio das profundas mudanças sociais em curso no país (Oualalou, 2018 ). No 2º turno de 2010, Rousseff obteve a maioria dos votos católicos, evangélicos e “outros”, contra José Serra (PSDB); e em 2014, contra Aécio Neves (PSDB), o padrão seguiu, mas com margem reduzida (Nicolau, [-NICOLAU 2020 ] 13 ). Já no 2° turno das eleições de 2018, contra Fernando Haddad (PT), Bolsonaro (então PSL), obteve ampla maioria no segmento evangélico (cerca de 70% dos votos) e uma pequena vantagem entre católicos e “outros” (Nicolau, 2020 ). No 2° turno de 2022, Lula foi vitorioso entre os católicos (52% contra 39%) e, Bolsonaro, entre os evangélicos (56% contra 32%) (Nunes e Traumann, 2023 ).
A novidade é que essa transição religiosa ocorre em meio às múltiplas crises da década de 2010-2020 ( seção 3 3. Política, economia e a transformação da configuração da polarização brasileira No que concerne o processo (i) de constituição e reformas do sistema político institucional brasileiro, destaca-se que as transformações estruturais deste tiveram impactos na configuração da oferta política nacional e no rearranjo das forças em oposição (Nicolau, 2020 ; Avritzer, 2019 ; Rodrigues, 2006 ). Esses tornaram o campo de disputas políticas permeável ao (re)ssurgimento de um sentimento de desconfiança institucional (Avritzer e Filgueiras, 2011 ), cenário em que floresceram discursos galvanizando polarizações políticas e sociais. A reestruturação do sistema partidário pós-ditadura foi marcada por uma grande instabilidade desde a primeira década pós-1988, expressa na ultrafragmentação dos partidos, já associada à “crise dos partidos tradicionais” (Nicolau, 2018 , 2017 ). Nicolau ( 2018 , 2017 ) mostra que, dos 68 partidos organizados entre 1985 e 1994, os já consolidados apresentaram fraca expressão eleitoral à época. Ademais, tinha-se que a identificação da população aos partidos brasileiros era de tipo “negativa”, contrastando com as tendências de identificação positiva observadas em outros regimes democráticos, como no Reino Unido, na Alemanha e nos Estados Unidos (Nicolau, 2020 ) 9 . De 1994 a 2014, ainda que marcado por uma forte fragmentação e fisiologismo, esse sistema se estabilizou em torno da predominância da competição bipartidária excessivamente focada em eleições nacionais, opondo o PT ao PSDB (Nicolau, 2020 ). Nicolau ( 2020 ) mostra que, desde pelo menos as eleições presidenciais de 2006, houve um recrudescimento da retórica antagônica/polarizante, reforçada pelo processo de ultraprofissionalização das campanhas eleitorais. Para atrair votos, ambos os partidos adotaram estratégias para reduzir a dispersão de seus grupos de eleitores, galvanizando a rejeição do grupo oposto (Borges, Vidigal, 2018 ), como ilustram os exemplos dos slogans “PT-pró social contra o PSDB-anti-políticas redistributivas”; ou do “PSDB-íntegro contra o PT-corrupto”. As mudanças no perfil sociológico dos eleitores pró-PT e pró-PSDB entre 2006 e 2014 destacaram a crescente polarização do eleitorado brasileiro, marcada pela condição socioeconômica e região de residência do eleitor, e menos pela identificação positiva a uma ideologia própria a cada partido (Nicolau, 2020 ; Borges, Vidigal, 2018 ). As campanhas eleitorais adotadas na época fomentaram essa lógica, tornando-se mais agressivas, o que culminou na acirrada disputa de 2014, interpretada como um grande ponto de inflexão no rearranjo eleitoral (Borges, Vidigal, 2018 ). É a esse período que se atribui a ascensão e consolidação do sentimento de rejeição específico ao PT, o antipetismo (Nicolau, 2020 ). Embora reforçado desde 2014 pela ascensão de movimentos populistas reacionários de direita que impulsionaram o fenômeno bolsonarista (Lynch e Cassimiro, 2022 ), tem-se que o antipetismo cresceu “em função das crises econômicas e das avaliações negativas do governo do PT” (Bello, 2023 , p. 48). O PSDB não conseguiu mobilizar totalmente esse eleitorado heterogêneo e sem perfil ideológico claro (Borges e Vidigal, 2018 , p. 79); e a estratégia petista de organização “de cima para baixo” de suas bases, associada à crise de junho de 2013, à recessão econômica e aos desdobramentos dos escândalos de corrupção nos anos seguintes, resultou na estagnação e no declínio da hegemonia eleitoral do PT (Samuels e Zucco, 2018 ), como veremos. Não obstante, este quadro não impediu que os candidatos do PT ganhassem consecutivamente as eleições presidenciais de 2006 a 2014. Enquanto as análises da expressão eleitoral do fenômeno do “lulismo” – conceito de André Singer ( 2012 ) referente à associação do “pacto conservador” à “reforma gradativa” e implementação de políticas de redistribuição de renda e de fácil acesso ao crédito consignado – acolado à vigência do modelo do presidencialismo de coalizão (Abranches, 2018 ) esclarecem sobre as condições que tornaram essas vitórias possíveis, dois outros efeitos contundentes das transformações estruturais abordadas devem ser destacados no caso do PT: sua profissionalização e financeirização. Um dos corolários da profissionalização do partido foi o afastamento, ou mesmo a perda, de suas raízes militantes (Ribeiro, 2008 ), fato destacado pela incompreensão e má administração dos petistas da crise iniciada quando das manifestações constituídas por um complexo mosaico de atores, sem direção única, de junho de 2013 (Alonso, 2023 ). Avritzer ( 2016 ) atribui as origens destas aos limites históricos da participação política no Brasil que foram, em alguns aspectos, evidenciados durante as administrações executivas do PT. Por exemplo, entre 2009 e 2012, a incapacidade do governo de gerenciar o conflito político engendrado pelas mobilizações que se opunham ao plano de construção da usina hidrelétrica de Belo Monte operou uma ruptura no campo político da esquerda (Avritzer, 2016 ). Segundo Lincoln Secco ( 2018 ), a progressão de manifestações em 2012 e a eclosão das de junho do ano seguinte evidenciaram a defasagem entre as formas históricas de mobilização social preconizadas pelo PT e as “novas”, mais autonomistas e ativas no meio digital, de 2013 (Secco, 2018 , p. 270). Se para uns, junho de 2013 inaugurou uma sequência de eventos que desestabilizou o pacto democrático brasileiro (Nobre, 2022 ), para outros, 2013 evidenciou as falhas de gestão dos governos estaduais e federais da década anterior (Cocco e Cava, 2018 ; Cava e Pereira, 2016 ). A “questão de 2013” está ligada a três dos cinco processos identificados. Primeiramente, às (iv) transformações da mídia e das tecnologias da informação, que provocaram mudanças na estrutura de sociabilidade dos brasileiros (ver seção 4 ). No que concerne às (iii) transformações da sociedade brasileira, nota-se que a contínua ultra-urbanização do país nos anos 1990-2000 revelou a incapacidade da estrutura pública das cidades de integrarem a população crescente (Nicolau, 2020 ). Este processo está associado à profunda fragmentação social e ao desmantelamento da composição da força de trabalho (Cocco, 2023 ), culminando na “situação híbrida” onde as “melhorias significativas nas condições de vida”, “na saúde básica, com políticas voltadas para grupos desfavorecidos”, não foram suficientes para eliminar os riscos de um retorno à precariedade para a população de baixa renda (Lima, 2017 , p. 323, tradução nossa). As (ii) evoluções do contexto econômico, especialmente no período entre os mandatos de Dilma Rousseff I e II (PT), reforçaram essa conjuntura. O fim do ciclo de expansão das commodities e o aumento dos gastos públicos no final do governo Lula II, fizeram com que a carga tributária sobre a população aumentasse a partir de 2010 (Carvalho, 2018 ). O programa econômico de Rousseff, que defendia o ajuste fiscal e a redução dos gastos públicos enquanto estimulava o setor privado por meio de concessões de lucros, enfrentou um contexto internacional menos favorável, culminando na recessão de 2014 (Carvalho, 2018 ). Embora diante de um quadro menos promissor, resta que o PT no Executivo não teve a mesma capacidade de mobilizar suas bases militantes como nas décadas de 1980 e 1990. Ainda assim, de início, as diversas organizações de junho de 2013 não eram, necessariamente ou propriamente, anti-PT. Elas estavam ligadas às lutas (principalmente) urbanas pelo acesso a serviços públicos de qualidade, inspiradas pelos movimentos de ocupação e revoltas internacionais da década, do Occupy Wall Street à(s) primavera(s) árabe(s) (Cocco, 2023 ; Cocco e Cava, 2018 ). As respostas do governo federal petista e dos estaduais ligados ao PT recrudesceram as tensões entre estes e a sociedade organizada, fomentando a aguda crise de representação política da época (Alonso, 2023 ), que não se resumia unicamente à questão de 2013. Ademais, as organizações de direita ativas no espaço digital à época conseguiram aproveitar o sentimento de insatisfação generalizada contra um sistema “ineficaz” e “corrompido”, propondo alternativas institucionais em oposição ao status quo petista (Nobre, 2022 ; Stefanoni, 2022 ) e suscitando a reorganização política de movimentos conservadores (Vilas Boas, 2023 ). Por outro lado, a crescente dependência do Estado e do capital privado que resumiram a financeirização do PT (Ribeiro, 2008 ) estão ligadas ao envolvimento de membros na rede de corrupção dos partidos brasileiros – bem que tal acepção seja aqui empregada com cautela (Avritzer; et al ., 2012 ; Avritzer e Filgueiras, 2011 ). Na época da fundação e institucionalização do PT (1980-1990), o sistema de financiamento dos partidos políticos brasileiros passou a ser misto, permitindo a arrecadação de recursos das esferas privada e pública. Ribeiro ( 2008 ) mostra que, até 1995, os recursos públicos disponibilizados aos partidos políticos pelo Fundo Especial de Assistência Financeira aos Partidos Políticos (Fundo Partidário) eram escassos; mas a alteração advinda com a promulgação da Lei 9.096/95 mudou rapidamente esse quadro, aumentando os valores disponíveis. Na época, o PT foi o partido que mais se beneficiou desses recursos, segundo Ribeiro ( 2008 ), pois eles se baseavam, entre outros, no número de deputados eleitos pelos partidos. Esses recursos sempre foram controlados pela direção nacional do PT e, apesar da imposição da Lei 9.096/95 referente ao repasse de 80% do valor total recebido do Fundo às instâncias regionais dos partidos, ele nunca obedeceu a essa regra (Ribeiro, 2008 ). Além disso, mesmo tendo sido historicamente uma questão controversa e mesmo tabu no partido (Secco, 2018 ), até 2015, o PT não proibia estatutariamente as doações de pessoas jurídicas privadas, desde que aceito pela legislação eleitoral (Partido dos Trabalhadores, 2015 ). Com suas derrotas nas presidenciais de 1994 e 1998, a direção nacional do PT mudou progressivamente o método de captação de recursos (Secco, 2018 ; Ribeiro, 2008 ); e, em 2000, foi introduzida uma política de captação por meio de doações privadas, com foco em grandes construtoras, bancos e outras empresas do setor de serviços (Ribeiro, 2008 ). Por exemplo, até 1999, menos de 1% da receita total do PT era proveniente de doações de pessoas jurídicas privadas; em 2000, esse número subiu para 13%, em 2002 para 17% e em 2004 para 27% (Ribeiro, 2008 ). Sem entrar em detalhes, este processo parece estar ligado à implicação deste e de outros partidos nos ditos “escândalos de corrupção” dos últimos 15 anos, cujos mais relevantes no debate público nacional foram os chamados “Mensalão” (2005-2012) e “Petrolão”, revelado pela controversa e hoje extinta “Operação Lava-Jato” (2014-2021). Demonstrou-se que o PT foi submetido a um lawfare em um cenário de crescente “judicialização da política” e “espetacularização da justiça” (Leite, 2015 ), em um processo que foi impulsionado pelas linhas editoriais dos grupos de mídia nacionais mais tradicionais que hiper-mediatizavam os casos implicando petistas (Amorim, 2015 ; Summa, 2009 ; Nassif, 2003 ). Não obstante, fato é que houve envolvimento do PT e que esses elementos, associados à contínua falta de regulamentação pública da estrutura oligopolista da mídia, ajudaram a consolidar o antipetismo. Se o PT esteve à frente de grandes e inéditas reformas institucionais que permitiram a melhora dos processos públicos de investigação e julgamento dos casos de corrupção desde Lula I, paradoxalmente, a percepção da população de que esta aumentara durante os mandatos do PT no Executivo é demonstrada nas pesquisas de opinião da época (Avritzer; et al ., 2012 ; Avritzer e Filgueiras, 2011 ). Voltaremos às questões das (iv) transformações da mídia e das tecnologias da informação na seção 4 . Para além do impacto da retórica moralista anti-corrupção no comportamento eleitoral, a pressão fiscal sofrida particularmente pela classe média a partir de 2014 foi um fator importante da consolidação do antipetismo, demonstrando que a teoria do voto econômico não caiu em obsolescência. Em setembro de 2022, quando perguntados sobre “o principal problema do Brasil hoje”, 37% dos respondentes disseram ser a “economia” e, 21%, as “questões sociais”; 14% responderam a “saúde”; 7%, a “corrupção”; e apenas 5% e 4%, respectivamente, disseram ser a “violência” e a “educação” (Genial/Quaest, 2023 ). Por fim, como o outrora “polo oposto” ao PT, representado pelo PSDB, não sobreviveu à exposição de seu próprio envolvimento nos casos de corrupção dos últimos 15 anos, o caminho ficou livre para que uma alternativa eleitoral viável emergisse no cenário político nacional. Há ainda uma última observação a ser feita sobre as (i) transformações no sistema político. Em 2015, durante a análise parlamentar do projeto de reforma na legislação sobre campanhas eleitorais, o Congresso Nacional votou pela retirada do artigo referente à proibição do financiamento privado de campanhas (Passarinho, 2015 ). Posteriormente, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) a consideraram inconstitucional (STF, 2015 ). Como resultado, o texto final, publicado em 2017, manteve a proibição de doações de “pessoas jurídicas públicas e privadas de qualquer espécie” (Brasil, 2017 a, Art. 31), além de vedar coligações partidárias nas proporcionais, estabelecer normas de acesso aos recursos do fundo partidário e restrições ao tempo de rádio e TV. Os efeitos das reformas de 2015 e 2017 foram sentidos em um cenário de ascensão da extrema-direita nas eleições de 2018 e 2022, o que ajudou a consolidar a hegemonia institucional das posições bolsonaristas sobre o campo da direita e da centro-direita brasileiras (Nobre, 2022 ). O sistema político outrora marcado pela polarização PT/PSDB e pela governança via presidencialismo de coalizão entre 1994 e 2013, tornou-se obsoleto (Nobre, 2022 ; Nicolau, 2020 ; Abranches, 2018 ). Se as reformas eleitorais eram necessárias, a liminar do STF de 2017 provocou ávida resposta do Legislativo, que homologou um fundo público homérico de financiamento eleitoral e partidário (Senado Federal, 2017 ) e o Orçamento Impositivo (Câmara dos Deputados, 2020 ), que está na origem do dito “Orçamento Secreto”, sob Bolsonaro (Neiva, 2022 ). Desde pelo menos 2015, com a eleição de Eduardo Cunha (do então Partido do Movimento Democrático Brasileiro, PMDB) à presidência da Câmara, o Legislativo foi se tornando mais independente do Executivo e mais polarizado ideologicamente (Nicolau, 2020 ). Essas são as possíveis condições para a chamada crise institucional dos poderes republicanos – Executivo, Legislativo e Judiciário – de 2014 a 2018, à qual se somou, a partir de 2015, o papel desempenhado pelas Forças Armadas (Victor, 2022 ). Segundo Fabio Victor ( 2022 ), a implicação dos militares na política brasileira não fora atenuada no processo de transição, mas progressivamente amplificada a partir do mandato interino do presidente Michel Temer (PMDB, 2016-2018), tomando proporções excepcionais durante o mandato presidencial de Bolsonaro. Em 2018, a aliança selada entre este e os representantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, impulsionaram, assim, a “politização da caserna” e a “militarização da Esplanada”, atestando para o fato de que a “questão militar” ainda constitui um desafio à consolidação da democracia brasileira (Victor, 2022 ). ) que culminaram na emergência de movimentos conservadores capazes de cativar a população religiosa ao incorporar certas demandas sociais comuns às diversas denominações evangélicas (Rocha; Solano e Medeiros, 2021 ; Nicolau, 2020 ). Além disso, alguns desses líderes religiosos construíram impérios imobiliários graças ao que Bruno Paes Manso chamou de “empreendedorismo transcendental” (Manso, 2023 ) e conseguiram traduzir seu capital social e econômico em capital político, como mostra o avanço do número de líderes religiosos eleitos a cargos Executivos e Legislativos na última década (Hinz; Vinuto e Coutinho, 2020 ). Em 2018, o cenário político era assim favorável ao sucesso da campanha de captação do voto evangélico por Bolsonaro (Manso, 2023 ). Embora católico, ele encarnou a defesa “dos valores da família” e do “povo de Deus”, ganhando o véu de “predestinado” após o atentado contra sua vida e adotou como mote o versículo bíblico de João 8.32, “conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (Manso, 2023 , p. 215). A “guerra santa bolsonarista” (Cruz, 2022 ) foi impulsionada pela disseminação de notícias falsas nas redes sociais – tais quais as associações dos candidatos petistas ao satanismo, ou as declarações falsas sobre o fechamento de igrejas e a legalização do aborto –, através de táticas inspiradas na “guerra híbrida/informacional” ( seção 2 2. Um país dividido? Os supostos agravamento e enrijecimento do antagonismo político no Brasil contemporâneo, resumidos pela noção de “calcificação da polarização social”, são apontados como um dos corolários da ascensão do fenômeno Bolsonaro e da consolidação do “bolsonarismo” no país (Nunes e Traumann, 2023 ). Partindo de uma breve discussão acerca da definição dessa ideia, esta seção propõe analisar a hipótese da transformação da configuração da polarização sociopolítica brasileira, questionando sua singularidade histórica e associação direta com o advento do bolsonarismo. Por fim, com base nessas discussões, serão enumerados os cinco processos tratados ao longo deste artigo, cujas transformações parecem esclarecer sobre a configuração política e social do Brasil contemporâneo. A definição do fenômeno bolsonarista é objeto de debate na literatura e, embora diversos pesquisadores tenham destacado seu surgimento e prováveis efeitos sociopolíticos ao longo da última década (Dieguez, 2016 ), o crescente interesse acadêmico pelo tema é notável com a vitória de Bolsonaro nas eleições presidenciais de 2018. O bolsonarismo foi assim definido como um movimento popular ultraconservador (Dieguez, 2022 ), cuja lógica paradoxal se nota por sua perspectiva antissistêmica impossível, aliada ao seu apoio popular incerto e sua constituição por uma miríade de forças da nova direita 3 , em conflito umas com as outras (Rocha; Solano e Medeiros, 2021 ). Foi também estabelecido como um fenômeno populista radical de direita (Lynch e Cassimiro, 2022 ; Stefanoni, 2022 ), como um movimento fascista-ultraneoliberal (Violin, 2022 ) e como movimento político que opera por meio da fabricação de fatos alternativos, produzindo dissonância cognitiva coletiva (Rocha, 2023 ). Outras análises situam o fenômeno no contexto de emergência e ascensão de movimentos populistas antidemocráticos e interconectados, ao longo da última década, nas Américas do Norte e Latina, bem como na Europa; e que estariam intimamente ligados à crise contemporânea das democracias ocidentais (Levitsky e Ziblatt, 2019 ). Essas definições divergem em parte das concepções originais sobre a configuração do populismo histórico no Brasil, uma vez que os governos assim identificados mobilizaram estratégias de ação política que teriam permitido a integração parcial de novos setores sociais nas esferas públicas do país entre 1940 e 1960 (Linden, 2018 ), ainda que simultaneamente à onda de reorganização dos movimentos integralistas à época (Barros e Lagos, 2022 ). Sem pretender encerrar o debate, elementos apontados pelas análises mobilizadas inspiram uma compreensão abrangente do bolsonarismo para os fins deste artigo. Trata-se de um fenômeno cujas características populistas radicais e antidemocráticas (Lynch e Cassimiro, 2022 ; Stefanoni, 2022 ; Levitsky e Ziblatt, 2019 ), sustentadas por princípios ultraconservadores com raízes históricas (Barros e Lagos, 2022 ; Dieguez, 2016 , 2022 ), conquistaram o apoio de uma parcela significativa da população na última década (Rocha, 2023 ; Rocha; Solano e Medeiros, 2021 ). Tal escalada parece expressar mudanças profundas na sociedade brasileira (Avritzer, 2020 ) que, por sua vez, teriam um possível impacto na configuração dos antagonismos políticos no país (Nunes e Traumann, 2023 ), impulsionando a percepção de um “Brasil dividido” (Genial/Quaest, 2024a apud Nicoceli e Pinhoni, 2024). Entretanto, os estudos sobre a polarização política e social na Nova República remontam a um período anterior ao advento do bolsonarismo. O termo “polarização” era empregado, em geral, para descrever a organização do conflito político característico ao período de consolidação democrática, quando do fortalecimento do modelo do “partido político moderno” (Lamounier e Meneguello, 1986 ). Analisado por meio do estudo das eleições presidenciais de 1989 a 1994 (Singer, 2002 ) e, posteriormente, até 2006 (Singer, 2012 ) e 2014 (Nicolau, 2020 ), o termo fazia sobretudo referência ao antagonismo protagonizado pelos principais partidos políticos da época, que era descrito como mais circunscrito aos períodos de campanha eleitoral e definido como de tipo “político-partidário”. Segundo Marcos Nobre ( 2022 ), de 1994 até meados de 2010, o termo polarização descrevia a organização do sistema político institucional em “dois polos”, representados pelo PT e o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), onde “[ o ] partido que vencia a eleição se tornava líder da coalizão de governo” (Nobre, 2022 , p. 9, acréscimo nosso); protegia suas áreas consideradas estratégicas e repartia o restante entre as diferentes forças políticas em sua órbita, seguindo o modelo do “presidencialismo de coalizão” de Sérgio Abranches ( 2018 ). Ressalta-se, entretanto, que a literatura sobre a polarização que se concentra na evolução do comportamento eleitoral na Nova República com enfoque único na afinidade partidária padece de fragilidades metodológicas e teóricas (Borges e Vidigal, 2018 ). Refuta-se assim a hipótese de que essa polarização de 1994 a 2014 entre o PT e o PSDB seria o “reflexo de uma crescente divisão do eleitorado em dois blocos claramente diferenciados e polarizados” (Borges e Vidigal, 2018 , p. 54), o que explicaria o surgimento do bolsonarismo como uma alternativa eleitoralmente viável na ausência de um candidato tucano forte. Borges e Vidigal ( 2018 ) mostram que as simpatias partidárias são um fator explicativo do voto no período, mas não corroboraram um suposto enraizamento do PT ou PSDB no eleitorado, apesar da tendência de estabilização dos votos pró-PT nas eleições presidenciais de 2006 a 2018 (Nicolau, 2020 ). A hipótese de que a “polarização político-partidária” de 1994 a 2006 teria se transformado gradualmente em “polarização social” de 2006 a 2018 tem como base a análise de indicadores de que o antagonismo político estimulado pelas campanhas presidenciais teria passado a se estender para além das eleições, em um processo que se intensificou de 2018 a 2023, com o advento do bolsonarismo e da ascensão da própria ideia de que o Brasil estaria mais polarizado politicamente (Nunes e Traumann, 2023 ). Em trabalhos recentes, Jairo Nicolau ( 2020 ) e Felipe Nunes e Thomas Traumann ( 2023 ) abordam esse processo a partir do cruzamento dos dados coletados por uma série de pesquisas de opinião recenseadas 4 , com os resultados eleitorais do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) (Nicolau, 2020 ). Os autores buscaram esclarecer, respectivamente, sobre o perfil dos eleitores de Bolsonaro em 2018, dada a ascensão do bolsonarismo (Nicolau, 2020 ); e sobre os perfis-tipo dos eleitores de cada um dos dois campos políticos majoritários concorrentes em 2018 e 2022, bem como os possíveis impactos destas no cotidiano dos brasileiros (Nunes e Traumann, 2023 ). Três constatações principais emergem da leitura desses trabalhos. Em primeiro lugar, a eleição de 2018 representou uma ruptura histórica com o padrão das campanhas eleitorais desde 1994, uma vez que o partido do candidato eleito não contava, como até então, com os “três requisitos” da vitória eleitoral: um sólido financiamento de campanha, além de um bom tempo de propaganda na televisão e uma vasta rede de apoio nos estados mais populosos (Nicolau, 2020 , pp. 15-16). Paralelamente, para Nobre ( 2022 ), a maneira de se conceber a polarização do sistema político brasileiro mudou definitivamente em 2018, posto que o ano marca o momento em que a convergência entre a crise do peemedebismo, a obsolescência do presidencialismo de coalizão e a sequência de crises no período pós-junho de 2013, criou condições favoráveis para a vitória de Bolsonaro (ver seção 3 ). Em segundo lugar, destaca-se a transformação da configuração do antagonismo político no país de 2006 a 2022, ressaltando-se a necessidade de revisão dos modelos explicativos do comportamento eleitoral predominantes até então (Nicolau, 2020 ). Nesse contexto, as eleições presidenciais de 2006 foram um marco, posto que a identificação de um “realinhamento” do perfil-tipo do eleitor de Lula (Singer, 2012 ), ou de outros candidatos petistas às presidenciais (Nicolau, 2020 ), representou então um aumento do interesse por estudos sobre a configuração do comportamento eleitoral no Brasil. Sem insistir nos detalhes da inversão do perfil socioeconômico do eleitor petista operada em 2006, ou da incidência da ascensão e queda do “lulismo” e do “petismo” no comportamento eleitoral (Singer, 2012 , 2018 ; Samuels e Zucco, 2018 ), destaca-se que, nas eleições de 2006 a 2022 5 , a preferência por um candidato à presidência passou a ser mais associada a indicadores relativos à condição socioeconômica, ao grau de escolaridade formal e à região de residência do eleitor nas pesquisas (Nunes e Traumann, 2023 ; Nicolau, 2020 ; Singer, 2012 ). Se tal constatação não permite afirmar que os brasileiros apresentam um “perfil ideológico claramente diferenciado” (Borges e Vidigal, 2018 , p. 80), ou que a dinâmica eleitoral passou a ser determinada por esses indicadores (Bello, 2023 ; Nicolau, 2020 ), ela desafia a predominância de um modelo explicativo único do comportamento eleitoral brasileiro. Foram os casos da premissa supracitada dos “três requisitos” para a vitória em eleições presidenciais (Nicolau, 2020 ) e da teoria do voto econômico, que buscava explicar o voto a partir da relação entre a situação da economia durante um mandato presidencial, a popularidade do governo vigente e a capacidade de seu partido de apresentar um candidato viável (Gramacho, 2009 ). Esses modelos não devem ser interpretados de maneira absoluta, mas interdependente. As preferências eleitorais decorrem de diferentes motivos; e a ideia de que o eleitor é um agente econômico puramente racional é tão ideal-típica quanto a de que sua afinidade política se deve exclusivamente à sua afeição por um candidato (Dormagen e Mouchard, 2023 ). Por fim, embora Nicolau ( 2020 ) não empregue o termo “polarização social” como Nunes e Traumann ( 2023 ), a última das três constatações anunciadas diz respeito à identificação de uma tendência parcial à formação de “dois grupos”, nos quais estariam associados a preferência eleitoral (pró-Lula/PT ou Bolsonaro), certos marcadores do perfil sociológico (como identidade de gênero e denominação religiosa) e o apego do eleitor a valores morais, sociais e políticos específicos 6 , aproximando cada grupo entre si e aumentando sua rejeição do outro, para além dos períodos de campanha (Nunes e Traumann, 2023 ). No 2° turno de 2022, Nunes e Traumann ( 2023 ) mostram, por exemplo, que Lula (PT) obteve vitória mais expressiva nos seguintes segmentos da população, por categoria: mulheres (49% contra 38%), pretos (58% contra 31%), católicos (52% contra 39%), pessoas com ensino fundamental (54% contra 35%) e cuja renda familiar total não ultrapassa dois salários mínimos (SM) (52% contra 36%). Bolsonaro (então PL), por sua vez, obteve a maioria dos votos entre os homens (48% contra 42%), bem menos expressiva; mas sobretudo entre brancos (50% contra 39%), evangélicos (56% contra 32%), com ensino superior (51% contra 37%) e com renda familiar total entre dois e cinco SM (49% contra 40%) ou superior a cinco SM (50% contra 40%). Nunes e Traumann ( 2023 ) reagruparam esses dados para decodificar o espectro de perfis ideais-típicos dos eleitores de cada “polo”, concluindo que a vitória acirrada de Lula se deu graças à conquista de um grupo minoritário de eleitores, denominados “liberais sociais” 7 (Nunes e Traumann, 2023 , p. 163). Quase um ano após as eleições, os autores identificaram diversos impactos destas sobre as relações sociais e familiares dos brasileiros, bem como sobre seus estilos de vida e de consumo. Por exemplo, tem-se que 17% e 54% afirmaram, respectivamente, ter rompido relacionamentos amicais ou familiares ou conhecer alguém que os rompeu em função das eleições de 2022; e outros 75% declararam não se arrepender de ter se envolvido em brigas por causa de política à época (Nunes e Traumann, 2023 , p. 172). Ademais, 23% e 20% declararam, respectivamente, que se sentiriam mal ao ouvir um artista ou comprar um produto de uma marca que apoiou o candidato adversário (Nunes e Traumann, 2023 , p. 173). É precisamente por conta da permanência e do teor dessas cisões que se pressupôs que o antagonismo político extrapolou os períodos eleitorais e que o posicionamento político se tornou um elemento constitutivo da identidade do brasileiro (Nunes e Traumann, 2023 ). Entretanto, as pesquisas permitindo tais associações são recentes, o que impede uma análise comparativa em uma série histórica de médio prazo (Nunes e Traumann, 2023 ; Nicolau, 2020 ). Ademais, as denominações e composições desses “grupos polarizados” (pró-Lula/PT ou Bolsonaro) variam de acordo com a metodologia de coleta de dados utilizada pelos institutos de pesquisa mobilizados; e os próprios autores (Nunes e Traumann, 2023 ; Nicolau, 2020 ) enfatizam a dificuldade metodológica imposta às análises pela falta de dados censitários atualizados do Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Nicolau ( 2020 ) aponta ainda para o problema de interpretação dos dados referentes a certos marcadores do perfil sociológico dos entrevistados, como “renda” ou “raça”, devido ao impacto de diferentes formulações de questionários nas respostas. Há também um problema de definição de determinadas categorias sociológicas mobilizadas por cada instituto (Nicolau, 2020 ), ou mesmo de uma mesma categoria, ao longo do tempo, como é o caso da noção de “classe média” (Cocco, 2023 ). Assim, embora as tendências identificadas ajudem a entender o perfil-tipo dos eleitores em 2018 ou 2022, os autores reiteram que elas não determinam a consolidação de dois grupos homogêneos, em contínua oposição (Nunes e Traumann, 2023 ; Nicolau, 2020 ). Longe de assumir que o comportamento político e social do eleitor brasileiro é determinado por suas preferências nas eleições presidenciais, ou que a polarização social aqui referida seja um fato novo ou comprovadamente consolidado, assume-se a hipótese que as três constatações supracitadas – a ruptura histórica de 2018, a transformação do antagonismo político no país e seus impactos sobre o cotidiano dos brasileiros – esclarecem sobre o quadro atual, tal qual é percebido e vivido pelos próprios respondentes às pesquisas de opinião aqui mobilizadas. Novas abordagens sobre a configuração do sistema político e do comportamento eleitoral brasileiro, como as propostas por Nunes e Traumann ( 2023 ), Bello ( 2023 ), Ortellado et al . ( 2022 ), Fuks e Marques ( 2022 ) ou Nicolau ( 2020 ), mostram que o fenômeno dito de polarização é dinâmico, ligado às afinidades positivas e negativas aos partidos, bem como à identificação, ora convergente, ora divergente, a um(a) candidato(a) que “representa” os valores mais consolidados, ou questões conjunturais mais caras ao eleitor. Estas são as premissas nas quais este artigo se baseia. Nota-se ainda que a suposta calcificação e spill over do antagonismo político dos grupos hoje distintos por sua simpatia por Lula ou Bolsonaro tem por pano de fundo as múltiplas crises sociopolíticas dos últimos anos. Inúmeros estudos sobre estas tomam por marco inicial as mobilizações de junho de 2013 e seus corolários em termos de organização política de diferentes setores da sociedade, à esquerda, ou à direita do espectro político nacional, apesar de divergirem sobre a análise destas (ver seção 3 ). Ressalta-se que a consolidação e o fortalecimento da democracia brasileira conheceram, a partir de 2013, uma inversão de quadro (Avritzer, 2017 ) e o recrudescimento dos conflitos entre os poderes republicanos (Avritzer, 2016 ). A crise atingiu seu ápice em 8 de janeiro de 2023, mostrando que a galvanização do antagonismo social operada durante o mandato presidencial de Bolsonaro (Partido Social Liberal, PSL; depois, PL; 2018-2022) não se tratava de fenômeno conjuntural passageiro (Summa, 2023 ). Esses eventos, associados, corroboram a percepção dos brasileiros de um “Brasil dividido” em meio a uma profunda crise democrática. Propõe-se assim que a análise da aparente polarização contemporânea não tome o fenômeno do bolsonarismo como específico ou na raiz dessa crise, mas como um dos problemas do processo de consolidação democrática. Segundo Marcos Nobre ( 2022 ) a “situação-limite” em que o país se encontra hoje não é apenas resultado das recentes transformações próprias à conjuntura nacional; mas um reflexo do “confronto de dois mundos” emergente no cenário internacional na última década, opondo forças democráticas e antidemocráticas. Se o governo de Bolsonaro operou uma “política da catástrofe” (Cocco, 2023 , tradução nossa) cuja estratégia de produção do caos inspiradas nas táticas da “guerra híbrida/informacional” norte-americana (Rocha; Solano e Medeiros, 2021 ; Bentes, 2018 ; Delgado, 2022 ) visou “destruir as bases culturais e institucionais do pacto de 1988 […] de forma abertamente autoritária” (Rocha; Solano e Medeiros, 2021 , p. 141, tradução nossa); o esgarçamento do tecido social brasileiro é mais profundo. A persistência do abismo histórico entre “os Brasis” de Ariano Suassuna (1927/2013) é expressa na análise da lógica dicotômica da evolução do pensamento social brasileiro (Santos, 1978 ), que refuta a possibilidade de uma “história única” de constituição das ideias políticas e sociais no país. Assim, a aparente polarização contemporânea deve ser analisada enquanto fenômeno sociopolítico histórico, fruto de processos estruturais e conjunturais, nacionais e internacionais, que influi sobre a consolidação democrática brasileira e que é, hoje, aprofundada e reforçada pelo advento do bolsonarismo. Tomando como marco o período de transição democrática, pode-se identificar ao menos cinco processos, cujas transformações nas últimas quatro décadas esclarecem sobre o quadro contemporâneo do “Brasil dividido”. São eles: (i) a constituição e reformas do sistema político institucional; (ii) a evolução do contexto econômico nacional; (iii) a estrutura da sociedade brasileira; (iv) a estrutura dos meios de comunicação e das tecnologias da informação; e (v) influências do contexto político internacional. Este artigo se concentrará na análise dos quatro primeiros, limitando-se a destacar os trabalhos de autores que se dedicam ao contexto internacional ( seção 4 ). Deve-se observar também que a distinção proposta visa facilitar a demonstração da análise e, portanto, é ideal-típica e não sistemática, uma vez que os processos não podem ser analisados independentemente e não excluem a incidência de outras variáveis não abordadas neste artigo. Por fim, dado que nos últimos 40 anos o PT conquistou um papel central no “sistema partidário mais fragmentado do mundo” (Nicolau, 2020 , p. 79), a análise proposta não pode se furtar de abordar o papel do PT, exemplificado à luz de uma provocação frequente no debate político “polarizado” nos últimos dez anos: “mas e o PT, hein?” 8 . ), cujo alcance aumentou exponencialmente graças ao uso das novas tecnologias da informação (Manso, 2023 ; Nicolau, 2020 ).
Não obstante, duas nuances precisam ser levadas em conta. Os dados nos quais se baseiam as análises da relação entre transição religiosa e comportamento eleitoral não estão atualizados, tendendo assim a homogeneizar a ampla miríade de denominações religiosas evangélicas (Alves, 2024 , 2023 ) e exagerar a “hipótese de afinidade conservadora” entre o bolsonarismo e os evangélicos (Nicolau, 2020 ). Por exemplo, a mobilização bolsonarista em São Paulo no dia 25 de fevereiro de 2024 mostrou que o perfil de “crentes mobilizáveis”, adeptos da ideia da “batalha espiritual”, não é homogêneo, sendo a maioria dos presentes de denominação católica (Trigo, 2024 ; Sardinha, 2024 ). Ela também mostrou que a capacidade de mobilização dos líderes religiosos bolsonaristas não só diminuiu, como está mais pulverizada, segundo Leonardo Queiroz (Medo e Delírio, 2024 ), ao passo que muitos fiéis não toleram o uso da religião como “arma política” (Queiroz, 2024 , 2022).
5. Considerações finais
Este artigo procurou analisar as possíveis origens da nova configuração do antagonismo sociopolítico, tal qual resumida pela hipótese da calcificação da polarização social (Nunes e Traumann, 2023 ) e percebida pelos próprios brasileiros, segundo pesquisas recentes (AtlasIntel, 2024 ; Genial/Quaest, 2024a apud Nicoceli e Pinhoni, 2024). O termo faz referência à percepção de que o Brasil está mais dividido, posto que o conflito político, outrora “limitado” à polarização partidária típica dos períodos eleitorais da Nova República, transbordara para o cotidiano dos brasileiros, enrijecendo suas visões de mundo e afetando suas relações sociais. Embora esse quadro esteja associado ao advento do fenômeno Bolsonaro, ele não é um puro efeito político e social da consolidação do bolsonarismo. Ao contrário, o referido antagonismo não é recente, mas associado ao abismo histórico entre “dois Brasis” (Suassuna, 1927/ 2013 ), que informa o imaginário sociopolítico brasileiro há décadas (Santos, 1978 ). Buscou-se mostrar que a polarização hoje percebida pelos brasileiros é um sintoma dos persistentes desafios à democracia que influem no quadro contemporâneo conflituoso e que, por sua vez, são aprofundados e intensificados pelo bolsonarismo.
As transformações na estrutura do sistema político brasileiro desde 1988 alteraram configuração da oferta política e o rearranjo das forças em oposição e, frente a múltiplas crises da década de 2010-2020, erros de gestão, associados ao recrudescimento dos conflitos entre os poderes republicanos e ao aumento de um sentimento generalizado de desconfiança institucional, tornaram o cenário de disputas políticas permeável à emergência de discursos galvanizando polarizações sociais. Além disso, apesar da melhora na situação econômica nacional entre 2000 e 2010, o Estado não conseguiu integrar totalmente a crescente população que, após as crises de 2014 e 2020, deparou-se com o aumento da fragmentação social e o desmantelamento da composição da força de trabalho, permanecendo ou retornando a condições miseráveis de precariedade. No que diz respeito às transformações na estrutura da sociedade, dadas as crises de acesso aos serviços públicos básicos e à segurança pública afetando principalmente a população pobre e negra, a onda evangélica, cujas propostas incluem a melhoria efetiva das condições de vida da população precarizada, vem emergindo como um fenômeno de massa no século XXI. Por fim, a falta de regulamentação e as dificuldades de aplicação da legislação vigente sobre a estrutura dos meios de comunicação nacionais e das Big Techs , associadas ao compartilhamento de know-how de campanhas de desinformação nas redes entre bolsonaristas e suas contrapartes internacionais não somente continuam impulsionando a polarização social, como representam um grande desafio para a democracia brasileira hoje. Diante de novos fenômenos, novas estratégias precisam ser consideradas, pois “se Lula 1 e 2 estimulou sonhos de mudanças indolores […] não será viável estabilizar a democracia no país sem transformações estruturais” (Singer e Rugitsky, 2023 , p. 6).
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1
Este artigo é fruto do trabalho apresentado no colóquio Journée d’études: Après le bolsonarisme? Impacts sociaux et politiques de l’émergence de l’extrême droite au Brésil , organizado por Pedro Lima (UFRJ/CRBC-Mondes Américains) e Mônica Schpun (CRBC-Mondes Américains) no dia 21 de março de 2024, na École des hautes études en sciences sociales de Paris. Nossos agradecimentos aos organizadores, aos colegas, pelos debates; e a Giancarlo Summa e Claudia Escosteguy pela releitura. Quaisquer erros são de responsabilidade da autora.
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2
Para o período, toma-se como marco o restabelecimento de eleições presidenciais diretas conforme determinação da Constituição de 1988, sendo as eleições de 1989 as primeiras da série histórica com base na qual foram delineadas as análises sobre pesquisas eleitorais até 2018 (Nicolau, 2020 ) e 2022 (Nunes e Traumann, 2023 ).
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3
Note-se que a ideia de uma “nova direita” brasileira não exclui suas características históricas (Fico, 1997 ), mas retoma o debate iniciado por Cas Mudde sobre a distinção entre organizações de extrema ou ultradireita, opostas à ordem constitucional democrática, e as organizações de direita radical que aderem, mas desafiam esta ordem, oponde-se à dita “agenda dos direitos de minorias étnicas e culturais” (Mudde, 1996 ).
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5
Opondo candidatos do PT e do PSDB entre 2006 e 2014; depois, do PT ao do PSL em 2018; e finalmente, os candidatos do PT e do PL em 2022.
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6
Identificados por meio da análise das posições dos entrevistados sobre determinadas questões específicas ao debate público na época de cada eleição presidencial do referido período, como ser contra ou a favor da ampliação do porte de armas, ou da descriminalização do aborto (Nunes e Traumann, 2023 ; Nicolau, 2020 ).
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7
Correspondem aos 3% do eleitorado que apoiou Simone Tebet (Movimento Democrático Brasileiro, MDB) no 1º turno de 2022, votou em Lula no 2° e que provavelmente votou em Bolsonaro em 2018 (Nunes e Traumann, 2023 , pp. 125-132).
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8
Essa tem origem na mobilização de grupos pró-Bolsonaro, ativos sobretudo no Twitter (hoje, X) durante as eleições de 2018. Grupos simpáticos ao PT ou críticos ao governo Bolsonaro passaram a se apropriar da indagação, transformada em “meme”, a fim de ironizar as postagens favoráveis ao então presidente (#MUSEUdeMEMES, 2021 ).
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9
Para além das diferenças sócio-históricas dos países, Nicolau ( 2020 ) mostra que a identificação negativa brasileira pode ser explicada pela inclusão de perguntas como “em qual partido você definitivamente não votaria?” nas pesquisas nacionais à época, ao contrário de suas contrapartes internacionais.
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10
Categoria do Fórum Brasileiro de Segurança Pública que inclui “vítimas de homicídio doloso (incluindo feminicídios e policiais assassinados)”, roubos ou lesão corporal seguidos de morte e “mortes decorrentes de intervenções policiais” (ABSP/FBSP, 2023 , p. 24).
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11
Diferentemente da categoria de MVI do FBSP, as categorias de Cerqueira e Bueno ( 2023 ) de “homicídio”, “MVCI” e de “homicídios ocultos” (que foram erroneamente classificados com MVCI) correspondem àquelas do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) e do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde.
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12
Na ausência de divulgação dos novos dados do IBGE de 2022, Alves ( 2024 , 2023 ) produziu estas projeções para o período de 2010 a 2032 com base nas suposições do declínio contínuo das afiliações católicas a uma taxa de 1,2% ao ano, e do aumento anual de 0,8% nos evangélicos, de 0,15% de outras religiões e de 0,23% nos declarantes sem religião.
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13
Os respondentes das pesquisas do Eseb (CESOP/UNICAMP) foram agrupados por Jairo Nicolau ( 2020 ) em três grupos, para reduzir a margem de erro: católicos, evangélicos e “outros”, incluindo outras religiões, aqueles que acreditam em Deus, mas não têm religião, ateus e agnósticos.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
04 Out 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
-
Recebido
15 Abr 2024 -
Aceito
29 Maio 2024