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A arte da sedução

ESPECIAL

A arte da sedução

Marijane Lisboa

Socióloga o professora da PUC-SP

Talvez o título deste artigo sugira a alguns leitores que pretendo dissertar sobre métodos e técnicas de sedução, e neste caso sinto muito decepcioná-los. Porque a arte de seduzir, como qualquer outra arte, não se ensina nem se aprende.

Mas gostaria de começar por dizer que todos nós somos sedutores natos e que seduzir e ser seduzido, na vida cotidiana, é algo tão saudável e necessário quanto fazer esporte ou cultivar alguma arte. Nesse sentido, é preciso em primeiro lugar desfazer a má impressão que a palavra sedução imediatamente nos desperta, má impressão que remonta ao seu já longínquo passado latino. Segundo o Dicionário Aurélio, seduzir vem de seducere, que quer dizer, literalmente, levar para o lado, desencaminhar.

Observemos os diversos significados que o Aurélio nos apresenta para o verbo seduzir: 1. inclinar artificialmente para o mal ou para o erro, desencaminhar; 2. Enganar ardilosamente; 3. Desonrar, recorrendo a promessas ou amavíos (nova consulta ao Aurélio revela que amavíos significam feitiços, meios de seduzir); 4. Atrair, encantar, fascinar, deslumbrar; 5. Levar à rebelião, revoltar, sublevar.

Destes cinco significados, apenas o quarto (atrair, encantar, fascinar, deslumbrar) não tem um sentido claramente negativo. Nos demais, o sedutor desencaminha sua presa para o mal, para o engano, para a desonra ou para a subversão de alguma ordem constituída. Todos temos de convir que, para haver algum desvio, é necessário haver um caminho certo, uma verdade, uma honra, uma ordem justa a se manter. Portanto, quando se fala de sedução, de se desencaminhar alguém, se fala a partir de um ponto de vista moral, filosófico, religioso etc, que se considera correto e cujo abandono caracteriza o erro. Murilo Macedo, ex-ministro do Trabalho de Figueiredo, devia considerar Lula um sedutor, pois este desvia a classe operária de uma atitude de resignação, colaboração e obediência, que seria o de se esperar de qualquer classe operária, do seu ponto de vista. O rapaz que foge com a mocinha, trancada a sete chaves pelo pai puritano, sem dúvida é um sedutor, pois lhe permite uma vida sexual normal, que para esse pai é uma verdadeira danação. O leitor já se terá dado conta do quanto complicada é essa discussão, pois normalmente falamos de sedução, condenando o desvio como algo nocivo e equivocado.

Se estou andando por um caminho lamacento e íngreme, alguém me acena e me conduz para o caminho asfaltado e suave, não posso me queixar de ter sido desencaminhado. Mudei de caminho, é verdade, mas para um caminho melhor. Com isso espero ter convencido o leitor de que ser seduzido e seduzir não são sempre atividades condenáveis. "Levar ou ser levado para o lado" pode ser algo muito positivo, se esse novo lado escolhido for melhor para nós.

Existe realmente o sedutor, a sedutora? Ele è o grande responsável pelas mudanças de rumo na vida dos seduzidos? Desde logo o sedutor não é todo-poderoso: há seduções impossíveis. Um mendigo seduzir um rico, pelo seu invejável estilo de vida, é algo que nunca se viu. Já o contrário è norma: todos, que somos pobres, somos seduzidos pela riqueza. Portanto, o sedutor (a) nunca nos induz a algo totalmente contrário aos nossos interesses. O que pode ocorrer é que não tenhamos consciência desses interesses e desejos, e que eles só venham a tona pela figura do sedutor. A mocinha que foge com o rapaz certamente era dotada de sexualidade e afetividade, que os estreitos horizontes de sua vidinha não lhe permitiam desabrochar.

Enfim, o sedutor não é o único responsável pela sedução, podemos inclusive dizer que ele desempenha aí um papel secundário, já que nossa inclinação consciente ou inconsciente para outros caminhos é decisiva para que os sortilegios do sedutor (a) surtam, de fato, efeito. Nesse sentido, o sedutor ou sedutora é apenas a encarnação, a representação sensível daquele fantasma que nos habita.

Somos todos sedutores natos porque cada um de nós, em um ou vários aspectos do nosso viver diário, realizamos coisas, assumimos atitudes, defendemos idéias, que para outras pessoas que conosco convivem constituem inclinações, desejos, que ainda não afluíram a sua consciência, ou se aí chegaram não foram postos em prática por uma série de medos, fundamentalmente pelo medo de mudar de caminho, o medo do novo.

Por isso, não devemos fugir aos sedutores/sedutoras, como se esses fossem a própria encarnação do diabo. Eles são a própria encarnação de, pelo menos, uma parte de nós, que quer emergir. E quanto maior é o fascínio que determinados sedutores exercem sobre nós, maior deve ser a dimensão daqueles desejos que desconhecemos ou teimamos em reprimir. Somos todos, em maior ou menor escala, sedutores e, ao mesmo tempo, seduzidos. Sedutores, porque, lutando por nossas ambições, realizando nossos sonhos, agindo como achamos que devemos agir, nos constituímos em exemplos para outros, e muitas vezes sem termos a menor consciência do fato. Seduzidos, porque ousamos realizar finalmente o que desejávamos, inspirados pelos nossos sedutores.

O sedutor deixa de ser, portanto, aquela figura perigosa e condenável, para assumir um contorno benéfico e útil socialmente, pois é ele quem nos ajuda a mudar de rota. Evidentemente, mudar de lado (já não uso a expressão levar para o lado, porque acho que esclareci que somos nós mesmos quem mudamos de lado) exige coragem. Caminhos novos são sempre caminhos novos, e há os que preferem continuar naquele caminho íngreme e lamacento, mas bem conhecido, a arriscar qualquer outro. Esse tipo de pessoa é imune à sedução (infelizmente para elas) e, sem dúvida, não terá perdido tempo em ler esse artigo, por medo de ser seduzidos pela sedução.

E a arte de seduzir? Pode-se seduzir intencionalmente ou não, mas quando alguém tem consciência dos seus efeitos sedutores, e os exercita, pode tornar-se um virtuoso, um artista da sedução. Lula é um artista de sedução política, todas as "musas" do cinema são, por definição, sedutoras, todos os bons professores, como disse Sócrates (o filósofo, não o do Corinthians) são sedutores. O sedutor "profissional" tem a capacidade de descobrir rapidamente quais os desejos recalcados nos demais, que pode representar. Ou seja, é muito intuitivo.

Em segundo lugar, o sedutor sabe apresentar tais desejos ocultos de uma forma atraente, irresistível e, ao mesmo tempo, dissimulada. Por que dissimulada? Porque para que se mantenha como sedutor é preciso que se guarde algum mistério, que ele continue encarnando aqueles desejos ocultos em nós, que por isso mesmo, porque ainda não emergiram, não têm forma totalmente definida.

A arte de seduzir se resume a perceber os desejos ocultos nos outros, expressá-los e, ao mesmo tempo, dissimulá-los, de modo que os seduzidos sigam intrigadamente no rumo da descoberta dos impulsos interiores, que os levarão a se realizar e se modificar como pessoas.

E por que, se somos todos sedutores natos, espontâneos, deveríamos nos preocupar com a arte de seduzir, em sofisticar e aperfeiçoar os nossos amavíos (os sortilégios e meios de seduzir)? Não revelaria isso um narcisismo, uma vaidade, que seriam, por sua vez, sinais de algum desequilíbrio no nosso estar conosco? Uma necessidade obsessiva de ser amado e admirado? Sem dúvida, essas manifestações psicológicas estão presentes em muitos sedutores, desde no clássico D. Juan (que seduzia mulheres em série, para nunca se deixar seduzir) até em musas do cinema, cuja crônica cinematográfica nos revela tratarem-se de pessoas profundamente infelizes e carentes de amor.

Mas o sedutor artista pode também ser movido em sua atuação por impulsos mais nobres. O homem, desde as suas primeiras manifestações culturais na história, sempre buscou a beleza, a perfeição, o equilíbrio. A sedução pelo belo, pelo perfeito, pelo equilíbrio, é a sedução daquilo que não somos, devido à nossa feiúra, imperfeição e confusão.

Aquele que seduz com arte, que faz do processo da sedução um ato de beleza, de perfeição e de equilíbrio, é tão pouco condenável quanto a dona-de-casa que deixa a casa um brinco, quanto a datilografa caprichosa ou o operário exímio. Tudo são artes, busca dessa perfeição inalcançável, que nos seduz.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Mar 1986
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