Acessibilidade / Reportar erro

Cidadania brasileira: o negro e o uso do espaço público e privado em São Paulo (1900-1937)

PESQUISA

Cidadania brasileira: o negro e o uso do espaço público e privado em São Paulo (1900-1937)

leda Marques Britto

Socióloga e doutoranda em Antropologia na USP

A aproximação do centenário da Abolição implica necessariamente em reflexão mais criteriosa sobre a realidade destes, até agora, noventa e oito anos de liberdade vivenciados pelas populações negras brasileiras e seus descendentes. Não será demais lembrar o conceito moderno de liberdade individual, que engloba vários direitos, como o de locomoção, de pensamento, religião, propriedade e direito à justiça. A mudança de trabalho servil para livre foi o marco fundamental que finalmente estabeleceu para todos os brasileiros condições de igualdade perante a lei, gerando o status de cidadania nacional.

Porém, entre a escolha e a prática destes princípios houve sempre uma distância, no mínimo, considerável. Na cidade de São Paulo, durante o largo período de 1900 a 1937, por exemplo, é possível registrar, de um lado, ações de segmentos populacionais negros em processo de afirmação de seus direitos de cidadãos e de outro, resistências e escamoteações dos mesmos, manifestadas por vários setores da sociedade. Tratava-se, ainda, da difícil assimilação do negro como um dos componentes centrais da nova sociedade brasileira e, principalmente, enquanto agente de seu destino.

De fato, no decorrer daqueles anos, o exercício de sua cidadania esteve freqüentemente ligado a situações tensionais, tendo sido talvez a mais grave delas, porque registrada em lei, aquela originada pelo processo de desapropriação da Igreja e construções anexas da Irmandade de N. Sra. do Rosário dos Homens Pretos. Em 1903, a cidade de São Paulo, passando pelo primeiro processo de urbanização em moldes dos grandes centros europeus, esbarrou na presença não só da Igreja como também de um conjunto de casas de propriedade da Irmandade, onde várias famílias viviam e mantinham algum comércio. De local ermo, que incluíra até o cemitério da Irmandade, o qual fora proibido pelo príncipe-regente em 1810 e demolido pela Prefeitura em 1872, a rua e o largo do Rosário haviam se transformado no início do século em áreas centrais extremamente valorizadas. Este fato gerou inúmeras discussões na Câmara Municipal, objetivando a intervenção do poder público para a desocupação daquele espaço, o que veio a ocorrer no ano de 1903, tendo a Prefeitura expropriado e demolido o conjunto, despejando seus moradores. A indenização, negociada em inúmeras reuniões com a Irmandade, estranhamente referiu-se apenas à área da Igreja, consistindo em modesta quantia em dinheiro e um terreno menor do que o anterior, alagadiço, de desenho recortado, situado no largo do Paissandu. Apesar das pequenas dimensões já indicarem ser possível apenas a construção de um edifício, os legisladores tornaram claro no texto da lei que, efetivamente, a área destinava-se exclusivamente à construção de uma nova igreja.

Assim, com uma única ação, as elites paulistanas puseram por terra as propriedades da Irmandade, interferiram claramente em seu direito de decisão quanto ao uso de suas propriedades e lograram remover os moradores negros da área central. Houve ainda um desdobramento dos fatos: o prefeito seguinte decidiu mudar o nome do largo do Rosário para praça Antonio Prado, o prefeito que efetivara a desapropriação, e que já constava como nome de uma alameda em área nobre da cidade, que recebeu outra denominação. Os 170 anos de presença de homens negros naquele local da cidade foram, desta maneira, completamente apagados.

O episódio serve exemplarmente como ilustração da distância entre os propósitos de igualdade e a realidade da cidadania brasileira. Certamente deve ter sido registrado de modo forte pelos negros moradores da cidade, mesmo por aqueles que não integravam a Irmandade de N. Sra. do Rosário dos Homens Pretos.

Mas não só no uso do espaço privado houve dificuldades; também em relação ao espaço público ocorreram tensões e violências.

A rua paulistana das primeiras décadas estava longe de constituir-se em domínio que escapasse ao controle dos dirigentes, e foi um gesto de coragem a saída pelas ruas da Barra Funda do pequeno grupo de cidadãos negros no domingo de carnaval de 1914. Era o autodenominado Grupo Carnavalesco Barra Funda, que constituiu-se no primeiro cordão carnavalesco, depois apelidado pelos populares de Camisa Verde.

Os cordões carnavalescos surgiram como uma chance efetiva dos negros saírem organizadamente à rua e terem sua brincadeira carnavalesca. Nos anos seguintes já eram muitos, aglutinando vinte, cinqüenta pessoas cada um. No início desfilavam apenas pelos próprios bairros, mas logo adotaram um trajeto incluindo as avenidas nobres: Angélica, Paulista, Brigadeiro Luís Antônio, a área central e finalmente os bairros originários. O traçado deste desfile foi elaborado pelos próprios sambistas, sem nenhuma intervenção das autoridades. Tratando-se do uso do espaço público, seria de se esperar que ocorresse o contrário, como aliás já ocorrera com os carros de aluguel participantes do corso da avenida Paulista, que tiveram suas atividades regulamentadas. Difícil, portanto, aceitar este alheamento como algo não-proposital. O mesmo alheamento existiu ainda em relação às premiações, que só aconteceram em 1936, com a criação do Departamento de Cultura da Prefeitura chefiado por Mário de Andrade.

O desfile de domingo de Carnaval tinha algumas paradas para as evoluções das porta-estandartes e que parecem ter sido estrategicamente escolhidas: eram não nas avenidas nobres e sim nos largos e praças da área central, onde se concentravam os populares.

Era um brincar dentro das normas rígidas definidas pelos organizadores dos cordões e aceitos pelos integrantes como condições para sua participação na agremiação. Havia os cordões mais exigentes e os mais tolerantes, mas no conjunto a ética era uma só.

A construção desta ética passou, inevitavelmente, pela percepção dos sinais emitidos pela sociedade, especialmente pelos atos das elites e de seus representantes investidos em funções públicas. E, sobretudo, por um aprendizado constante de como portar-se na sociedade dominada e dirigida pelos brancos, pois os futuros fundadores dos cordões carnavalescos assistiram quando crianças à folia dos ricos paulistanos: as batalhas de confete e serpentina na cidade, que se acumulavam pelo chão e entre as quais se poderia encontrar um vintém, como aconteceu com o garoto Dionisio Barbosa, muitos anos depois fundador do Grupo Carnavalesco Barra Funda. Ou, ainda, o corso dos automóveis, especialmente o da avenida Paulista, ao qual assistiam fascinados. "A gente era pequenininho, ficava ali só olhando. Porque a gente ia só pra olhar. Não era coisa pra gente", como lembra dona Sinhá, antiga e importante participante.

Até o início dos anos 30, existiu uma norma silenciosa, porém eficiente, impedindo o acesso dos sambistas às ruas, em outro dia além do domingo de carnaval. Os próprios ensaios acontecem dentro das casas dos dirigentes, sedes improvisadas que eram. Quando finalmente puderam se realizar na rua, ao final dos anos 30, a polícia já se fazia presente e muitas vezes estabelecia a confusão e o pânico, quebrando instrumentos e prendendo os que não conseguiam correr.

A ação policialesca visando o cidadão negro podia no entanto manifestar-se sob qualquer pretexto, ou mesmo sob pretexto algum, como, por exemplo, a simples presença física de jovens negros nas ruas do centro da cidade após a meia-noite.

Foi o que denunciou a nota "Com vistas ao Dr. Chefe de Polícia", que aparece à primeira página do jornal nº 1 A Voz da Raça, editado pela Frente Negra Brasileira, de 18 de março de 1933: na noite anterior moças e rapazes ensaiavam uma peça na sede da Frente Negra Brasileira e, ao saírem, foram abordados por inspetores de segurança que os interrogaram no próprio passeio público e lhes deram ordem de prisão que só não se consumou porque, no momento de entrarem no carro de presos, os presentes (a nota não esclarece quem eram estes) protestaram.

Situações tão distintas, envolvendo diferentes tipos de cidadãos, têm entretanto em comum a mesma quebra dos direitos assegurados pela condição de igualdade jurídica de cidadãos brasileiros negros e brancos. Fatos tanto mais graves porque levados a cabo por dirigentes públicos ou setores institucionais a eles ligados poderiam ser alinhados a outros tantos incontáveis fragmentos da história da cidadania brasileira, ainda em construção. Há apenas dois anos da data-marco de cem anos de liberdade, é preciso fazer seu registro crítico e não considerá-los como esporádicos e próprios de um momento histórico já superado.

Este texto foi escrito originalmente para ser apresentado no Grupo Temas e Problemas das Populações Negras no Brasil durante o 10º Encontro Anual da ANPOCS (outubro de 1986).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Mar 2011
  • Data do Fascículo
    Mar 1987
CEDEC Centro de Estudos de Cultura Contemporânea - CEDEC, Rua Riachuelo, 217 - conjunto 42 - 4°. Andar - Sé, 01007-000 São Paulo, SP - Brasil, Telefones: (55 11) 3871.2966 - Ramal 22 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: luanova@cedec.org.br