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Uma carta rara de Aluísio Azevedo sobre Machado de Assis

Machado de Assis e Aluísio Azevedo mantiveram-se pessoalmente distantes e guardaram silêncio a respeito da obra alheia, embora tenham sido contemporâneos e sejam considerados pelas histórias literárias como iniciadores, em 1881, do Realismo e do Naturalismo no Brasil, respectivamente com as publicações das Memórias póstumas de Brás Cubas e de O mulato. Os dois escritores, que produziram suas obras no mesmo período e cujos livros disputaram o mesmo público, não poderiam ter estilos pessoais e literários mais diferentes. Aluísio (1857-1913) foi embaixador, homem do mundo, que embarcou nas propostas de renovação literária fundamentada no cientificismo, no determinismo de Taine e no romance experimental de Émile Zola. Machado (1839-1908) foi dublê de funcionário público e escritor, que passou boa parte da vida entre um gabinete no Centro do Rio de Janeiro e a casa do Cosme Velho, de onde fez troça dos cientificismos e determinismos todos e parodiou os gostos e modas dominantes.

A distância e as divergências se mantiveram vida afora, a despeito da proximidade e da admiração recíproca que uniram Artur Azevedo, irmão de Aluísio, e Machado de Assis. Nos seus textos críticos, Machado não citou Aluísio nem se ocupou das obras que consagraram o autor maranhense, tais como O cortiço e Casa de pensão. Só rompeu o silêncio numa crônica da série "A Semana", publicada em 29 de setembro de 1895,1 1 Agradeço a John Gledson a lembrança dessa crônica em que Machado de Assis trata de Aluísio Azevedo. em que trata rapidamente do Livro de uma sogra, elogiado nas entrelinhas justamente pela ausência dos "processos anteriores", ou seja, os processos do romance naturalista, que Machado rechaçou por meio da crítica veemente que fez não a obras de Aluísio, mas a O primo Basílio, de Eça de Queirós:

Tal me parece o livro do sr. Aluísio Azevedo. Como ficou dito, é antes um tipo novo de sogra que solução de problema. Tem as qualidades habituais do autor, sem os processos anteriores, que, aliás, a obra não comportaria. A narração, posto que intercalada de longas reflexões e críticas, é cheia de interesse e movimento. O estilo é animado e colorido. Há páginas de muito mérito, como o passeio à Tijuca, os namorados adiante, o dr. César e d. Olímpia atrás. A linguagem em que esta fala da beleza da floresta e das saudades do seu tempo é das mais sentidas e apuradas do livro.

Aluísio, por sua vez, também se calou sobre o autor de Brás Cubas. Apenas indiretamente, diante das reações registradas nos jornais do Rio de Janeiro em torno de O primo Basílio, marcou sua posição em favor do realismo ao publicar em maio de 1878 na revista Comédia Popular a ilustração Romantismo e realismo: luta aberta, acompanhada da seguinte legenda: "O lívido d. Juan e o pálido Basílio em fervoroso idílio, arrancam o revólver e a durindana fria à sombra do balcão de Elvira – a poesia".

Os silenciamentos e as conversas oblíquas aumentam a importância e o interesse do documento que a Machado de Assis em linha divulga neste número, no qual o autor de O cortiço faz longas considerações sobre Machado de Assis. Nele, ressalta, como seria de se esperar, uma visão bastante ambígua sobre o autor de Dom Casmurro. Nessa carta a Oliveira Lima datada de Nápoles, 15 de outubro de 1909, Aluísio agradece ao amigo diplomata o envio do livro Machado de Assis, son oeuvre littéraire, uma reunião de textos apresentados em abril de 1909 na Sorbonne, em Paris, num evento em homenagem a Machado, que havia morrido no ano anterior. Entre os participantes do evento, o próprio Oliveira Lima e Anatole France, que no seu texto celebra Machado como alta expressão do "gênio latino", expurgando-o de todas as marcas e cicatrizes da trajetória brasileira, construindo uma figura, a do "gênio latino", liberada de todos os constrangimentos vividos pelo escritor em vida.

Aluísio Azevedo, num certo nível, celebra e elogia isso mesmo na sua carta a Oliveira Lima; entretanto, ao longo da carta lembra e enumera, uma a uma, todas as deficiências do escritor – a gagueira, a nevropatia, a mulatice, a pobreza da origem – que, em contraste com o apuro artístico do escritor, faziam dele um "paradoxo ambulante".

Bem ao seu gosto, o autor de O cortiço vai enfileirando os contrastes em linguagem crua: espírito rico em oposição à pobreza material; espírito cavaleiresco e fidalgo em oposição aos ingratos nervos; adorador da conversa elegante e culta, dotado com a verve de grande conversador, em contraste com o gago; aristocrata por índole, mas homem de cor; partidário da elegância nos gestos e da graciosa altivez da força física, em contraste com o desfibrado e epilético. Como se não bastasse, torna-se ainda mais gráfico na exposição do que considera paradoxos: "gago e exímio causeur, nevropata e equilibradamente correto, misantropo e galante, feio e sedutor, gentleman e fulo".

A carta, assim, parece se constituir ela mesma sobre uma completa contradição. Os elogios a Machado são esvaziados pela caracterização que a carta faz do escritor; e os elogios ao livro-homenagem, cuja visão higienizada do escritor Aluísio explicita, soam pouco convincentes na pena de alguém que acreditou tanto nos determinismos e determinação raciais e sociais, justamente os traços que as homenagens de Paris expurgam da figura machadiana.

Embora se refira ao autor de Dom Casmurro como "o grande Machado" e se diga reverenciador da sua memória, deixa anotada nas entrelinhas uma visão muito pouco positiva do escritor. Sempre tão sensível ao sucesso de público, que perseguiu por todos os meios até abandonar de vez a carreira literária para ser embaixador no Japão, Aluísio não deixa de anotar o fato de Machado ter sido um sucesso de crítica, mas não de público: "viveu sempre escondido atrás dele próprio ou dos seus livros, que aliás só os intelectuais leram e compreenderam".

A carta, cujo teor foi integralmente transcrito no Política e Letras do Rio de Janeiro, em 7 de outubro de 1948, pertencia ao embaixador Mário Calábria, que declarava ter os originais, mas não os doaria à Biblioteca Nacional alegando que "as coisas lá estão cada vez mais fora do lugar...". O colecionador acompanhou a carta de uma introdução, na qual situa as opiniões de Aluísio no panorama da crítica machadiana, traçando paralelos entre as opiniões de Aluísio e Sílvio Romero, e também Alcides Maia, Alfredo Pujol, Augusto Meyer, Lúcia Miguel Pereira e Barreto Filho.

Não sabemos se Calábria mudou de ideia, ou se a carta permaneceu no arquivo de mais de 2 mil documentos que colecionou ao longo da vida, recentemente doado ao Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo. Como os documentos se encontram entre a Alemanha, onde estavam em posse dos herdeiros do colecionador, e o Brasil, não foi possível consultar a carta original para cotejo. Por esse motivo, nós a transcrevemos acompanhada da introdução de Calábria, conforme saiu publicada há quase setenta anos num artigo de jornal encontrado no Arquivo Museu de Literatura Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro.

Retomando o gesto e as palavras de Mário Calábria, são essas as razões pelas quais a Machado de Assis em linha passa aos olhos dos seus leitores, com alegria imensa, esse documento revelador das relações difíceis entre os dois grandes prosadores brasileiros da segunda metade do século 19.

***

MACHADO E ALUÍSIO

Mário Calábria

Para esse grande tema aberto – Machado de Assis, venho inscrever hoje um orador morto. Nada menos que o contemporâneo Aluísio Azevedo, de quem trago à publicidade pequena obra-prima inédita. Uma carta-ensaio sobre Machado.

Em 3 de abril de 1909, presidida por Anatole France, organizou-se em Paris, na Sorbonne, uma Festa da Intelectualidade Brasileira, sob o patrocínio de certa Sociedade de Estudos Portugueses, e com o concurso da Missão Brasileira de Propaganda, então em França. Nessa reunião, o pernambucano Manuel de Oliveira Lima, Ministro do Brasil em Bruxelas, foi o orador principal, pronunciando uma conferência que é de fato bela homenagem ao nosso maior romancista e consta do livro Machado de Assis, son oeuvre littéraire, editado naquele mesmo ano, em Paris. Dois meses depois de publicada a obra, Aluísio Azevedo agradeceu a Oliveira Lima, com uma carta que é um verdadeiro ensaio, o exemplar a ele oferecido. E é essa carta, cujo original tenho comigo, mas lamento não poder doar à Biblioteca Nacional (as coisas lá estão cada vez mais fora do lugar...), que entrego à publicidade. E à curiosidade dos machadianos.

A estes, aos machadianos, quero também adiantar, com a vênia devida, algumas observações que me ocorreram a respeito de possível identificação dos temas principais do pequeno ensaio de Aluísio com os de outros críticos de Machado, não só posteriores à carta, como anteriores. Aqui é o caso de Sílvio Romero.

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Começa Aluísio por salientar o fato de Machado se ter sempre escondido atrás de si mesmo ou de seus livros, observação que Alcides Maia também faria posteriormente, ao escrever que todos os seus romances e contos constituem o "seu livro d’alma, pseudônimos transparentes de si mesmo". Verdade, afinal, não específica para Machado, pois a verificação tem sido talvez o mais comum axioma de toda a literatura, sobretudo após a libertação romântica.

Sobre as contradições machadianas, tema repetido na carta, lembremo-nos de que os exegetas são nisso unânimes, como o são relativamente à sua timidez e retraimento. O sr. Astrojildo Pereira começa mesmo o seu trabalho (o do centenário) com uma referência à conjugação de contrastes que foram a vida e a obra de Machado. Avanço mais. A tese defendida pelo sr. A. Pereira naquele ensaio – o espírito de vingança do mulato oriundo de camada social inferior contra a sociedade, também está sugerida por Aluísio, quando recorda as incoerências machadianas, e a irreconciliação que lhe permita analisar e contradizer, opor e desforrar-se.

A carta fala em pessimismo "amável e humoristicamente taciturno". Sílvio Romero já aludira ao pessimismo "sossegado", depois chamado de "livresco e intencional", e ao humorismo "pacato". Em compensação, Sílvio não aceita Machado como um sátiro, enquanto Aluísio proclama que "nunca existiu no mundo satírico mais friamente cruel e mais inexorável das imperfeições morais e físicas dos seus semelhantes".

Um dos pontos mais importantes deste ensaio, sem dúvida, é o que se ocupa de Brás Cubas. O romance, muita gente não o quer como o melhor de Machado. Mas é, certa e indiscutivelmente, o machadiano por excelência. Basta acompanharmos os críticos. Pois se todos concordam em que Dom Casmurro é a maior obra do nosso grande romancista, acabam todos por estudar mais... Brás Cubas. Assim Augusto Meyer. Assim Alfredo Pujol, que lhe dedica toda uma conferência, das sete pronunciadas. Assim Barreto Filho, que faz datar das Memórias póstumas a eclosão do espírito trágico, "a análise da contradição essencial do homem em matéria moral, pelas antinomias do seu caráter absurdo e inseguro". Assim Veríssimo. Assim Alcides Maia, que também faz o livro assinalar um acontecimento na vida de Machado, por ter sido escrito na época em que a sua personalidade se marcava mais fortemente e por isso viu da mesma forma em Brás Cubas a síntese, depois acrescida, de todo o seu mundo de personagens – observação bastante idêntica ainda à de Aluísio, sobre o brascubismo generalizado. Assim o próprio Oliveira Lima, lido por Maia e citado por Pujol como o homem a quem deveria passar então o "glorioso cetro" da crítica brasileira, depois da morte de Machado e de José Veríssimo. E já que estamos nas Memórias, anotemos esta coincidência mais: tanto Aluísio como a sra. Lúcia Miguel Pereira escolheram um mesmo texto – a definição de avareza dada por Brás Cubas, para considerar os princípios éticos do personagem, falando a sra. L. M. Pereira em "relativismo amoral" e Aluísio em "falsa moral".

O episódio do almocreve está em Alcides Maia e nesta carta, e em ambos para explicar a contradição machadiana, o mistério da sua fórmula, da sua criação, que alguns estudiosos de Machado pretendem resolver apelando para o extraordinário, como se os pedaços do seu segredo não fossem do conhecimento cotidiano de qualquer gabinete de psicologia bem atualizada. A chave nos dando ele próprio, já que insiste sempre nesses elementos contraditórios, e de tal modo que, não tendo obedecido jamais à ação apenas de um deles, salvou a obra todo pelo equilíbrio, que lhe deu a unidade, e pelo método, que o fez superar-se. Comparem o trecho do ensaio de Aluísio, sobre os princípios morais que dirigem os personagens machadianos "cuja nota predominante é o exagero da qualidade oposta ao exagero", como o que, no seu livro contraditório e cruel, escreveu Sílvio Romero relativamente ao ecletismo de Machado, à sua posição juste-milieu literário, "um homem de meias tintas, de meias palavras, de meias ideias, de meios sistemas".

Muita coisa, naturalmente, ficou fora da carta de Aluísio. Como devia, aliás, e não podia deixar de ser. Pena é, no entanto, que não tivéssemos encontrado, no documento de um contemporâneo, referências a dois pontos que sempre pareceram de grande interesse para a compreensão do mestre de Brás Cubas. A primeira diz respeito ao capítulo das influências, que desde Sílvio Romero vêm sendo indicadas. Velho tema que ainda apaixona, e o sr. Otto Maria Carpeaux julgou fosse descoberta de outro dia. A segunda alude ao problema do absenteísmo político de Machado, de sua participação ideológico-política no tempo em que viveu. Pois os seus intérpretes, exceção feita ao sr. Barreto Filho, timbram em acusá-lo de indiferente, distante, mero assistente. Quando não trazem sérias dúvidas ao assunto como a sra. Lúcia Miguel Pereira, que, nas páginas 16-18 (3ª edição) do seu livro, constrói o cidadão absenteísta e nas páginas 78-9 muito escreve sobre as ideias políticas "bem fixas e determinadas" do jovem jornalista.

São essas as considerações que me vêm à margem do ensaio de Aluísio Azevedo. Confesso que tenho mais prazer em ouvir do que dizer. Razão pela qual lhes passo às mãos, com alegria imensa, a carta que se segue.

***

Nápoles, 15 de outubro de 1909.

Exmo. Amigo e querido Mestre.

Não sei que termos arranjar para lhe pedir desculpas pela demora deste agradecimento ao inestimável obséquio de me ter mandado um exemplar do seu livro sobre o grande Machado de Assis. Se eu pudesse repetir agora uma parte dos pensamentos de admiração e de aplauso que me acudiram logo ao terminar a leitura desse livro tão fácil de conceber quão grandemente difícil de executar, dada a exatidão, clareza e completamento com que ele está feito, é possível que esta carta escapasse à banalidade de um simples cumprimento, mas não tenho remédio senão dizer apenas a razão daqueles pensamentos, o que, ainda assim, não sei se o conseguirei, sem melindrar a minha própria veneração pela memória do biografado. É que, se houve até hoje no Brasil uma individualidade artística verdadeiramente difícil de ser enquadrada num elogio biográfico, sem quebra da unidade das suas proporções magistrais, é sem dúvida Machado de Assis, porque ele viveu sempre escondido atrás dele próprio ou dos seus livros, que aliás só os intelectuais leram e compreenderam, atormentado eternamente no seu esconderijo pelas flagrantes contradições de seu próprio ser, onde a sua alma de eleito se confrangia como uma espada de fina têmpera dentro de uma bainha que não era a dela. Todo ele foi um composto de contrastes, estabelecidos cruelmente pela natureza entre o seu espírito rico e a sua matéria pobre, espírito cavaleiresco e fidalgo, servido por uns ingratos nervos, que lhe negavam ânimo para impulsos de entusiasmo e rasgos de altruísmo: adorador apaixonado da conversa elegante e culta e dotado com a verve de grande conversador, a natureza entretanto o fizera gago; aristocrata por índole e enamorado sincero de tudo que na sociedade é distinto, apurado e clarificado, a natureza o fizera nascer homem de cor o que foi para ele durante a vida o seu mais íntimo e maior tormento: partidário intransigente da elegância nos gestos e da graciosa altivez da força física, o que só a boa educação corporal combinada com a perfeita sinergia do organismo pode proporcionar, a natureza dera-lhe uma compleição débil, fazendo dele um desfibrado e até um epilético. E [de] tudo isso lhe proveio naturalmente aquela exagerada timidez em flagrante desacordo com a consciência que ele tinha do seu valor intelectual e do apreço que a este lhe davam os homens de espírito: daí aquele oculto orgulho traduzido por uma espessa reserva que ele disfarçava ainda com maneiras muito corteses e friamente risonhas: daí aquele ar de desconfiança e de vaga prevenção contra o que quer que fosse, que ninguém sabia o que era, mas que o tornava impenetrável aos olhos de todos e até, não direi dos seus amigos íntimos, que nunca os teve, mas dos seus afeiçoados mais chegados. Entretanto, apesar de tudo isso, ou talvez por tudo isso mesmo, nunca existiu no mundo adorador mais fervoroso e sincero, posto que sempre profundamente dissimulado, da mulher fina e formosa, nem crítico mais exigente, mais sutil e mordaz, dos amores alheios, nem satírico mais friamente cruel e mais inexorável das imperfeições morais e físicas de seus semelhantes. Dir-se-ia que ele, irreconciliável consigo mesmo, vingava-se desse modo nos outros, e que daí lhe vinha aquele seu pessimismo amável e humoristicamente taciturno, com que ele em geral reduzia à expressão mínima os impulsos generosos dos personagens dos seus romances, partindo sempre de um gesto largo, que lhe vinha d'alma, para chegar à mesquinhez egoísta, que lhe vinha dos nervos, como se vê bem claro no episódio do almocreve e do burro em que Brás Cubas, depois de formado, voltava de Coimbra. E daí ainda o tipo do próprio Cubas, essa imortal encarnação do egoísmo disfarçado e da sensualidade sorrateira e comodista, tão calculada esta e tão cautelosa como o apego ao dinheiro e a exagerada previdência daquele herói a quem o autor chegou a dar este pensamento: "A avareza nada mais é que o exagero de uma virtude – a economia". E é precisamente nesta falsa moral, é nesta inversão paradoxal, que se baseiam os principais personagens de Machado de Assis, todas as suas paixões todos os seus vícios, são exagerados de virtudes, como as suas boas qualidades são vícios exagerados. Para determinar a nota característica dos seus tipos, eu precisaria de um termo que não sei ao certo qual é. Como se chamará a qualidade oposta ao exagero? Regra? Justeza? Precisão? Não sei, só sei que, nos livros de prosa de Machado de Assis a nota predominante é o exagero da qualidade oposta ao exagero, e esse poder de inversão, que assim chega a anular as qualidades, nivela os seus personagens, fazendo deles todos mais ou menos Brás Cubas. Já notou como nas adoráveis Memórias póstumas todas as figuras parecem animadas pela mesma alma egoística e sorrateira? pela mesma alma de gato, que "afaga o próprio lombo quando finge afagar a mão do dono"? Há ali Brás Cubas de todas as proporções, idades, e condições, quer masculinos, quer femininos: o Lobo Neves é tão Brás Cubas quanto o é a Virgília, o Viegas, a Sabina, o Quincas Borba, Marcela, etc., e todos eles, nas suas paixões e nas suas virtudes invertidas entre si pelo exagero no exercício das mesmas, chegam a parecer razoáveis e verossímeis, quando nada mais são que um engenhoso e interessante paradoxo.

Falar desses personagens paradoxais, é falar do criador deles, Machado de Assis, como homem, foi também um encantador paradoxo, sem o que não seria ao mesmo tempo – gago e exímio causeur, nevropata e equilibradamente correto, misantropo e galante, feio e sedutor, gentleman e fulo. Se eu tivesse de escolher para ele um pendant na galeria dos homens ilustres do Brasil, iria buscar Cotegipe, que era outro paradoxo em ação.

Ora pois, enfeixar num livro todas as faces invejáveis de tamanho paradoxo vivo, sem recorrer, intencionalmente e por bem entendido escrúpulo, às qualidades contrastantes que lhe formam o contorno e lhe serviriam de realce, se me afigura, não só obra dificultosíssima, como ainda a mais delicada e a mais pura homenagem rendida ao grande Mestre. Com que íntima satisfação não teria ele lido semelhante obra! que bem não teria feito à sua pobre alma retraída e medrosa esse elogio franco e gentil, onde se não lobriga a menor referência aos desprimores físicos, que em vida tanto o fizeram sofrer! A leitura dessa obra generosa e justa o consolaria talvez do desgosto que outras homenagens literárias, muito menores, lhe haviam dado antes, porque em todas essas lá estava sempre, a pretexto de fazer sobressair a glória do elogiado, qualquer referência às algemas com que a natureza lhe entorpecera as asas.

É isso o que no seu livro mais me encanta e mais comove, é ver que, com esse passaporte limpo e definitivo, pois depois deste nenhum outro vale, Machado de Assis passará à posteridade encarnado na plástica do seu gênio belo e do seu caráter puro, sem levar preso aos coturnos helênicos nenhum farrapo das misérias físicas que em vida lhe tolhiam os passos e lhe entristeciam o espírito. O seu livro, meu caro Mestre, é mais que uma boa obra, é uma boa ação, defronte da qual todo homem de bem deve curvar a cabeça.

O único fim desta carta é reproduzir esse gesto.

Do admirador sincero e amigo grato

(a) ALUÍSIO AZEVEDO

  • 1
    Agradeço a John Gledson a lembrança dessa crônica em que Machado de Assis trata de Aluísio Azevedo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2016
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