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AUTORIA FICCIONAL E GÊNERO EPISTOLAR EM "UMA VISITA DE ALCIBÍADES"

FICTIONAL AUTHORSHIP AND EPISTOLARY GENRE IN "UMA VISITA DE ALCIBÍADES"

Resumo

Neste artigo, propomos uma leitura de "Uma visita de Alcibíades", de Machado de Assis, voltada para a articulação que o procedimento da ficção de autor estabelece com a introdução do gênero epistolar em sua forma. O conto apresenta duas versões: uma publicada no Jornal das Famílias, em 1876ASSIS, Machado de. Uma visita de Alcibíades. Jornal das Famílias, Rio de Janeiro, out. 1876, p. 305-308. Disponível em: <Disponível em: http://hemerotecadigital.bn.br/acervo-digital/jornal-familias/339776 >. Acesso em: 15 dez. 2021.
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, e outra, na Gazeta de Notícias, em 1882______. Uma visita de Alcibíades. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 1 jan. 1882, p. 1. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=103730_02&pasta=ano%20188&pesq=&pagfis=3100>. Acesso em: 15 dez. 2021.
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, posteriormente recolhida em Papéis avulsos. Assim, por meio de uma análise comparativa, pretendemos mostrar como tais dispositivos literários são fundamentais no processo de reescrita de "Uma visita de Alcibíades", proporcionando uma nova e mais moderna experiência de leitura desse texto de ficção.

Palavras-chave:
Machado de Assis; conto; autoria ficcional; gênero epistolar

Abstract

In this article, we propose a reading of Machado de Assis' "Uma visita de Alcibíades", that analyses how the author fiction procedure articulates with the introduction of the epistolary genre in its form. The short story has two versions: one version published in Jornal das Famílias, in 1876ASSIS, Machado de. Uma visita de Alcibíades. Jornal das Famílias, Rio de Janeiro, out. 1876, p. 305-308. Disponível em: <Disponível em: http://hemerotecadigital.bn.br/acervo-digital/jornal-familias/339776 >. Acesso em: 15 dez. 2021.
http://hemerotecadigital.bn.br/acervo-di...
, and another published in Gazeta de Notícias, in 1882______. Uma visita de Alcibíades. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 1 jan. 1882, p. 1. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=103730_02&pasta=ano%20188&pesq=&pagfis=3100>. Acesso em: 15 dez. 2021.
http://memoria.bn.br/DocReader/docreader...
, and later collected in Papéis avulsos. Through a comparative analysis, we aim to show how these literary devices are fundamental in the rewriting process of "Uma visita de Alcibíades", resulting in a new and modern reading experience of this fiction text.

Keywords:
Machado de Assis; short story; fictional authorship; epistolary genre

O gênero epistolar comparece de maneira fundamental em "Uma visita de Alcibíades", de Machado de Assis. O conto apresenta uma carta na qual um desembargador narra ao chefe de polícia da Corte o aparecimento de Alcibíades, evocado do mundo dos mortos, em sua casa. Em seu início, além do título, que sugere o assunto da narrativa, há o subtítulo, que introduz a situação ficcional a partir da qual a narração se constituirá - Carta do desembargador X… ao chefe de polícia da Corte. Afora tais elementos, não encontramos informações a respeito do caminho percorrido pelo manuscrito até sua publicação em impresso. Assim, do subtítulo passa-se logo à reprodução da carta, fazendo-se menção ao local e à data de sua composição:

Corte, 20 de setembro de 1875

Desculpe vossa excelência o tremido da letra e o desgrenhado do estilo; entendê-los-á daqui a pouco.

Hoje, à tardinha, acabado o jantar, enquanto esperava a hora do Cassino, estirei-me no sofá e abri um tomo de Plutarco. (ASSIS, 2008______. Obra completa em quatro volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008., v. 2, p. 328).

No início da carta, o desembargador reconhece como um de seus traços a obsessão, desde a juventude, pelo mundo grego - o termo por ele utilizado é "devoção", enquanto, segundo cita, o amigo chefe de polícia empregara "mania" -, tendo como especificidade, quando empreende suas leituras, transportar-se, via imaginação, "ao tempo e ao meio da ação ou da obra" (ASSIS, 2008______. Obra completa em quatro volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008., v. 2, p. 328). Trata-se, conforme sintetiza, de uma "verdadeira digestão literária" (ASSIS, 2008______. Obra completa em quatro volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008., v. 2, p. 328). Nesse sentido, a mencionada fixação do remetente pelas letras clássicas fundamenta o acontecimento decisivo contido na missiva: a evocação, durante a leitura de Plutarco, do ateniense Alcibíades, que sai do mundo dos mortos para surgir no Rio de Janeiro oitocentista.

Embora nenhum editor ficcional explicite as circunstâncias que levaram à impressão da carta, é inegável que "Uma visita de Alcibíades" dialoga com o tópos do manuscrito encontrado. O subtítulo - Carta do desembargador X… ao chefe de polícia da Corte - opera como elemento do "paratexto", termo que Gérard Genette (2009GENETTE, Gérard. Paratextos editoriais. Tradução de Álvaro Faleiros. Cotia: Ateliê, 2009., p. 10) cunhou para a "zona indecisa" entre o "texto" e o "extratexto" e que se constitui como espaço "não apenas de transição, mas também de transação": ocupando esse "lugar privilegiado de uma pragmática e de uma estratégia, de uma ação sobre o público", o subtítulo negocia com o leitor um modo de entrada na narrativa e atribui, conforme assinalamos, a sua formulação a um desembargador, o que afasta o nome Machado de Assis da autoria do texto e cria, pela ficção, as circunstâncias de escrita daquele manuscrito, que trilhou um caminho até sua publicação em impresso.

Desse modo, se consideramos a ficção sobre a composição do conto, que se articula com a narração, notamos que temos em mãos um texto que se situa em meio a um diálogo postal, que em sua origem era desprovido de um nome de autor que desse a ele a distinção de obra literária. A esse respeito, podemos lembrar que Michel Foucault (2009FOUCAULT, Michel. O que é um autor?. In: ______. Estética: literatura e pintura, música e cinema. Tradução de Inês Autran Dourado Barbosa. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. p. 264-298., p. 269) apresenta uma questão particularmente interessante: "Se um indivíduo não fosse um autor, será que se poderia dizer que o que ele escreveu, ou disse, o que ele deixou em seus papéis, o que se pode relatar de suas exposições, poderia ser chamado de 'obra'?". Esse questionamento está ancorado na ideia de que "um nome de autor não é simplesmente um elemento em um discurso", pois "exerce um certo papel em relação ao discurso", assegurando "uma função classificatória" - "tal nome permite reagrupar um certo número de textos, delimitá-los, deles excluir alguns, opô-los a outros", ou ainda, "relaciona[r] os textos entre si" (FOUCAULT, 2009FOUCAULT, Michel. O que é um autor?. In: ______. Estética: literatura e pintura, música e cinema. Tradução de Inês Autran Dourado Barbosa. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. p. 264-298., p. 273). Portanto,

[…] poder-se-ia dizer que há, em uma civilização como a nossa, um certo número de discursos que são providos da função "autor", enquanto outros são dela desprovidos. Uma carta particular pode ter um signatário, ela não tem autor; um contrato pode ter um fiador, ele não tem autor. Um texto anônimo que se lê na rua em uma parede terá um redator, não terá um autor. A função autor é, portanto, característica do modo de existência, de circulação e de funcionamento de certos discursos no interior de uma sociedade. (FOUCAULT, 2009FOUCAULT, Michel. O que é um autor?. In: ______. Estética: literatura e pintura, música e cinema. Tradução de Inês Autran Dourado Barbosa. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. p. 264-298., p. 274).

Daí a possibilidade de concebermos a ideia de o manuscrito do desembargador ser em sua origem desprovido de um nome que cumpra a "função autor". A carta só passaria à condição de literatura a partir do processo editorial que confere a tal texto a distinção de obra por meio de sua publicação em Papéis avulsos e consequente vinculação ao nome Machado de Assis, que, por sua vez, atribui ao desembargador a responsabilidade pela escrita dela.1 1 Roger Chartier (2021, p. 29), reavaliando as proposições feitas por Foucault sobre a "função autor", observa o seguinte: "[...] essa "função autor" marcada pelo nome próprio é, de início, uma função de classificação dos discursos que permite as exclusões e inclusões em um corpus, atribuível a uma identidade única. Ela é, nesse sentido, fundadora da própria noção de obra e caracteriza certo modo de existência em comum de alguns discursos que são atribuídos a um único lugar de expressão e, por isso, ela própria é a responsável pela noção de escrita". Assim, o procedimento, mais do que visar a uma busca por autenticidade ao informar a impressão de um documento integrado à dinâmica social de comunicação, seria mobilizado para criar, em diálogo com a moderna edição de livros, uma situação ficcional a partir da qual a leitura se estabelecerá: trata-se de um texto escrito por um funcionário do Estado brasileiro, que comunica ao chefe de polícia da Corte a ocorrência de um caso extraordinário em sua casa e pede providências em relação ao defunto que se encontra nela.

O dispositivo de criação, pela ficção, de uma figura autoral não é caso isolado na obra machadiana, consistindo em um de seus traços decisivos. Lembremos que Abel Barros Baptista (2003BAPTISTA, Abel Barros. A formação do nome: duas interrogações sobre Machado de Assis. Campinas: Editora da Unicamp, 2003., p. 119), considerando a "ficção de autores" a partir da premissa de que o romance moderno "se desenvolveu colocando em questão a ideia do autor como origem e garante da obra", num "processo que é, de resto, paradoxalmente indissociável da constituição da noção moderna de autor", constata que Machado de Assis, com Brás Cubas, Dom Casmurro e Aires, além dos "variados jogos de narração" encontrados nos contos, "prolonga e radicaliza essa tradição" (BAPTISTA, 2003BAPTISTA, Abel Barros. A formação do nome: duas interrogações sobre Machado de Assis. Campinas: Editora da Unicamp, 2003., p. 120). De acordo com Baptista, ele consegue esse feito justamente criando autores ficcionais, os quais o crítico inclui na categoria de "autor suposto": este não seria simplesmente um narrador, pois opera como "origem e garante" da narrativa, ou seja, assumindo a "paternidade" dela e a "responsabilidade de sua forma de apresentação" (BAPTISTA, 2003BAPTISTA, Abel Barros. A formação do nome: duas interrogações sobre Machado de Assis. Campinas: Editora da Unicamp, 2003., p. 138).2 2 A criação de um "autor suposto", segundo Baptista, se dá por meio de três procedimentos: 1) da assinatura, que indica o nome próprio do autor suposto e não necessariamente precisa ser feita por ele, podendo decorrer de atribuição; 2) da inscrição dessa assinatura num espaço próprio, geralmente no paratexto da obra; 3) da existência de outra assinatura, anterior à assinatura que remete ao autor suposto e que indica que esta última integra o plano da ficção. Nesse sentido, a conclusão de Baptista é a de que "o motivo do autor suposto consiste na exposição ficcional do próprio processo de assinatura do autor" (2003, p. 151, grifo do original).

Na advertência de Papéis avulsos, assinada por Machado de Assis, o autor ali figurado observa que o título da coletânea "parece negar ao livro uma certa unidade" e "faz crer" que ele "coligiu vários escritos de ordem diversa para o fim de os não perder", complementando que a "verdade é essa, sem ser bem essa" (ASSIS, 2008______. Obra completa em quatro volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008., v. 2, p. 236). Na sequência, pondera que tais "escritos" são, de fato, "avulsos", mas que não foram incorporados num único volume "como passageiros que acertam de entrar na mesma hospedaria": "São pessoas de uma só família, que a obrigação do pai fez sentar à mesma mesa" (ASSIS, 2008______. Obra completa em quatro volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008., v. 2, p. 236). Desse modo, dada a suposta heterogeneidade dos contos, o que garantiria o parentesco seria a autoria e não necessariamente a forma deles, pois, ainda que não configurem um conjunto, o "pai" (autor) é quem faz os "filhos" (contos) sentarem "à mesma mesa" (livro). Assim, ao mesmo tempo que sugere certa autonomia dos escritos - ficando em aberto o grau em que ela se daria -,3 3 Numa leitura mais aprofundada do livro a partir da advertência, seria importante que se considerasse uma possível relação de "Uma visita de Alcibíades" com os demais contos de Papéis avulsos, e de que modo ela repercute sobre o problema da autoria, o que demandaria uma análise mais extensa que extrapolaria o limite imposto ao presente trabalho. a advertência reforça a autoridade de Machado sobre a decisão de recolha e publicação deles, o que, no entanto, acaba problematizado em "Uma visita de Alcibíades" pelo seu início, que cumpre a função de paratexto. Nesse sentido, o confronto entre a advertência e o subtítulo do conto, que atribui ao desembargador a escrita da carta, gera uma tensão, deixando para os leitores o seguinte questionamento: em que medida pode o "pai" do livro responder pelo sentido do "filho" de outrem, ou seja, pelo manuscrito encontrado?

Isso posto, retenhamos por ora a ideia de que, conferindo mais do que um toque de graça a "Uma visita de Alcibíades", a atribuição de autoria presente no paratexto influencia de maneira profícua em sua forma. No conto, nos deparamos com a carta do desembargador, que se constitui como fragmento do episódio envolvendo o próprio escritor dela e que atua num duplo sentido: ao mesmo tempo que opera como suporte e matriz estilística da narrativa, a carta também participa como elemento interno da história - o ato de escrevê-la é mais uma ação dentre as que ocorreram no dia da evocação de Alcibíades. Portanto, não acompanhamos os acontecimentos por meio de um narrador de cunho didático ou que adota um ponto de vista totalizante, mas um relato confeccionado a partir da pena de alguém que escreve para um destinatário específico, o chefe de polícia da Corte, e que está diretamente envolvido naquilo que narra.

Ademais, vale notar a pertinência da precariedade de informações a respeito do remetente da carta e da inexistência de qualquer comentário introdutório fornecido por outrem acerca do episódio nela relatado, uma vez que as lacunas deixadas - pelo "editor" Machado de Assis, que supomos ser a figura responsável pela publicação do manuscrito - subordinam o leitor aos movimentos da pena do desembargador. Assim, ainda que para este último a presença de Alcibíades seja um caso extraordinário, a delimitação da narração ao seu ponto de vista por meio da carta não permite desfazer a ambiguidade em torno do efetivo rompimento ou não com as leis naturais - afinal, podemos questionar, não estaria o desembargador devaneando? No conto, os índices referentes ao manuscrito se restringem ao título e ao subtítulo, que se baseiam em informações neutras que não desfazem a tensão entre natural e sobrenatural presente na narrativa. Logo, engendra-se, de maneira estratégica, uma situação ficcional que propositadamente nos deixa sem dados suficientes para uma compreensão integral do episódio.

Nesse cenário, destaquemos algo basilar envolvendo o conto: a forma como se atribui ao desembargador a responsabilidade pela escrita da carta - manuscrito que configura o todo narrativo - corresponde, em gênero diverso, à construção de autores ficcionais que se verifica nos romances de Machado de Assis desde as Memórias póstumas de Brás Cubas, livro publicado em 1881. Embora no ato de delegar a autoria esteja ocultado o nome do autor suposto - revelação que seria fundamental para a sua constituição, segundo Baptista -, o dispositivo traz para a narrativa a consequência decisiva da introdução do gênero epistolar, fornecendo ao leitor acesso a uma versão da história inserida no conto sem qualquer interferência de alguém exterior aos acontecimentos vivenciados.

A questão fica mais interessante quando percebemos que "Uma visita de Alcibíades" sofreu alterações em seu processo de escrita que sinalizam o trabalho de Machado para configurar a parcialidade do ponto de vista a partir do dispositivo de atribuição de autoria, que se vincula com a introdução do gênero epistolar: o texto foi reescrito entre 1876 e 1882, ou seja, no período em que Machado compôs a obra de seu mais célebre autor ficcional, o defunto Brás Cubas. Não seria possível que as mudanças formais introduzidas no gênero romance estivessem ocorrendo simultaneamente no gênero conto?4 4 Alfredo Bosi (2003, p. 84), em avaliação panorâmica dos contos de Machado de Assis, observa que Papéis avulsos se coloca junto com Memórias póstumas como marco da maturação da ficção machadiana, o que fica sugerido pela seguinte passagem de seu ensaio: "A partir das Memórias póstumas e dos contos enfeixados nos Papéis avulsos importa-lhe cunhar a fórmula sinuosa que esconda (mas não de todo) a contradição entre parecer e ser, entre a máscara e o desejo, entre o rito claro e público e a corrente escusa da vida interior. E, reconhecido o antagonismo, seu olhar se detém menos em um possível resíduo romântico de diferença que na cinzenta conformidade, na fatal capitulação do sujeito à Aparência dominante". No caso específico de "Uma visita de Alcibíades", a atribuição de autoria articula-se proficuamente com a introdução do gênero epistolar, dispositivos que modernizaram sua forma, o que veremos a seguir.

"Uma visita de Alcibíades" em duas versões: do oral para o escrito

Em 1882, Machado de Assis publica Papéis avulsos, livro em que consta "Uma visita de Alcibíades" e onde encontramos a seguinte nota do autor acerca de sua composição: "Este escrito teve um primeiro texto, que reformei totalmente mais tarde, não aproveitando mais do que a ideia. O primeiro foi dado com um pseudônimo e passou despercebido" (ASSIS, 2008______. Obra completa em quatro volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008., v. 2, p. 343).5 5 A versão reescrita de "Uma visita de Alcibíades", antes de ser recolhida em Papéis avulsos em 1882, havia sido publicada pouco tempo antes na Gazeta de Notícias, no primeiro dia daquele ano. De fato, ele operou mudanças significativas em relação à primeira publicação do conto, no Jornal das Famílias, em outubro de 1876, assinada pelo pseudônimo Victor de Paula.

A versão presente no Jornal das Famílias explicita mais as referências a nomes da cultura ocidental que a de Papéis avulsos: nesta, além de ter ocultado o nome do desembargador, são suprimidas as menções a Allan Kardec e a Amyot, este último citado como tradutor de Plutarco. Ainda que Machado tenha feito essas exclusões, algumas passagens do texto foram desenvolvidas, como o diálogo do desembargador com Alcibíades, que deixou o conto mais extenso. Dentre tais modificações, há uma decisiva que orienta todas as demais: se na primeira versão o desembargador conta o episódio valendo-se do discurso oral, na de Papéis avulsos a narrativa chega até o leitor por meio do registro escrito.

Na primeira versão de "Uma visita de Alcibíades", o narrador apresenta o desembargador em meio a um grupo de amigos, que se reúne para a celebração do Natal na propriedade de um comendador. Ele sugere que o personagem, que se chama Álvares, é querido naquela casa - o anfitrião, por exemplo, cuida de satisfazer o gosto dele pelo café -, e o define como "conversado, galhofeiro, palrador, trazendo sempre no alforje da memória boa cópia de anedotas que distribuía às meninas e rapazes curiosos" (ASSIS, 1876ASSIS, Machado de. Uma visita de Alcibíades. Jornal das Famílias, Rio de Janeiro, out. 1876, p. 305-308. Disponível em: <Disponível em: http://hemerotecadigital.bn.br/acervo-digital/jornal-familias/339776 >. Acesso em: 15 dez. 2021.
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, p. 305). Em meio à festa e após o pedido de algumas moças para que contasse alguma anedota, ele narra aos convivas o episódio da evocação de Alcibíades:

Afiaram todos o ouvido, e o desembargador começou:

- Não contarei uma anedota mentirosa, dessas que os redatores de folhinhas aumentam ou remendam para regalo dos fregueses. Vou referir o que me aconteceu sábado passado. (ASSIS, 1876ASSIS, Machado de. Uma visita de Alcibíades. Jornal das Famílias, Rio de Janeiro, out. 1876, p. 305-308. Disponível em: <Disponível em: http://hemerotecadigital.bn.br/acervo-digital/jornal-familias/339776 >. Acesso em: 15 dez. 2021.
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, p. 305).

Dessa maneira termina a introdução a partir da qual se efetua a contação do episódio, com o narrador concedendo a palavra a Álvares, que passa, por sua vez, a ser o narrador da cena envolvendo a evocação de Alcibíades. Antes de iniciar a sua "anedota", ele tripudia sobre os "redatores de folhinhas", afirmando que ao contrário deles não contará um causo mentiroso. A zombaria, que combina bem com a adjetivação atribuída a ele, funciona mais como um gracejo que repercute sobre os leitores do Jornal das Famílias, suporte no qual o conto está publicado, do que a uma busca efetiva pela verossimilhança de cunho realista. Em verdade, o traço galhofeiro de Álvares articula-se com a situação na qual conta o episódio sobrenatural: em meio à festa, num momento de descontração. Assim, é como se leitor do conto se juntasse aos ouvintes presentes na cerimônia para acompanhar a exposição de um causo gracioso, retirado de improviso da memória (ou imaginação) de seu narrador.

Nesse sentido, se antes a narração ocorria certo tempo depois do evento narrado - ou conforme diz Álvares, no "sábado passado" -, na versão de Papéis avulsos o momento de escrita do relato se dá no mesmo dia do episódio, numa proximidade temporal que repercute na própria materialidade do manuscrito: "Desculpe vossa excelência o tremido da letra e o desgrenhado do estilo; entendê-los-á daqui a pouco" (ASSIS, 2008______. Obra completa em quatro volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008., v. 2, p. 328). A passagem, que sugere a conexão entre corpo e texto - lugar-comum da escrita epistolar -, encena o abalo emocional do desembargador, algo explorado na versão publicada em livro. Desse modo, apresentando um homem que escreve solitariamente, em ambiente privado, não mais para os convivas de uma festa e sim para o chefe de polícia, o conto adquire uma diferença de tom importante em relação àquele encontrado no Jornal das Famílias: não notamos a entonação galhofeira de Álvares, por vezes voltada para o riso franco e zombeteiro, mas um discurso narrativo que articula gravidade com humor - algo próximo à combinação entre a "pena da galhofa e a tinta da melancolia" (ASSIS, 2008______. Obra completa em quatro volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008., v. 1, p. 625), para lembrarmos o defunto autor Brás Cubas.6 6 Em estudo acerca da paródia em Papéis avulsos, Márlio Barcellos da Silva (2009, p. 27) faz a seguinte observação sobre a introdução do gênero epistolar em "Uma visita de Alcibíades": "A alteração da situação enunciativa para a de carta escrita por uma autoridade acentua o contraste entre forma e conteúdo, evidenciando que o conto faz passar, de modo paródico, um conteúdo absurdo ou impossível através de um discurso que se quer positivo, racional, institucionalizado, resultando no humor e na ironia tipicamente machadianos".

Embora o narrador oral de uma história também possa organizar o discurso a partir de determinadas convenções e dotá-lo de seriedade, no caso específico do conto machadiano a mudança para a forma escrita, com a projeção de um novo destinatário, possibilitou que se criasse, pela ficção, uma situação de composição da narrativa que se articulou proficuamente com a sua matéria: com a carta, elemento integrado à engrenagem do mundo social oitocentista, a normalização do desembargador frente à irrupção do extraordinário assume um fundo crítico dotado de gravidade, somando-se ao humorismo mais leve da primeira versão. Assim, não seria exagero afirmar que foi a mudança do oral para o escrito que viabilizou a alteração no tratamento artístico conferido à "ideia" original do conto, algo que pode ser mais bem notado em duas passagens: quando o desembargador relata ser espiritista, dado que fundamenta a evocação de Alcibíades; e no final da narrativa, momento em que o desembargador solicita os procedimentos do poder público.

No texto do Jornal das Famílias, a reação dos ouvintes após o desembargador ter revelado ser espiritista acentua o tom de blague da narração - "Não se riam; sou até muito" (ASSIS, 1876ASSIS, Machado de. Uma visita de Alcibíades. Jornal das Famílias, Rio de Janeiro, out. 1876, p. 305-308. Disponível em: <Disponível em: http://hemerotecadigital.bn.br/acervo-digital/jornal-familias/339776 >. Acesso em: 15 dez. 2021.
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, p. 306) -, reforçando para o leitor a ideia de que se trata de um relato despretensioso. Não por acaso, Álvares, cuja sonoridade remete ao plural de "alvar" (tolo, aparvalhado, ingênuo), pouco faz questão de convencer sobre a veracidade de sua história: diz acreditar que todos os "sistemas são niilidades", mas explica de maneira abrupta o porquê de ter adotado o espiritismo, contradição que fica resumida a ver este "sistema" como o "mais jovial de todos" (ASSIS, 1876ASSIS, Machado de. Uma visita de Alcibíades. Jornal das Famílias, Rio de Janeiro, out. 1876, p. 305-308. Disponível em: <Disponível em: http://hemerotecadigital.bn.br/acervo-digital/jornal-familias/339776 >. Acesso em: 15 dez. 2021.
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, p. 306). Escrevendo a partir da matriz estilística epistolar, Machado parece ter notado que a configuração dessa passagem estava muito simples para um tom discursivo mais ponderado, uma vez que a reformulou, conforme podemos verificar no quadro 1.

Quadro 1

Na versão de Papéis avulsos, de maneira semelhante à anterior, o desembargador anota que resolvera adotar o espiritismo, que seria "o mais recreativo" dos "sistemas", ainda que todos eles não passem de "puras niilidades". Mas ele vai além, provocando à reflexão: não haveria "raciocínio nem documento" que explicaria "melhor a intenção de um ato" do que "o próprio autor do ato". Por isso, dado o potencial de "evocar o espírito dos mortos", o espiritismo estaria se limitando a um aspecto "recreativo" e não à "solução dos problemas históricos". Essa colocação assume um viés irônico se nos lembrarmos que advém da pena de um homem que considera que os "sistemas" são "niilidades": sua religiosidade decorreria menos da crença na doutrina espírita do que de ter encontrado nela um "recreio" para si mesmo. Desse modo, ainda que de caráter incrédulo, o desembargador decide evocar Alcibíades, antecipando o "tempo virá", ou seja, cabendo a um cético buscar o momento em que o espiritismo alcançaria alguma serventia à "solução dos problemas históricos".

Na passagem de uma versão para outra há também uma diferença sutil na caracterização do espiritismo, uma vez que a doutrina é "jovial" para o desembargador Álvares e "recreativa" para o desembargador X: no primeiro caso, a adjetivação recai principalmente sobre a caracterização do personagem, acentuando sua superficialidade por se identificar com uma religião em razão de um modismo; já no segundo, o termo utilizado, ainda que forneça ideia análoga acerca do desembargador, coloca em questão a função e a efetividade do espiritismo. Assim, na versão de Papéis avulsos tal doutrina surge não apenas para caracterizar o personagem e operar como trampolim para a evocação de um morto, mas também como índice que se desdobra numa visão crítica acerca desse "sistema" a partir de uma provocação lançada àqueles que buscam a "recreação" e não o enfrentamento dos verdadeiros "problemas históricos" - algo do qual o próprio desembargador não se exime, afinal, a moda não seria um problema histórico decisivo num país cuja sustentação econômica estava baseada no regime escravista.

No que diz respeito ao final do conto, as duas versões apresentam um mesmo fato, a morte de Alcibíades após perceber o rumo que seu mundo tomara na história. A narração oral da primeira versão parece influenciar no tom anedótico até o seu desfecho, algo bastante diferente da formalidade inserida na versão de Papéis avulsos, conforme lemos no quadro a seguir.

Quadro 2

No encerramento da primeira versão do conto, Alcibíades percebe que o vestuário masculino moderno não está à altura da "elegância" do "legado" deixado pelo seu mundo, uma vez que os homens dos oitocentos o reduziram a "dois canudos fechados e dois canudos abertos", utilizando a "enfadonha e negativa" cor preta - "O mundo deve estar imensamente melancólico, se escolheu para uso uma cor tão morta e triste" (ASSIS, 1876ASSIS, Machado de. Uma visita de Alcibíades. Jornal das Famílias, Rio de Janeiro, out. 1876, p. 305-308. Disponível em: <Disponível em: http://hemerotecadigital.bn.br/acervo-digital/jornal-familias/339776 >. Acesso em: 15 dez. 2021.
http://hemerotecadigital.bn.br/acervo-di...
, p. 308). O ateniense redivivo não suporta o abalo emocional desencadeado pela visão do futuro e morre. Álvares, então, limita-se a dizer que mandou o defunto para o necrotério por meio de uma tirada que convida os ouvintes a rirem, o que reforça o tom cômico da narração destinada às pessoas numa festa.

Num primeiro momento, a ideia de que Álvares domina a contação de histórias pode fazer o leitor associá-lo à figura do narrador tradicional, descrito por Walter Benjamin (1994BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: ______. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 197-221., p. 200) como um indivíduo conectado à oralidade e que retira da própria experiência ou da que é relatada por outrem a "verdadeira narrativa", ou seja, uma história dotada de uma dimensão utilitária que consiste num "ensinamento moral", numa "sugestão prática", num "provérbio" ou numa "norma de vida" - "o narrador é um homem que sabe dar conselhos". No entanto, destituída desse viés construtivo, a narração parece propor a seus ouvintes - e, por conseguinte, ao leitor do texto - um exercício de relativização por meio do contraste de pontos de vista, evidenciando que a visão de mundo do homem não é estável e decorre da cultura de seu tempo, que se constitui enquanto construção histórica. Assim, a anedota de fundo humorístico de Álvares sugeriria a força do aspecto social na formação das subjetividades, mas sem proporcionar uma resposta positiva a respeito de tal questão.

Na reescrita de "Uma visita de Alcibíades", é possível que Machado tenha percebido que as convenções ligadas ao registro escrito se articulariam ainda melhor com a matéria presente na primeira versão do conto, desfazendo o resquício de vínculo com a oralidade ali presente. A tirada descompromissada de Álvares acerca da morte de Alcibíades dá lugar à escrita de alguém que se preocupa em cumprir as formalidades exigidas pela sociedade moderna e imprime em seu discurso um tom de seriedade: além do envio do corpo ao necrotério, o desembargador pede que "se proceda ao corpo de delito" e promete que comparecerá à casa do delegado na manhã seguinte - o que não fazia naquele momento em razão do "profundo abalo" pelo qual passara.

Nessa última versão do conto, Machado parece ter encontrado o perfeito equilíbrio entre a matéria da narrativa e o modo de expressão para municiá-lo de um fundo crítico em relação ao homem moderno: a reação do desembargador à visita e morte de Alcibíades não é marcada pelo deslumbramento diante do insondável, mas pela submissão ao convencional, que se revela no anticlímax do final - um homem, sozinho, que escreve para atender as normas de seu tempo e regularizar a sua situação mundana. O parágrafo final, dotado de uma linguagem moderada, garante a quebra de expectativa gerada nas primeiras linhas, efeito de sentido propiciado, sobretudo, pela introdução do gênero epistolar, conforme procuraremos demonstrar na parte final deste ensaio.

O desembargador vai ao Cassino: escrita epistolar e mundo rotinizado

Em estudo acerca da escrita epistolar, Nora Bouvet observa que um traço constitutivo do gênero está na ambivalência presença-ausência, uma vez que sua forma pressupõe a ausência dos interlocutores ao mesmo tempo que se constrói como uma "escrita da presença", procurando superar a distância entre os correspondentes: na carta, ao explicitar a situação comunicativa, registrando o nome de quem escreve, a quem se dirige e as circunstâncias de comunicação, a relação de interlocução estabelecida coloca em presença, ou seja, "discursivamente recorre ao procedimento da enunciação enunciada, textualizada, representada" (BOUVET, 2006BOUVET, Nora. La escritura epistolar. Buenos Aires: Eudeba, 2006., p. 66).8 8 Tradução livre da expressão "escritura de la presencia" e da seguinte passagem: "[...] discursivamente recurre al procedimiento de la enunciación enunciada, textualizada, representada" (BOUVET, 2006, p. 66). A explicitação da relação entre os correspondentes realiza-se no plano discursivo, fazendo do epistolar "escrita por excelência ancorada na presença de um indivíduo real que se transforma em enunciador de papel e transforma destinatário, tempo e espaço reais em fictícios, textuais" (BOUVET, 2006BOUVET, Nora. La escritura epistolar. Buenos Aires: Eudeba, 2006., p. 67).9 9 Tradução livre da passagem "[...] escritura por excelencia anclada en la presencia de un individuo real que se transforma en enunciador de papel y transforma a su destinatario, el tiempo y el espacio reales en ficticios, textuales" (BOUVET, 2006, p. 67).

A constatação de que a carta, mesmo quando produto de uma situação comunicativa real, opera enquanto construção textual e aquele que a escreve o faz em relação a uma série de convenções específicas e historicamente constituídas, aponta para o fato de que embora o texto esteja dotado de um estilo "natural", "confessional" ou "espontâneo", a expressividade nela atingida resulta de sua forma, isto é, da seleção e combinação das palavras, que, fixadas no papel, não necessariamente correspondem ao mundo psíquico daquele que escreve ou a um hipotético referencial externo.

Diante disso, em "Uma visita de Alcibíades" o desembargador compõe a carta valendo-se, em várias passagens, de um estilo expressivo que cria, no transcorrer do conto, uma tensão que parece prenunciar um final surpreendente para o estranho episódio que narra. Essa expectativa é projetada desde o início do texto, quando ele se desculpa pelo "tremido da letra e o desgrenhado do estilo", prometendo ao seu destinatário que este compreenderá o motivo do abalo "daqui a pouco" (ASSIS, 2008______. Obra completa em quatro volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008., v. 2, p. 328). De maneira semelhante a Álvares, o desembargador menciona as circunstâncias em que a visita inesperada ocorreu, ou seja, transportado por um tomo de Plutarco à vida de Alcibíades, foi rumo ao passado, esquecendo a vida presente. No entanto, a entrada de um escravizado na sala - dado presente apenas nessa segunda versão - o desperta de "toda a arqueologia" de sua "imaginação" (ASSIS, 2008______. Obra completa em quatro volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008., v. 2, p. 328). De volta à realidade, ainda que pudesse cogitar o que Alcibíades pensaria a respeito do escravizado, reflete consigo: "- Que impressão daria ao ilustre ateniense o nosso vestuário moderno?" (ASSIS, 2008______. Obra completa em quatro volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008., v. 2, p. 329). A pergunta, mantida da versão anterior, que propõe um ponto de vista estrangeiro para apreciação das vestimentas então contemporâneas, abre caminho para que ele revele ser "espiritista desde alguns meses" (ASSIS, 2008______. Obra completa em quatro volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008., v. 2, p. 329), o que fundamenta a evocação que faz do ateniense. Na passagem seguinte à que registra o surgimento de Alcibíades, o desembargador enfatiza a emoção que o atingiu naquele instante:

[…] ai de mim! Não o entendi logo, e deixei-me ficar assombrado. Ele repetiu a pergunta, olhou em volta de si e sentou-se numa poltrona. Como eu estivesse frio e trêmulo (ainda o estou agora) ele que o percebeu falou-me com muito carinho, e tratou de rir e gracejar para o fim de devolver-me o sossego e a confiança. Hábil como outrora! Que mais direi a vossa excelência? No fim de poucos minutos conversávamos os dois, em grego antigo, ele repotreado e natural, eu pedindo a todos os santos do céu a presença de um criado, de uma visita, de uma patrulha, ou, se tanto fosse necessário, - de um incêndio. (ASSIS, 2008______. Obra completa em quatro volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008., v. 2, p. 329).

A manifestação do abalo emocional do desembargador destaca-se mais do que o de seu antecessor Álvares, uma vez que enfatiza, pela escrita, a comoção psíquica desencadeada pela aparição de Alcibíades, que perdura até o momento de redação da carta: "frio e trêmulo", ele anota, valendo-se de exclamações, que pedia "a todos os santos do céu" o surgimento de algo que o retirasse daquela situação, o que lhe confere uma dimensão psíquica mais complexa. A matização de sua interioridade seria uma preocupação de Machado, que reelaborou a situação na qual o ateniense decide acompanhá-lo a uma festa. Nessa passagem, o "palrador" Álvares lida de maneira quase natural com a aparição de Alcibíades e, mantendo em sua memória a ideia de confrontar a visão de mundo grega com o vestuário moderno, convida-o a ir a uma soirée. Ao contrário dele, o remetente desembargador adota uma postura de retração, como se o profundo espanto diante da situação vivida o imobilizasse, desfazendo a intenção de travar contato com Alcibíades. Limitando-se a responder aos questionamentos do ateniense, que se mostra atormentado pelas mudanças históricas noticiadas, ele anota que não conseguiu prosseguir com o diálogo:

Mas eu não podia mais. Entrado no inextricável, no maravilhoso, achava tudo possível, não atinava por que razão, assim, como ele vinha ter comigo ao tempo, não iria eu ter com ele à eternidade. Esta ideia gelou-me. Para um homem que acabou de digerir o jantar e aguarda a hora do Cassino, a morte é o último dos sarcasmos. Se pudesse fugir… Animei-me: disse-lhe que ia a um baile. (ASSIS, 2008______. Obra completa em quatro volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008., v. 2, p. 330).

A menção que o desembargador faz ao baile, como vemos, surge do mal-estar provocado pela presença de Alcibíades, que lhe incute a ideia da possibilidade de morte. Retirado de uma rotina que inclui pequenos prazeres mundanos, ele procura livrar-se da situação embaraçosa recorrendo a um passeio. Alcibíades, pouco depois, decide acompanhá-lo, mas o desembargador não acha "prudente" (ASSIS, 2008______. Obra completa em quatro volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008., v. 2, p. 331) - manifestação contrária que só ocorre nessa versão do conto. Em sua visão, os homens do Cassino estranhariam a presença do grego, vestido com trajes incomuns. A proposta de vestir-se "à maneira do século" (ASSIS, 2008______. Obra completa em quatro volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008., v. 2, p. 331) surge, dessa vez, de Alcibíades, o que se articula com a noção de que o desembargador estava atordoado pela novidade da situação. Não por acaso, este último anota que se vestia "às pressas, ansioso por sair à rua", por meter-se no "primeiro tílburi que passasse…" (ASSIS, 2008______. Obra completa em quatro volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008., v. 2, p. 332).

Entretanto, no instante em que compõe a carta - momento em que ainda se dizia abalado -, o desembargador tece considerações sobre a motivação que o fizera adotar o espiritismo, rememora seus tempos de estudos e fornece detalhes da conversa que tivera com Alcibíades, o que justifica de tal modo: "Se entro nestas minúcias é para o fim de nada omitir do que possa dar a vossa excelência o conhecimento exato do extraordinário caso que lhe vou narrando" (ASSIS, 2008______. Obra completa em quatro volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008., v. 2, p. 330). Além disso, o abalo emocional do desembargador, encenado pela escrita, não se configurou como empecilho para que ele gracejasse com Alcibíades, dizendo que nem todos seriam como o ateniense, ou que desse risada da confusão do visitante, que pensou que o anfitrião iria se enforcar no momento em que colocava a gravata. Nesse sentido, considerando a função comunicativa da carta, ao invés de ter fornecido tantos detalhes referentes ao episódio e a si mesmo, não seria mais convincente, para quem se coloca discursivamente como estando em profunda perturbação emocional, se ele tivesse escrito um bilhete apenas mencionando o fato e solicitando as providências para o caso?

Em "Uma visita de Alcibíades", a oscilação entre passagens que revelam o relaxamento do espírito e outras que remetem à encenação do abalo emocional daquele que escreve pode ser compreendida a partir da relação que o remetente trava com o destinatário, que faz o texto ser atravessado pela ambiguidade entre a dimensão pública e a privada. O desembargador é amigo do chefe de polícia da Corte desde que são jovens, e o fato de escrever uma carta formal para um "companheiro de estudos", que inclusive conhecia a devoção do colega pelo mundo grego, apelidando-a - "devoção ou mania, que era o nome que vossa excelência lhe dava" (ASSIS, 2008______. Obra completa em quatro volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008., v. 2, p. 328) -, permite-lhe certa descontração: se faz uso de fórmulas usuais para uma mensagem de cunho formal, como nas passagens em que trata o chefe de polícia de "vossa excelência", o desembargador parece não se preocupar com uma possível suspeita sobre o absurdo que narra - afinal, trata-se de uma conversa entre iguais.

No encerramento do conto, contudo, o desembargador evita qualquer observação de cunho pessoal acerca do episódio, privilegiando a formalidade do discurso, que fornece o verniz de civilidade necessário à regularização de sua situação. O parágrafo final do manuscrito apresenta um homem moderado, que mais parece interessado em desfazer-se do problema de ter um defunto em casa do que propriamente propor uma reflexão sobre o acontecimento extraordinário - algo curioso para quem revelava intimidades na carta e afirmava, no mesmo texto, que acabava "de dar um grande passo na carreira do espiritismo" (ASSIS, 2008______. Obra completa em quatro volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008., v. 2, p. 329). Assim, se a emoção expressada pela escrita ao narrar o aparecimento de Alcibíades e as reflexões iniciais do desembargador prometiam ao leitor um desfecho que lhe fornecesse um pensamento proveitoso, o último parágrafo deixa o sentido da narrativa em aberto e garante o anticlímax, sugerindo sua busca quase automática pelo regresso às distrações triviais, como a ida a bailes do Cassino.

À vista disso, lembremos mais uma vez o ensaio de Walter Benjamin (1994BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: ______. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 197-221., p. 201), que, referindo-se ao surgimento do romance moderno, escreve que o romancista - e, poderíamos acrescentar, o remetente de "Uma visita de Alcibíades" - "segrega-se" e é "um indivíduo isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos e nem sabe dá-los". Da periferia do capitalismo, Machado parece ter intuído essa condição do narrador moderno, o que fica sugerido pela exclusão da narrativa de cunho oral em favor de uma nova situação ficcional no conto, a qual seria importante não perdermos de vista: ainda que as digressões do desembargador aparentem o maravilhamento com a situação, a atitude tomada por ele logo depois da visita de Alcibíades é escrever para o chefe de polícia da Corte, relatando o acontecimento e solicitando providências ao poder público - que, vale notar, não é exatamente público para ele, permitindo que lance gracejos. Desse modo, a carta não parece conter nenhum ensinamento ao leitor, mas apenas projetar um benefício próprio para o seu remetente.

Portanto, vimos que a entrada em cena de Alcibíades, com seu ponto de vista deslocado no tempo e no espaço, atesta, nas duas versões de "Uma visita de Alcibíades", a efemeridade da moda e evidencia que a percepção de si mesmo e do outro se articula com os valores culturais de uma época, fazendo, por conseguinte, com que desnaturalizemos a nossa própria visão de mundo, que pode ser compreendida como construção histórica. Mas essa reflexão - e outras possíveis - ficam a cargo do leitor, uma vez que o desembargador parece preferir a "digestão literária" (ASSIS, 2008______. Obra completa em quatro volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008., v. 2, p. 328) enquanto aguarda "a hora do Cassino" (ASSIS, 2008______. Obra completa em quatro volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008., v. 2, p. 330) - percepção de leitura que é motivada fundamentalmente pela introdução da carta e do dispositivo de atribuição de autoria no conto. Assim, a segunda versão do texto mostraria de maneira mais contundente que a anterior que, num mundo controlado e "melancólico" (ASSIS, 2008______. Obra completa em quatro volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008., v. 2, p. 332), a superficialidade configura-se como regra e o extraordinário cede o passo à trivialidade da rotina de certos homens.

Referências

  • ASSIS, Machado de. Uma visita de Alcibíades. Jornal das Famílias, Rio de Janeiro, out. 1876, p. 305-308. Disponível em: <Disponível em: http://hemerotecadigital.bn.br/acervo-digital/jornal-familias/339776 >. Acesso em: 15 dez. 2021.
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  • ______. Uma visita de Alcibíades. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 1 jan. 1882, p. 1. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=103730_02&pasta=ano%20188&pesq=&pagfis=3100>. Acesso em: 15 dez. 2021.
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  • ______. Obra completa em quatro volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008.
  • BAPTISTA, Abel Barros. A formação do nome: duas interrogações sobre Machado de Assis. Campinas: Editora da Unicamp, 2003.
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  • BOSI, Alfredo. A máscara e a fenda. In: ______. Machado de Assis: o enigma do olhar. São Paulo: Ática, 2003. p. 73-126.
  • BOUVET, Nora. La escritura epistolar. Buenos Aires: Eudeba, 2006.
  • CHARTIER, Roger. O que é um autor? Revisão de uma genealogia. Tradução de Luzmara Curcino e Carlos Eduardo de Oliveira Bezerra. São Carlos: EdUFSCar, 2021.
  • FOUCAULT, Michel. O que é um autor?. In: ______. Estética: literatura e pintura, música e cinema. Tradução de Inês Autran Dourado Barbosa. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. p. 264-298.
  • GENETTE, Gérard. Paratextos editoriais. Tradução de Álvaro Faleiros. Cotia: Ateliê, 2009.
  • SILVA, Márlio Barcellos Pereira da. Procedimentos paródicos e distanciamento irônico em Papéis avulsos, de Machado de Assis. Orientador: Hélio de Seixas Guimarães. 2009. 125 f. Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. Disponível em: <Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8149/tde-01122009-105716/pt-br.php >. Acesso em: 28 fev. 2022.
    » https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8149/tde-01122009-105716/pt-br.php
  • 1
    Roger Chartier (2021CHARTIER, Roger. O que é um autor? Revisão de uma genealogia. Tradução de Luzmara Curcino e Carlos Eduardo de Oliveira Bezerra. São Carlos: EdUFSCar, 2021., p. 29), reavaliando as proposições feitas por Foucault sobre a "função autor", observa o seguinte: "[...] essa "função autor" marcada pelo nome próprio é, de início, uma função de classificação dos discursos que permite as exclusões e inclusões em um corpus, atribuível a uma identidade única. Ela é, nesse sentido, fundadora da própria noção de obra e caracteriza certo modo de existência em comum de alguns discursos que são atribuídos a um único lugar de expressão e, por isso, ela própria é a responsável pela noção de escrita".
  • 2
    A criação de um "autor suposto", segundo Baptista, se dá por meio de três procedimentos: 1) da assinatura, que indica o nome próprio do autor suposto e não necessariamente precisa ser feita por ele, podendo decorrer de atribuição; 2) da inscrição dessa assinatura num espaço próprio, geralmente no paratexto da obra; 3) da existência de outra assinatura, anterior à assinatura que remete ao autor suposto e que indica que esta última integra o plano da ficção. Nesse sentido, a conclusão de Baptista é a de que "o motivo do autor suposto consiste na exposição ficcional do próprio processo de assinatura do autor" (2003BAPTISTA, Abel Barros. A formação do nome: duas interrogações sobre Machado de Assis. Campinas: Editora da Unicamp, 2003., p. 151, grifo do original).
  • 3
    Numa leitura mais aprofundada do livro a partir da advertência, seria importante que se considerasse uma possível relação de "Uma visita de Alcibíades" com os demais contos de Papéis avulsos, e de que modo ela repercute sobre o problema da autoria, o que demandaria uma análise mais extensa que extrapolaria o limite imposto ao presente trabalho.
  • 4
    Alfredo Bosi (2003BOSI, Alfredo. A máscara e a fenda. In: ______. Machado de Assis: o enigma do olhar. São Paulo: Ática, 2003. p. 73-126., p. 84), em avaliação panorâmica dos contos de Machado de Assis, observa que Papéis avulsos se coloca junto com Memórias póstumas como marco da maturação da ficção machadiana, o que fica sugerido pela seguinte passagem de seu ensaio: "A partir das Memórias póstumas e dos contos enfeixados nos Papéis avulsos importa-lhe cunhar a fórmula sinuosa que esconda (mas não de todo) a contradição entre parecer e ser, entre a máscara e o desejo, entre o rito claro e público e a corrente escusa da vida interior. E, reconhecido o antagonismo, seu olhar se detém menos em um possível resíduo romântico de diferença que na cinzenta conformidade, na fatal capitulação do sujeito à Aparência dominante".
  • 5
    A versão reescrita de "Uma visita de Alcibíades", antes de ser recolhida em Papéis avulsos em 1882, havia sido publicada pouco tempo antes na Gazeta de Notícias, no primeiro dia daquele ano.
  • 6
    Em estudo acerca da paródia em Papéis avulsos, Márlio Barcellos da Silva (2009SILVA, Márlio Barcellos Pereira da. Procedimentos paródicos e distanciamento irônico em Papéis avulsos, de Machado de Assis. Orientador: Hélio de Seixas Guimarães. 2009. 125 f. Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. Disponível em: <Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8149/tde-01122009-105716/pt-br.php >. Acesso em: 28 fev. 2022.
    https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8...
    , p. 27) faz a seguinte observação sobre a introdução do gênero epistolar em "Uma visita de Alcibíades": "A alteração da situação enunciativa para a de carta escrita por uma autoridade acentua o contraste entre forma e conteúdo, evidenciando que o conto faz passar, de modo paródico, um conteúdo absurdo ou impossível através de um discurso que se quer positivo, racional, institucionalizado, resultando no humor e na ironia tipicamente machadianos".
  • 7
    Em verdade, na edição referenciada consta "revelando-me" em vez de "relevando-me". Considerando o sentido do texto e o fato de que na versão do conto publicada na Gazeta de Notícias lemos "revelando-me", optamos por este último verbo.
  • 8
    Tradução livre da expressão "escritura de la presencia" e da seguinte passagem: "[...] discursivamente recurre al procedimiento de la enunciación enunciada, textualizada, representada" (BOUVET, 2006BOUVET, Nora. La escritura epistolar. Buenos Aires: Eudeba, 2006., p. 66).
  • 9
    Tradução livre da passagem "[...] escritura por excelencia anclada en la presencia de un individuo real que se transforma en enunciador de papel y transforma a su destinatario, el tiempo y el espacio reales en ficticios, textuales" (BOUVET, 2006BOUVET, Nora. La escritura epistolar. Buenos Aires: Eudeba, 2006., p. 67).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    07 Abr 2022
  • Aceito
    04 Maio 2022
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