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O ORADOR PERFEITO DE MACHADO DE ASSIS

THE PERFECT ORATOR BY MACHADO DE ASSIS

Resumo

No ensaio, examina-se alguma prosa de Machado de Assis, objetivando-se discutir sua filiação a diversos autores situados entre a Antiguidade e a era Moderna, como Aristóteles, Cícero, Luciano de Samósata e Fernão Mendes Pinto. Para além de restituir os intertextos, procede-se à análise e interpretação dialógica dessas obras, com o fim de sugerir a aplicação de preceitos retóricos na composição de narradores e personagens dotados de competência oratória.

Palavras-chave:
Luciano de Samósata; Fernão Mendes Pinto; Machado de Assis

Abstract

In this essay, we examine Machado de Assis's prose, with the aim to discuss his affiliation with various authors located between Antiquity and the Modern era, such as Aristotle, Cicero, Lucian, and Fernão Mendes Pinto. In addition to restoring the intertexts, we intend to make a dialogical analysis and interpretation of these works, suggesting the application of rhetorical precepts in the composition of narrators and characters endowed with oratory competence.

Keywords:
Lucian; Fernão Mendes Pinto; Machado de Assis

Guardai-vos dos escribas, que querem andar com vestes compridas; e amam as saudações nas praças, e as principais cadeiras nas sinagogas, e os primeiros lugares nos banquetes; Que devoram as casas das viúvas, fazendo, por pretexto, largas orações. Estes receberão maior condenação.

Bíblia de Jerusalém (2015BÍBLIA de Jerusalém. São Paulo: Edições Paulinas, 2015.), Lucas 20: 46-47

Diversos estudiosos apontaram relações intertextuais entre a prosa de Machado de Assis e as obras legadas por autores antigos: gregos, latinos, sírios e outros. O diálogo intertextual produzido com a obra de Luciano de Samósata é prontamente atestado e se acentua num daqueles pontos que distinguem o estilo machadiano: a ironia crítica e ferina.

Em estudo hoje incontornável, Enylton de Sá Rego (1989REGO, Enylton de Sá. O calundu e a panaceia: Machado de Assis, a sátira menipeia e a tradição luciânica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989., p. 16) percebeu que, no Brasil, os primeiros trabalhos a aproximar Machado de Luciano aconteceram na década de 1970 - Dirce Côrtes Riedel (2008RIEDEL, Dirce Côrtes. Tempo e metáfora em Machado de Assis. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2008 [1959,1974]. [1974]), José Guilherme Merquior (1979MERQUIOR, José Guilherme. Machado de Assis e a prosa impressionista. In: ______. De Anchieta a Euclides: breve história da literatura brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979. p. 150-201. ), Teresa Pires Vara (1976VARA, Teresa Pires. A mascarada sublime: estudo de Quincas Borba. São Paulo: Livraria Duas Cidades; Secretaria de Cultura, Ciência e Tecnologia, 1976.) etc. -, atrelados à "divulgação dos trabalhos de Mikhail Bakhtin na Europa". Desde então, parte dos estudiosos passou a considerar o diálogo provável entre suas obras, como Ivan Teixeira (2010TEIXEIRA, Ivan. O altar & o trono: dinâmica do poder em "O Alienista". Cotia: Ateliê Editorial ; Campinas: Editora Unicamp, 2010., p. 141), para quem "[...] a adoção da sátira menipeia em Machado associa-se à necessidade dialética de ajustar o texto ao veículo a que se destinava", o que resultava em "uma arte com aparência de estar um pouco acima das condições do próprio ambiente".

É nesse plano dialógico que vemos a construção paródica do orador perfeito pelo escritor: "Em qualquer campo é muito difícil expor o modelo - o que em grego se chama charakter - da perfeição, já que o perfeito para uns é uma coisa e para outros, outra" (CICERÓN, 2010CICERÓN. El orador. 4. reimp. Tradução de Eustaquio Sánchez Salor. Madrid: Alianza Editorial, 2010., p. 43, tradução nossa). Para Cícero, o orador perfeito seria o que alcançasse todos os ofícios dos gêneros do discurso, mostrando em seu estilo próprio virtudes discursivas conquistadas pela imitação de grandes modelos da oratória. Ora, vários textos de Machado sugerem como deve falar um orador instruído nos saberes da linguagem e trejeitos performativos. De acordo com Dílson Ferreira da Cruz (2009CRUZ, Dílson Ferreira da. O ethos dos romances de Machado de Assis. São Paulo: Edusp; Nankin, 2009., p. 71):

Isócrates dizia que o homem de prestígio convence com mais facilidade que o desconhecido. Aristóteles não discorda; a divergência surge na origem do prestígio; para Isócrates ele é construído por outros discursos; para o Estagirita, nasce do discurso em ato, se assim podemos dizer. Se a enunciação é um enunciado que tem intencionalidade como predicado e o próprio discurso como objeto, então, talvez se possa afirmar que o éthos é também um enunciado que faz-ser o sujeito, cujo objeto também é o discurso, e o predicado é, especificamente, o fazer-crer. (grifos do autor)

Algumas personagens efetivam esse caráter em seus romances e contos. No entanto, suas qualidades oratórias são quase sempre expressadas pelo avesso, graças à ironia, pois trata-se usualmente de falsos pensadores e palestrantes de ocasião que, sob a aparência de palavras opulentas, repetem platitudes e falácias enquanto agradam os ouvintes. Seus oradores são versões paródicas do orador ciceroniano e seus discursos são pastiche dos modelos. Das Memórias póstumas de Brás Cubas, os pesquisadores costumam eleger Vilaça como um marcante. Esse orador-de-mesa é apresentado no capítulo XII, quando o narrador-defunto reconta um episódio transcorrido em 1814.

A entrada do Dr. Vilaça no enredo começa com o relato de sua performance oratória num jantar da família Cubas, quando Brás era criança. Vilaça marca presença graças à sua fala eloquente, combinada, na sequência da narração, à breve descrição física e, algumas linhas depois, à descrição do seu caráter, numa convencional etopeia,1 1 "Etopeia é a imitação do caráter de uma personagem proposta, por exemplo: 'que palavras pronunciaria Andrômaca perante o cadáver de Heitor?'." (TÉON; HERMÓGENES; AFTÔNIO, 1991, p. 193). ou descrição do caráter da personagem - tudo de modo sucinto.

De certo modo, o teor do discurso e a performance desse comensal, figura imprescindível em almoços de família abastada, recorda este ensinamento de Aristóteles (2012ARISTÓTELES. Retórica. Tradução de Edson Bini. São Paulo: EDIPRO, 2012., p. 83-84, Ret., 1378a): "Muito conta para a persuasão [...] a forma como o orador se apresenta e como dá a entender as suas disposições aos ouvintes, fazendo com que, da parte destes, também haja um determinado estado de espírito em relação ao orador".

Revisitemos alguns excertos, dentre os quais a primeira menção a ele no romance, que permite ao leitor de Luciano de Samósata estabelecer analogias com o protagonista do diálogo O parasita ou papa-jantares:

[...] o Dr. Vilaça, glosador insigne, que acrescentou aos pratos de casa o acepipe das musas (ASSIS, 2019______. O Alienista. Rio de Janeiro: Antofágica, 2019b.a, p. 64).

[...] lembra-me de o ver erguer-se, com a sua longa cabeleira de rabicho, casaca de seda, uma esmeralda no dedo, pedir a meu tio padre que lhe repetisse o mote, e, repetido o mote, cravar os olhos na testa de uma senhora, depois tossir, alçar a mão direita, toda fechada, menos o dedo índice, que apontava para o tecto; e, assim posto e composto, devolver o mote glosado. Não fez uma glosa, mas três; depois jurou aos seus deuses não acabar mais (ASSIS, 2019______. O Alienista. Rio de Janeiro: Antofágica, 2019b.a, p. 64).

O mote glosado, durante o evento social reportado na narrativa, faz de Vilaça um poeta, em tese eloquente, cuja actio (ação, performance) o narrador reteve na memória por toda a vida e agora reconstitui do além-túmulo, justapondo glosa e grandiloquência. Manuais de oratória antiga efetivamente ensinavam o uso do corpo como subsídio para a expressão do discurso bem proferido, como lemos na Retórica a Herênio:

Movimento do corpo é o controle dos gestos e do semblante que torna mais provável o que pronunciamos. Convém que haja pudor e acrimônia no semblante; nos gestos, nem encanto, nem fealdade devem chamar atenção, para que não pareçamos histriões ou operários. Também o método de mover o corpo deve acomodar-se àquelas partes em que se distribui a voz (RETÓRICA, 2005RETÓRICA a Herênio. Tradução de Ana Paula Celestino Faria e Adriana Seabra. São Paulo: Hedra, 2005. , p. 179).

De volta ao romance, nota-se que o nosso palestrante utiliza as mãos, os dígitos, a fixação do olhar num ponto de apoio - ferramentas corporais cujo uso é ensinado na arte da composição do caráter, ou seja, do éthos do bom orador. Além da composição da personagem - posto e composto são as palavras empregadas por Machado de Assis -, o orador-poeta atende a outro requisito da oratória: reverencia seus modelos de imitação, suas auctoritates:

- A senhora diz isso, retorquia modestamente o Vilaça, porque nunca ouviu o Bocage, como eu ouvi, no fim do século, em Lisboa. Aquilo sim! Que facilidade! E que versos! Tivemos lutas de uma a duas horas, no botequim do Nicola, a glosarmos, no meio de palmas e bravos. Imenso talento o do Bocage! (ASSIS, 2019______. O Alienista. Rio de Janeiro: Antofágica, 2019b.a, p. 64).

Afetando modéstia, que é própria dos homens discretos,2 2 De acordo com João Adolfo Hansen (1996, p. 79), "[...] no século XVII, é discreto o que não é vulgar. Como o vulgar é definido como o 'espírito fraco' levado pelo gosto confuso que se deixa enganar pelas aparências, discreto é aquele capaz de produzir aparências adequadas, porque tem o juízo. Assim, a discrição seiscentista é um saber ou uma técnica da imagem". o grande orador declara o talento apenas do excelente poeta Bocage, nunca o próprio, o que seria considerado um vício pela retórica, pertinente apenas se ouvido da boca de vulgares ou loucos. Além de demonstrar que é educado nas boas maneiras do gestuário e da linguagem, Vilaça comprova também sua convivência entre pares ilustres da república das letras. Assim, arrebanha o prestígio que a proximidade com altas figuras da corte portuguesa produz no imaginário dos ouvintes.

Não por acaso, em sua presença "[...] as damas sentiam-se superfinas;" (ASSIS, 2019______. O Alienista. Rio de Janeiro: Antofágica, 2019b.a, p. 64), pois ele aplica a lição aristotélica (ARISTÓTELES, 2012ARISTÓTELES. Retórica. Tradução de Edson Bini. São Paulo: EDIPRO, 2012., p. 85, Ret., 1378a) de que "As emoções são as causas que fazem alterar os seres humanos e introduzem mudanças nos seus juízos". Apenas a sua reputação moral é superficialmente maculada pela brejeirice infantil de Brás Cubas. Movido por infantil vingança, ele denuncia aos convivas as "chispas de volúpia" (ASSIS, 2019a______. Memórias póstumas de Brás Cubas. Rio de Janeiro: Antofágica, 2019a., p. 67) do "grave", "maduro" e "casado" (ASSIS, 2019a______. Memórias póstumas de Brás Cubas. Rio de Janeiro: Antofágica, 2019a., p. 66) Dr. Vilaça pela donzelona D. Eusébia. Os índices de fidedignidade (a datação - 1814 - e os testemunhos espaciais e sociais - Lisboa, botequim do Nicola, Casa Cadaval, o título de doutor) preenchem a verossimilhança necessária ao enredo.

Esses ingredientes evidenciam a desproporção entre a pompa da alta burguesia latifundiária e as amenidades performadas com grandiloquência. Quer dizer, o problema não está na retórica, arte da persuasão, mas no mau uso que dela fazem os inopinados falastrões - o que reforça o tom geral de rebaixamento, ou falta de decoro, a que se referia Dirce Côrtes Riedel (2008RIEDEL, Dirce Côrtes. Tempo e metáfora em Machado de Assis. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2008 [1959,1974]., p. 19):

O texto de Machado é quase sempre baseado na paródia. No entanto, o narrador, sempre ambíguo, parodia ao mesmo tempo em que negaceia o conflito das duas vozes. Fica, ambivalentemente, entre a paródia e a estilização, sem se pronunciar por uma nem por outra. Parodiam-se tipos sociais e caracteres individuais, históricos ou literários; personagens parodiam personagens; personagens parodiam a si próprios; operam-se paródias de paródias; sistemas parodiam sistemas; doutrinas parodiam doutrinas…

O referido diálogo O parasita ou papa-jantares, de Luciano ([s. dLUCIANO de Samósata. O parasita ou o papa-jantares. Lisboa: & etc., [s. d.]..]), incide na construção de um caráter muito duvidoso da personagem central: um habitual conviva de festas e casas, cuja ambiguidade moral recorda certos pícaros ou nossos lendários "malandros" nacionais. A personagem que nomeia o livro insiste no caráter amoral da arte da bajulação. Todavia, outro livro de Luciano parece ser o interlocutor mais direto de Machado de Assis, quanto à composição por irrisão do bom orador. Em O mestre de retórica (LUCIEN, [1933-1934LUCIEN de Samosate. Œuvres complètes. Tradução de Émile Chambry. Paris: Librairie Garnier Frères, [1933-1934]. v. 3.]), o autor sírio do século II apresenta caminhos para a conquista do que chama de "o fogo belo da retórica". Apesar de avisar aos leitores (que oportunamente poderão postular a arte da boa conversação letrada) que o caminho para a conquista da oratória é "rude e escarpado", o orador de Luciano exibe traços que serão os mesmos vistos no romance machadiano.

No primeiro deles, encaixa-se justamente o Dr. Vilaça, das Memórias póstumas de Brás Cubas, orador que transita entre a prosa e a poesia. Em segundo lugar, a figura da Glória da retórica aparece cercada de Elogios, numa imagem visual proposta por Luciano em que os pequenos Amores, ou seja, imagens infantis de amores, cercam a montanha da retórica - alegorizada como o grande Nilo, sobre o dorso de um hipopótamo ou crocodilo -, que aguarda ser conquistada pela eloquência de quem souber dominar sua arte.

Ao que parece, são essas imagens, figurações e ideias que presidem o delírio relatado no capítulo VII por Brás Cubas. Enquanto sonha, o enunciador é arrebatado por um hipopótamo que o faz percorrer caminhos da virtude retórica do bem falar e escrever, cujo destino seria a origem dos tempos. Difícil como o acesso a uma montanha, "a origem dos séculos" (ASSIS, 2019______. O Alienista. Rio de Janeiro: Antofágica, 2019b.a, p. 39) pareceu-lhe demasiado distante. No entanto, como efetivamente a arte retórica opera a partir da conquista de virtudes discursivas pelo aprendiz, é verossímil, no plano onírico, que o hipopótamo de Cubas siga adiante rumo à conquista da destreza nas letras, até que o protagonista se sinta sereno para a empresa, "fechando os olhos" (ASSIS, 2019a______. Memórias póstumas de Brás Cubas. Rio de Janeiro: Antofágica, 2019a., p. 39) ao fitar a glória da ventura.

[...] perguntando-lhe, visto que ele falava, se era descendente do cavalo de Aquiles ou da asna de Balaão, retorquiu-me com um gesto peculiar a estes dois quadrúpedes: abanou as orelhas. Pela minha parte fechei os olhos e deixei-me ir à ventura. [...] por saber onde ficava a origem dos séculos, se era tão misteriosa como a origem do Nilo, e sobretudo se valia alguma coisa mais ou menos do que a consumação dos mesmos séculos. (ASSIS, 2019______. O Alienista. Rio de Janeiro: Antofágica, 2019b.a, p. 39)

Seguindo sobre o dorso de um hipopótamo que faz circunvoluções elogiosas ao redor da imensidão da retórica, figurativamente uma montanha de difícil subida, o orador de Machado de Assis segue de olhos fechados, porque é capaz de reconhecer a virtude em face das aparências, ainda que impedido ocasionalmente de usar a visão, como Luciano prescreve ao seu orador e, do mesmo modo, como convém a todo defunto.

Em outros relatos e diálogos, Luciano de Samósata escarnece dos sujeitos bem-falantes, retoricões de seu tempo, que afetam dominar as virtudes pela construção de discursos sofísticos com aparência de verdade, com que esperam granjear falsos elogios públicos. Poetastros, charlatões e oradores de mesa são figuras que aparecem nos livros dos dois autores, embora tão distantes cronologicamente. No texto Contra um bibliômano ignorante (LUCIEN, [1933-1934LUCIEN de Samosate. Œuvres complètes. Tradução de Émile Chambry. Paris: Librairie Garnier Frères, [1933-1934]. v. 3.]), mais uma vez Luciano calunia a pseudoerudição, bem como a ostentação gratuita de saberes em diversas manifestações materiais: bibliotecas copiosas, citação de livros, bajulação pública, registros de linhagens e outras.

Ora, esses traços também são encontrados nos bajuladores de Machado de Assis, e não apenas dele. Quem não se lembra do Conselheiro Acácio, de Eça de Queirós? Retirado das páginas d'O primo Basílio, os lexicógrafos não resistiram a registrar o antropônimo "acaciano" para se referir àquele que se exprime com exagero de ornamentos em sentenças vazias. Tudo se passa como se os autores ridicularizassem as incompatibilidades entre a postura caricata e o discurso inflado do orador, frente a um auditório facilmente impressionável, cognitiva e culturalmente abaixo da mediania.

De modo semelhante, em numerosos contos Machado de Assis fustiga falsos eruditos. Em "As bodas de Luís Duarte", a situação festiva remete aos mesmos lugares de Luciano: mesa, jantares, parasitas. Trata-se, no caso, do formalista e cerimonioso Dr. Valença, o sereno padrinho, e do Tenente Porfírio, que cita sentenças de Cícero ao discursar sobre o himeneu. Seguem-se as convencionais descrições física e moral, que Machado aprendeu na mesma montanha da retórica, cujo ápice não se lhe afigura acessível pelo regime das aparências:

Era ele [Dr. Valença] homem de seus cinquenta anos, nem gordo nem magro, mas dotado de um largo peito e um largo abdômen que lhe davam maior gravidade ao rosto e às maneiras. O abdômen é a expressão mais positiva da gravidade humana; [...]. Compreendeu este advogado, logo que saiu da academia, que a primeira condição para merecer a consideração dos outros era ser grave [...] (ASSIS, 2015ASSIS, Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 2015. v. 2., p. 174).

A paródia é dupla. De um lado, o narrador revela que, tão logo recebeu o título de bacharel, o Dr. Valença percebeu que o porte físico traduziria gravidade e, combinado às maneiras adequadas, granjearia melhor "a consideração dos outros"; de outro, a aparência equilibrada ("nem gordo nem magro") e a idade madura ("cinquenta anos") condizem com o teor medíocre do diálogo que mantém com Vilela, a discutir "as vantagens do tempo antigo sobre o tempo atual" (ASSIS, 2015ASSIS, Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 2015. v. 2., p. 175).

Os retratos enfileirados pelo narrador são muito divertidos, mas não se limitam a provocar o riso; servem a desqualificar os convivas que tomam parte dos preparativos e festividades em torno do casamento - símbolo inconteste das convenções sociais:

Trajava Justiniano Vilela como é de uso em tais reuniões; e a única coisa verdadeiramente digna de nota eram os seus sapatos ingleses de apertar no peito do pé por meio de cordões. Ora, como o marido de d. Margarida tinha horror às calças compridas, aconteceu que apenas se sentou deixou patente a alvura de um fino e imaculado par de meias (ASSIS, 2015ASSIS, Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 2015. v. 2., p. 173).

A atenção do narrador ao pormenor descortina a mascarada praticada por esses membros da alta sociedade e reforça o contraste entre a empáfia e o ridículo. Nas Memórias póstumas, Brás Cubas encontra Quincas Borba, antigo colega dos tempos de escola, em duas ocasiões. Na primeira, ele mal consegue corresponder ao abraço do mendigo-filósofo, que se encontrava em estado de miséria; na segunda vez, a situação é bem diferente. Quincas Borba está seguro, limpo e elegante. Sujeito frívolo, o defunto-narrador repara nas botas italianas, no corte da roupa e na qualidade dos acessórios que o amigo ostenta. De certo modo, a nova indumentária autoriza o reingresso social do filósofo-herdeiro. Recorde-se que ele só passa a teorizar sobre Humanitas quando se torna habitué de Brás.

Em alguns tipos, a capacidade de imaginar aventuras evidencia a mediocridade da existência. É o caso de Rangel, protagonista de "O Diplomático". Tímido em relação às mulheres, fantasiava cenas em que atuava como irresistível conquistador. Implacável, o narrador interrompe-lhe a ousadia:

Voltava da festa e do cortejo, como voltava do baile, impetuoso, ardente, capaz de arrebatar de um lance a palma da fortuna. O pior é que entre a espiga e a mão, há o tal muro do poeta, e o Rangel não era homem de saltar muros (ASSIS, 2015ASSIS, Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 2015. v. 2., p. 487).

O poeta a que o narrador se refere pode ser Luís de Camões (2000CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. Lisboa: Moderna Editorial Lavores, 2000. , p. 335), como sugere o verso 78 do canto IX de Os Lusíadas; mas também pode se tratar do soneto LVI do Cancioneiro de Petrarca (2014PETRARCA, Francesco de. Cancioneiro. Tradução de José Clemente Pozenato. Cotia: Ateliê Editorial, 2014., p. 122), frequentemente emulado pelo autor português. Além de funcionar como metáfora que traduz o comportamento inseguro de Rangel, a citação corrobora o gosto do narrador em aludir a poetas recomendados pela tradição. O efeito imediato é de rebaixamento. Menosprezando os quatro séculos que o separam do modelo italiano, o enunciador emprega um verso lírico exemplar como pretexto para soar erudito, com o que se sente autorizado a condenar as atitudes do protagonista.

E o que dizer de Simão Bacamarte, aquele médico "forrado de Catão" que vemos na novela O Alienista? Polímata que entendia de cristianismo, lógica averroísta, maometanismo, ciência e psiquiatria, nem ele resiste ao emprego de expressões destoantes:

Três dias depois, numa expansão íntima com o boticário Crispim Soares, desvendou o alienista o mistério do seu coração.

- A caridade, Sr. Soares, entra decerto no meu procedimento, mas entra com tempero, como o sal das coisas, que é assim que interpreto o dito de São Paulo aos Coríntios: "Se eu conhecer quanto se pode saber, e não tiver caridade, não sou nada". O principal nesta minha obra da Casa Verde é estudar profundamente a loucura, os seus diversos graus, classificar-lhe os casos, descobrir enfim a causa do fenômeno e o remédio universal. Este é o mistério do meu coração. Creio que com isto presto um bom serviço à humanidade (ASSIS, 2019______. O Alienista. Rio de Janeiro: Antofágica, 2019b.b, p. 41-42).

O narrador prediz que o diálogo entre médico e boticário se trata de arroubo locutório ("expansão íntima") e imediatamente rebaixa o tom da confidência ("mistério do seu coração"), a parodiar certas sentenças encontradas na Bíblia - dado reforçado pela referência à epístola de Paulo aos Coríntios. Repare-se que o tom adotado pelo narrador não destoa em relação ao alienista. Essa proximidade de teor e estilo sugere conivência entre as vozes que embalam o discurso ambivalente de um e outro.

Embora Simão afirme se tratar de uma obra de "caridade", a ênfase do experimento na vila de Itaguaí recai sobre si mesmo ("nesta minha obra"), o que o aproxima de Brás Cubas, com a sua sanha por encontrar um "remédio universal" (como diz o médico) para "aliviar a nossa melancólica humanidade" (ASSIS, 2019______. O Alienista. Rio de Janeiro: Antofágica, 2019b.a, p. 23). A confissão de Simão Bacamarte a Crispim Soares se encerra retomando a mesma expressão anunciada pelo narrador ("mistério do seu coração"), o que além de fechar o circuito, reitera o misto de megalomania e afetação caritativa; sabedoria e pieguice, talvez por conta da "expansão íntima" com o seu bajulador-mor.

Machado de Assis recorreu a várias instâncias para sugerir a relativa proficiência de seus narradores e personagens. Os artifícios persuasivos ou patéticos não se restringem às palestras de homens doutos, nem às glosas de um poetastro, tampouco aos diálogos entre sujeitos no Passeio Público. Podem conformar registros em forma de diário, como lemos nas memórias de Bento Santiago (ASSIS, 2021______. Dom Casmurro. 1. reimp. Rio de Janeiro: Antofágica, 2021., p. 17-18):

Construtor e pintor entenderam bem as indicações que lhes fiz: é o mesmo prédio assobradado, três janelas de frente, varanda ao fundo, as mesmas alcovas e salas. Na principal destas, a pintura do teto e das paredes é mais ou menos igual, umas grinaldas de flores miúdas e grandes pássaros que as tomam nos bicos, de espaço a espaço. Nos quatro cantos do teto as figuras das estações, e ao centro das paredes os medalhões de César, Augusto, Nero e Massinissa, com os nomes por baixo… Não alcanço a razão de tais personagens. Quando fomos para a casa de Matacavalos, já ela estava assim decorada; vinha do decênio anterior. Naturalmente era gosto do tempo meter sabor clássico e figuras antigas em pinturas americanas.

Estamos no segundo capítulo de Dom Casmurro. Após a indigesta conversação com o rapaz do trem, poeta de qualidade duvidosa, o narrador pretende nos mostrar os seus dotes de advogado eloquente. O tom é melancólico; a minuciosa descrição da atual residência se pauta pela nostalgia da antiga casa em que vivera com os pais, servos e agregados, durante a confortável e alegre infância na rua de Matacavalos. Para além de julgarmos a decoração cafona da sala "principal" - que sobrepõe fauna, flora e estações do ano -, chama a atenção a presença dos três imperadores romanos e do rei da Numídia, aliado daquele Império.

Um tanto esquecido pela crítica machadiana, o estudo de Maria Nazaré Lins Soares (1968SOARES, Maria Nazaré Lins. Machado de Assis e a análise da expressão. Rio de Janeiro: INL, 1968., p. 4-5) foi pioneiro ao descortinar o mau uso da retórica por esses narradores e personagens. Ela alertava para o fato de que:

Os topoi, bem como esquemas metafóricos largamente usados pelos antigos poetas, transformaram-se em clichês de emprego universal na literatura. A partir da Renascença, principalmente, e até o fim do século XVIII, o valor de uma obra era medido por sua maior ou menor conformação aos modelos antigos, tomados como padrão para cada gênero.

Entretanto, o vendaval romântico trouxe uma "falsa compreensão dos ensinamentos da retórica". A ficção sugere que o "como dizer" se interpôs ao "que dizer". Isso explicaria por que, na prosa de Machado, oradores e auditórios percebiam a eloquência própria ou alheia como um pré-requisito para brilhar e se distinguirem socialmente. Importa "não que a expressão atinja o espírito, mas que soe bem ao ouvido". Por sinal, "Mesmo a prosa parece destinar-se à declamação [...] termo pejorativo em boca de Machado, que assim designa todas as manifestações de rebuscamento na linguagem, de impropriedade enfática" (SOARES, 1968SOARES, Maria Nazaré Lins. Machado de Assis e a análise da expressão. Rio de Janeiro: INL, 1968., p. 5, grifo nosso).

A passagem extraída do diário de Bento Santiago interessa não apenas como peça de oratória, capaz de despertar a compaixão do leitor, mas como revelação do caráter do próprio advogado-memorialista, autor do libelo contra Capitu. Embora advirta que a nova residência que mandara construir reproduzia a propriedade original, ele não explica a presença dos "medalhões" nos quatro cantos da sala.

Inicialmente, poderíamos supor que se tratasse de obras aleatórias que denunciariam o gosto ultrapassado e duvidoso da família. Entretanto, não seria difícil reconhecer neles a personalidade egocêntrica e autoritária da criança mimada que fora, cujo ofício permitia-lhe manejar os três grandes gêneros da retórica (deliberativo, judiciário, demonstrativo) e manipular as impressões do leitor. Restaria saber até que ponto Santiago ignorava, ou fingia ignorar, "a razão" de ser daquelas "personagens".

Em Dom Casmurro, há uma galeria de personagens que se escoram na linguagem, ainda que ocupem posições sociais assimétricas. Do relato parcial de Bento Santiago destaca-se a figura do agregado José Dias, que, segundo o patrão, "amava os superlativos. Era um modo de dar feição monumental às ideias; não as havendo, servia a prolongar as frases" (ASSIS, 2021______. Dom Casmurro. 1. reimp. Rio de Janeiro: Antofágica, 2021., p. 25). Maria Nazaré Lins Soares (1968SOARES, Maria Nazaré Lins. Machado de Assis e a análise da expressão. Rio de Janeiro: INL, 1968., p. 7) percebeu com acurácia que o agregado da família Santiago é "um dos exemplos mais curiosos de caracterização de personagem pela expressão". Como forma de granjear o respeito dos outros, "busca compensar sua situação social esdrúxula apresentando-se sempre impecável na sua roupa engomada", enfeitando suas "ideias chochas".

Curiosamente, há um conto em que a persuasão retórica se aproxima dos abismos da sofística, tal como foi depreciada na disputa com a filosofia e a retórica: trata-se d'O segredo do Bonzo. Ao apresentar como subtítulo a expressão "Capítulo inédito de Fernão Mendes Pinto", o conto estabelece reveladora intertextualidade com uma das mais intrigantes narrativas quinhentistas em língua portuguesa: Peregrinação, publicado apenas em 1614, do cronista mencionado por Machado, cuja dicção se encontra a meio caminho entre Luciano de Samósata e Machado de Assis.

As relações textuais com o copioso relato de viagem ao Oriente, escrito em primeira pessoa por um marinheiro destemido e de fortuna oscilante, aparecem em várias instâncias discursivas. Na superfície da linguagem ficcional, os leitores encontram algumas palavras provenientes de um léxico incomum, pouco usual nas ruas ou casas do Rio de Janeiro. O relato afirma que a história ter-se-ia passado no reino distante de Bungo, situado em Fuchéu, e que as personagens, dentre as quais alguns bonzos, chamam-se Patimau, Languru, Fucarandono, Pomada.

Quanto a outras categorias narrativas, temos o tempo, reportado no longínquo ano de 1552, período em que se intensifica a evangelização para todos os cantos do mundo que pudessem vir a ser católicos e lusitanos. Naquele reino distante, encontramos o Padre-mestre Francisco e seu intérprete Diogo Meireles a tentar entender o Oriente. O ponto de vista da enunciação dos narradores das duas escrituras aponta a similaridade quanto a outra categoria narrativa: trata-se de relatos de experiências e interpretações.

Para aferir verossimilhança ao enunciado, Machado de Assis descreve logo no primeiro parágrafo a homologia entre os dois textos, separados por quatro séculos, o que desperta a atenção do leitor:

Atrás deixei narrado o que se passou nesta cidade Fuchéu, capital do reino de Bungo, com o Padre-mestre Francisco, e de como el-rei se houve com o Fucarandono e outros bonzos, que tiveram por acertado disputar ao padre as primazias da nossa santa religião. Agora direi de uma doutrina não menos curiosa que saudável ao espírito, e digna de ser divulgada a todas as repúblicas da cristandade (ASSIS, 2015ASSIS, Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 2015. v. 2., p. 293).

A Peregrinação contada pelo narrador de Fernão Mendes Pinto tem início com a partida de um jovem cristão da Beira Litoral para a Índia. A viagem marítima, tão logo começa, revela toda sorte de atribulações, cuja lição justificaria seu relato, segundo o narrador corsário:

[...] esta rude & tosca escritura que por erança deixo a meus filhos [...] paraque elles vejão nella estes meus trabalhos, & perigos da vida q~ passei no discurso de vinte & hũãnos em q~ fuy treze vezes cativo, & dezessete vendido, nas partes da India, Etiopia, Arabia feliz, China, Tartaria, Macassar, Samatra, & outras muitas prouincias daquele oriental arcipelago, dos confins da Asia [...] (PINTO, 1998PINTO, Fernão Mendes. Peregrinação. Transcrição de Adolfo Casais Monteiro. Lisboa: Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 1998. (Biblioteca de Autores Portugueses)., p. 13).

Vê-se de onde Machado de Assis tirou a esquisitice dos topônimos.

Como se sabe, historicamente, a chamada Carreira da Índia foi a empresa náutica lusitana impulsionada pelos ventos da missionação e do imperialismo português, bem como pela conquista das rotas comerciais com as Índias ocidentais e orientais. Uma curiosidade desta Peregrinação reside na composição ética3 3 Éthos, pathos e logos são as três técnicas de persuasão da retórica, como ensinava Aristóteles (2012). Éthos costuma ser traduzido como o caráter projetado pelo orador no discurso. Pathos diz respeito às paixões despertadas na audiência, que, três séculos mais tarde, Cícero traduzirá na ação de mouere, comover os ouvintes. Logos refere-se ao teor do discurso, mas também subentende razão, saber etc. do narrador, cujo discurso Mendes Pinto faz coincidir com a aventura imperial, a partir do relato de um corsário pouco letrado que sempre se apresenta como devedor da providência e do perdão divinos.

Os conflitos narrados na Peregrinação não raro têm origem na pilhagem de tesouros e nas disputas teológicas com os religiosos locais, as mesmas "primazias da nossa santa religião" apontadas pelo narrador da história machadiana. Assim também ocorre nas "repúblicas da cristandade", em que a conquista ultramarina lusitana ambicionou um dia transformar todos os povos, que deveriam receber e seguir a doutrina verdadeira - em paralelo com aquelas apresentadas por oradores bonzos -, por razões semelhantes às fornecidas para a publicação da "escritura tosca" do rude nauta português: conhecimento dos "trabalhos, & perigos de vida" da empresa marinha lusitana. Para o narrador de Machado, foi bastante a doutrina ser espiritualmente "saudável e digna à cristandade" para merecer ser escrita.

A intertextualidade entre o breve conto e o copioso relato esmaece o estranhamento inicial do leitor, pois, a partir da audição das curiosas "novas doutrinas" propagadas por oradores - como a "origem dos grilos", o "princípio da vida futura concentrar-se numa gota de sangue de vaca", ou a "metafísica dos narizes" -, o leitor de Machado de Assis reconhece a crítica ferina ao orador sofista que, discorrendo "com grande abundância de gestos e vozes" (ASSIS, 2015ASSIS, Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 2015. v. 2., p. 295-297), persuade seu auditório4 4 No Tratado da argumentação: a nova retórica, Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca (1996, p. 20-29) discutiram a configuração de dois tipos de auditório - "homogêneo" e "heterogêneo" - e a necessidade de o orador se adaptar à audiência, quando não induzir a recepção do seu discurso pelos ouvintes, recorrendo aos artifícios providos pela arte da persuasão, centrados especialmente na Elocutio (elocução) e na Actio (performance). sobre as supostas benesses das mais estapafúrdias doutrinas, que sempre lhes rendem algum pecúlio: lucro, prestígio, bem-estar ou poder. O domínio da arte persuasiva e a capacidade de mentir dos oradores constituem o próprio segredo que se infere do título do conto, evocando novamente a defesa resoluta do parasitismo no diálogo de Luciano.

Tempo, espaço, ambiente são categorias que, combinadas ao léxico e ao estilo, aproximam o conto machadiano da Peregrinação de Fernão Mendes Pinto. Além disso, o amoralismo quase absoluto com que os bonzos são tratados aproxima as duas narrativas. Por isso, o conto poderia figurar como um trecho ainda não conhecido do fragmentado texto de Mendes Pinto, cujo percurso editorial é atropelado.5 5 A ideia de incluir um capítulo a mais no livro de crônica é plausível, dada a materialidade da manuscritura e a história da edição primeira desse curioso manuscrito quinhentista. Tendo vivido entre 1510 e 1583, Fernão Mendes Pinto (Cf. ALMEIDA, 2017) deixou inédita uma extensa narrativa de experiências no Oriente, que seria publicada como livro impresso apenas em 1614. O manuscrito passara, todavia, por intervenção editorial quanto à renumeração e, precisamente, quanto ao aumento de capítulos, até ser impresso postumamente com o seguinte título: Peregrinaçam de Fernam Mendez Pinto em que da conta de muytas e muyto estranhas cousas que vio & ouuio no Reyno da China, no da Tartaria, no do Sornau, que vulgarmente se chama Sião, no do Calaminhan, no de Pegù, no de Martauão, & em outros muytos reynos & senhorios das partes orientais, de que nestas nossas do Occidente ha muyto pouca ou nenhu[m]a noticia... / Escrita pelo mesmo Fernão Mendez Pinto. Em Lisboa: por Pedro Crasbeeck: a custa de Belchior de Faria Cavaleyro da casa del Rey nosso Senhor, & seu Livreyro, 1614. A ambiguidade moral domina os dois relatos: afinal, se as novas doutrinas propagadas são eficazes para o público que as ouve e que pratica seus preceitos, também fruto de experiências prováveis, por que os oradores deveriam ser criminalizados? Na Peregrinação, pilhagens, roubos e toda sorte de violência, relatados em primeira pessoa, não são julgadas face ao bem maior da conquista ultramarina. De modo que o leitor, após saber das sucessivas injustiças e sofrimentos vividos pelo narrador corsário, também ele segue a leitura eximindo-se de julgar. No conto, os dividendos acumulados após o súbito crescimento das vendas das alparcas em nada obscurece a espiritualidade digna e saudável merecida por quaisquer repúblicas cristãs.

Ademais, o leitor historiador não deixa de perceber intertextualidades com a obra de Luciano de Samósata em outro debate por ele empreendido no tratado Como se deve escrever a história, e mesmo no exotismo de Uma história verdadeira (LUCIEN, [1933-1934LUCIEN de Samosate. Œuvres complètes. Tradução de Émile Chambry. Paris: Librairie Garnier Frères, [1933-1934]. v. 3.]). Neste, o conceito de história é defendido como lugar da verdade e do útil. No entanto, Luciano não deixa de entrever a interferência dos afetos e interesses na escrita feita pelo mau cronista da história. A complacência de Diogo Meireles e do seu parceiro na aventura do Oriente parece filiar-se à mesma que orienta a verossimilhança do relato dos "trabalhos, & perigos de vida" do narrador de Fernão Mendes Pinto. Enfim, é necessário apenas as doutrinas serem contadas para serem verdadeiras. Boas doutrinas.

Referências

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  • 1
    "Etopeia é a imitação do caráter de uma personagem proposta, por exemplo: 'que palavras pronunciaria Andrômaca perante o cadáver de Heitor?'." (TÉON; HERMÓGENES; AFTÔNIO, 1991TÉON; HERMÓGENES; AFTÔNIO. Ejercicios de retórica. Tradução de Dolores Reche Martínez. Madrid: Editorial Gredos, 1991., p. 193).
  • 2
    De acordo com João Adolfo Hansen (1996HANSEN, João Adolfo. O discreto. In: NOVAES, Adauto (Org.). Libertinos libertários. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 77-102., p. 79), "[...] no século XVII, é discreto o que não é vulgar. Como o vulgar é definido como o 'espírito fraco' levado pelo gosto confuso que se deixa enganar pelas aparências, discreto é aquele capaz de produzir aparências adequadas, porque tem o juízo. Assim, a discrição seiscentista é um saber ou uma técnica da imagem".
  • 3
    Éthos, pathos e logos são as três técnicas de persuasão da retórica, como ensinava Aristóteles (2012ARISTÓTELES. Retórica. Tradução de Edson Bini. São Paulo: EDIPRO, 2012.). Éthos costuma ser traduzido como o caráter projetado pelo orador no discurso. Pathos diz respeito às paixões despertadas na audiência, que, três séculos mais tarde, Cícero traduzirá na ação de mouere, comover os ouvintes. Logos refere-se ao teor do discurso, mas também subentende razão, saber etc.
  • 4
    No Tratado da argumentação: a nova retórica, Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca (1996PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação: a nova retórica. Tradução de Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1996., p. 20-29) discutiram a configuração de dois tipos de auditório - "homogêneo" e "heterogêneo" - e a necessidade de o orador se adaptar à audiência, quando não induzir a recepção do seu discurso pelos ouvintes, recorrendo aos artifícios providos pela arte da persuasão, centrados especialmente na Elocutio (elocução) e na Actio (performance).
  • 5
    A ideia de incluir um capítulo a mais no livro de crônica é plausível, dada a materialidade da manuscritura e a história da edição primeira desse curioso manuscrito quinhentista. Tendo vivido entre 1510 e 1583, Fernão Mendes Pinto (Cf. ALMEIDA, 2017ALMEIDA, Isabel (Org.). Peregrinaçam, 1614. Lisboa: Centro de Estudos Clássicos da Universidade de Lisboa, 2017.) deixou inédita uma extensa narrativa de experiências no Oriente, que seria publicada como livro impresso apenas em 1614. O manuscrito passara, todavia, por intervenção editorial quanto à renumeração e, precisamente, quanto ao aumento de capítulos, até ser impresso postumamente com o seguinte título: Peregrinaçam de Fernam Mendez Pinto em que da conta de muytas e muyto estranhas cousas que vio & ouuio no Reyno da China, no da Tartaria, no do Sornau, que vulgarmente se chama Sião, no do Calaminhan, no de Pegù, no de Martauão, & em outros muytos reynos & senhorios das partes orientais, de que nestas nossas do Occidente ha muyto pouca ou nenhu[m]a noticia... / Escrita pelo mesmo Fernão Mendez Pinto. Em Lisboa: por Pedro Crasbeeck: a custa de Belchior de Faria Cavaleyro da casa del Rey nosso Senhor, & seu Livreyro, 1614.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    22 Jan 2023
  • Aceito
    10 Abr 2023
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