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Ponha-se no seu lugar: resenha de Machado de Assis - multiracial identity and the Brazilian novelist, de G. Reginald Daniel

Stay where you belong: review of Machado de Assis - multiracial identity and the Brazilian novelist, by G. Reginald Daniel

RESENHAS

José Almino de Alencar

Fundação Casa de Rui Barbosa. Rio de Janeiro (RJ), Brasil

DANIEL, G. Reginald. Machado de Assis - Multiracial identity. Philadelphia: The Pennsylvania State University Press, 2012, 330p.

"Ponha-se no seu lugar", é uma expressão não totalmente em desuso, frequentemente invocada para ilustrar o comportamento das classes dominantes ou privilegiadas no Brasil, país tão marcado por seu passado escravagista e pelas enormes diferenças socioeconômicas. Ela é certamente uma marca da prepotência desses grupos, ao mesmo tempo em que aponta para a existência de zonas movediças, instáveis, de fronteiras interclasses, onde os que podem têm de se conservar atentos aos atrevimentos dos inferiores que tentem ultrapassá-las. Estes, por sua vez, conhecendo o impasse, procuram evitar humilhações, negociar posições e forçar caminhos.

Embora elementar, esse pequeno esquema sociológico descreve razoavelmente aspecto importante da dinâmica das relações inter-raciais no país desde sempre e, melhor ainda, durante a segunda metade do século XIX, onde um grupo relativamente pequeno de mestiços livres procurava o "seu lugar" em uma sociedade cuja economia se expandia, ainda que a gama de oportunidades permanecesse estreita, controladas que eram por uma camada dirigente através do duplo procedimento do preconceito e da cooptação, alternativas contraditórias, porém funcionalmente complementares. Circulavam entre as poucas profissões no setor de serviços - comerciários, escreventes, bancários - , procuravam se acomodar no serviço público.

Os mais letrados trabalhavam na imprensa, tentavam a política, e esse era o meio comum de vir também a ter uma colocação na administração pública. Eram os expoentes da "fulgurante plebe intelectual" - a expressão é de Gilberto Amado - , na qual, a característica étnica é sublinhada por Gilberto Freire:

[são] os bacharéis, tantos deles de origem humilde e vários, negroides, que, com a fundação dos cursos jurídicos foram aparecendo na sociedade brasileira como nova e considerável elite, compensada pela cultura intelectual e jurídica nas deficiências de sua posição social e na inferioridade de sua condição étnica.1 1 FREIRE, Gilberto. Sobrados e mocambos. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1977. p. 626. Consulte-se, a propósito, todo o capítulo "Ascensão do bacharel e do mulato", p. 573-632.

É também a geração abolicionista e a mesma que veio a proclamar a República.

Machado de Assis pertencia sociologicamente, digamos assim, a esse grupo, com a diferença, bem, com a diferença, sobretudo, de que Machado de Assis é uma figura literária tão acima dos seus contemporâneos que ainda - depois de tantas tentativas de situá-lo ou explicá-lo - nos olha do alto de suas obras como enigma. Parafraseando o Montesquieu das Lettres Persanes: Comment peut-on être Machado de Assis?

Um dos feitos apreciáveis deste Machado de Assis2 2 DANIEL, G. Reginald. Machado de Assis - Multiracial Identity and the Brazilian Novelist. Philadelphia: The Pennsylvania State University Press, 2012. de G. Reginald Daniel é a abrangência com que recenseia de maneira crítica e sistemática - às vezes perseguindo os argumentos nas suas minúcias e contradições - a vasta literatura que tenta dar um rumo ou uma explicação a essa indagação. Como indica o seu subtítulo - Multiracial Identity and the Brazilian Novelist - , o livro se situa nos domínios das relações entre literatura e sociedade; e o autor vai longe a tentar estabelecer a importância da ideia de raça no processo de formação e de autodefinição da nação brasileira - à luz das variadas interpretações que o tema foi assumindo ao longo de sua trajetória sociopolítica e de sua história intelectual. Neste sentido, o primeiro capítulo, ao tomar emprestado o título do livro de Carl Degler, Neither Black nor White,3 3 DEGLER, Carl N. Neither Black nor White: Slavery and Race Relations in Brazil and the United States. New York: Macmillan, 1971. não somente presta homenagem a uma referência importante na literatura de língua inglesa sobre as relações raciais no Brasil; mais ainda, atualiza o esforço sintético feito há quarenta anos por Degler, apresentando e discutindo a recente bibliografia sobre o que ele denomina "The Brazilian racial order".

De onde fala Machado de Assis? Qual seria o seu lugar na estrutura social brasileira - mestiço e escritor - tal como percebido pelos seus contemporâneos? Ou, mais importante, já que uma identidade se constrói no embate com os outros, com o mundo: que lugar ele mesmo se atribuía em nossa sociedade, e que poderia eventualmente explicar aspectos de sua conduta como indivíduo na sociedade brasileira ou na elaboração de sua obra de romancista? Essas questões implícita ou explicitamente guiaram a investigação do autor que, a certa altura, vai direto ao ponto:

[Machado] was a clearly multiracial individual of African descent in a racial order that prized whiteness and stigmatized blackness. This is crucial to understanding someone like Machado, who sought to transcend his blackness in response to Brazil's racial constraints. These constraints were integral do the formation not only of Machado's racial identity but also of his literary sensibility. (p.152)

Reginald Daniel mobiliza um amplo conjunto de evidências - frequentemente contrapondo, com intenção metodológica, materiais que se contradizem - para indicar como os obstáculos e restrições raciais, indubitavelmente existentes no Brasil, se mostravam, em certos casos, ambíguos ou mais ou menos maleáveis; o que provocaria uma gama diferenciada de respostas, tanto por parte dos discriminadores quanto dos discriminados.

Começa, por assim dizer, do começo: pela questão da identidade racial de Machado, o indivíduo, tal como era definida por seus contemporâneos. Aqui o tema é familiar aos brasileiros, alertas para o fato de que, entre nós, o status social obnubila a condição racial. Neste sentido, o caso do romancista é exemplar: o de um mulato que atingira em vida os píncaros da estima pública, do prestígio, e que fora aceito, em certa medida, como igual pela elite branca. Seguindo um procedimento adotado em todo o livro (uma mina de referências bibliográficas), o autor coleta grande variedade de testemunhos dos contemporâneos do escritor sobre a sua cor, desde a reação extremada de José do Patrocínio, que o acusa de traidor da raça, à não menos extremada (e conhecidíssima) manifestação de Joaquim Nabuco, que não via em Machado senão o grego.

Mais adiante, embora reconheça que o romancista se mostre parcimonioso ao lidar diretamente com os temas da escravidão ou do racismo - assunto, aliás, não mais recorrente na sua fortuna crítica - Daniel recorre aos inúmeros trabalhos que inventariaram nos escritos de Machado de Assis referências percucientes, às vezes indiretas, de críticas à "instituição nefanda", na expressão dos abolicionistas, seus companheiros de geração. Em todo caso, a crítica social aberta não seria a manifestação habitual do escritor, que, de resto, "undoubtedly experienced the ambiguities, strains, and conflicts that come 'naturally' with marginality in a society that viewed white identities as dominant and black identities as subdominant [...]" (p.121).

Machado evitaria, o autor esclarece, adotar "a naïve egalitarism that deflects attention away from - or even denies the existence of - racial inequities". Ao invés, ele escolhe a saída "pelo alto" (a expressão é minha), avocando a si próprio uma postura "universalista" que transcenderia os paroquialismos e as contingências da nacionalidade ou da classe social. Viria a ser um "meta-mulato", no dizer de Daniel, alguém capaz de manter o equilíbrio entre as ambiguidades inerentes à sociedade partida em que vivia, dominando, respectivamente, as linguagens vigentes entre os dominantes e os dominados e os modos de comunicação entre eles. Nesta direção, "Machado's perspective [...] seeks to 'transcend race' in pursuit of universal humanism" (p.189). E, ambos, o lugar de onde ele fala e o objetivo perseguido, estariam na base de suas escolhas literárias e da formação e da elaboração de seu estilo.

Como outros analistas, o autor assinala o pioneirismo do ensaio "Instinto de nacionalidade", na medida em que o romancista - a contrapelo do nacionalismo protagonizado pelos românticos, por exemplo - vê a construção de uma literatura nacional como um processo "engaged in the universal flow of human history" (p.158), onde a criação local se desenvolveria em diálogo constante e inventivo com a melhor criação universal. Aproximará, assim, Machado de Assis de críticos contemporâneos tais como Homi Bhabha, para o qual "national consciousness essentially takes place within liminal (or transnational) spaces through which the menings of cultural and political authority are negotiated." (p. 159)

Na mesma linha de aproximação com o universo teórico contemporâneo, o "instinto nacional" brasileiro visado por Machado estaria longe de qualquer concepção essencialista, mas o aproximaria de uma variante do pós-modernismo ("constructive postmodernism"): seria como uma temática do "Brazilian self that provides a sense of connection, if not unity, to Brazil's developmental variations that have emerged through history".4 4 No epílogo que é escrito com Gary L. Haddow. Noção empírica, fragmentada, parcial (Daniel a aproxima do habitus de Pierre Bourdieu), mas essencialmente mutante, ela iria de par com o estilo desenvolvido pelo romancista, que problematiza a todo o momento o sentido da sua narrativa - recorrendo à paródia, à ironia, ao grotesco - ou, simultaneamente, fazendo prova de volubilidade extrema, mudando de pontos de vista, intervindo na narração, fazendo-se passar por personagens. Esta "falta de comprometimento" seria uma das bases de sua força como criador, ao mesmo tempo nacional e universal.

Machado de Assis - Multiracial Identity and the Brazilian Novelist é uma empreitada de fôlego, à qual dificilmente poder-se-ia fazer justiça em uma resenha. É obra de inquestionável interesse e provavelmente será presença obrigatória nas leituras especializadas. O autor persegue tenaz e sistematicamente o seu argumento, fazendo uso de um arsenal enorme de informação teórica e bibliográfica sobre Machado de Assis. Quase, senão a totalidade dos críticos machadianos está lá presente: resumidos, mencionados ou discutidos.

Daniel avança aos poucos, arrebanhando e aplicando uma pletora de conceitos, talvez mais do que seria necessário. O procedimento envolve longas digressões nas quais são previamente resumidas teorias ou opiniões conflitantes que serão, por vezes, aplicadas em seguida ao nosso escritor. Aqui e ali, temos a impressão de que o autor parece só confiar na sua explicação quando encontra uma referência ou um "nome" para ela.

Conceitos nas disciplinas que manejamos são, na maior parte do tempo, próximos de metáforas e, nos bons momentos, são analogias bem sacadas. Têm uma função quase sempre de esclarecimento; certamente, não operacional. Sumarizam estados ou processos que podem ser descritos direta - e mais claramente - com algum esforço retórico. Nada disso, porém, chega a empanar seriamente o valor geral do trabalho.

José Almino de Alencar é pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa, da qual foi presidente de 2002 a 2010. Doutor em Sociologia pela University of Chicago. Tradutor e poeta, seu último livro é A estrela fria (Companhia das Letras, 2010). E-mail: almino@rb.gov.br

  • 1 FREIRE, Gilberto. Sobrados e mocambos. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1977. p. 626. Consulte-se, a propósito, todo o capítulo "Ascensão do bacharel e do mulato", p. 573-632.
  • 2 DANIEL, G. Reginald. Machado de Assis - Multiracial Identity and the Brazilian Novelist. Philadelphia: The Pennsylvania State University Press, 2012.
  • 3 DEGLER, Carl N. Neither Black nor White: Slavery and Race Relations in Brazil and the United States. New York: Macmillan, 1971.
  • Ponha-se no seu lugar: resenha de Machado de Assis - multiracial identity and the brazilian novelist, de G. Reginald Daniel

    Stay where you belong: review of Machado de Assis - multiracial identity and the brazilian novelist, by G. Reginald Daniel
  • 1
    FREIRE, Gilberto.
    Sobrados e mocambos. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1977. p. 626. Consulte-se, a propósito, todo o capítulo "Ascensão do bacharel e do mulato", p. 573-632.
  • 2
    DANIEL, G. Reginald.
    Machado de Assis - Multiracial Identity and the Brazilian Novelist. Philadelphia: The Pennsylvania State University Press, 2012.
  • 3
    DEGLER, Carl N.
    Neither Black nor White: Slavery and Race Relations in Brazil and the United States. New York: Macmillan, 1971.
  • 4
    No epílogo que é escrito com Gary L. Haddow.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Jul 2013
    • Data do Fascículo
      Jun 2013
    Universidade de São Paulo - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Av. Prof. Luciano Gualberto, 403 sl 38, 05508-900 São Paulo, SP Brasil - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: machadodeassis.emlinha@usp.br