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OS CLOWNS DE MACHADO DE ASSIS, LIMA BARRETO E MONTEIRO LOBATO

THE CLOWNS OF MACHADO DE ASSIS, LIMA BARRETO, AND MONTEIRO LOBATO

Resumos

As lutas pela Abolição e a República trouxeram esperanças de mudanças substanciais a muitos brasileiros no fim do século XIX. Tais mudanças nunca se concretizaram já que a República transformou-se rapidamente num sistema político oligárquico marcado por uma modernização cosmética e violenta. "O enfermeiro", de Machado de Assis (1896), "O engraçado arrependido", de Monteiro Lobato (1918) e "O homem que sabia javanês", de Lima Barreto (1920) foram publicados sob o impacto desse desapontamento e os três contos têm semelhanças notáveis na forma de problematizar a questão da mobilidade social e das relações raciais/sociais no Brasil da virada do século.

Literatura Brasileira; relações raciais; Machado de Assis; Lima Barreto; Monteiro Lobato


The struggles for Abolition and the Republic brought hopes of substantive change in the end of the 19th century in Brazil. That change never materialized: the Republic congealed into an oligarchic political system and an aggressive and cosmetic modernization. Machado de Assis' "The Nurse" (1896), Monteiro Lobato's "The Funny Man Who Repented" (1918), and Lima Barreto's "The Man Who Knew Javanese" (1920) all published under the impact of the disappointment of those who wished for true social and political democracy, bear remarkable similarities in their portrayal of the problem of social mobility and race relations.

Brazilian Literature; race relations; Machado de Assis; Lima Barreto; Monteiro Lobato


As lutas pela Abolição e pela República despertam em muitos brasileiros esperanças de mudanças substantivas no final do século XIX, esperanças imbuídas de um particular senso de urgência pela percepção cada vez mais aguda do abismo que separava o crescimento frenético dos Estados Unidos e a crônica instabilidade econômica e política da América Latina. Menos de vinte anos depois da Abolição e da proclamação da República, Manoel Bomfim resumiu a situação desanimadora com particular ênfase:

Ninguém se deteve a examinar o caso e procurar os meios eficazes de se fazer a transformação na produção. Não viam, sequer, que o trabalho livre deve ser inteligente e aperfeiçoado, e que era mister, antes de mais nada, educar o trabalhador, instruí-lo, levar o produtor a melhorar os seus processos, meio único de compensar a barateza do trabalho escravo que se perdia. Disto não se cogitou. Decretou-se a libertação, e foram-se todos, considerando a reforma como acabada; e se alguém ainda se ocupou do caso - foi para pedir ou propor que se importassem braços baratos, que pudessem substituir os antigos escravos, nada se alterando nos costumes e nos processos: chineses ou italianos, que viessem ocupar as antigas senzalas - um salário baixo, equivalente à alimentação e ao juro do preço do negro... tudo mais como dantes. Quanto a essa população das classes inferiores, antigos escravos, nacionais proletários - quanto a estes: que sejam obrigados por lei a trabalhar; pedem-se leis sobre a vagabundagem, lei de locação de serviços, na convicção de que, no momento em que alguns decretos, substanciosos de artigos e parágrafos, vierem publicados, todos esses homens se tornarão logo ativos, adorando o trabalho, e dispostos a dar o seu labor ao fazendeiro ocioso e bruto, por um salário miserável. O essencial era garantir o fazendeiro tal qual ele é, criando embora dificuldades no futuro. E o fazendeiro, que viveu sempre parasita, já não quer somente braços baratos; reclama também cotas diretas, em espécie - auxílios à lavoura, compensação aos lucros cessantes... Ontem parasita do escravo, hoje parasita do Estado - é-lhe indiferente, certamente, quem o tenha de manter, contanto que não haja de alterar o viver. E os auxílios vêm; mas nem ele se sacia nem melhoram as condições da lavoura, convertida hoje em verdadeiro pauperismo, cuja miséria aumenta na proporção das esmolas e auxílios que recebe.1 1 BOMFIM, América Latina, Males de Origem, p. 125.

Em um país dividido há séculos entre uma multidão de escravos, uma pequena classe de proprietários e homens livres espremidos precariamente entre os dois, qualquer perspectiva de avanço substantivo nos campos econômico e social dependia da possibilidade de mobilidade social, mas o hábito de acomodação política entre as elites prevaleceu e ficara evidente que o poder daquelas ideias de provocar mudanças radicais tinha sido grandemente exagerado.

Trato aqui de três contos publicados sob o impacto dessas esperanças e desapontamentos: "O enfermeiro" de Machado de Assis (1884, 1896), "O engraçado arrependido" de Monteiro Lobato (1917, 1918) e "O homem que sabia javanês" de Lima Barreto (1911, 1920). Semelhanças entre os três contos sugerem uma relativa proximidade na compreensão que os três autores tinham da questão da mobilidade social ou da falta de mobilidade social na virada do século XIX para o XX.

Em primeiro lugar, os protagonistas dos três contos são adultos dotados de certa qualificação mas sem dinheiro, que lutam contra uma situação de estagnação social. Aos 42 anos, o narrador-protagonista de "O enfermeiro", Procópio José Gomes Valongo, trabalha como amanuense para um padre que havia sido seu colega de escola, em troca de casa e comida. Aos 32, o protagonista de "O engraçado arrependido", Francisco Teixeira de Souza Pontes, é filho bastardo de uma família poderosa em Barreiro e vive de fazer graça em troca de crédito e pequenos favores - cansado de ser o bobo da cidade, ele tenta trabalhar numa fazenda (como capataz) ou no comércio (até mesmo como varredor). Castelo, o protagonista de "O homem que sabia javanês", é formado em Direito, mas vive precariamente de pequenos golpes improváveis (ele menciona ter fingido até ser "feiticeiro e adivinho"2 2 BARRETO, O homem que sabia javanês, p. 25. em Manaus), mudando-se de uma hospedagem barata para outra fugindo do encalço dos "cadáveres"3 3 Idem, p. 26. (credores).

O dispositivo narrativo de cada conto é disparado quando Valongo, Pontes e Castelo encontram oportunidades de um certo avanço social, e essas são oportunidades que também possuem algo em comum, envolvendo relações de trabalho paternalistas sob a tutela de homens ricos e muito mais velhos, cujos títulos (coronel Felisberto, major Bentes e barão/doutor Albernaz) indicam seu status de membros da elite e cuja idade avançada os coloca numa posição vulnerável, provocando sentimentos de compaixão e culpa. Ironicamente, a consolidação de um avanço social implica justo a traição dessas três figuras paternais/paternalistas. Valongo serve de enfermeiro a um coronel cruel e grosseiro que o trata com desprezo e brutalidade e depois tem de fingir afeição pelo homem a quem matou num impulso de fúria e de quem herdou a fortuna. Pontes ajuda diligentemente no escritório do major, até se tornar "um adido à repartição"4 4 MONTEIRO LOBATO, O engraçado arrependido, p. 140. como parte de um plano improvável de eliminar e substituir Bentes como coletor de impostos da cidade graças a conexões que sua família tem no Rio de Janeiro. Castelo finge saber Javanês o suficiente, inicialmente para ensinar ao Barão e depois a fim de ler para ele um livro nessa língua, garantindo assim uma sinecura que depende da exploração das superstições e inocência do velho - Castelo acaba herdando parte do dinheiro de Albernaz. Prosperar socialmente nos três contos em questão depende, primordialmente, da apropriação de heranças ou sinecuras através de mentiras, tráfico de influências e traição.

Ainda há um terceiro aspecto crucial que aproxima as histórias de Valongo, Pontes e Castelo: alusões às origens étnicas/sociais mestiças dos três protagonistas. O grau de ambiguidade dessas alusões e as estratégias mais ou menos diretas que cada autor usa para estabelecê-las refletem a importância dessa questão ao mesmo tempo tão recalcada e latente na cultura brasileira dentro da economia narrativa de cada conto. Machado de Assis nomeia seu protagonista Procópio (que significa aquele que avança) mas enfatiza seu peculiar sobrenome, Valongo. Coronel Felisberto se surpreende ao ouvi-lo e, à primeira vista, pensa ter escutado "Colombo". Procópio repete então o nome "Valongo" e o velho mal-humorado exclama "que não era nome de gente".5 5 MACHADO DE ASSIS, O enfermeiro, p. 73. Valongo é uma referência a um lugar infame que o coronel certamente conhecia, sendo ele proprietário de escravos próximo da cidade do Rio de Janeiro. Valongo era uma pequena baía e o porto que aí ficava (fechado e transformado em "Cais da Princesa" em 1843)6 6 Ironicamente no século XXI, às vésperas das Olimpíadas, estamos vendo mais um ambicioso projeto de modernização dessa região degradada do Rio de Janeiro (o chamado Porto Maravilha) levar a escavações que trouxeram de volta à superfície da cidade tanto o cemitério como o porto do Valongo. era também o nome de uma rua com mercados e depósitos, além de um cemitério na mesma área.7 7 De acordo com Júlio César Medeiros da Silva Pereira, os registros entre 1824 e 1830 indicam que 6.119 escravos foram enterrados no espaço de um campo de futebol (PEREIRA, À flor da terra: o cemitério dos pretos novos no Rio de Janeiro, p. 87). Com a proibição oficial do tráfico em 1831, a chegada dos navios passou a acontecer em partes mais afastadas da Guanabara. Nos arrabaldes da cidade no século XVIII, o Valongo recebeu, armazenou, exibiu, vendeu ou enterrou milhares de africanos sequestrados e trazidos como escravos ao Brasil até a proibição do tráfico em 1850, uma alusão clara para o leitor contemporâneo de Machado de Assis e mais ainda para os personagens de uma história que se passa em 1860.8 8 No Dicionário da escravidão negra no Brasil, Clóvis Moura nos diz que os escravos neste país geralmente "usavam o [sobrenome] do grupo étnico do qual eram originários [...] ou usavam o sobrenome do seu senhor por aquiescência dele". MOURA, Dicionário da escravidão negra no Brasil, p. 374. Não se trata, portanto, de dizer que Procópio Valongo era um alforriado ou mesmo filho de escravos, mas apenas de apontar que o seu sobrenome incomum nos aponta para o maior centro de tráfico e comércio de escravos da capital do império. O narrador em terceira pessoa de "O engraçado arrependido" diz que Francisco Teixeira de Souza Pontes - chamado depois apenas de Pontes - era um "galho bastardo", uma espécie de ponte entre a família de proprietários da região e as classes baixas,9 9 Uma família de Souzaera de fato importante no município de Barreiro desde os primeiros assentamentos na região até a construção de uma suntuosa fazenda de café de nome Pau d'Alho no século XIX. O comendador José de Souza Breves, também conhecido pela alcunha de "Rei do Café", teve a duvidosa honra de ser o recebedor do último carregamento de 540 escravos africanos (sessenta mulheres) contrabandeados para o Brasil em 1852 pelo brigue Camargo, de bandeira norte-americana e propriedade do português João Pedro da Costa Coimbra. O brigue foi apreendido pela Polícia da Corte e por isso há vasta documentação reunida pelo historiador Thiago Campos Pessoa Lourenço (LOURENÇO, O império dos Souza Breves nos Oitocentos: política e escravidão nas trajetórias dos comendadores José e Joaquim Breves p. 122-174). possivelmente mestiço. Nem lá nem cá, Pontes conta não apenas com seus talentos de comediante mas também com o nome de sua família. Lima Barreto nomeia seu protagonista em possível referência a outro ponto importante da história da cidade do Rio de Janeiro: o morro do Castelo, sobre o qual a cidade foi fundada, apagado - como o Valongo - na onda de reformas modernizadoras do centro da cidade.10 10 Lima Barreto acompanhou o processo de perto e escreveu sobre ele para os jornais com verve. De 28 de abril a 3 de junho de 1905, o Correio da Manhãpublicou uma série de textos sobre as galerias subterrâneas descobertas na construção da avenida Central (atual avenida Rio Branco). Esses textos estão em O subterrâneo do morro do Castelo, misturando a crônica das escavações com uma história ficcional algo melodramática sobre um triângulo amoroso que termina em assassinato. Lima Barreto escreveu sobre a demolição do morro do Castelo e comparou-o a "sombrios castelos medievos",11 11 BARRETO, O subterrâneo do morro do Castelo, p. 16. com suas lendas de galerias e túneis guardando segredos e riquezas deixadas pelos jesuítas quando a ordem foi expulsa em 1759. "Castelo" ainda pode ser um eufemismo para um bordel na Bahia, estado natal de Castelo que se revela num diálogo bastante semelhante àquele entre Felisberto e Valongo em "O enfermeiro". Albernaz não entende o nome da cidade onde nasceu Castelo (Canavieiras), mas, sendo um senhor bem mais brando que o áspero Felisberto, se desculpa por "ser um pouco surdo" e pede ao protagonista que repita: "Sou de Canavieiras na Bahia",12 12 Idem, p. 29. cidade no coração da costa do Cacau onde plantações baseadas em trabalho escravo se estabeleceram às margens do rio Pardo no século XVIII. O misterioso castelo e o bordel são símbolos de poder e fantasia aos quais o protagonista de Lima Barreto tem acesso ao construir elaborados castelos de patranhas feitas sob medida para excitar o desejo e a imaginação de gente predisposta a crer em golpes de sorte, esquemas de enriquecimento rápido e fácil e erudição vistosa.

Essas ricas conotações associadas ao nome do protagonista em "O homem que sabia javanês" são meros acessórios, ao contrário das que aparecem nos contos de Machado de Assis e mesmo de Monteiro Lobato (que insinuam uma etnicidade suspeita dos seus protagonistas com eufemismos e alusões irônicas). O protagonista de Lima Barreto é direto e explícito quanto à etnicidade que lhe permite passar-se por filho de um marinheiro javanês: "Não sou - objetei - lá muito diferente de um javanês. Estes meus cabelos corridos, duros e grossos e a minha pele basané podem dar-me muito bem o aspecto de um mestiço malaio".13 13 Idem, p. 30. Logo em seguida, Castelo comenta sarcasticamente que se encontram todas as etnicidades no Brasil, "até godos" (isto é, brancos europeus), de novo citando Machado de Assis, que usa o mesmo termo satírico ao ironizar os sonhos de embranquecimento em "O alienista". Simão Bacamarte identifica "uma multidão de inquilinos" para seu hospício.

autorizando o uso de um anel de prata no dedo polegar da mão esquerda, a toda a pessoa que, sem outra prova documental ou tradicional, declarasse ter nas veias duas ou três onças de sangue godo.14 14 ASSIS, O alienista, p. 36-37.

O assunto volta à baila de forma explícita quando o genro de Albernaz - um juiz - leva Castelo ao reconhecidamente racista serviço diplomático.15 15 Como exemplo da persistência do racismo institucional do Itamaraty, ver o livro África difícil: missão condenada, diário, de Raymundo Souza Dantas, primeiro embaixador negro no Brasil. Castelo antecipa as "objeções" à sua contratação: "a minha fealdade, a falta de elegância, o meu aspecto tagalo."16 16 BARRETO, O homem que sabia javanês p. 33. O tagalo é uma das duas línguas oficiais das Filipinas. O livro de Hovelacque (provável fonte para Lima Barreto e, como veremos, citado pelo próprio Castelo) cita "Tagalas" e "Bisayas" como malaios nas ilhas Filipinas (p. 110). O termo de Lima Barreto foi "corrigido" pelo tradutor para o inglês como Malayan. Curiosamente, as duas versões para o inglês (de The Oxford Anthology of the Brazilian Short Story, por Clifford E. Landers, de 1991, e de The Oxford Book of Latin American Short Stories, por Gregory Rabassa, em 1999) traduzem equivocadamente a confeitaria do encontro entre Castelo e Castro como sendo "in a Sweet Shop" (p. 127, 144), local onde não se costuma encontrar dois adultos bebendo cerveja. O ministro confirma as suspeitas e afirma a Castelo que "o seu físico não se presta" ao posto de cônsul,17 17 Enquanto o serviço diplomático sob a tutela do Barão de Rio Branco "procurou lotar as dependências do Itamaraty, e mesmo de setores paralelos da administração, de intelectuais respeitáveis, ou de quem afetasse tal postura" (SEVCENKO, Literatura como missão, p. 118), Lima Barreto o "responsabilizava pelo espírito da Regeneração e pelo acirramento do preconceito contra os mulatos" (Idem, p. 147). A ironia se acentua na escolha do nome do fictício chefe do serviço, um tal Visconde [título anterior de Rio Branco] do Caruru, prato baiano de raízes africanas. mas lhe oferece outra posição em vista do seu irresistível xibolete: o conhecimento do Javanês.

As indicações tímidas e indiretas ou claras e óbvias das origens étnicas dos três protagonistas nos abrem uma rede de portos, mercados, pontes, fazendas, bordéis e castelos do passado doloroso que a República queria apagar: a escravidão e seus tributários, o tráfico de escravos, os jesuítas e seus tesouros, os barões, viscondes, majores e coronéis sustentados pelo café e cacau plantados em fazendas monocultoras movidas pela mão de obra escrava trazida ilegalmente para o Brasil desde 1831, os alicerces do velho regime que a República tinha prometido, mas agora se recusava a confrontar (o racismo, o nepotismo, o paternalismo, o patrimonialismo, o patriarcalismo) e até mesmo acabara fortalecendo.

Machado de Assis e Lima Barreto se aproximam ainda mais ao personalizar esse passado incômodo em dois personagens semelhantes: empregados da casa de idosos, negros, sem nome, que servem de discreto contraste com seus patrões também decadentes e tornam-se testemunhas silenciosas da ascensão dos protagonistas/agregados na casa onde trabalham. "Um antigo preto africano, cujas barbas e cabelos de algodão davam à sua fisionomia uma aguda impressão de velhice",18 18 BARRETO, O homem que sabia javanês, p. 29. abre as portas da casa de Albernaz para Castelo, e "um preto velho e míope"19 19 Ibidem. ajuda Valongo a preparar o cadáver de Felisberto escondendo os sinais do seu estrangulamento.

A exasperação do trecho de Manoel Bomfim com o qual abri este texto não é incomum na produção da época, mas o que o destaca é a ênfase que ele dá às faltas das elites em criar condições favoráveis para uma modernização concebida como o acesso a direitos iguais a todos, independentemente de classe ou raça. Bomfim é a exceção para a regra de lamentar a composição étnica das nações latino-americanas e a suposta suavidade com que as elites dessas nações tratavam suas "raças inferiores" como as razões para as mazelas do continente.

Em Latin America: Its Rise and Progress (1913), livro significativo que não seria publicado em espanhol até 1979, o peruano Francisco García Calderón20 20 Sobre a relevância de García Calderón, Luis Alberto Sánchez opina que "muerto Rodó, lo que acaeció en 1917, Francisco era el indiscutido capitán general de los pensadores del Nuevo Mundo Hispanoparlante" (GARCÍA CALDERÓN, Latin America: Its Raise and Progress, p. xv). Sobre os motivos para a demora da publicação de Latin America: its rise and progress na Espanha (o original em francês data de 1912, mas a versão em espanhol só saiu em 1979), Sánchez especula terem sido as teses políticas do livro que defendiam um governo aristocrático das elites como ideal de regime democrático na América Latina. O retorno ao poder no Peru de Augusto Leguía - inimigo político da família de García -, que venceu as eleições de 1919 e se manteve no poder através de um golpe de estado até 1930, fez com que Latin America: Its Rise and Progresspudesse ser mal interpretado como uma defesa do regime de Leguía, ao qual García Calderón se opunha obstinadamente. descreve o mulato nos seguintes termos:

[...] former slaves in Latin America[...] are revenged for their enslavement in that their blood is mingled with that of their masters. Incapable of order and self-government, they are a factor of anarchy; every species of vain outer show attracts them - sonorous phraseology and ostentation. They make a show of an official function, a university title, or an academic diploma.[...] The mulatto is more despised than the mestizo because he often shows the abjectness of the slave and the indecision of the hybrid; he is at once servile and arrogant, envious and ambitious. His violent desire to mount to a higher social rank, to acquire wealth, power, and display, is, as Señor Bunge very justly remarks, a 'hyperaesthesia of arrivism'.21 21 GARCÍA CALDERÓN, cit., p. 359.

Além da associação do mestiço com o tipo racial degenerado e estéril, comum desde Gobineau,22 22 Em seu The Moral and Intellectual Diversity of Races with Particular Reference to their Respective Influence in the Civil and Political History of Mankind, Gobineau afirma que os mulatos "display special characteristics of both ancestral races" mas não em uma "complete fusion" (GOBINEAU, The Moral and Intellectual Diversity of Races with Particular Reference to their Respective Influence in the Civil and Political History of Mankind, p. 377). Com base no seu conhecimento sobre a infertilidade de misturas entre lobos e cães e entre cães e chacais, Gobineau conclui que o sangue mestiço dos europeus do norte com os africanos seria ainda pior que o das raças latinas "mais escuras" e os africanos (Idem, p. 496-7). Tudo isso era considerado ciência produzida por um intelectual respeitadíssimo, pelo menos até a derrota dos nazistas. García Calderón o caracteriza pela hiperestesia (sensibilidade excessiva e patológica da pele ou de um sentido em particular) causada pelo arrivismo (desejo violento de subir a uma posição social mais alta). Em uma frequentemente precária posição social intermediária, semelhante à dos protagonistas de "O enfermeiro", "O engraçado arrependido" e "O homem que sabia javanês", o mulato torna-se uma ameaça potencial à ordem racial vigente. García Calderón cita o argentino Carlos Octavio Bunge, que, em Nuestra América (1905BUNGE, Carlos Octavio. Nuestra América (Ensayo de Psicología Social). Buenos Aires: Valerio Abeledo, 1905.), diz que o mulato é "o instrumento da vingança póstuma dos negros!" (140) e adverte a seus leitores: "Cuidado com eles! Insinuantes e servis quando o desejam ser, eles podem ganhar a tua confiança, e se o fizerem, será para trair-te e humilhar-te".23 23 BUNGE, Nuestra América, p. 140. No original em espanhol, respectivamente, "es el instrumento de la venganza póstuma del nrgro" e "¡Guardaos de él! Insinuante y servil cuando quiere, puede captar vuestra confianza, y si la capta, será para traicionaros y humillaros". Essas

advertências ominosas precedem uma arenga contra "democratas" e "socialistas" que insistem em ignorar a ciência e são culpados de que "em nenhum outro lugar os mestiços encontram um ambiente mais favorável e liberal do que na Hispano-América e em nenhum lugar são eles mais desastrosos!"24 24 BUNGE, cit., p. 144. . A ascensão social do mestiço é sinal de loucura, vaidade e fraqueza e se considera um fracasso ao invés de uma vitória da modernidade latino-americana.

Essa atitude persiste mesmo nos anos 1920 em fontes insuspeitas. Em O turista aprendiz, Mário de Andrade caracteriza um par de sapatos de um homem que ele encontra na Paraíba "dum pernóstico no geral atribuído aos mulatos",25 25 ANDRADE, O turista aprendiz, p. 371. e Oswald de Andrade expressa de forma bastante direta seu desprezo pelo mulato como intruso social em seu famoso poema "Pronominais":

Dê-me um cigarro

Diz a gramática

Do professor e do aluno

E do mulato sabido

Mas o bom negro e o bom branco

Da Nação Brasileira

Dizem todos os dias

Deixa disso camarada

Me dá um cigarro.26 26 ANDRADE, Poesias reunidas, p. 125.

Nos manuais escolares, "Pronominais" geralmente exemplifica a preferência do nacionalismo modernista pelo vernáculo contra o apego anacrônico das elites antiquadas pelas regras gramaticais ditadas por manuais portugueses, mas o poema é também exemplar no seu preconceito contra o mulato, que se alinha ao professor e seu aluno e é descrito agora não como "pernóstico", mas como "sabido". Enquanto o "pernóstico" de Mário de Andrade alude àquilo que é pretensioso, presunçoso, rude e pomposo, o "sabido" de Oswald de Andrade alude ao versado, mas também traiçoeiro, arrogante e pedante. Essa constelação de adjetivos aponta para um perfil da figura do parvenu que invade, sem convite, os altos escalões da sociedade e se torna objeto de ressentimento pela falta de maneiras ou de qualificações. Nas Américas, algo além da falta de polimento espontâneo ou do apego excessivo a símbolos superficiais de status, outra coisa indica a ilegitimidade das conquistas do parvenu: a cor de sua pele. O racismo na América Latina se articula sem subordinar-se a relações sociais e econômicas concretas e se manifesta na discriminação dos mestiços como uma forma de impor uma barreira àqueles que geralmente possuem as qualificações e as redes que propiciam a ascensão social. Mulato nesse caso torna-se uma ênfase no que há de escuro mais do que no que há de claro na pele dessas figuras do entrelugar.

Valongo, Pontes e Castelo nos trazem diretamente à luta por mobilidade social desde a perspectiva dos que buscam uma inserção nas classes mais altas. Indo além de representações do naturalismo determinista, esses contos não condenam como parasita nem idealizam como vanguarda social o parvenu, mas oferecem a amarga ironia da ascensão de Valongo e Castelo e da ascensão lograda de Pontes como paródias do parasitismo social que Manoel Bomfim declarava naquela época como sendo o fato social determinante da sociedade latino-americana, paródias nas quais se desenrola um drama complexo e doloroso entre as máscaras sociais que esses protagonistas têm que usar e seu sentido íntimo de identidade. Uma forma de abordar esse drama na tessitura desses três contos é buscar neles o papel do conhecimento e da literatura na montagem dos três personagens principais.

Valongo encontra na casa de Felisberto um "velho romance" do vicomted'Arlincourt, escritor pioneiro, "best-seller frénétique",27 27 The Cambridge Companion to Gothic Fiction, p. 79-80. O Diary of an Ennuyée de Anna Jameson serve para dar uma ideia da fama do romance de d'Arlincourt nos anos 20 do século XIX em Paris: "Le Solitaire rules the imagination, the taste, the dress of half Paris: if you go to the theater, it is to see the 'Solitaire' either as tragedy, opera or melodrama; the men dress their hair and throw their cloaks about them à la Solitaire; bonnets and caps, flounces and ribbons are all à la Solitaire, the print shops are full of scenes from Le Solitaire; it is on every toilette, on every work table; - ladies carry it about in their reticules to show each another that they are à la mode; and the men - what can they do but humble their understanding and be extasiés, when beautiful eyes sparkle in its defence, and glisten in its praise, and ruby lips pronounce it, divine, delicious, 'quelle sublimité dans les descriptions, quelle force dans les caracteres! quelle âme! Feu! chaleur! verve! originalité! passion! &c.' JAMESON, Diary of an Ennuyée, p. 27. 'Vous n'avez pas lu le Solitaire?' said Madame M. yesterday. 'Eh mone Dieu! il est donc possible! vous? Mais, ma chére, vous êtes perdue de reputation, et pour jamais!'". já completamente fora de moda na década de 60 do século XIX. Ainda que Valongo pegue no sono "antes de chegar ao fim da segunda página",28 28 ASSIS, O enfermeiro, p. 75. , ele termina assassinando Felisberto logo em seguida - um breve aceno irônico à tese tradicional da influência perversa da literatura nos costumes. O romance mais famoso de d'Arlincourt, O recluso, se desenvolve em torno da reclusão penitente, após inúmeras atrocidades, de um Charles, o Audaz, versão ficcional mal disfarçada de Napoleão situada no século XV. O fato de que Valongo dita no seu leito de morte a história de sua íntima e ínfima atrocidade nos leva a comparar seu ato narrativo com uma forma de penitência, mas já no começo do conto o narrador ardiloso deixa claro que sua história não é nem "o império do Grão Mogol"29 29 Idem, p. 61. (símbolo de deslumbres e riquezas), muito menos "uma fotografia dos macabeus"30 30 Idem, p. 72. (símbolos de retidão e virtude). O que Valongo oferece a seu interlocutor sem nome (e a nós leitores) são seus "sapatos de defunto",31 31 Ibidem. alusão paródica a um dito que adverte contra a cobiça apressada ("quem espera sapatos de defunto, morre descalço"). E poderíamos mesmo especular que o amanuense sem nome seria portanto herdeiro da fortuna material e da miséria espiritual de Valongo, que ele nos apresenta na forma de um terrível epitáfio no fim do conto: "bem-aventurados os que possuem, porque eles serão consolados",32 32 Idem, p. 80. outra alusão paródica, dessa vez ao texto bíblico em Mateus 5:4: "Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados."33 33 .D'ALMEIDA, O novo testamento, p. 6. Tendo cruzado a fronteira demarcada entre os que possuem e os que não possuem através de um assassinado e a farsa de um luto, Valongo termina sua história sem oferecer qualquer esperança de retribuição ou justiça divina ou humana.

Castelo conta uma história em "O homem que sabia Javanês" que revolve em torno de livros e do seu estudo. Élide Valerini Oliver afirma que "Castelo tem ao menos que fingir que sabe, para poder fingir completamente, como no poema de Fernando Pessoa, tem que aprender o javanês".34 34 OLIVER, O saber em "O Homem que Sabia Javanês", de Lima Barreto, p. 219. E o protagonista do conto de Lima Barreto faz várias visitas à Biblioteca Nacional, abordando seu estudo de forma sistemática: começa por uma introdução na Grande Encyclopédie e um estudo sobre a língua, para depois passar a estudiosos renomados como Max Müller (1823-1900) e Abel Hovelacque (1843-1896),35 35 Entre 1897 e 1910 Max Müller editou o clássico orientalista monumental Sacred Books of the Eastem cinquenta volumes, enquanto Abel Hovelacque publicou em 1882 Les Races Humaines dentro da corrente da etnografia racista de corte spenceriano. preparando-se para uma vida acadêmica de perfil internacional que consome toda a sua parte na herança do Barão. Além disso, Castelo descreve suas peripécias como "meu Gil Blas vivido",36 36 BARRETO, O homem que sabia javanês, p. 25. A tradução no The Oxford Anthology of the Brazilian Short Storytraz "the picaresque tale of my life" (JACKSON, The Oxford Anthology of the Brazilian Short Story, p. 128), omitindo a menção a Gil Blas, enquanto o The Oxford Book of Latin American Short Storiestraz "the living Gil Blas that I was until" (ECHEVARRIA, The Oxford Book of Latin American Short Stories, p. 145). aludindo ao protagonista do romance de Alain-René Lesage, cuja influência sobre a cultura literária ocidental incita tanto condenação como admiração. Enquanto na primeira metade do século XIX Swift37 37 Instructions to Servants (1831) é uma sátira na qual Swift simula aconselhar todo tipo de empregados domésticos sobre como roubar sem serem pegos no serviço a seus patrões. O capítulo VI, intitulado "Directions to the House Steward and Land Steward", consiste em sua totalidade no seguinte texto: "Lord Perterborough's steward, that pulled down his house, sold the materials, and charged my lord with repairs. Take money for forbearance from tenants. Renew leases, and get by them, and sell woods. Lend my lord his own money. Gil Blas said much of this, to whom I refer." SWIFT, Instructions to Servants,p. 444. e Goethe38 38 Goethe qualifica as memórias de Johann Christoph Sachse como "The German Gil Blas" (1821), advertindo seu leitor de que aquela é "a work of nature" enquanto o livro de Lesage é "a work of art". Goethe então descreve o protagonista do romance de Lesage nos seguintes termos: "in regard to content they do permit comparison because in the German work too the protagonist is basically a decent human being, and yet indolent as befits a subordinate who has had to obey orders since childhood. He who depends on others is no more scrupulous than they expect him to be. Thus our hero is broadminded to the point of intrigue and pandering. But since he cannot completely deny the law-abiding burgher in himself, he worsens his lot whenever he attempts to act in conformance with his sense of morality and duty. Because all this comes quite naturally as an outgrowth of circumstances and not as the result of artful irony designed to tease us, we are attracted by the simple, calm presentation of events, which are always of human interest, though not of particular importance. In regard to his time, however, the hero's unfolding life story is noteworthy in that, driven by the circumstances as well as his own restlessness, he is witness to many recent historical events". GOETHE, The Collected Works, vol. 3, p. 184-5. escrevem sobre Gil Blas como um retrato fascinante da vida das classes serviçais e suas tentativas mal recebidas de ascensão social no século XVIII, na segunda metade do XIX o personagem ganha outro significado. O David Copperfield de Dickens reconta a história de Gil Blas para manter "alive my fancy, and my hope of something beyond that place and time";39 39 DICKENS, David Copperfield, p. 52. Mark Twain admite ter o livro como modelo para The Adventures of Tom Sawyer,40 40 No dia 5 de julho de 1875, Twain expressa dúvida sobre a conveniência de ter escrito The Adventures of Tom Sawyerna terceira pessoa: "I believe it would be fatal to do it in any shape but autobiographically -like Gil Blas. I perhaps made a mistake in not writing it in the first person. If I went on, now, & took him into manhood, he would just be like all the one-horse men in literature & the reader would conceive a hearty contempt for him". Ele então anuncia planos de escrever outro romance no qual "By & by I shall take a boy of twelve & run him on through life into (in the first person) but not Tom Sawyer-he would not be a good character for it". TWAIN, The William Dean Howells 5 July 1975, Hartford, Conn. e Alexandre Dumont batiza a revista que publicou o Germinalde Zola Le Gil Blas(1879-1914). O anti-herói de Lesage deixa de ser o arquétipo do empregado traiçoeiro para tornar-se símbolo da insistência em face da opressão e da pobreza, e das estratégias engenhosas como forma de não conformismo. Frente a um mundo tão absurdo como o que nos pinta Valongo em "O enfermeiro", Castelo encontra uma saída: reviver o pícaro Gil Blas com as discretas armas da aparência de um conhecimento científico que se tornou um fetiche.

Enquanto o narrador em terceira pessoa de "O engraçado arrependido" constrói uma bibliografia cômica sobre as artes da comédia com base em fontes literárias reais e imaginárias,41 41 Além do Chernoviz consultado pelo protagonista, as alusões em "O engraçado arrependido" são variadíssimas, indo desde o puramente imaginário até referências literárias e históricas as mais diversas. Há uma imaginária Enciclopédia do riso e da galhofa, obra de um improvável Fuão Pechincha mas também o conhecido almanaque Laemmert (publicado no Rio de Janeiro entre 1844 e 1889). Fala-se do gastrônomo Jean Anthelme Brillat-Savant e do chef francês François Vatel e também do escritor romântico Jean-Paul Richter; do personagem Diogenes Teufelsdröckh de Sartor Resartus escrito por Thomas Carlyle (que alguns diziam ter sido baseado em Richter) e do compositor Jacques Offenbach,. Todas as alusões são feitas pelo narrador em terceira pessoa em seus comentários e o caracterizam mais do que ao protagonista de "O engraçado arrependido". o protagonista Pontes, um comediante nato, busca apoio em outro tipo de livro, o Chernoviz,42 42 O Formulário ou guia médico (1841) se dirigia àqueles com conhecimento médico, enquanto o Dicionário de medicina popular(1842) tinha como público-alvo os leigos. Ambos foram extremamente bem-sucedidos e se tornaram conhecidos pelo mesmo nome, Chernoviz. O livro é uma presença espectral no poema "Dr. Mágico" de Carlos Drummond de Andrade: "Doutor Pedro Luiz Napoleão Chernoviz/ Não atende a domicílio/ Ninguém lhe vê a cara/ Misterioso doutor da capa preta". DRUMMOND DE ANDRADE, Boitempo II, p. 21. manual médico popularíssimo43 43 Pero Luiz Napoleão Chernoviz nasceu Piotr Czerniewicz em Lukov, na Polônia, em 1812. Deixou seu país, exilado, em 1831 e terminou seus estudos de medicina na França em 1837. Em 1840 ele chegou ao Rio de Janeiro e logo foi aceito na Academia Imperial de Medicina. Chernoviz voltou à França em 1855 e morreu em Paris em 1881. num Brasil onde médicos já eram escassos e o conhecimento médico uma fonte de poder incontestável:

O 'Chernoviz' foi lido e utilizado por pessoas de diferentes categorias sociais e profissionais, para as quais facilitou o entendimento da hermética ciência médica. Figuram aí os donos de boticas, os patriarcas e líderes políticos e religiosos que frequentemente cuidavam de pessoas doentes e necessitadas (dos quais o famoso padre Cícero é um exemplo), e as matriarcas da elite latifundiária do Império, que cuidavam das pessoas da casa, dos seus agregados e da escravaria. O 'Chernoviz' também serviu como subsídio científico aos autodidatas e às pessoas leigas que exerceram ofícios de cura, chamados pelos médicos acadêmicos de 'charlatães' ou 'curiosos'.44 44 COTRIM GUIMARÃES, Chernoviz e os manuais de medicina popular no Império, p. 502.

Mais uma vez figura um uso paródico da fonte literária: Pontes usa o Chernoviz não para curar, mas sim para aprender o ofício de matar, estudando cuidadosamente a doença que poderia afligir Bentes na entrada "Aneurysmas", 45 45 CHERNOVIZ, Diccionario de medicina popular, p. 166-168. até se tornar uma fonte mais confiável que o médico da cidade e substituindo o improviso espontâneo do cômico nato pelo engenho ardiloso de um escritor/performer meticuloso que busca conceber a mais perfeita e letal piada.

Valongo, Castelo e Pontes constroem paródias tão bem urdidas e se emaranham nas teias que eles próprios tecem, a tal ponto que sentem seu próprio sentido de autoidentificação ameaçado pelas máscaras que eles vestem tão bem. Nesse sentido o ato de contar suas histórias (no caso de "O enfermeiro" e "O homem que sabia Javanês") e de exercer controle autoral sobre suas performances públicas (no caso dos três contos em questão) torna-se uma tentativa por parte dos três protagonistas de retomar o controle sobre a representação narrativa de si mesmos. Valongo e Castelo atuam para interlocutores escolhidos por eles para reafirmar aquilo que lhes parece ser seu verdadeiro ego, como antídoto contra o medo de desaparecerem no reflexo que eles projetaram em torno de si mesmos. Eles desempenham uma espécie de exorcismo narrativo no qual o tom de desconcerto é tão forte quanto o de orgulho pela própria astúcia, pois o sucesso absoluto ameaça transformar Valongo e Castelo numa espécie de Pontes, um homem encalacrado de tal maneira na sua persona pública de comediante que nem o suicídio é capaz de libertá-lo. Vale a pena acompanhar esse jogo de espelhos em cada um dos três contos.

As reações de Valongo motivadas por seu medo de ser descoberto ou por seu remorso pelo crime são invariavelmente interpretadas como o luto de um empregado dedicado, e o protagonista de "O enfermeiro" se percebe cada vez mais visto como o oposto do que ele realmente é, transformado pelo olhar dos outros numa paródia grotesca da figura do escravo abnegado que povoava tanto as apologias ao escravismo como o discurso abolicionista.46 46 Os defensores da escravidão usavam essa figura como prova da face humana do sistema, enquanto os abolicionistas a usavam como recurso melodramático para aumentar o pathos de seus argumentos e para combater a caracterização dos negros como ameaças à civilização se não estivessem subjugados à escravidão como propalava a visão dos apologistas desta. Ele chega a oferecer uma missa em memória de Felisberto sem anunciá-la a ninguém, para convencer a si mesmo de que sua culpa é genuína.

Um pequeno golpe de Castelo acaba levando-o muito além do papel de agregado do velho Barão, e a narrativa picaresca à la Gil Blas transforma-se em um teatro do absurdo avant-la-lettre quando as portas da diplomacia e da academia se escancaram para Castelo. A transição ocorre quando, durante a entrada triunfal de Castelo no Itamaraty, ninguém faz caso do amanuense despeitado que diz: "É verdade, mas eu sei canaque. O senhor sabe?".47 47 BARRETO, O homem que sabia javanês, p. 132. O javanês transforma-se no xibolete fantástico que garante acesso ao poder e privilégio normalmente vedados aos indivíduos "com aspecto de mestiço Malayo",48 48 Ibidem. mas o xibolete não serve apenas para separar os iniciados dos não iniciados; ele é também uma forma de identificação incrustrada na fala de alguém, independente do seu desejo. "O homem que sabia javanês" é uma sátira que se transforma numa perversa fantasia de autossatisfação na qual a personagem toma conta do fantasista a despeito dele mesmo.

Quando chega à "idade de Cristo", Pontes se dá conta do olhar do outro: a sua vida é uma "vida de filante"49 49 MONTEIRO LOBATO, cit., p. 35. , um papel que fere seu orgulho e o torna faminto por respeito por si próprio. Ele tenta empregos no comércio e na agricultura e acaba se tornando um exemplo de dedicação e talento quando ajuda na repartição de Bentes, mas a conduta e atividades sérias e respeitáveis causam um "Desastre. Pontes sério mudava de tecla, caía no humorismo inglês. Se antes divertia como o Clown, passava agora a divertir como o Tony".50 50 Ibidem. Na tradução do Oxford Book of Brazilian Short Stories, lê-se "whereas before he had figured as a diverting clown, now he was considered even more amusing as a Gloomy Gus" (p. 137), resolvendo a dificuldade de se traduzir clown do português para o inglês mas modificando o segundo termo. Pontes continua um palhaço: o falante Clown agora se transformou no silencioso Tony de Soirée. Roger Avanzi, filho do famoso palhaço Nerino, descreve nos seguintes termos o Tony de soirée:

Enquanto o clown e o excêntrico falam pelos cotovelos, o tony de soirée é praticamente mudo. Em compensação age muito. É o artista mais versátil do circo. Sabe fazer vários números, muitas vezes melhor que o artista mas sua arte consiste em representar o erro, em cair. [...] Mas enquanto o público está rindo do palhaço, o palhaço ri do povo que pensa que ele caiu. Não caiu, simulou a queda, tem técnica, não se machucou.51 51 AVANZI; TAMAOKI, Circo Nerino, p. 31.

Pontes agora ri para si mesmo enquanto os outros riem dele, calibrando cuidadosamente técnica e controle para executar o ato e o crime perfeito. Castelo por sua vez interpreta com perfeito controle de si mesmo um vistoso sábio da belle époque brasileira, enquanto Valongo interpreta, também com perfeição, um fiel e dedicado empregado do velho fazendeiro. Dario Fo diz que todos "Os clowns [...] lidam com o mesmo problema, com a fome: fome de comida, fome de sexo, mas também fome de dignidade, de identidade, fome de poder".52 52 FO, Manuale minimo dell'attore, p. 264. No original em italiano, "I clown, come i giullari e i "comici", trattano sempre dello stesso problema, della fame: fame di cibo, fame di sesso, ma anche fame di dignità, di identità, fame di potere" Aos 32 anos, Pontes finalmente se descobre faminto. Sua fome é a fome tragicômica de um palhaço que quer ser levado a sério. Nem mesmo o suicídio pode satisfazê-la: seu suicídio motivado pelo remorso é interpretado como o ato de alguém que "até morrendo faz chalaça".53 53 MONTEIRO LOBATO, cit., p. 143. " (143). Por isso, Pontes é uma figura obviamente menos ameaçadora que Valongo e Castelo, dois palhaços que levam a sua farsa até as últimas consequências e têm pleno êxito em saciar a sua fome, conseguindo uma plena inserção nas elites do país e rindo intimamente até o fim daqueles que neles acreditam.54 54 Isso talvez possa explicar o sucesso estrondoso do Urupês em forte contraste com a recepção muito menos calorosa da obra de Lima Barreto no momento em que são publicadas. Ambos os autores escrevem sob a égide do que poderíamos chamar uma tomada de consciência radical do que viria a se chamar subdesenvolvimento, mas Monteiro Lobato mantém quase sempre um ponto de vista, ainda que simpático ao Jeca Tatu e congêneres, fundamentalmente senhorial, com o qual os seus leitores se sentiriam mais à vontade. Em 1921 o próprio Lima Barreto se manifesta sobre a obra de Monteiro Lobato com o maior entusiasmo em "A obra do criador do Jeca-Tatu". BARRETO, Marginália, p. 98-100.

"O enfermeiro", "O engraçado arrependido" e "O homem que sabia Javanês" produzem aquilo que Alfredo Bosi chama, com relação a Machado de Assis, "um resíduo de insatisfação cognitiva e desconforto moral".55 55 BOSI, Machado de Assis - O enigma do olhar, p. 10. Essa insatisfação e desconforto, no caso dos três contos, forçam o leitor a reconsiderar o drama da ascensão social frustrada e/ou ilegítima além do que Anthony Amsterdam e Jerome Brumer chamaram de stock scripts,56 56 O conceito aparece no livro Minding the Law: How the Courts Rely on Storytelling, and how their Stories Change the Ways we Understand the Law - and Ourselves, de Anthony G. Amsterdam e Jerome Bruner. fragmentos narrativos com ampla circulação nos discursos hegemônicos, montados em torno de tipos sociais e ideias como a hiperestesia do arrivismo dos parvenus sabidos e/ou pernósticos. Ao escrever a contrapelo desses stock scripts, Machado de Assis, Monteiro Lobato e Lima Barreto inauguram o modernismo em seu sentido mais amplo antes do evento da vanguarda modernistados anos 1920, tocando numa ferida fundamental do tecido social brasileiro, ferida que a Abolição e a República deveriam ter tratado, mas que apenas transformaram no que os falantes de língua inglesa chamam de "o elefante na sala" (the elephant in the room), uma presença sufocante que todos insistem em fingir ignorar.

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  • 1
    BOMFIM, América Latina, Males de Origem, p. 125.
  • 2
    BARRETO, O homem que sabia javanês, p. 25.
  • 3
    Idem, p. 26.
  • 4
    MONTEIRO LOBATO, O engraçado arrependido, p. 140.
  • 5
    MACHADO DE ASSIS, O enfermeiro, p. 73.
  • 6
    Ironicamente no século XXI, às vésperas das Olimpíadas, estamos vendo mais um ambicioso projeto de modernização dessa região degradada do Rio de Janeiro (o chamado Porto Maravilha) levar a escavações que trouxeram de volta à superfície da cidade tanto o cemitério como o porto do Valongo.
  • 7
    De acordo com Júlio César Medeiros da Silva Pereira, os registros entre 1824 e 1830 indicam que 6.119 escravos foram enterrados no espaço de um campo de futebol (PEREIRA, À flor da terra: o cemitério dos pretos novos no Rio de Janeiro, p. 87). Com a proibição oficial do tráfico em 1831, a chegada dos navios passou a acontecer em partes mais afastadas da Guanabara.
  • 8
    No Dicionário da escravidão negra no Brasil, Clóvis Moura nos diz que os escravos neste país geralmente "usavam o [sobrenome] do grupo étnico do qual eram originários [...] ou usavam o sobrenome do seu senhor por aquiescência dele". MOURA, Dicionário da escravidão negra no Brasil, p. 374. Não se trata, portanto, de dizer que Procópio Valongo era um alforriado ou mesmo filho de escravos, mas apenas de apontar que o seu sobrenome incomum nos aponta para o maior centro de tráfico e comércio de escravos da capital do império.
  • 9
    Uma família de Souzaera de fato importante no município de Barreiro desde os primeiros assentamentos na região até a construção de uma suntuosa fazenda de café de nome Pau d'Alho no século XIX. O comendador José de Souza Breves, também conhecido pela alcunha de "Rei do Café", teve a duvidosa honra de ser o recebedor do último carregamento de 540 escravos africanos (sessenta mulheres) contrabandeados para o Brasil em 1852 pelo brigue Camargo, de bandeira norte-americana e propriedade do português João Pedro da Costa Coimbra. O brigue foi apreendido pela Polícia da Corte e por isso há vasta documentação reunida pelo historiador Thiago Campos Pessoa Lourenço (LOURENÇO, O império dos Souza Breves nos Oitocentos: política e escravidão nas trajetórias dos comendadores José e Joaquim Breves p. 122-174).
  • 10
    Lima Barreto acompanhou o processo de perto e escreveu sobre ele para os jornais com verve. De 28 de abril a 3 de junho de 1905, o Correio da Manhãpublicou uma série de textos sobre as galerias subterrâneas descobertas na construção da avenida Central (atual avenida Rio Branco). Esses textos estão em O subterrâneo do morro do Castelo, misturando a crônica das escavações com uma história ficcional algo melodramática sobre um triângulo amoroso que termina em assassinato.
  • 11
    BARRETO, O subterrâneo do morro do Castelo, p. 16.
  • 12
    Idem, p. 29.
  • 13
    Idem, p. 30.
  • 14
    ASSIS, O alienista, p. 36-37.
  • 15
    Como exemplo da persistência do racismo institucional do Itamaraty, ver o livro África difícil: missão condenada, diário, de Raymundo Souza Dantas, primeiro embaixador negro no Brasil.
  • 16
    BARRETO, O homem que sabia javanês p. 33. O tagalo é uma das duas línguas oficiais das Filipinas. O livro de Hovelacque (provável fonte para Lima Barreto e, como veremos, citado pelo próprio Castelo) cita "Tagalas" e "Bisayas" como malaios nas ilhas Filipinas (p. 110). O termo de Lima Barreto foi "corrigido" pelo tradutor para o inglês como Malayan. Curiosamente, as duas versões para o inglês (de The Oxford Anthology of the Brazilian Short Story, por Clifford E. Landers, de 1991, e de The Oxford Book of Latin American Short Stories, por Gregory Rabassa, em 1999) traduzem equivocadamente a confeitaria do encontro entre Castelo e Castro como sendo "in a Sweet Shop" (p. 127, 144), local onde não se costuma encontrar dois adultos bebendo cerveja.
  • 17
    Enquanto o serviço diplomático sob a tutela do Barão de Rio Branco "procurou lotar as dependências do Itamaraty, e mesmo de setores paralelos da administração, de intelectuais respeitáveis, ou de quem afetasse tal postura" (SEVCENKO, Literatura como missão, p. 118), Lima Barreto o "responsabilizava pelo espírito da Regeneração e pelo acirramento do preconceito contra os mulatos" (Idem, p. 147). A ironia se acentua na escolha do nome do fictício chefe do serviço, um tal Visconde [título anterior de Rio Branco] do Caruru, prato baiano de raízes africanas.
  • 18
    BARRETO, O homem que sabia javanês, p. 29.
  • 19
    Ibidem.
  • 20
    Sobre a relevância de García Calderón, Luis Alberto Sánchez opina que "muerto Rodó, lo que acaeció en 1917, Francisco era el indiscutido capitán general de los pensadores del Nuevo Mundo Hispanoparlante" (GARCÍA CALDERÓN, Latin America: Its Raise and Progress, p. xv). Sobre os motivos para a demora da publicação de Latin America: its rise and progress na Espanha (o original em francês data de 1912, mas a versão em espanhol só saiu em 1979), Sánchez especula terem sido as teses políticas do livro que defendiam um governo aristocrático das elites como ideal de regime democrático na América Latina. O retorno ao poder no Peru de Augusto Leguía - inimigo político da família de García -, que venceu as eleições de 1919 e se manteve no poder através de um golpe de estado até 1930, fez com que Latin America: Its Rise and Progresspudesse ser mal interpretado como uma defesa do regime de Leguía, ao qual García Calderón se opunha obstinadamente.
  • 21
    GARCÍA CALDERÓN, cit., p. 359.
  • 22
    Em seu The Moral and Intellectual Diversity of Races with Particular Reference to their Respective Influence in the Civil and Political History of Mankind, Gobineau afirma que os mulatos "display special characteristics of both ancestral races" mas não em uma "complete fusion" (GOBINEAU, The Moral and Intellectual Diversity of Races with Particular Reference to their Respective Influence in the Civil and Political History of Mankind, p. 377). Com base no seu conhecimento sobre a infertilidade de misturas entre lobos e cães e entre cães e chacais, Gobineau conclui que o sangue mestiço dos europeus do norte com os africanos seria ainda pior que o das raças latinas "mais escuras" e os africanos (Idem, p. 496-7). Tudo isso era considerado ciência produzida por um intelectual respeitadíssimo, pelo menos até a derrota dos nazistas.
  • 23
    BUNGE, Nuestra América, p. 140. No original em espanhol, respectivamente, "es el instrumento de la venganza póstuma del nrgro" e "¡Guardaos de él! Insinuante y servil cuando quiere, puede captar vuestra confianza, y si la capta, será para traicionaros y humillaros".
  • 24
    BUNGE, cit., p. 144.
  • 25
    ANDRADE, O turista aprendiz, p. 371.
  • 26
    ANDRADE, Poesias reunidas, p. 125.
  • 27
    The Cambridge Companion to Gothic Fiction, p. 79-80. O Diary of an Ennuyée de Anna Jameson serve para dar uma ideia da fama do romance de d'Arlincourt nos anos 20 do século XIX em Paris: "Le Solitaire rules the imagination, the taste, the dress of half Paris: if you go to the theater, it is to see the 'Solitaire' either as tragedy, opera or melodrama; the men dress their hair and throw their cloaks about them à la Solitaire; bonnets and caps, flounces and ribbons are all à la Solitaire, the print shops are full of scenes from Le Solitaire; it is on every toilette, on every work table; - ladies carry it about in their reticules to show each another that they are à la mode; and the men - what can they do but humble their understanding and be extasiés, when beautiful eyes sparkle in its defence, and glisten in its praise, and ruby lips pronounce it, divine, delicious, 'quelle sublimité dans les descriptions, quelle force dans les caracteres! quelle âme! Feu! chaleur! verve! originalité! passion! &c.' JAMESON, Diary of an Ennuyée, p. 27. 'Vous n'avez pas lu le Solitaire?' said Madame M. yesterday. 'Eh mone Dieu! il est donc possible! vous? Mais, ma chére, vous êtes perdue de reputation, et pour jamais!'".
  • 28
    ASSIS, O enfermeiro, p. 75.
  • 29
    Idem, p. 61.
  • 30
    Idem, p. 72.
  • 31
    Ibidem.
  • 32
    Idem, p. 80.
  • 33
    .D'ALMEIDA, O novo testamento, p. 6.
  • 34
    OLIVER, O saber em "O Homem que Sabia Javanês", de Lima Barreto, p. 219.
  • 35
    Entre 1897 e 1910 Max Müller editou o clássico orientalista monumental Sacred Books of the Eastem cinquenta volumes, enquanto Abel Hovelacque publicou em 1882 Les Races Humaines dentro da corrente da etnografia racista de corte spenceriano.
  • 36
    BARRETO, O homem que sabia javanês, p. 25. A tradução no The Oxford Anthology of the Brazilian Short Storytraz "the picaresque tale of my life" (JACKSON, The Oxford Anthology of the Brazilian Short Story, p. 128), omitindo a menção a Gil Blas, enquanto o The Oxford Book of Latin American Short Storiestraz "the living Gil Blas that I was until" (ECHEVARRIA, The Oxford Book of Latin American Short Stories, p. 145).
  • 37
    Instructions to Servants (1831) é uma sátira na qual Swift simula aconselhar todo tipo de empregados domésticos sobre como roubar sem serem pegos no serviço a seus patrões. O capítulo VI, intitulado "Directions to the House Steward and Land Steward", consiste em sua totalidade no seguinte texto: "Lord Perterborough's steward, that pulled down his house, sold the materials, and charged my lord with repairs. Take money for forbearance from tenants. Renew leases, and get by them, and sell woods. Lend my lord his own money. Gil Blas said much of this, to whom I refer." SWIFT, Instructions to Servants,p. 444.
  • 38
    Goethe qualifica as memórias de Johann Christoph Sachse como "The German Gil Blas" (1821), advertindo seu leitor de que aquela é "a work of nature" enquanto o livro de Lesage é "a work of art". Goethe então descreve o protagonista do romance de Lesage nos seguintes termos: "in regard to content they do permit comparison because in the German work too the protagonist is basically a decent human being, and yet indolent as befits a subordinate who has had to obey orders since childhood. He who depends on others is no more scrupulous than they expect him to be. Thus our hero is broadminded to the point of intrigue and pandering. But since he cannot completely deny the law-abiding burgher in himself, he worsens his lot whenever he attempts to act in conformance with his sense of morality and duty. Because all this comes quite naturally as an outgrowth of circumstances and not as the result of artful irony designed to tease us, we are attracted by the simple, calm presentation of events, which are always of human interest, though not of particular importance. In regard to his time, however, the hero's unfolding life story is noteworthy in that, driven by the circumstances as well as his own restlessness, he is witness to many recent historical events". GOETHE, The Collected Works, vol. 3, p. 184-5.
  • 39
    DICKENS, David Copperfield, p. 52.
  • 40
    No dia 5 de julho de 1875, Twain expressa dúvida sobre a conveniência de ter escrito The Adventures of Tom Sawyerna terceira pessoa: "I believe it would be fatal to do it in any shape but autobiographically -like Gil Blas. I perhaps made a mistake in not writing it in the first person. If I went on, now, & took him into manhood, he would just be like all the one-horse men in literature & the reader would conceive a hearty contempt for him". Ele então anuncia planos de escrever outro romance no qual "By & by I shall take a boy of twelve & run him on through life into (in the first person) but not Tom Sawyer-he would not be a good character for it". TWAIN, The William Dean Howells 5 July 1975, Hartford, Conn.
  • 41
    Além do Chernoviz consultado pelo protagonista, as alusões em "O engraçado arrependido" são variadíssimas, indo desde o puramente imaginário até referências literárias e históricas as mais diversas. Há uma imaginária Enciclopédia do riso e da galhofa, obra de um improvável Fuão Pechincha mas também o conhecido almanaque Laemmert (publicado no Rio de Janeiro entre 1844 e 1889). Fala-se do gastrônomo Jean Anthelme Brillat-Savant e do chef francês François Vatel e também do escritor romântico Jean-Paul Richter; do personagem Diogenes Teufelsdröckh de Sartor Resartus escrito por Thomas Carlyle (que alguns diziam ter sido baseado em Richter) e do compositor Jacques Offenbach,. Todas as alusões são feitas pelo narrador em terceira pessoa em seus comentários e o caracterizam mais do que ao protagonista de "O engraçado arrependido".
  • 42
    O Formulário ou guia médico (1841) se dirigia àqueles com conhecimento médico, enquanto o Dicionário de medicina popular(1842) tinha como público-alvo os leigos. Ambos foram extremamente bem-sucedidos e se tornaram conhecidos pelo mesmo nome, Chernoviz. O livro é uma presença espectral no poema "Dr. Mágico" de Carlos Drummond de Andrade: "Doutor Pedro Luiz Napoleão Chernoviz/ Não atende a domicílio/ Ninguém lhe vê a cara/ Misterioso doutor da capa preta". DRUMMOND DE ANDRADE, Boitempo II, p. 21.
  • 43
    Pero Luiz Napoleão Chernoviz nasceu Piotr Czerniewicz em Lukov, na Polônia, em 1812. Deixou seu país, exilado, em 1831 e terminou seus estudos de medicina na França em 1837. Em 1840 ele chegou ao Rio de Janeiro e logo foi aceito na Academia Imperial de Medicina. Chernoviz voltou à França em 1855 e morreu em Paris em 1881.
  • 44
    COTRIM GUIMARÃES, Chernoviz e os manuais de medicina popular no Império, p. 502.
  • 45
    CHERNOVIZ, Diccionario de medicina popular, p. 166-168.
  • 46
    Os defensores da escravidão usavam essa figura como prova da face humana do sistema, enquanto os abolicionistas a usavam como recurso melodramático para aumentar o pathos de seus argumentos e para combater a caracterização dos negros como ameaças à civilização se não estivessem subjugados à escravidão como propalava a visão dos apologistas desta.
  • 47
    BARRETO, O homem que sabia javanês, p. 132.
  • 48
    Ibidem.
  • 49
    MONTEIRO LOBATO, cit., p. 35.
  • 50
    Ibidem. Na tradução do Oxford Book of Brazilian Short Stories, lê-se "whereas before he had figured as a diverting clown, now he was considered even more amusing as a Gloomy Gus" (p. 137), resolvendo a dificuldade de se traduzir clown do português para o inglês mas modificando o segundo termo.
  • 51
    AVANZI; TAMAOKI, Circo Nerino, p. 31.
  • 52
    FO, Manuale minimo dell'attore, p. 264. No original em italiano, "I clown, come i giullari e i "comici", trattano sempre dello stesso problema, della fame: fame di cibo, fame di sesso, ma anche fame di dignità, di identità, fame di potere"
  • 53
    MONTEIRO LOBATO, cit., p. 143.
  • 54
    Isso talvez possa explicar o sucesso estrondoso do Urupês em forte contraste com a recepção muito menos calorosa da obra de Lima Barreto no momento em que são publicadas. Ambos os autores escrevem sob a égide do que poderíamos chamar uma tomada de consciência radical do que viria a se chamar subdesenvolvimento, mas Monteiro Lobato mantém quase sempre um ponto de vista, ainda que simpático ao Jeca Tatu e congêneres, fundamentalmente senhorial, com o qual os seus leitores se sentiriam mais à vontade. Em 1921 o próprio Lima Barreto se manifesta sobre a obra de Monteiro Lobato com o maior entusiasmo em "A obra do criador do Jeca-Tatu". BARRETO, Marginália, p. 98-100.
  • 55
    BOSI, Machado de Assis - O enigma do olhar, p. 10.
  • 56
    O conceito aparece no livro Minding the Law: How the Courts Rely on Storytelling, and how their Stories Change the Ways we Understand the Law - and Ourselves, de Anthony G. Amsterdam e Jerome Bruner.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2014

Histórico

  • Recebido
    15 Set 2014
  • Aceito
    29 Out 2014
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