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GONZALEZ, Lélia. 2020. Por um Feminismo Afro-Latino-Americano: Ensaios, Intervenções e Diálogos. Rio Janeiro: Zahar. 375 pp.

GONZALEZ, Lélia. . 2020. Por um Feminismo Afro-Latino-Americano: Ensaios, Intervenções e Diálogos . Rio Janeiro: Zahar. 375 pp.

Não invisibilizar, parar, ouvir, aprender com Lélia GonzalezGONZALEZ, Lélia. 2020. Por um Feminismo Afro-Latino-Americano: Ensaios, Intervenções e Diálogos. Rio Janeiro: Zahar. 375 pp. em toda a sua potência nos textos aqui reunidos na obra organizada por Flávia Rios e Márcia Lima é urgente. Por um Feminismo Afro-Latino-Americano traz, através de um trabalho de fôlego, textos da intelectual negra e feminista e lacaniana e latina e política... Encerrar a autora em uma dessas únicas definições seria um ato racista de aplainamento da multiplicidade, complexidade e refinamento do exercício de pensamento que ela nos convida a fazer. Basta, portanto, para fins de introduzir, lembrar que Lélia Gonzalez foi ativista do Movimento Negro, tendo ajudado a fundar o MNU (Movimento Negro Unificado), esteve na Constituinte de 1988, foi do Partido dos Trabalhadores (PT) e do Partido Democrático Trabalhista (PDT), sendo candidata a deputada federal pelo primeiro e a deputada estadual pelo segundo, não tendo sido eleita. Como feminista, também chegou a ocupar o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher(CNDM) entre os anos de 1985 e 1989, estudou psicanálise em seminários de Lacan, é historiadora, filósofa, socióloga, antropóloga, publicou diversos artigos e ensaios, grande parte deles presentes no livro.

Importante destacar a riqueza da seleção de textos, divididos em três categorias distintas: ensaios, intervenções e diálogos. Cabe, aqui, ressaltar a qualidade do trabalho e da introdução das organizadoras, com informações de extrema importância para a compreensão da trajetória de vida, política e intelectual de Lélia Gonzalez. Fica, portanto, um tanto quanto óbvio a dificuldade em resenhar esse livro em sua multiplicidade, com frases que resumam cada artigo aqui contido. A opção é apresentar um quadro geral, ainda que passível de empobrecimento do que a potente obra tem a nos oferecer, contudo, espera-se que, ao discorrer sobre os diferentes textos em blocos, fique claro à leitora e ao leitor a urgência da introdução de Lélia Gonzalez nos cursos, nas disciplinas e em demais trabalhos da antropologia e das ciências sociais, em geral.

A parte I, ensaios - com “formulações mais aprofundadas” segundo as organizadoras -, conta com os artigos: “Cultura, etnicidade e trabalho: Efeitos linguísticos e políticos da exploração da mulher”, “A juventude negra na sociedade brasileira e a questão do desemprego”, “A mulher negra na sociedade brasileira: Uma abordagem político-econômica”, “O apoio brasileiro à causa da Namíbia: Dificuldades e possibilidades”, “Racismo e sexismo na cultura brasileira”, “Mulher negra”, “O Movimento Negro Unificado: Um novo estágio na mobilização política negra”, “A categoria político-cultural de amefricanidade”, “Por um feminismo afro-latino-americano”, “Nanny: Pilar da amefricanidade” e “A mulher negra no Brasil”. Só pelos títulos já podem ser observadas a relevância e a atualidade dos artigos aqui reunidos.

Na parte II, intervenções - “artigos críticos e na grande imprensa e em periódicos do movimento negro e feminista -, foram selecionados pelas organizadoras: “Mulher negra: um retrato”, “Alô, alô, Velho Guerreiro”, “A questão negra no Brasil”, “Pesquisa: Mulher negra”, “Democracia racial? Nada disso!”, De Palmares às escolas de samba, tamos aí”, Taí Clementina, eterna menina”, “A esperança branca”, “Beleza negra, ou: Ora-yê-yê-ô”, “E a trabalhadora negra, cumé que fica?”, “Racismo por omissão”, “Homenagem a Luiz Gama e Abdias do Nascimento”, “História de vida e louvor (Uma homenagem a Zezé Motta)”, “Para as minorias, tudo como dantes...”, “A cidadania e a questão étnica”, “Odara Dudu: Beleza negra”, “Discurso na Constituinte”, “O terror nosso de cada dia”, “As amefricanas do Brasil e sua militância”, “A importância da organização da mulher negra no processo de transformação social”, “Uma viagem à Martinica I” e “Uma viagem à Martinica II”, o que demonstra a diversidade das lutas e dos temas tratados pela autora em diferentes meios de divulgação e com escrita mais acessível.

Por fim, a Parte III, diálogos - “entrevistas para jornalistas” -, traz os textos: “Duas mulheres comprometidas em mudar o mundo”, “Entrevista a Patrulhas ideológicas”, “A lei facilita a violência”, “Entrevista ao jornal Mulherio: Lélia Gonzalez, candidata a deputada federal pelo PT/RJ”, “O racismo no Brasil é profundamente disfarçado”, “Mito feminino na revolução malê”, “A democracia racial: uma militância”, “Entrevista ao Pasquim” e “Entrevista ao Jornal do MNU”. Além dessa diversidade de encontros dialógicos e temas, ao final do livro somos brindados com a complexa e cuidadosa leitura de Lacan e a forte afirmação da importância e da ressonância do autor em sua obra no “Apêndice: A propósito de Lacan”.

Grosso modo, a sessão de ensaios trás os artigos em que a autora elabora conceitos e trata de material empírico relativo à cultura racista brasileira, ao papel da mulher negra - seja ao que é sujeitada, seja àquele que deveria ocupar por meio da crítica e da luta. A linguagem, pela via lacaniana da psicanálise, é fundamental para a compreensão do empreendimento da autora ao formular categorias como pretoguês, América Ladina e as violências linguísticas, observáveis em discursos quilombolas tornados risíveis pelos intelectuais brancos. Pretoguês, aliás, embasado na herança banto não só no linguajar, mas na estrutura mesma da nossa língua. Os efeitos da exploração da mulher negra também revelam chaves para uma leitura da violência linguística observável no nível do discurso. Lembremos da importância de Lacan para a autora e do estruturalismo de Lévi-Strauss para o psicanalista. Assim, o percurso de Gonzalez pela linguagem passa pela psicanálise, complexificando estruturas linguísticas e passando aos efeitos colonialistas e racistas do uso da linguagem. Não à toa que Frantz Fanon será uma de suas maiores influências. Para o autor, assim como para ela, é também na linguagem que o racismo-colonial se expressa.

Outro ponto de tensão, contido em seus artigos sobre temas diversos, é a questão da mestiçagem e, portanto, seu embate com as ideias de Gilberto Freyre. Se intelectuais brancos e de classes próximas ao poder, que inclusive instruíram e contribuíram para a formação da ideia famigerada de nação mestiça e da democracia racial, apostaram em um Brasil mestiço como algo positivo, Lélia Gonzalez nos traz a perversidade do estupro de mulheres negras (escravizadas ou não) do qual o mestiço é fruto. A violência sexual e de gênero é, pois, inerente à existência da figura do mestiço. Daí que, também, podemos ver no pensamento da autora o que, hoje em voga, chama-se interseccionalidade. É preciso falar do negro, do pobre, mas é sobre a mulher negra (sempre pobre) que a função estrutural, em sentido lacaniano especialmente, de mulata (sexualizada) e de empregada doméstica ([mucama] assexual, corpo-trabalho), que o racismo revela uma de suas características mais perversas.

A figura da “Bá” coloca desde as inversões estruturalistas da psicanálise lacaniana um giro complexo no qual a figura da babá, nem mulata, nem empregada doméstica [mucama], é capaz de dar um nó na cultura racista brasileira. É pela amamentação (ama de leite) que a ligação criança branca-babá negra coloca um problema de difícil solução para ambas as raças. Mesmo violentando a mulher negra, a relação entre esse tipo de empregada e o bebê que cuida inverte, como numa ritualística carnavalesca das inversões culturais, a relação negra-branco/dominador-dominado. Outra reflexão importante vem no texto “Nanny: Pilar da Amefricanidade”, que trata da Grande e Poderosa Mulher Jamaicana que Gonzalez equipara à figura de Zumbi no Brasil. As narrativas e os mitos envolvendo Nanny e sua força são seminais para pensar a amefricanidade, a ladinidade e a força da mulher negra e seu papel central na luta antirracista e anticolonialista (por que não contra toda a opressão?). Nanny encarna a figura da feiticeira, associada à Oiá/Iansã, e se faz, como demonstra a autora, pilar para a categoria amefricanidade por meio do axé-mulher.

Em intervenções e diálogos, segunda e terceira partes do livro, podemos ver o caráter “mais” político, digamos assim, da autora. Sua fala na Constituinte de 1988 é emblemática de seu pensamento libertário e antirracista, tão necessário e, aparentemente, cada vez mais precário na atualidade de um desgoverno genocida. Com as entrevistas, o mesmo ocorre e nos é permitido ler o passado e ver em retrospecto respostas ao presente mortífero, especialmente para mulheres negras e indígenas, ambas de suma importância para o pensamento amefricano de Gonzalez.

Ainda cabe dizer que a publicação aponta para dois aspectos que gostaria de chamar a atenção. O primeiro, i) a positividade das ações afirmativas (cotas raciais) e do feminismo negro com crescente atuação e, ii) o desprezo quase total da antropologia - e das ciências sociais, em geral -, para a obra da autora de pensamento complexo, engajado, interdisciplinar e de refinamento ímpar. Do segundo aspecto, espanta que antropólogos/as que se dedicam às temáticas raciais sequer citem a existência de Gonzalez e sigam reproduzindo interpretações e experimentações colonizadas, sobretudo pelo pensamento francês, inglês e estadunidense. Já do primeiro, resta-nos exaltar a militância acadêmica e extra-acadêmica que com sua força coloca o pensamento original da antropóloga, filósofa, psicanalista e feminista negra, para dizer o mínimo, dentro de uma academia ainda demasiadamente excludente. Em relação às cotas raciais, cabe a nós, brancos especialmente, o mínimo de gratidão pela oportunidade de ver em livro textos antes dispersos dessa intelectual sui generis que vem sendo acionada nos diferentes trabalhos de conclusão de curso, teses e dissertações de mestrado. Isso graças a intelectuais negros e negras que recuperam, retomam e potencializam o pensamento afro-latino-americano tão próximo de nós e, ao mesmo tempo, tão distante devido aos programas de curso e listas de leituras passadas por orientadores e orientadoras que, presos/as ao racismo estrutural ou ao cânone acadêmico, toleram autores africanos, mas não autoras negras latinas em seus modos de orientar, pensar e publicar.

Por fim, resta, mais uma vez, ressaltar a importância e a urgência da leitura dos textos dessa intelectual “inexistente” para os brancos e as brancas, mas que pode lhes/nos ensinar muito sobre aquilo que estudam nos assuntos relacionados à população negra e suas matrizes civilizatórias e religiosas, em geral. Para negros e negras, o livro não deixa também de ser muito bem-vindo ao reunir textos dispersos e inéditos para o público brasileiro. Obrigado às políticas afirmativas na universidade e ao feminismo negro que tencionaram que tal obra pudesse ser publicada por editora de renome. Aos antropólogos e às antropólogas fica o convite, leiam Lélia Gonzalez para falar de raça, negritude, psicanálise, cultura, ritual, quilombos, feminismo e o que mais possa ser de preocupação das ciências humanas.

Referência

  • GONZALEZ, Lélia. 2020. Por um Feminismo Afro-Latino-Americano: Ensaios, Intervenções e Diálogos Rio Janeiro: Zahar. 375 pp.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Set 2021
  • Data do Fascículo
    2021
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