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BANDEIRA, Olívia. 2023. Música Gospel: disputas e negociações em torno da identidade evangélica no Brasil. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens Edições. 493 pp.

BANDEIRA, Olívia. . 2023. Música Gospel: disputas e negociações em torno da identidade evangélica no Brasil. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens Edições. 493 pp.

Os estudos sobre religiosidades brasileiras sempre buscaram realçar os entrelaçamentos da fé com as mídias de massa. Pelo menos desde os anos 1980 as ciências sociais indagam-se como um país tradicionalmente católico passou a constituir sucessivas gerações de evangélicos, sendo a novidade do neopentecostalismo rotineiramente caracterizada como fenômeno que se fez possível graças aos veículos de comunicação, demonstrado em pesquisas seminais como a de Paul Freston (1994FRESTON, Paul. 1994. “Uma breve história do pentecostalismo brasileiro: a Assembleia de Deus”. Religião e Sociedade, v. 16, n. 3:104-129. ) e Clara Mafra (2002MAFRA, Clara. 2002. Na posse da palavra: religião, conversão e liberdade pessoal em dois contextos nacionais. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais.). Do chute na santa padroeira televisionado em horário nobre, passando por disputas de outorga de canais de rádio ou pela circulação de testemunhos de conversos em impressos nas portas das igrejas, há tempos a “explosão evangélica” ( Cunha 2007CUNHA, Magali. 2007. A explosão gospel: um olhar das ciências humanas sobre o cenário evangélico no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad X/ Instituto Mysterium.) foi compreendida como um fato social de massa e moderno, justamente por ter sido delineada através de tecnologias comunicacionais de ponta.

O livro Música Gospel, de Olívia Bandeira, traz à tona novos olhares para essa consolidada interseção de mídias e práticas evangélicas. Em um plano mais imediato, a originalidade da obra encontra-se na vasta oferta de dados etnográficos que descortinam a sólida indústria cultural religiosa de meados da segunda década dos anos 2000 no Brasil, com as redes digitais modelando os caminhos comunicativos dos fiéis, até mais do que a outrora onipotente televisão.

Entretanto, novas perspectivas analíticas sobre as temáticas emergem por meio deste trabalho, muito por conta do aporte teórico-metodológico por ele mobilizado. Recuperando o consagrado conceito de Howard S. Becker de “mundo das artes”, a autora o atualiza para a cena midiática digitalizada menos pelo clássico sentido de “desvendar os mecanismos pelos quais a arte se torna arte” (:55), e mais pelo propósito de pensar o gospel via as fronteiras, as mediações e os conflitos que o constituem. A música cristã é observada em sua cotidianidade ao longo da obra, isto é, a partir da disputada feitura e disseminação que rondam os cânticos a Deus, seja nas tramas relacionais envolvendo púlpitos, gravadoras e artistas, seja nos impactos subjetivos que eles podem (e devem) provocar nos ouvintes.

Fruto de uma tese de doutorado defendida em 2017, Música Gospel é um denso trabalho antropológico que revela os sinuosos percursos de bens culturais evangélicos em seus esquemas de produção, distribuição e consumo. Bandeira adota a estratégia metodológica de “seguir as pessoas”, no caso, artistas gospel, não meramente pelo interesse de realizar um trabalho sobre trajetórias de vida, mas para compreender como por meio delas é possível enxergar as negociações que marcam a experiência de ouvir música religiosa, dos produtores aos consumidores, dos pastores nos templos aos distribuidores das lojas físicas e virtuais.

Fugindo do olhar denunciador da “espetacularização” da religião em suas tentativas de “captar fiéis” pelas canções, a etnografia de Bandeira revela que uma reflexão sobre experimentações sensitivas da religiosidade no cotidiano deve sempre incluir o incerto, a polivalência e a ambiguidade. É provavelmente por isso que a autora também foge em Música Gospel de definições estanques sobre o que é cristão, evangélico, secular, sagrado etc., optando por mergulhar nas disputas fugidias existentes por detrás dessas classificações, feitas e refeitas a todo instante pelos próprios agentes que as praticam.

Assim, entre as idas e vindas de uma pesquisa multissituada - que articula distintos campos por conta do gospel não se manifestar simplesmente em um tradicional localismo antropológico - compreendo que a autora costura duas instâncias analíticas por meio de suas interpretações, que poderíamos analisar como a imbricação entre o nível micro e macro da atuação do gospel na sociedade brasileira, ou aquilo que Geertz (1997GEERTZ, Clifford. 1997. O saber local: nos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis: Vozes. ) outrora nomeou como a típica experiência “próxima” e “distante” a ser delineada em todo empreendimento etnográfico: 1. por um lado, uma certa atenção às dimensões fenomenológicas da temática, ou seja, de como os eventos são experimentados pelos sujeitos, capazes de melhor elucidarem o papel da música e dos artistas como criadores de uma comunidade de sentimentos, fornecedores de insumos diários para a edificação de um senso de pertencimento à identidade evangélica; 2. por outra via, verificamos no trabalho também uma análise mais sociológica do gospel, no sentido de uma atenção às estruturas, organizações e instituições; um palco privilegiado para a verificação das hierarquias, dos poderes e conflitos do campo religioso brasileiro, elucidando como Estado, política e mercado modulam a forma como usufruímos do simples ato de ouvir uma música.

Em relação ao primeiro ponto, que nomeei como a instância mais fenomenológica da obra, as reflexões concentram-se, mas não se limitam, na Parte I do livro, em sete capítulos: “Discutindo o conceito de mundo da arte”; “Convenções do mundo gospel”; “Desenvolvimento da carreira: talento, chamado e missão”; “Reputação e autenticidade no gospel: unção e verdadeira adoração”; “Música gospel na vida cotidiana e batalha espiritual”; “Música e outras formas expressivas no contexto ritual” e “Consagração do álbum musical: lugar do artista no mundo evangélico”.

Os debates em torno do que é ser um artista gospel informam sobre a dimensão experiencial e corporificada da música. Embalados pelo espírito romântico ocidental moderno, artistas são vistos como pessoas com talentos e dons especiais, sendo estes em grande parte entendidos como naturais e exclusivos, raramente fruto de socializações ou aprendizados. Entretanto, no gospel, defende Bandeira, o dom natural tem origem na vontade de Deus e baseia-se em um “propósito”, uma “missão”. Artista é um indivíduo especial que se coloca na sociedade como aquele que deve levar a palavra divina, aceitando o “chamado” para servi-lo na Terra. A fuga do rótulo pejorativo de celebridade, algo secular, se faz realçando as “finalidades religiosas” da atuação artística. Nas palavras da cantora Fernanda Brum: “a fama para mim é um espírito: andou com Jesus, mas nunca o dominou. Jesus sempre seguiu sem se confundir” (:118).

Por outro lado, a densa etnografia de Música Gospel nos revela que, mesmo sendo um dom, será vivenciando “experiências reais” com Deus e aperfeiçoando dedicadamente a si mesmo que um artista mantém-se em missão e possui boa reputação. Saber transmitir a “unção” e ter capacidade de “verdadeira adoração” devem ser as marcas morais de um artista consagrado, sendo ele capaz de passar o Espírito Santo tanto para as letras musicais quanto para aqueles que as escutam. Cabe realçar que, nesse instável mundo artístico, perder a “unção” é um mal sempre à espreita e a acusação de “falso adorador” é uma possibilidade para aqueles que se desvirtuam.

A pesquisa multissituada de Bandeira dá um bom espaço para se pensar também sobre a agência dos ouvintes e os “efeitos” das cantigas em suas vidas. Isto porque a música gospel é entendida na obra como um dos inúmeros atos de fala cristãos que, na verdade, são formas verbais expressivas que produzem efeitos no cotidiano conforme os contextos de enunciação, tal como a ministração, a oração, a bênção, o sermão, a preleção, o testemunho, a profecia e a revelação. A análise de depoimentos de fiéis empreendida por Bandeira revela que o discurso musical tem efeitos espirituais e materiais concretos na vida dos ouvintes: ele pode promover a conversão; servir de marcação memorial de eventos e situações críticas; efetivar milagres; auxiliar na manutenção da fé e instrumentalizar a batalha espiritual. Logo, a música gospel estimula a simbolização dos fiéis nas suas sensações de existência enquanto evangélicos.

Já com relação à abordagem mais sociológica de Música Gospel, o segundo ponto acima levantado, podemos perceber que o livro investiga as “modalidades de presença” (:275) dos evangélicos no Brasil, destacando que um artista gospel, por mais conexões existenciais que ele estabeleça com o divino, possuirá sempre formas de atuação e posicionamentos no mundo das artes que refletem as disputas entre as heterogêneas comunidades evangélicas. Tais debates concentram-se na Parte II do livro, em quatro capítulos: “Teologia da prosperidade e o discurso da nação cristã”; “Batalha espiritual: da Teologia do Domínio à Teologia da Libertação”; “Rap Gospel: a questão racial no mundo evangélico” e “Rap gospel entre o sagrado e o secular: desafio à unidade”.

Algumas trajetórias de artistas, bandas e igrejas são essenciais para entendermos a abordagem mais sociológica do livro. A cantora Eyshila - uma das principais interlocutoras de Bandeira - é analisada fenomenologicamente em suas “unções” e “missões” no gospel, mas também pelas conexões patrimoniais e de parentesco com a Assembleia de Deus Vitória em Cristo (ADVEC), assim como pela “cobertura espiritual” de seu tutor Silas Malafaia. Para a autora, tais ligações refletem a ênfase dada por certos segmentos religiosos em atuar na política mais institucional do país. Visa-se com isso disputar espaço e prestígio na esfera pública ao misturar gospel e política. E mais: dessa forma, a ADVEC operacionaliza uma estratégia de evangelização que se faz pelos meios de comunicação massivos e os grandes eventos transdenominacionais.

Por fim, como importante contraponto, a análise de Bandeira nos brinda com uma atenção especial à trajetória de Pregador Luo, rapper gospel, não vinculado diretamente a denominações. O cantor produz um subgênero musical de pouco prestígio, por não se tratar dos louvores e das adorações disseminados pelos cantores majoritariamente brancos e detentores de “coberturas espirituais”, como Eyshila. Porém, ao associar-se ao mercado mais amplo do rap, Luo negocia inclusive o sentido do que é o sagrado evangélico, ao produzir uma musicalidade que se quer religiosa, porém, em constante fronteira com o dito secular.

A dimensão racial de “negro” da biografia de Luo passa a ser conjugada à de “evangélico” e “periférico”, realça Bandeira, estimulando uma instigante fricção que permite melhor entendermos a experiência cristã a partir de seus contornos raciais, já que pouco se fala sobre a presença desses temas nas igrejas e mesmo no meio acadêmico. Através de Luo, verifica-se a emergência de novas figuras religiosas, bem como de bens culturais, que destoam daqueles que ganham maior visibilidade na esfera pública. Com isso, por meio de um gospel mais outsider, e digital, os próprios evangélicos contestam no cotidiano a ideia de uma unidade entre cristãos, muito propalada pelas grandes lideranças religiosas em sua ânsia por gerir um Brasil “terrivelmente evangélico”.

Assim, em parcela da obra, Bandeira traça um percurso que nos auxilia a observar o nível mais micro/fenomenológico da música gospel, inclusive a sua incidência nas subjetividades religiosas, e em numerosas outras páginas acompanhamos como arte, mercado e mesmo política se misturam às canções, dando à pesquisa um nível analítico macro/sociológico de corte mais crítico. Em comum com toda essa fina costura, está a preocupação em dar conta das complexidades que há décadas rondam a presença dos evangélicos no campo religioso brasileiro, sendo as mídias de massa ainda um elemento essencial capaz de elucidar a força e a magnitude do fenômeno.

Referências

  • CUNHA, Magali. 2007. A explosão gospel: um olhar das ciências humanas sobre o cenário evangélico no Brasil Rio de Janeiro: Mauad X/ Instituto Mysterium.
  • FRESTON, Paul. 1994. “Uma breve história do pentecostalismo brasileiro: a Assembleia de Deus”. Religião e Sociedade, v. 16, n. 3:104-129.
  • GEERTZ, Clifford. 1997. O saber local: nos ensaios em antropologia interpretativa Petrópolis: Vozes.
  • MAFRA, Clara. 2002. Na posse da palavra: religião, conversão e liberdade pessoal em dois contextos nacionais Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais.

Editado por

Editora-Chefe:

María Elvira Díaz Benítez

Editor Associado:

John Comeford

Editora Associada:

Adriana Vianna

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    02 Jan 2024
  • Aceito
    21 Fev 2024
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