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A antropologia como ofício feito de reencontros, perdas e curas

La antropología como oficio hecho de reencuentros, pérdidas y curaciones

Anthropology as a profession of reencounters, losses, and cures

Resumo:

O texto aborda, sob forma de comentário a Textures of the Ordinary: Doing anthropology after Wittgenstein, de Veena Das, a complexidade do tempo etnográfico e suas relações com a escrita na obra da autora. Busca, dessa forma, destacar o quanto a atenção ao cotidiano e ao ordinário sublinhada pela antropóloga implica modos bastante singulares de registrar limites e compromissos de nossa atuação enquanto etnógrafas. Discute ainda que, em seu livro, a capacidade de “tolerar a obscuridade” implica movimentos de ordem ética e estética que se revelam na capacidade de retomar escritos anteriores, compor tempos heterogêneos e deixar marcadas hesitações reflexivas que produzem aberturas únicas na compreensão do trabalho antropológico como algo marcado por perdas e reconfigurações.

Palavras-chaves:
Temporalidade; etnografia; ordinário; Veena Das; Textures of the ordinary

Resumen:

El texto aborda, a modo de comentario a Textures of the Ordinary: Doing anthropology after Wittgenstein, de Veena Das, la complejidad del tiempo etnográfico y sus relaciones con la escritura en la obra de la autora. De esta forma, se busca resaltar cómo la atención a la cotidianidad y lo ordinario subrayada por la antropóloga implica formas bastante singulares de registrar los límites y compromisos de nuestro trabajo como etnógrafos. También se argumenta que, en su libro, la capacidad de “tolerar la oscuridad” implica movimientos éticos y estéticos que se revelan en la capacidad de retomar escritos anteriores, componer tiempos heterogéneos y dejar marcadas vacilaciones reflexivas que producen aperturas únicas en la comprensión del quehacer antropológico. como algo marcado por pérdidas y reconfiguraciones.

Palabras clave:
Temporalidad; Etnografía; Ordinario; Veena Das; Textures of the Ordinary

Abstract:

Taking the form of a commentary upon Textures of the Ordinary: Doing Anthropology after Wittgenstein by Veena Das, the present article explores the complexity of ethnographic time and its relationship to writing in the author’s work. In this process, it highlights the extent to which the attention to the everyday and the ordinary advocated by the anthropologist entails highly singular modes of registering the limitations and commitments of our work as ethnographers. The text also discusses how, in Das’ book, the “tolerance of obscurity” implies ethical and aesthetic movements that reveal themselves in their capacity to return to earlier writings, compose heterogenic temporalities, and leave significant reflexive hesitations that produce unique openings in our comprehension of the work of anthropology as something marked by losses and reconfigurations.

Keywords:
Temporality; Ethnography; Ordinary; Veena Das; Textures of the Ordinary

A experiência de ler Textures of the Ordinary: Doing anthropology after Wittgenstein é da ordem simultaneamente do reencontro e da surpresa. Ao longo de seus capítulos, nos vemos frente a frente com temas constantes em obras da autora, com cenas e reflexões que já receberam alguma versão anterior e mesmo com pessoas e localidades que estiveram presentes em outros escritos. Nada no livro, porém, poderia estar mais distante da mera repetição. Recontar algo, como ela afirma no prefácio, não é fácil. Por isso mesmo, sua leitura nos presenteia com possibilidades inquietantes a respeito de nossa própria escrita e de nosso lugar no mundo enquanto pesquisadoras. É um livro desconcertante, no melhor sentido que a palavra pode ter.

Ao aceitar o convite das organizadoras para participar deste debate, me vi testando várias possibilidades de leitura, menos como alguém que pretende chegar a qualquer exegese e mais como uma criança que tem nas mãos um daqueles brinquedos para encaixar chaves de diferentes formatos nas portas da casinha. Entre o tato hesitante e o fascínio com as cores, fui guiada para algumas zonas de seu trabalho que já haviam me marcado fortemente em outros momentos, ao mesmo tempo em que me sentia desafiada por ângulos, detalhes e formulações pouco familiares. Minha hesitação e meu fascínio talvez ressoem uma das marcas mais generosas do livro, que é a do registro do pensamento como processo e também como limite, materializado seja nas passagens em que somos chamadas a compartilhar dúvidas e hesitações com a autora, seja no próprio modo como ela se dobra sobre trabalhos anteriores para inscrevê-los em novos diálogos e no curso da vida.

Se logo no prefácio ela nos chama a atenção para o caráter de coleção que o livro teria, no último capítulo ela nos lembra, a partir de um comentário de Stanley Cavell, sobre como, para as ciências sociais, é difícil tolerar a obscuridade (Das 2020DAS, Veena. 2020. Textures of the Ordinary: Doing Anthropology after Wittgenstein. New York: Fordham University Press.:308). Usando sobretudo este último capítulo como ponto de mirada, esboço breves argumentos sobre as complexidades do tempo etnográfico, seu entrelaçamento com possibilidades e impossibilidades da escrita e sobre a presença de perdas e reencontros no trabalho antropológico.

As danças entre tempo e escrita

A atenção ao tempo é, para mim, um dos elementos mais marcantes na obra de Veena Das. Em seus textos, somos levadas a perceber o papel ativo do “trabalho do tempo” nos processos de descida da violência ao ordinário, a considerar como suas distintas qualidades se entrelaçam ao cotidiano como espaço de re-habitação e, portanto, de imaginação, e a entender, com especial força em Textures of the Ordinary, como somos criadoras e criaturas do tempo em nosso ofício. Se a compreensão de certas situações etnográficas pode se alterar de maneira significativa em diferentes momentos, isto se deve menos a qualquer propriedade esclarecedora por si só que o tempo guardaria, e mais ao modo como podemos nos ver diante de novos espantos e opacidades em nossas relações com outros e conosco mesmas.

Há uma longa educação do olhar e da escuta que não passa, dessa forma, pela busca por ver mais ou de maneira mais acurada, mas pela espreita paciente daquilo que vai surgindo através da pesquisa sistemática, da presença por muitos anos nas mesmas vizinhanças e redes familiares e das questões inquietantes que surgem em meio a diálogos com autores cruciais, como Wittgenstein e Cavell. Em certa passagem no quarto capítulo, “Ethics, Self-Knowledge, and Words Not at Home”, por exemplo, Veena Das nos conduz por diferentes refrações de uma mesma situação etnográfica que muito falam do papel nada óbvio do tempo no fazer antropológico (e no fazer-se da antropóloga). Provocada por uma situação que lhe pareceu surpreendente, a da recusa de uma mulher em seu leito de morte de receber a mortalha vinda da casa do irmão, ela se vê diante de sua própria limitação em compreender a densidade do ressentimento que atravessava aquelas relações familiares. Frases breves, pequenos gestos aparentemente ordinários podem, assim, ser agregados retrospectivamente a este momento dramático, permitindo entrever quão profundas eram as decepções ali acumuladas. Se isto permite indicar uma vez mais o caráter elusivo do ordinário, sua capacidade de se esconder justo porque se apresenta diante de nossos olhos como se fosse banal, também permite refletir sobre quão pouco percebemos às vezes sobre quem somos em nossas relações no “estar com” [being-with] que marca o trabalho de campo. À então jovem antropóloga, certas coisas seriam apresentadas, outras não. Mas não se trata apenas de ocultamentos ou revelações externas, como fica evidente quando ela nos traz outra situação, anos mais tarde, envolvendo a fase final de vida de sua sogra. É nos desafios de vivenciar falas e gestos incompatíveis com a pessoa que conhecia até então que a opacidade do self e do conhecimento se mostram com mais força. Não há, como ela diz, uma “chave única” (:131) que revele os segredos da vida compartilhada com os outros.

As tramas dos atos rotineiros, das formas de expressar cuidado ou de acumular ressentimentos se entrelaçam, assim, às nossas formas de perceber ou deixar de perceber o que se desenrola em nossas relações de pesquisa. Ao dialogar com a antropoesia de Renato Rosaldo, The Day of Shelly’s Death: The Poetry and Ethnography of Grief, livro escrito vinte e oito anos após a morte de sua mulher, a também antropóloga Michelle Rosaldo, Veena Das fala de como a perda trágica provocou nele, para além da ferida pessoal, “uma abertura cognitiva” (:316). Esta se revela tanto no modo como a compreensão da profunda conexão entre raiva e luto já expressa por seus interlocutores em momentos anteriores de pesquisa ganhou novo sentido para Rosaldo, quanto na forma como mortes antes desimportantes passaram a ser vistas como significativas. Em sua poesia, outra faceta da experiência etnográfica pôde surgir, dando vazão à corrente de pequenas histórias que foram deixadas para trás (:317), ao mesmo tempo em que a miríade de pequenas falas e gestos dos dias que antecedem a morte de Shelly desenham uma atmosfera prenhe de avisos, premonições e agouros.

O tempo composto, ativo e múltiplo que atravessa todo o livro, inclusive na escolha por acionar tempos verbais variados em diferentes passagens, aqui se apresenta de modo especialmente provocativo. Em parte, é o tempo complexo do próprio fazer etnográfico, este que envolve movimentar simultaneamente presentes, passados e futuros, mas em parte é o tempo como produtor de sentidos distintos do ordinário e para o ordinário. As banalidades que nos escapam se reconfiguram e ganham outro sentido em meio à perda, à dor e, simultaneamente, à busca por um cotidiano habitável. É assim que, no tempo denso da tragédia, congelado em um presente constante do dia da morte, coexistem as rotinas dos cuidados com os filhos pequenos e mesmo a antevisão, por frágil que seja, de um futuro de novas alegrias. A procura por uma linguagem que não viole essa coexistência complexa se faz, em parte, pela atenção às “palavras desfocadas” (:317) que ajudam a compreender a textura do ordinário, assim como se faz através do cuidado em não fechar experiências em conceitos sem vida ou em palavras nas quais o ar não circula.

A dança com as palavras que nos é oferecida no livro envolve, assim, reconhecer que os conceitos precisam emergir no compasso incerto e atritoso das experiências se não quisermos que estes as sufoquem e congelem. E, mais que isso, que há no trabalho de “tolerar a obscuridade” uma possibilidade de abertura em relação às nossas amarras de autoridade intelectual que, não raras vezes, podem engendrar violências epistemológicas, éticas e estéticas com aqueles e aquelas com os quais compartilhamos tempos, espaços e afetos na pesquisa. O modo como Veena Das inscreve em diversas passagens de Textures of the ordinary suas hesitações com o próprio pensamento, seja nos mostrando até onde foi capaz de ir em determinado momento, seja compartilhando a dúvida mais profunda sobre os limites em que o pensamento de fato pode dar conta da realidade, pode ser visto como um convite para outra forma de compromisso com a capacidade da antropologia de “habitar mundos quebrados” (:319).

O efeito desconcertante do livro a que me referi no começo deste comentário talvez se relacione à percepção de que parte de nossos compromissos de escrita envolve deixarmos espaço para a dimensão sempre imponderável e algo misteriosa da vida dos outros (e da nossa também). Mais que um princípio teórico ou um aporte estético, trata-se de um labor ético delicado, em que cuidamos de não aprisionar pessoas e relações em um momento específico ou em uma figura-conceito que a definam. Em entrevista recente, Veena Das conta que Kh, a menina cujo brutal sequestro é discutido no capítulo 8, “A Child Disappears: Law in the Courts, Law in the Interstices of Everyday Life”, começou a escrever contos e talvez venha a contar em algum momento a sua história (ou a história que quiser fazer sua).1 1 A entrevista completa pode ser encontrada no original em Ferreira et al. (2021), e em versão traduzida em Ferreira et al. (2022). Viver na linguagem, tema wittgensteiniano fundamental no livro, não é algo abstrato, mas implica habitar formas de vida específicas, em que palavras e gestos podem se tornar letais, paralisantes ou curativos. O modo como nos aproximamos de outros, como buscamos estabelecer alguma compreensão do que vemos, ouvimos e compartilhamos, implica compromissos de co-habitar, parcialmente que seja, estas formas de vida. Não é possível saber de antemão, porém, se isto se faz buscando não desprezar os múltiplos fios de que se compõe a textura do ordinário, se deixando de escrever coisas que possam ser violentas para quem as viveu ou para quem nos lê ou, por fim, se aguardando, com um quê de esperança, que o tempo traga novas palavras para uma menina escrever outras histórias.

Encerro este comentário voltando ao tempo, desta vez a partir de um ditado que existe em diferentes línguas: o tempo cura todas as feridas. Como boa parte dos ditados, há neste uma sabedoria de senso comum que encontra seu limite não no desdito total, mas parcial. O tempo cura. Às vezes e algumas, apenas algumas, feridas. De modo similar, o tempo não oferece solução definitiva para textos escritos em outros momentos ou para atos que gostaríamos de não ter feito ou de ter feito de forma um pouco diferente. Mas é nas tramas do tempo - como nas tramas ordinárias e extraordinárias do cotidiano - que vamos esboçando possibilidades de ver de outro ângulo, de nos surpreender, de revisitar nossos encontros com o mundo. Em certa passagem do último capítulo, Veena Das nos diz que a poesia de Rosaldo traz algo de cura não apenas para a perda vivida por ele, mas para a antropologia. Cura aqui, como no ditado mencionado, não é um ponto final ou total. É um movimento que permite que respiremos, entre palavras e por meio de palavras, a força da vida que toca e alivia as feridas.

Referências

  • DAS, Veena. 2020. Textures of the Ordinary: Doing Anthropology after Wittgenstein New York: Fordham University Press.
  • FERREIRA, Letícia; VIANNA, Adriana; PIEROBON, Camila & SARTI, Cynthia. 2021. “Anthropology, desire, and textures of life: an interview with Veena Das”. Revista Sociologia e Antropologia, v. 11:749-789.
  • FERREIRA, Letícia; VIANNA, Adriana; PIEROBON, Camila & SARTI, Cynthia. 2022. “Antropologia, desejo e texturas da vida: uma entrevista com Veena Das”. Exilium. Revista de Estudos da Contemporaneidade, v. 3, n. 5:21-68.
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    A entrevista completa pode ser encontrada no original em Ferreira et al. (2021FERREIRA, Letícia; VIANNA, Adriana; PIEROBON, Camila & SARTI, Cynthia. 2021. “Anthropology, desire, and textures of life: an interview with Veena Das”. Revista Sociologia e Antropologia, v. 11:749-789.), e em versão traduzida em Ferreira et al. (2022FERREIRA, Letícia; VIANNA, Adriana; PIEROBON, Camila & SARTI, Cynthia. 2022. “Antropologia, desejo e texturas da vida: uma entrevista com Veena Das”. Exilium. Revista de Estudos da Contemporaneidade, v. 3, n. 5:21-68.).
  • Declaração de Autoria

    Declaro, para os devidos fins, que o presente trabalho é de minha autoria.

Editado por

Editora-Chefe:

María Elvira Díaz Benítez

Editor Associado:

John Cunha Comerford

Editora Associada:

Adriana Vianna

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    18 Jan 2023
  • Aceito
    06 Jun 2023
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