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Da transversalidade sociopolítica: Por uma antropologia dos interstícios na América do Sul indígena

Of sociopolitical transversality: Towards an anthropology of interstices in indigenous South America

Acerca de una transversalidad sociopolítica: por una antropología de los intersticios en la América del Sur indígena

Resumo

Estudos sobre a estatalidade ou contraestatalidade na América do Sul indígena são ainda incipientes. Apesar de o tema ter conhecido uma recente atenção maior desde que a tese de A Sociedade Contra o Estado, de Pierre Clastres, foi publicada em 1974, pouco tem sido feito no sentido de suprir uma lacuna crucial: aquela que conecta as sociedades andinas às sociedades das terras baixas. O presente artigo busca fornecer sinteticamente, e tendo como pano de fundo a etnografia de um povo aruaque (Enawene Nawe), certos contornos teórico-filosóficos no sentido de preencher essa lacuna. A partir de uma recensão interessada de preceitos importantes da filosofia de Gilles Deleuze e Félix Guattari, por um lado, e um engajamento com estudos de música indígena, por outro, o artigo passa por questões ecologicamente imprescindíveis, como uma chamada ao cotejamento sistemático de estudos de Arqueologia nas sínteses etnológicas, mas também uma apreciação geral do regime de “pequenos intervalos” que vigora nas musicalidades do continente.

Palavras-chave:
Filosofia política; Etnologia indígena; Deleuze e Guattari; Arqueologia sul-americana; Música indígena; Povos Aruaque

Abstract

Studies of statehood or counter-statehood in indigenous South America remain incipient. Although some attention has been given to the topic since the publication of Pierre Clastres’Society Against the Statein 1974, little has been done to fill one crucial gap: the connection between Andean societies and those of the lowlands. Taking as a background the ethnography of an Arawakan people, the Enawene Nawe, this article seeks to fill this lacuna synthetically by tracing out various theoretical-philosophical pathways. Combining a partial review of some key precepts from the philosophy of Gille Deleuze and Félix Guattari with an engagement with studies of indigenous music, the article touches on ecologically indispensable issues, including a call for the systematic collation of archaeological studies in ethnological syntheses, but also for a more general appreciation of the regime of ‘small intervals’ prevailing in the continent’s musicalities.

Keywords:
Political Philosophy; Indigenous Ethnology; Deleuze and Guattari; South American Archaeology; Indigenous Music; Arawak Peoples

Resumen

Los estudios sobre la estadidad o contraestadidad en la América del Sur indígena son aún incipientes. Si bien el tema ha recibido mayor atención desde la publicación deLa Sociedad contra el Estadode Pierre Clastres en 1974, poco se ha hecho para llenar un vacío crucial: la conexión entre las sociedades andinas y las de las tierras bajas. Este artículo busca proporcionar sintéticamente, y en el contexto de la etnografía de un pueblo arahuaco (Enawene Nawe), ciertos trazos teórico-filosóficos para llenar esta laguna. Combinando una revisión parcial de algunos preceptos de la filosofía de Gille Deleuze y Félix Guattari con un compromiso con los estudios de la música indígena, el artículo toca temas ecológicamente indispensables, como un llamado a la comparación sistemática de estudios arqueológicos en síntesis etnológicas, pero también una apreciación más general del régimen de “pequeñas rupturas” que impera en las musicalidades del continente.

Palabras clave:
filosofía política; etnología Indígena; Deleuze y Guattari; arqueologia sudamericana; música Indigena; pueblos Aruaque

Tout n’est pas État,justement parce qu’il y a eu des États toujours et partout. [...] Il est vraisemblable que les sociétés primitives ont entretenu “dès le début” des rapports lointains les unes avec les autres, et pas seulement de proche en proche, et que ces rapports passaient par des États, même si ceux-ci n’en faisaient qu’une capture locale et partielle. (Deleuze & Guattari, Mille Plateaux, 1980DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. 1980. Mille Plateaux. Capitalisme et Schizophrénie 2. Paris: Les Éditions de Minuit.)

Antropologia e contraevolucionismo

A ênfase dos autores é inequívoca: “tudo não é Estado”. Isto, mais que uma constatação, é um viés filosófico expressivo que está subjacente às principais proposições deste artigo. Por isso é importante que não o percamos de vista, a fim de que possamos ganhar uma dimensão complexificada de sua significação através do vislumbre da vasta experimentação humana que vem ocorrendo há milênios na América do Sul. Mas para tanto é necessário trilhar um caminho que passe, mesmo que tangencialmente, pela questão da estatalidade também presente no continente, de modo a estarmos confrontados à longevidade e à profundidade experimentacionais dos caminhos sociopolíticos que envolvem permanecer não sendo Estado.

No capítulo “Aparelho de Captura”, peça seminal de Mille Plateaux (1980) dedicada a uma revista pormenorizada e radicalmente histórico-transversal das configurações da forma-Estado ao longo de diferentes pontos cronológicos e geográficos da história da humanidade, os filósofos contemporâneos Gilles Deleuze e Félix Guattari fizeram um curioso chamado aos etnólogos quanto à compreensão das socialidades indígenas em geral oferecida por sua disciplina:

Espanta-nos, de modo geral, a bizarra indiferença que a etnologia ainda manifesta em relação à arqueologia. Dir-se-ia que os etnólogos, encerrados em seus territórios respectivos, empenham-se em compará-los entre si de maneira abstrata, ou estrutural, no limite, mas recusam-se a confrontá-los aos territórios arqueológicos que lhes comprometeriam a autarquia. Tiram fotos de seus primitivos, mas recusam de antemão a coexistência e a superposição das duas cartas, etnográfica e arqueológica (1980DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. 1980. Mille Plateaux. Capitalisme et Schizophrénie 2. Paris: Les Éditions de Minuit.:535, grifo meu).

Trata-se evidentemente de uma provocação, e como tal deve ser lida rigorosamente à luz da complexidade analítica oferecida pelo capítulo citado1 1 Sobretudo em conjunção ao capítulo-platô anterior e de muitas formas complementar intitulado “Tratado de Nomadologia: a Máquina de Guerra”. quanto ao problema teórico fundamental para a antropologia e demais ciências humanas, além da própria filosofia, que é aquele das formações sociopolíticas, cuja configuração-limite de centralização do poder é a forma-Estado, em suas variadas manifestações. Assim, mesmo que se possa objetar que mais de um século de Antropologia atesta um uso razoavelmente importante de evidências arqueológicas por esta disciplina, ou por outro lado, que o foco da Etnologia depende necessariamente de um relativo encerramento étnico-territorial, o fato é que no cerne dessa provocação dos filósofos reside algo importante: uma decisão teórica que envolve manter resolutamente afastado o espectro do (neo)evolucionismo (antropológico ou arqueológico) em seus resíduos de progressismo civilizacional, continuísmos ou rupturas “necessários” entre tipos ou estágios de desenvolvimento.

Nesse sentido, o método do isolamento etnográfico, cuja história se constrói na passagem do evolucionismo racialista ao culturalismo analogista - incluindo o estruturalismo francês e as vertentes neoevolucionistas anglo-saxãs -, parece não ser capaz de dissolver por si mesmo o fantasma das ideias de progressão ou crescente complexificação civilizacional - mesmo que tal progressão seja considerada difusa, multilinear, ou que tal complexificação seja percebida como negativa.2 2 O difusionismo historicista de Franz Boas (1938 [1911]) é um exemplo estratégico: a despeito da verve radicalmente crítica da vinculação entre raça e cultura - um avanço de posição em relação ao racismo dominante -, subsiste a ideia de progresso ou evolução em estágios. Mesmo que conceda a existência de múltiplas linhas civilizacionais se desenvolvendo em temporalidades distintas (:8), reputando “às leis do acaso” essa distinção. A diferença de assimilação intercivilizacional dar-se-ia pela diferença no “método de introdução da cultura” (:14) - como o problema da falta de amalgamação entre a elite dos “Brancos” e a cultura negra, devido ao racismo agudamente excludente dos primeiros. (Falta de) assimilação esta que diferiria de outros tempos ou contextos intra-africanos, onde ocorreria de modo mais equânime através de intercasamentos. O problema de ver essa intercessão constante de grupos humanos como uma questão de assimilação intercultural é que aí subsiste a ideia de evolução civilizacional progressiva (da tecnologia, das ideias, da cultura), mesmo se pontuando, como o faz Boas, os solavancos sofridos no processo para cada tradição ou cultura, mesmo se afirmando que isso não é prerrogativa de nenhuma raça em especial. Subsiste portanto um adaptacionismo/assimilacionismo, como ficará mais claro nos expoentes do neoevolucionismo que se seguirá (com Julian Steward e Leslie White), sempre trabalhando com alguma noção (uni/multilinear) de avanço e eficiência tecnológica e complexidade cultural. Ou seja, ao “esquecer” momentaneamente os outros territórios e cartas, o método etnográfico opera como um congelamento temporário dessas premissas de fundo evolucionista, o que sem dúvida gera efeitos revitalizadores sentidos através de uma ratificação ao nível disciplinar ou acadêmico da abertura e da possibilidade de “escuta do outro” - exercício já levado a cabo em outros níveis, antes do nascimento da Antropologia, por cronistas, artistas, escritores etc. Contudo, o que os filósofos parecem querer assinalar é que esta operação ou método de modo isolado não é suficiente para resolver os problemas reiteradamente apresentados pelas inúmeras teorias da evolução das sociedades humanas, as quais, bem ou mal, tentam dar conta do fato histórico e arqueológico, mas também sobretudo político, que é a contínua e assimétrica intercessão dos grupos humanos pelo planeta. De um ponto de vista disciplinarmente antropológico, digamos, é desse problema que pretendo tratar ao longo deste artigo.

Esta perspectiva permite um gesto argumentativo de valor heurístico indispensável: mais que pretender abrir uma discussão sobre o valor, a singularidade ou a adequação do método etnológico ou etnográfico (ao qual subscrevo de bom grado), trata-se de propor um múltiplo esvaziamento de pressupostos de fundo evolucionista através do tratamento transversal dos diferentes blocos de materiais etnográficos e etno-históricos. Mais que buscar guiar-se por formas sociopolíticas estanques, são antes os cruzamentos entre formas, conteúdos, substâncias e expressões os fatores constituintes e inescapáveis, e portanto verdadeiramente necessários - aquilo que confere algo como seu valor simbiótico.3 3 Evoco aqui a teoria de Lynn Margulis da origem das espécies (Margulis & Sagan 2002). Ao refutar parcialmente o neodarwinismo, a bióloga propõe que o motor da expansão das espécies (antes que sua evolução) está nas associações simbióticas que podem culminar na simbiogênese através da aquisição de genomas de espécies sempre diferentes, e não na mutação aleatória ou na evolução direcional intraespecífica. Ao refutar o “acaso” ou a aleatoriedade das mutações como gatilho da aparição de novas espécies, pedra de toque da maior parte das teorias evolutivas existentes nas ciências biológicas, a teoria da aquisição simbiótica também pode esvaziar esse pressuposto nas ciências humanas, onde teria vindo ocupar o lugar das concepções deterministas, como vimos para Boas. A aleatoriedade ou mesmo a arbitrariedade (dos signos, por exemplo) são princípios que sugam a potência agentiva das associações simbióticas, plenas de combinatórias qualitativas - tratar-se-ia menos de um código vazio que um código cheio, cujo acoplamento possível com outro código não é exatamente fruto do acaso entre termos infinitamente intercambiáveis (ideia crucial para o pensamento moderno), mas sim de conexões (micro e macro) ecologicamente viáveis de longa data: “Os agentes da mudança evolucionária tendem a ser organismos plenamente vivos, micróbios e suas relações ecológicas, não apenas as mutações randômicas que esses micróbios têm dentro deles” (2002:39).

Pois é certo que não basta afirmar uma aproximação com a Arqueologia para que esse afastamento radical do evolucionismo se concretize, já que a sua sombra ainda paira sobre essa ciência até hoje. No importante Handbook of South American Archaeology (Silverman & Isbell 2008SILVERMAN . Helaine, & ISBELL William. 2008. Handbook of South American Archaeology. New York: Springer.), por exemplo, volume de contribuições valiosas para o estudo da América do Sul indígena, a noção de “complexidade” aparece com bastante frequência ao longo das mais de mil páginas em termos de certa grade evolutiva. Mesmo que mais ramificada e por vezes ponderada (:xii), ela remete quase invariavelmente aos engenhos da arquitetura monumental e ao manejo aque-agricultural, cujo ápice estaria nos Andes Centrais e suas formas protoestatais.4 4 Ver “Continental Introduction” para um panorama desta questão. Ou seja, o foco da complexidade e da engenhosidade raramente está na sociocosmologia ou na metafísica, ele precisa aparecer atrelado a uma tecnologia visível arqueologicamente - o resultado é uma arqueologia sul-americana ainda largamente submetida a um “divisor evolucionista”, que define campos de especialistas em “formações sociais ‘complexas’ e ‘não complexas’” (:19).

A esse respeito, é ainda preciso marcar que ao lado da “carta arqueológica” colocam-se indubitavelmente as cartas históricas ou etno-históricas, as quais também conheceram certo manejo pela antropologia ao longo de sua trajetória. Talvez não seja coincidência que justamente por volta de meados de 1980, poucos anos após a publicação de Mille Plateaux, a etnologia sul-americana (sobretudo amazônica) tenha testemunhado uma significativa irrupção de estudos de história indígena, passando a tratar de problemas suscitados pela diacronia de maneira distinta do evolucionismo anterior que havia marcado os estudos de Ecologia Cultural - conforme apontam duas sínteses bibliográficas, uma do campo geral da Antropologia e outra do campo local da Etnologia amazônica (Ortner 1984ORTNER, Sherry. 1984. “Theory in Anthropology since the Sixties.” Comparative Studies in Society and History, 26 (1):126-166. e Viveiros de Castro 1996bVIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 1996b. “Images of Nature and Society in Amazonian Ethnology”. Annual Review of Anthropology, v. 25:179-200.).

Em sua revisão do campo antropológico, Ortner (1984ORTNER, Sherry. 1984. “Theory in Anthropology since the Sixties.” Comparative Studies in Society and History, 26 (1):126-166.) salienta um movimento de reação ao estruturalismo que começara no início dos anos de 1970 e consolidara-se na década seguinte. Tempos de apuramento do tratamento da liminaridade e da antiestrutura, abrindo espaço para a pragmática, para teorias da ação que deveriam levar em conta o evento, a história na estrutura. E ainda ponderando e criticando um certo viés de apreensão da dimensão histórica pela antropologia que sobrecodifica o evento do encontro das populações tradicionais com o mundo ocidental como “o” evento paradigmático da mudança ou ação: “De outro [lado], há uma espécie de investigação histórica mais etnográfica, que presta atenção maior à dinâmica de desenvolvimento interno de sociedades específicas ao longo do tempo” (:158).

Do ponto-de-vista da Etnologia amazônica, segundo a revisão empreendida por Viveiros de Castro (1996bVIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 1996b. “Images of Nature and Society in Amazonian Ethnology”. Annual Review of Anthropology, v. 25:179-200.), uma “virada historicista” também ocorreu por volta de 1980 - ou seja, o investimento em estudos de história indígena, tanto do ponto de vista da etno-história quanto da historiografia não indígena pós-colombiana -, corroborando por outros meios o recorte de Ortner. À parte a questão da abertura e da inovação que o estruturalismo de Lévi-Strauss representou diante dos modelos então hegemônicos da ecologia cultural ou áreas culturais (:181), o artigo sugere que uma nova combinação conjuntural de fatores se deu após 1970, quando a intensificação da globalização do capitalismo atingiu a região e as sociedades indígenas não corresponderam às expectativas de assimilação ou extinção; ao contrário, experimentaram uma retomada demográfica significativa e uma maior participação no cenário político geral. Este momento peculiar na história amazônica, cerca de cinco séculos após a invasão europeia, teve como consequência para a etnologia um surto de novos estudos e monografias sobre os povos indígenas (com contato recente ou remoto com sociedades nacionais), balizados por outras premissas que o determinismo ecológico que até então grassava em alinhamento inevitável com o vasto compêndio produzido nas décadas de 1940-50 - o Handbook of South American Indians (HSAI), grande responsável pela consolidação do modelo da “ecologia cultural”. Mais recentemente, Alf Hornborg propõe uma abordagem sistêmica e inter-regional da Amazônia (2005HORNBORG, Alf. 2005. “Ethnogenesis, Regional Integration, and Ecology in Prehistoric Amazonia.” Current Anthropology 46 (4):589-620.), visando à integração entre ciências como arqueologia, etnologia e ecologia para um estudo mais acurado da “etnogênese” diante de um contexto de vivas trocas culturais inter-regionais.

Contudo, sem prejuízo à imensa riqueza etnográfica, etnológica e etno-histórica produzida pela literatura antropológica a partir desse período, indispensável aos estudos posteriores, o problema colocado por Deleuze e Guattari parece-me permanecer de muitas maneiras atual, porquanto assentado sobre uma armadura teórica, filosófica e conceitual ainda pouco manejada pela antropologia ou pela etnologia indígena e que traz consigo algumas possibilidades importantes de ruptura epistemológica.5 5 A etnografia de Fausto sobre os Parakanã (2001), seguindo o rol de questões de Ortner, é um exemplo de como tratar a etno-história de um grupo tupi demonstrando as significativas divergências sociopolíticas e sociomorfológicas constitutivas à estrutura social de um mesmo grupo étnico e “local”, concernindo a “abertura à história” (:189) do ponto de vista da longa duração das populações ameríndias anteriormente à invasão europeia, i.e., independente da introdução do evento do “contato” com o mundo ocidental.

Captura: um conceito filosófico

Trata-se do problema universal mas diferencial da captura pelo político, ou da captura enquanto fato diferencial universalmente político: toda captura é política, e todo socius ou coletividade se instaura por determinada modalidade preferencial de captura. Ou seja, como se constitui o corpo de um socius? Através da captura das forças cósmicas, um determinado “manejo” constante de elementos exógenos e endógenos, elegendo determinadas estratégias que os circunscrevem de determinada forma, contraproduzindo seus contornos societários. Mesmo quando o endógeno vê-se reduzido à menor expressão, não sendo mais que contrainventado pela hegemonia do plano exógeno.6 6 Conforme se depreende das proposições de Viveiros de Castro (cf. 2002), nas quais o modelo dos povos Tupi - de especial interesse e ressonância por se tratar dos povos do encontro paradigmático com o colonizador europeu - conduz a interpretação da etnologia sul-americana.

A expulsão ou descarte de elementos faz parte do manejo da captura, definindo como, o que e o quanto é retido. Portanto todo socius só se instaura por modos de captura ou englobamento de multiplicidades, o que faz dele um corpo fluido e simbiótico desde o princípio - esta é minha interpretação geral da filosofia política de Deleuze e Guattari conforme indicada acima. A captura/englobamento seria uma espécie de denominador comum, o operador geral, o movimento principal, mas a distintividade entre as modalidades de captura pode ser medida por parâmetros diferenciais de intensidade e amplitude, como ritmo e distributividade/circunscrição. Se superpusermos isso à ubiquidade da noção de poder em Foucault (1993FOUCAULT, Michel. 1993 [1979]. A Microfísica do Poder. Org. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Ed. Graal. [1979]), que parece fundar o “social” para este autor, temos que toda (micro)captura é (micro)política. Na verdade, ao ver dos autores, captura tem tanto a ver com devir como é a base mesma da transcodificação entre espécies: “[...] captura de código, mais-valia de código, aumento de valência, verdadeiro devir” (Deleuze & Guattari 1980DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. 1980. Mille Plateaux. Capitalisme et Schizophrénie 2. Paris: Les Éditions de Minuit.:17).7 7 Cf. “aliança transespecífica” (Viveiros de Castro 2007). Uma espécie de teoria contingente da ligação, formando sempre regimes semióticos mistos.

O Estado enquanto um “aparelho de captura” emerge quando a máquina ritual deixa de ser engendrada diretamente pela sociedade como um todo e autonomiza uma instância preferencial de controle dos fluxos de captura - autonomização de centros cerimoniais, por exemplo -, a qual pode conjugar-se com o que Deleuze e Guattari chamam de “máquina de guerra” (casta guerreira, exército e congêneres), exercendo assim ingerência vertical sobre seus campos diferenciais de captura. Essa é uma potencialidade onipresente por definição, uma vez que todo socius se funda sobre algum grau e circunscrição de captura, e sua atualização em forma-Estado parece depender de um estiramento contingencial da esfera cerimonial/urbana.

Urbano x agrícola: a captura é superestrutural

Nesse sentido, os autores inverteram o evolucionismo economicista e propuseram uma origem urbana da agricultura, e não ao contrário - o contrário, como sabemos, alimentou diversas teorias pautadas por um determinismo ecológico, buscando discernir entre as áreas geográficas mais ou menos propícias a um desenvolvimento das forças produtivas e consequentemente demográficas.

Não é mais o Estado que supõe um modo de produção, mas o inverso, é o Estado que faz da produção um “modo”. As derradeiras razões para se supor um desenvolvimento progressivo se anulam. É como as sementes num saco: tudo começa por uma mistura ao acaso. A “revolução estatal e urbana” pode ser paleolítica e não neolítica (Deleuze & Guattari, 1980DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. 1980. Mille Plateaux. Capitalisme et Schizophrénie 2. Paris: Les Éditions de Minuit.:534).

Ou seja, não é necessariamente o desenvolvimento evolutivo da economia/tecnologia (infraestrutura) que possibilita o desenvolvimento da política (superestrutura), como na teoria marxista.

O arqueólogo “James Mellaart [...], explorador da segunda ‘grande cidade’ do mundo, foi o primeiro a defender a tese do primado da cidade sobre a agricultura. Retomado por todos os arqueólogos trabalhando no Oriente Médio, seu mote ‘cidades primeiro’ foi esplendidamente explicitado por Jane Jacobs em A Economia das Cidades” (Robert 2005ROBERT, Jean. 2005 Le Retour de Cain. Les origines et la mort des villes. Publicação eletrônica: https://www.pudel.samerski.de/pdf/Robert_LeRetourDeCain
https://www.pudel.samerski.de/pdf/Robert...
:8). Após a exploração do sítio de Çatal Hüyük na Turquia (“a segunda cidade do mundo”), escavações contínuas na Jordânia descobriram mais uma estrutura ritual, datada de 11.600 anos, em um cluster de sítios semelhantes. Tais estudos no Oriente Médio, berço do chamado neolítico no mundo, vêm renovadamente ratificando essa teoria:

Nosso entendimento desse processo foi transformado pela descoberta dos primeiros sítios neolíticos no sul da Turquia (Göbekli Tepe, Schmidt 2006) e norte da Síria (Jerf el Ahmar, Stordeur et al. 1997) com arquitetura indicativa de atividade comunal em sua construção e/ou uso, alguns de escala monumental. Esses sítios sugerem que mudanças na organização social envolvendo um aumento na atividade comunal ocorreram antes da transição para economias agrícolas (Mithen et al 2011MITHEN, Steven. J.; FINLAYSON, Bill; SMITH, Sam; JENKINS, Emma; NAJJAR, Mohammed & MARICEVIC, Darko. 2011. “An 11.600 year-old communal structure from the Neolithic of southern Jordan”. ANTIQUITY, 85:350-364.).8 8 Os autores continuam: “Assentamentos PPNA (Neolítico Precerâmico A) mostram […] estruturas subcirculares e nenhum traço de plantas e animais domesticados” (Mithen et al 2011:351).

O urbanista Jean Robert (2005ROBERT, Jean. 2005 Le Retour de Cain. Les origines et la mort des villes. Publicação eletrônica: https://www.pudel.samerski.de/pdf/Robert_LeRetourDeCain
https://www.pudel.samerski.de/pdf/Robert...
), em seu artigo sobre a constituição do espaço urbano, propôs ainda que essa origem dependeu de uma “mobilização de excedentes do mundo paleolítico”, envolvendo uma interseciva e contrastiva dinâmica de sedução, tanto entre cidades vizinhas quanto entre estas e o “campo”: “As primeiras cidades não se impuseram pela violência, mas sim pela sedução, uma sedução que podia levar à servidão e à revolta contra ela” (:9). Através de tal forma eminentemente captora que é a sedução, a urbe, que parece surgir sempre como multiplicidade de pequenos vilarejos, teria desenvolvido uma crescente especialização e/ou refinamento dos excedentes que atrai, seleciona, aprimora e oferta para a troca.

Renard-Casevitz, estudiosa da zona transfronteiriça pré-andina, discorre sobre esse jogo de sedução próprio à formação do urbano para o universo interétnico da “floresta”, entre si e em contraposição à urbe andina:

A junção interétnica guerreira daqueles que se reconheciam como “gente da floresta” se municiava de uma codificação das relações comerciais estabelecidas sobre essas imensas regiões. Essa codificação particulariza cada etnia e lhe designa um papel e uma função num conjunto interétnico solidário […]. Assim vemos delinear-se uma vasta confederação de etnias piemontesas que codificavam suas relações e sua interdependência embrionária através de sua identificação a um ofício ou a um bem. Os Shipibo eram renomados por sua cerâmica, os Conibo por seus tecidos pintados, os Matsiguenga por seus arcos e suas flechas, os Piro por suas canoas - e sua arte de comerciantes -, os Nomatsiguenga pela sofisticação de seus tecidos de algodão, e enfim os Amuesha e os Ashaninka do Cerro do Sal, além de suas artes ornamentais, detinham o sal (1985RENARD-CASEVITZ, France-Marie., 1985. “Guerre, violence et identité a partir de sociétés du piémont amazonien des Andes Centrales”. Cahiers ORSTOM, série Sciences Humaines, v. XXI, n. 1:81-98.:95).

Ora, a sedução é uma das formas preferenciais de captura, antes de urbanizar-se em um monumental jogo de espelhos, poder-se-ia dizer. Seu papel, verificado sobretudo na posição que a presa ocupa na captura, tem sido minuciosamente trabalhado pela etnologia sul-americana (Taylor 2000TAYLOR, Anne-Christine. 2000. “Le sexe de la proie. Représentations jivaro du lien de parenté”. L’Homme, 154-155:309-334.; Bonilla 2007BONILLA, Oiara. 2007. Des proies si desirables soumission et prédation pour les Paumari d’Amazonie brésilienne. Tese de Doutorado, École des Hautes Etudes en Sciences Sociales, Paris.). Isto convida a refletir sobre o aspecto feminino como destacadamente constitutivo do urbano,9 9 Feminino que pode ser visto como a presa paradigmática (Taylor 2000). evocando uma observação de Viveiros de Castro sobre a cosmologia dos Jê, povos cuja marcante expressividade socioespacial é bem conhecida na literatura: “as mulheres não representam o polo da natureza em nenhum sentido relevante. Ao contrário [...], um estado socialmente puro só poderia ser alcançado em um mundo constituído e reproduzido exclusivamente pelas mulheres” (2002VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2002. A Inconstância da Alma Selvagem. São Paulo: Cosac & Naif.:454-5). Observemos ainda que a posição feminina não demanda que seja irrevogavelmente ocupada por mulheres, mas sim que se partilhe algo de fundamental dos modos femininos de captura. Se a caça é nomádica e troca seu excedente pela pedra polida (objetos de obsidiana) (Robert, idem), estes são fabricados desde uma posição de relativa sedentarização dos ofícios.10 10 Na narrativa da origem do sono enawene nawe, diz-se que as mulheres dormem mais que os homens porque Wadare, o demiurgo principal, colocou o pó sonífero (as cinzas de seu irmão) debaixo de seus seios, enquanto para os homens o depositou apenas em suas redes, o que ratifica por vias mitológicas essa ideia da posição feminina mais sedentarizada. De base feminina ou não, o que essas análises da constituição do urbano demonstram é que é um erro não se tomar a possibilidade de autonomização e centralização do social ou do poder como um problema latente a toda e qualquer forma de sociedade desde muito cedo na história da humanidade, sem necessariamente passar por estágios evolutivos atrelados à esfera econômica.

Captura na Etnologia Amazônica

Mas se elegi a chave conceitual dos modos de captura para lidar com o problema geral da constituição do social - em contraste estratégico ao rendimento recente de um novo ontologismo, por exemplo - não foi porque isso se cola exatamente como uma luva no pensamento dos filósofos citados, mas antes porque tal tema-motivo emergiu com uma força inescapável ao tentar esboçar o sistema ritual do povo indígena Enawene Nawe. De enorme pregnância na América do Sul indígena, como o tem demonstrado o foco nas teorias e nos conceitos indígenas, a ideia da captura parece ser um movimento-direcional crucial em suas sociocosmologias. Outras possibilidades relacionais - como descarte/dispêndio, ou produção, negociação, tradução, ou mesmo extração - fazem parte, decerto, das socialidades sul-americanas como “semióticas [necessariamente] mistas” que são (Deleuze & Guattari 1980DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. 1980. Mille Plateaux. Capitalisme et Schizophrénie 2. Paris: Les Éditions de Minuit.:169). Mas a idiomática da captura parece ter precedência expressiva em relação a outras modalidades de ligação e associação entre povos, gentes, seres ou ambientes. Não parece ser outro o sentido da forte pregnância do dispositivo da “predação cosmológica”, conforme desenvolvido por Viveiros de Castro (1993VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 1993. “Alguns aspectos da afinidade no dravidianato amazonico.” In: E. Viveiros de Castro & M. Carneiro da Cunha (orgs.), Amazonia: etnologia e história indígena. São Paulo: Núcleo de História Indígena e do Indigenismo da USP/Fapesp. pp. 149-210.) e outros, ou de sua contraface “familiarizante”, conforme Fausto (2001FAUSTO, Carlos. 2001. Inimigos Fiéis. História, Guerra e Xamanismo na Amazônia. São Paulo: Edusp.). Tanto predar como familiarizar, enquanto operadores predominantes, necessitam da ideia de captura em primeira linha - da inscrição de uma perspectiva através de determinado nível de afirmação (no sentido nietzschiano): vontade de potência, aumento de valência.

A predação traz continuamente um problema para os povos indígenas, um problema diante do qual se lançam com paixão, mas justamente sob uma condição: como dar conta daquilo que ela acarreta, aquilo que vem junto com ela, como manejar aquilo que se capturou/cativou? Pois não se trata de uma predação irrefreada ou unidirecional, e isso é fundamental, uma vez que a ideia de predar e não capturar de alguma forma a potência da presa nos levaria para outros sistemas sociais e políticos, em um caminho com vários graus de indiferença ao que foi predado. Portanto toda predação pode resultar em um aumento da valência de uma determinada perspectiva, mas sob a condição de que haja um determinado equilíbrio generalizado latente, o que faz com que qualquer captura de potências seja continuamente pesada e calibrada de modo a garantir a não irrupção de perspectivas salientemente indiferentes a esse equilíbrio geral. Vai-se tornando mais clara a diferença entre, grosso modo, uma captura que busca manter um razoável nível de potência da presa - que passará a compor aquela do predador (cf. a noção de “wild pets” em Fausto 1999FAUSTO, Carlos. 1999. “Of enemies and pets: warfare and shamanism in Amazonia”. American Ethnologist, 26 (4):933-956.) -, e os mecanismos de aparelhos de captura estatais, que buscam antes aniquilar a potência de seus súditos, posto que são percebidos e pastoreados como pré-capturados - “taken for granted”, mas sobretudo alvos de um eterno movimento de despotencialização. Em outras palavras, no primeiro caso, talvez se possa dizer que a captura é sempre ritual e distributiva, enquanto no segundo ela é antirritual e acumulativa.

A ideia de pré-captura, ou do que o socius trata como antecipadamente capturado, e como maneja seus riscos ou oscilações inerentes, é muito importante para se pensar a diferença mais fina entre regimes de socialidade. Isso ecoa de certa maneira o “dado”, ou “convenção”, de Wagner (1975WAGNER, Roy. 1975. The Invention of Culture. Englewood Cliffs: Prentice-Hall.): o dado corresponderia em alguma medida ao que entendo como pré-capturado; segundo ele mesmo e Strathern (1988STRATHERN, Marilyn. 1988. The Gender of the Gift. Berkeley: University of California Press.), o clã melanésio o é, sendo que o que resta a capturar são as linhagens em seu jogo político, o “inventado” - daí, talvez, a pregnância na Nova Guiné tanto do problema da separação e do divíduo, da extração das relações do dado basal que é o clã, quanto da díade reclusão/revelação para lidar com o caráter dramático das ações rituais.

Na América do Sul, pouco parece ser concebido como pré-capturado, e quando é, o grau de certeza dessa pré-captura é menor que o que demonstram etnografias melanésias, fazendo com que o “dado” apareça como já exterior, alteridade quase pura (ponto geral de Viveiros de Castro), pois pouco é taken for granted, para além da pura exposição ao cosmos. Toda predação resulta numa captura plena de interesse potencialmente arriscado nas Terras Baixas, porque no geral não é vista como anterior ou antecipada. Mas há muitos regimes de captura e eles têm de ver também com uma concepção de temporalidade: o quanto se deixa uma linhagem, um clã ou um grupo permanecer no tempo em detrimento do jogo com outros, i.e., qual o tempo da sua sazonalidade?

O estudo de uma pequena sociedade do sudoeste amazônico, os Enawene Nawe, demonstra que essa inflexão filosófica é de fato indispensável: como analisar com justeza sociedades cuja tradição socio-linguístico-cultural remete sempre a sistemas multiétnicos, de feição sociopolítica segmentar, próxima aos regimes clânicos, como é o caso dos aruaque? Regimes clânicos, contudo, cuja captura nunca é vista como dada ou definitiva, e cuja resultante social é uma simbiose populacional expressamente celebrada enquanto tal? Ou seja, ao tratarmos de sociedades que não se encaixam plenamente no modelo guerreiro ultra-horizontal típico das terras baixas e nem exatamente nos sistemas mais centralizados proto-estatais andinos, como sair da estereotipia circuncaribenha de uma pura intermedialidade entre esses dois tipos assinalada aos aruaque pelo HSAI?

Iyaõkwa: o “lugar da captura”

Comecemos pela glosa que proponho para o principal ritual da extensa cadeia cerimonial que rege a vida na aldeia enawene nawe, o Iyaõkwa:11 11 Esse ritual foi registrado em 2010 como Patrimônio Cultural do Brasil (IPHAN, 2018). Os processos de registro e salvaguarda foram multidisplinares e participativos, incluindo 14 mestres de música como bolsistas, e resultaram no livro de cantos Salomã - Enore Nawe Deta (Lima Rodgers, 2018). enquanto iya- remete ao radical do verbo “pegar”, “tomar”, “capturar”, -kwa é o sufixo panaruaque para “lugar” ou “local” (Lima Rodgers 2014LIMA RODGERS, Ana Paula 2014. O Ferro e as Flautas. Regimes de Captura e Perecibilidade no Iyaõkwa Enawene Nawe. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, UFRJ, Rio de Janeiro.). Trata-se de uma categoria de amplo alcance, designando ao mesmo tempo o mito, o rito, suas flautas, os homens que realizam o rito e a própria sazonalidade pertinente a ele. Iyaõkwa é, então, um bloco sazonal de afetos e fazeres, os quais estão intrinsecamente ligados aos espíritos subterrâneos denominados iyakaliti. Se iya- é “capturar” no sentido lato, iyaka- é “capturar” no sentido estrito de “flechar”, “matar” - por esse motivo os iyakaliti são perigosos e estão associados também ao animal predador preferencial das narrativas enawene nawe, as cobras.12 12 Convém notar a cerrada cognação entre elementos afins do povo índigena mais próximo culturalmente dos Enawene Nawe, os Paresi: segundo Aroni (2019), iyamaka são as flautas sagradas paresi glosadas corriqueiramente por “jararacas”, relacionadas também aos espíritos yakane.

De duração de sete meses, o iyaõkwa puxa um ciclo anual que comporta também as fases lerohi, salomã e kateoko, em um denso ritmo de temporalidades e sonoridades sobrepostas. A cada biênio, dois clãs ocupam o posto de anfitriões do rito (halikali) e entretêm a função de “donos” (ewayate) perante os homens dos demais sete clãs, que nessa condição são como seus pets ou “cativos” (ehõla). Ser anfitrião do iyaõkwa é ter a prerrogativa temporária de amansar os iyaõkwa - ou seja, amansar os homens que chegam das longas expedições de pesca como uma espécie de personagem híbrido entre homens (enawene) e espíritos (iyakaliti). O ápice dramático do ritual é exatamente esse: de retorno à aldeia, os iyaõkwa são familiarizados pelos halikali através da comensalidade, sobretudo pela ingestão imediata do sal, signo mais saliente de seu paladar, e posteriormente de cuias repletas de mingau de mandioca e milho (keteda), generosamente ofertadas. Este é também o momento em que os halikali transferem aos homens-espíritos os ornamentos corporais e as flautas de seu próprio clã. Em troca, são eles que pescam seus peixes, e somente eles podem tocar suas flautas, jamais alguém toca a flauta de seu próprio clã no ritual iyaõkwa. Por isso, “pertencer a um clã” é na verdade “possuir um iyaõkwa”, o que significa deter a prerrogativa de ocupar temporariamente a posição de dono (ewayate) perante o grupo, o qual por sua vez ocupa temporariamente o lugar da captura.

Esta prerrogativa crucial para o sistema de vida enawene nawe é expressa em diversos cantos como esse:

nohinkywana wetekwo nowayate kayñware wetekone [eu estou saindo para a praça do meu dono anfitrião para a sua praça] iyoloina inikyali niyokwaikiwana nowayate kayñware wetekone [circulo assim volteio na praça do meu dono anfitrião na sua praça] noterena nowayate kayñware olone [bebo do meu dono anfitrião a bebida ] nayowena nowayate kayñware ixone [chupo do meu dono anfitrião o sal] nemehena kiahinkase iyahõkwa hwerare [assim ele fala o grande preto iyaõkwa bravo]

Ritualizar, portanto, é mediar as relações de predação que envolvem a vida em sociedade, sobretudo através de intensas cerimônias que calibram finamente em termos musicais os limites da captura entre seres e esferas. Deter as cobras, mas também enfeitar-se com elas (a indumentária cerimonial evoca esse animal), é um affaire do Iyaõkwa enquanto personagem mítico mediador dos selvagens espíritos iyakaliti perante os humanos. A saída para uma captura potencialmente predatória que foi suspensa pelo processo de amansamento é a grande vitalidade virtuosística musical que se desenrola por meses a fio.

Mas para os propósitos deste artigo, é importante notar que os Enawene Nawe o fazem através de um exercício temporário da prerrogativa de posse dos outros membros da sociedade. O inexorável rodízio da posição anfitriã é a mola mestra desse sistema, que experimenta mas dissolve em seguida uma centralização que não chega a se estabelecer. Os clãs são as unidades de manejo das potências de captura, mas na ritualística enawene nawe não se trata propriamente de “revelação” das potências de um dado basal (como seria o caso melanésio), mas sim de um “encontro” entre potências distintas (chamado halakwayti). Ao assumirem os artefatos sonoros e ornamentais sempre de um outro clã, o sistema enseja um enredado modus operandi do recíproco donos/cativos - que, sendo estruturalmente móvel, não favorece a consolidação de longas linhagens clânicas.

É nesse terreno de ideias que me parece residir o sentido mais amplo de iyaõkwa, enquanto um modo preferencial de captura ritual que perfaz um sistema abrangente e inescapável para os Enawene Nawe, o qual preconiza uma convivência simbiótica entre pessoas ditas originarem-se de várias populações diferentes no passado, o que nos leva de volta à argumentação inicial.

Os Aruaque e a arqueologia sul-americana

A ideia de um ethos aruaque foi frequentemente associada a um maior grau civilizacional, em geral visto como consequência de um relativo sedentarismo, agricultura mais intensiva e um pacifismo interno (quando não externo). Ou seja, há muito essas sociedades (falantes de línguas da família aruaque) têm sido objeto de especulações teóricas de estudiosos da América do Sul no que se refere a uma possível veia civilizadora inerente à sua estrutura social, de Métraux a Max Schmidt passando por todo o volume IV do Manual dos Índios Sul-Americanos (Steward 1946STEWARD, Julian H. (org.). 1946 a 1959. Handbook of South American Indians [HSAI], Vol. 3. Washington: Smithsonian Institution.). Michael Heckenberger, arqueólogo expoente de um neoaruaquismo com base em sua pesquisa do sistema alto-xinguano, ao discorrer sobre a heterogeneidade cultural presente na Periferia Meridional da Amazônia, observa (2001HECKENBERGER, Michael. 2001. “Estrutura, História e Transformação. A Cultura Xinguana na Longue Durée, 1000 - 2000 D.C.” In: B. Franchetto & M. Heckenberger (orgs.), Os Povos do Alto Xingu. História e Cultura. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ.):

[...] se a examinarmos mais de perto, através de uma perspectiva histórica, tal heterogeneidade se transforma num bloco quase contínuo de povos Aruak, se estendendo do Alto Madeira e Montaña (a leste) ao Alto Xingu. A Periferia Meridional tem tanto a ver com história quanto com geografia; e, se o corpo social é diverso, o esqueleto, a estrutura social profunda, é largamente de origem Aruak.

Mas se os povos aruaque ocupam tradicionalmente na literatura acadêmica uma posição intermediária e intersticial (civilizadores), os especialistas são hoje unânimes em acordar que mesmo possuindo morfologias sociais que acolhem formas brandas de hierarquia e especialização de funções, dentre outras características, eles mantêm-se largamente igualitários e distributivos, pois na prática a diferença de posse de recursos é de baixa intensidade, como se pode constatar no compêndio Comparative Arawakan Histories (Hill & Santos-Granero 2002HILL, Jonathan D. & SANTOS-GRANERO, Fernando (orgs.). 2002. Comparative Arawakan Histories. Rethinking Language Family and Culture Area in Amazonia. Urbana and Chicago: University of Illinois Press.).

Em 1986RENARD-CASEVITZ, France-Marie., SAIGNES, Thierry, TAYLOR, Anne-Christine. 1986. L’Inca, L’Espagnol et les Sauvages. Rapports entre les sociétés amazoniennes et andines du XVe au XVIIIe siècle. Paris: Editions Recherches sur les Civilisations., poucos anos após a publicação de Mille Plateaux, os etnólogos Renard-Casevitz, Saignes e Taylor produziram um dos mais singulares esforços de análise histórico-transversal da América do Sul indígena. Com foco na região transandina, L’Inca, L’Espagnol et les Sauvages é um compêndio que analisa boa parte do conhecimento multidisciplinar acumulado até então sobre as relações entre povos habitantes da floresta (selva), do altiplano (sierra) e da costa, incluindo em dado momento o colonizador europeu. Reunindo dados antropológicos, históricos, arqueológicos, linguísticos e ecológicos, o eixo é a região de transição ecológica do piemonte andino e o início da floresta tropical, incluindo populações aruaque, shuar e híbrido tupi-aruaque. Incidindo sobre períodos pré e pós-colombianos para uma análise das relações compósitas e mutantes entre terras altas e terras baixas, o estudo surgiu para os autores como uma resposta “à necessidade de romper o enclausuramento epistemológico e acadêmico que separa, nos estudos americanistas, a análise das sociedades montesas (cordilheiras andinas de latitudes intertropicais) daquela das sociedades florestais amazônicas” (:5). Ou seja, sociedades para as quais se adequaram dois paradigmas opostos, estatais (com estado) e tribais (sem-estado), oposição sobrecodificada em âmbito acadêmico por uma divisão de tarefas ao nível disciplinar: as primeiras adequadas ao discurso histórico, as segundas, ao discurso antropológico. Infelizmente, nenhum outro esforço semelhante se viu acontecer na etnologia sul-americana.

Mas os aruaque estariam no meio. Suas características (civilizatórias ou transicionais), revistas sob a lente da captura, chegam ao ponto deste artigo através do prisma etnográfico: como tratar da convivência milenar de diversos tipos de sociedade de modo radicalmente não evolucionista? Pois o problema lançado na epígrafe toca em um ponto nevrálgico para quaisquer ciências que precisem lidar, direta ou indiretamente, implícita ou explicitamente, com uma teoria da trajetória humana no planeta: como tratar com sofisticação as importantes diferenças entre formas sociopolíticas humanas, que não obstante estiveram sempre mais ou menos entrelaçadas? Ou ainda mais especificamente para a América indígena: como é que se deu a história de um vasto sistema de entrelaçamento e redes sociopolíticas, que incluía a forma-Estado, mas que, ao contrário do mundo globalizado atual, tinha nas formas não estatais - dos mais variados graus de introspecção guerreira ou abertura às redes de troca - sua provável expressão hegemônica? Ou seja, de um ponto de vista global, o Estado é que teria de dobrar-se às formas antiestatais antes que estas àquele. E finalmente, como pensar essas formas sociopolíticas em um passado não tão longínquo (início do século XVI), no cenário em que uma vasta região como a Amazônia, por exemplo, como diz o arqueólogo Eduardo Neves (s/dNEVES, Eduardo Góes. s/d. Texto do arqueólogo Eduardo Góes Neves. Publicação eletrônica: http://mauriciodepaivaentorno.com/Texto%20Eduardo.html
http://mauriciodepaivaentorno.com/Texto%...
), era provavelmente

Um grande mosaico de jardins, ... [que] se constituíam de ilhas de áreas cultivadas; de roças em diferentes estágios de uso e abandono; de áreas abandonadas (antigas roças ou aldeias, abertas a golpes de machados de pedra polida e ao calor do fogo, plenas de espécies frutíferas ou outras economicamente importantes); de trilhas, caminhos ou estradas que cruzavam a mata e conduziam de uma aldeia a outra; e das próprias aldeias, algumas de grande porte e com centenas de anos de ocupação contínua.

Observando-se ainda que “os períodos cíclicos entre maior e menor centralização política são aparentes na Amazônia Central, com flutuações notáveis em locais de sítios e densidades populacionais” (Heckenberger & Neves 2009NEVES, Eduardo Góes. 2009. “Warfare in Precolonial Central Amazonia. Whan Carneiro Meets Clastres”. In: Axel E. Nielsen & William H. Walker, Warfare in Cultural Context. Practice, Agency and the Archaeology of Violence.. Tucson: The University of Arizona Press.:257).

A arqueologia amazônica vem aos poucos se aproximando desta importante ideia cíclica ou pendular de configuração do poder, bem como se alimentando de uma conexão entre história, ecologia, política e estética, abandonando gradativamente a exclusividade do determinismo ecológico de base norte-americana. Segundo Neves (2000NEVES, Eduardo Góes. 2000. “O Velho e o Novo na Arqueologia Amazônica.” Revista USP, 44:86-111.), a mudança é lenta mas perceptível, e um dos trabalhos seminais que forjaram uma nova perspectiva do espaço habitado milenarmente na Amazônia foi a ecologia histórica de Balée (1994BALÉE, William. 1994. Footprints of the Forest. Ka’apor Ethnobotany - the Historical Ecology of Plant Utilization by an Amazonian People. New York: Columbia University Press.), que inverte o determinismo generalizado e postula que a ecologia da região é que é em grande medida fruto de um processo longevo de ocupação humana. Neves abre este artigo pontuando justamente sobre as “consequências políticas” dessa possibilidade de virada teórico-metodológica, referindo-se, evidentemente, à implacável devastação ecológica e humana imposta sobre a Amazônia, um argumento que também aparece em Heckenberger e Neves (2009HECKENBERGER, Michael. J. & NEVES, Eduardo. 2009. “Amazonian Archaeology”. Annual Review of Anthropology, 38:251-266.).

Gomes (2017GOMES, Denise C. 2017. “Politics and Ritual in Large Villages in Santarém, Lower Amazon, Brazil”. Cambridge Archaeological Journal, v. 27, n. 2:275-293. ), por sua vez, pontua de forma incisiva a importância dos fluxos cosmológico-rituais e das fissões de aldeias para manter afastada a centralização do poder nas sociedades por ela arqueologicamente estudadas em Santarém, Amazônia Central. Ao trazer o perspectivismo para a análise do hibridismo de seus dados cerâmicos, a abordagem da autora parece ser a que mais se aproxima da tese da contraestatalidade clastriana nesse sentido.

O surgimento não evolutivo do Estado

Pois bem, a curiosa “chamada” à Etnologia feita por Deleuze e Guattari supramencionada se deu, no meu entender, como um apelo por uma rigorosa dedicação sobre a questão da transversalidade sociopolítica, tendo em vista a perspectiva privilegiada desta ciência em face de povos tradicionalmente conhecidos como avessos às formas mais duras de centralização do poder. Ela vem imediatamente após uma importante crítica a Pierre Clastres - influente pensador desse problema para a América do Sul indígena e autor não obstante fundamental e caro aos filósofos desde o livro anterior13 13 Mille Plateaux (1980) é a sequência ainda mais complexa de L’Anti-Œdipe. Capitalisme et Schizophrénie (1972), onde a força das proposições contidas na etnografia de Clastres - prévias à elaboração de seu La Société contre L’Etat (1974) - já aparece no capítulo “Selvagens, Bárbaros, Civilizados”, dedicado à análise das sociedades cerradamente regidas por códigos (“máquina territorial primitiva”) - aqui, a despeito do título igualmente provocador, assentam as bases para uma análise rigorosamente antievolucionista. “O Anti-Édipo foi um livro essencial para Clastres, que assistiu aos cursos onde ele foi ensaiado (Prado Jr., supra, p. 16), ao mesmo tempo em que sua própria obra ia sendo incorporada ao argumento de Deleuze e Guattari. Mil platôs, por sua vez, publicado após a morte de Clastres, critica e desenvolve em uma direção inteiramente nova as intuições do autor” (Viveiros de Castro 2011:333). - quanto ao que seria um resquício de evolucionismo detectado na sua sustentação de que as “sociedades contra-o-estado” (1974CLASTRES, Pierre. 1974. La Société contre l’Etat. Paris: Les Éditions de Minuit.) - sua proposição teórica mais pregnante e prolífica - seriam primordiais e autárquicas diante da forma-Estado. Pois se, por um lado, duas bases da tese de Clastres são fundamentais na economia da obra de Deleuze e Guattari desde o Anti-Édipo:

as sociedades indígenas ameríndias (“primitivas”) não se definem por uma falta (“sem Estado”), a qual refletiria um estado/estágio ainda não alcançado, até porque

a forma centralizante, a forma-Estado, não emerge por progressão ou desenvolvimento lento, mas por ruptura irredutível; por outro lado,

a renitência do pressuposto da primordialidade das autarquias antiestatais e a irreversibilidade da ruptura que levaria à formação Estado

subsistiriam a seu ver como um problema sério a ser resolvido - com efeito, se se parte do pressuposto filosófico de que a dimensão política é dada e plenamente vigente desde sempre, atravessando inclusive as fronteiras do humano, a equação das formas sociais na história tem de ser repensada, com proveito de um novo entendimento sobre diversos pontos, como o desenvolvimento da agricultura.

Em primeiro lugar, porque quando avaliadas em conjunto essas três coordenadas da tese da sociedade-contra-o-Estado parecem ter como implicação colateral o surgimento por demais misterioso do Estado - ou seja, se os mecanismos de conjuração da formação estatal possuem dinâmica bem articulada, como pensar sua “falha” eventual?

Pois, de um lado, o Estado surgia de um só golpe, todo feito; de outro lado, as sociedades contra-o-Estado dispunham de mecanismos muito precisos para conjurá-lo, para impedir que surgisse. Nós acreditamos que essas duas proposições são boas, mas que seu encadeamento é falho (Deleuze & Guattari 1980DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. 1980. Mille Plateaux. Capitalisme et Schizophrénie 2. Paris: Les Éditions de Minuit.:445).

Em segundo lugar, porque a manutenção desse reduto de obscuridade, estrategicamente comprometedor para a solidez do argumento, aliada ao não enfrentamento do problema de sua existência factual razoavelmente ubíqua - além de historicamente cada vez mais remota, segundo as evidências arqueológicas - afiguram-se como um impeditivo concreto para uma análise que aspire simultaneamente ao maior rigor argumentativo, de um lado, e a uma habilidade singular de provocar reflexões políticas efetivas, de outro.

Pois ao menos do ponto de vista da contribuição de uma filosofia e antropologia contemporâneas, é somente pensando a condição transversal da história humana - e com isso se quer dizer sobretudo rigorosamente não evolucionista e não [necessariamente] continuísta, mas também não [primordialmente] culturalista - que se pode melhor refletir e assim eventualmente instigar e informar de maneira mais precisa e efetiva movimentos políticos minoritários voltados para o acolhimento e o fomento da diferença no mundo atual. E por diferença, entendamos por exemplo o respeito às formas de vida indígenas ou “tradicionais”. Ou seja, movimentos contra-hegemônicos do ponto de vista da história política que alçou o sistema capitalista à posição de sistema mundial. O caráter “minoritário” ou “menor” de movimentos que margeiam todo processo político de feições hegemonicamente centralizantes é um tema vital na obra dos dois autores, de certa forma sintetizado na ideia de “revolução molecular” de Guattari (1977GUATTARI, Félix. 1985 [1977]. Revolução Molecular: Pulsações Políticas do Desejo. São Paulo: Editora Brasiliense.). Desse ponto de vista, as conexões entre a “margem” do sistema mundial e o “centro” de socialidades indígenas (“the West and the Rest” - d’après Sahlins) se dariam não por paralelismo culturalista humanista - a “cultura ocidental” e as “outras culturas” -, mas sim pela transversalidade dessas conexões, articulações e rupturas pensáveis por uma minuciosa historiografia ou arqueologia micropolítica - o ser “quase índio” de toda margem.

Note-se que essa leitura transversal da história, que justamente se opõe tanto ao evolucionismo de qualquer espécie mas também a leituras paralelista-culturalistas de modo geral, está em ambos os livros eivada de exemplos concretos os mais historicamente variados e geograficamente abrangentes, prova do amplo rigor da argumentação.

Um evolucionismo econômico é impossível: não podemos crer em uma evolução ainda que ramificada entre “coletores - caçadores - pastores - agricultores - industriais”. Não é tampouco aceitável um evolucionismo etológico: “nômades - seminômades - sedentários”. Nem mesmo um evolucionismo ecológico do tipo “autarquia dispersa de grupos locais - aldeias e burgos - cidades - Estados”. Basta fazer interferir essas evoluções abstratas para que todo evolucionismo desabe […] os nômades não precederam os sedentários, o nomadismo é um movimento, um devir que afeta os sedentários, assim como a sedentarização é uma parada que fixa os nômades: Gryaznov [arqueólogo] mostrou a esse respeito como o mais antigo nomadismo só pode ser atribuído exatamente a populações que abandonam seu sedentarismo quase urbano, ou sua itinerância primitiva, para se pôr a nomadizar (Deleuze & Guattari, 1980DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. 1980. Mille Plateaux. Capitalisme et Schizophrénie 2. Paris: Les Éditions de Minuit.:536).

Diante dessas coordenadas, torna-se claro porque, ao ver dos dois filósofos, “a autossuficiência, a autarquia, a independência, a preexistência de comunidades primitivas são um sonho de etnólogo: não que estas comunidades dependam necessariamente de Estados, mas coexistem com eles em uma rede complexa” (Deleuze & Guattari, 1980DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. 1980. Mille Plateaux. Capitalisme et Schizophrénie 2. Paris: Les Éditions de Minuit.:535). À parte a dureza e a impaciência com uma deriva indelével ao exercício etnológico, dependente em sua metodologia de um razoável grau de distanciamento e isolamento em alguma(s) comunidade(s) humana(s),14 14 O “olhar distanciado”, método etnológico por excelência (Lévi-Strauss 1986 [1983]). está completamente excluída a hipótese de que os autores estivessem propondo um novo positivismo, ou clamando por mera clareza científica em detrimento do sonho, por exemplo, como se este não fora um aspecto potente da vida etc. Muito ao contrário, razão que me compele a atentar redobradamente às suas motivações: ao chamarem à “realidade” os etnólogos (“Quanto mais os arqueólogos escavam, mais descobrem impérios” [:445]), os autores pretenderam não apenas sacudir certa autocomplacência reinante em alguma medida na construção da imagem dos “seus nativos” - com todo o evolucionismo de fundo, além do problemático ar de posse que isso implica, como o comprova o próprio debate interno à disciplina em torno do problema da “autoridade etnográfica” -, mas também trazer à sua atenção rupturas bem mais complexas a serem realmente perseguidas com afinco. Como adverte Ortner (2006ORTNER, Sherry. 2006. Anthropology and social theory. Culture, power, and the acting subject. Durham: Duke University Press.:105):

De fato, no fim a etnografia não é suficiente. Etnografia não é o todo da antropologia, e é importante para o campo resistir a ser confinado nessa caixa. A etnografia sempre acontece em interação explícita ou implícita com a teoria […]. É a teoria que nos permite mapear o mundo de modo a que possamos entender a relação entre afirmações jornalísticas e etnográficas, em vez de nos engajar em uma luta competitiva por autoridade.

Dentre as principais rupturas que poderiam ser hoje almejadas, contam, no meu entender: a) o próprio antievolucionismo radical: a história é contingente, e essa contingência deve ser minuciosamente estudada em seu remetimento a redes mais ou menos densas de interconexão onde concorrem e oscilam forças de centralização ou descentralização, territorializações e desterritorializações afetivo-geográficas para ambos os polos-limite (sedentarismo x nomadismo, poder centralizado x poder distribuído);15 15 A desterritorialização bárbaro-estatal não é propriamente segunda em relação ao território selvagem-primitivo, não há que tratar “as sociedades primitivas como se fossem primeiras. Na verdade, os códigos não são jamais separáveis do movimento de decodificação, e os territórios dos vetores de desterritorialização que o atravessam. Trata-se mais de um espaço onde coexistem os três tipos de linhas estreitamente imbricadas, tribos, impérios e máquinas de guerra” (Deleuze & Guattari 1980:271). b) a dissolução do antropocentrismo: já que esses vetores não são regidos por uma Lei evolutivo-progressiva necessária (do descentrado ao centrado, do animal ao homem), mas também porque não são exclusividade da vida humana na Terra - são, bem antes, da ordem da dinâmica cósmica, portanto a substituição do antropocentrismo por um antropomorfismo generalizado me parece demandar uma cautela suplementar no sentido de evitar que o segundo resvale no primeiro; c) um uso prolífico e consistente de conceitos aflorados na transversalidade inerente a essa perspectiva cósmica do humano (ao contrário de uma perspectiva humanocêntrica do cósmico) - reverter a parcimônia no uso de conceitos indígenas enquanto peças efetivamente operantes nas proposições teóricas - que por escassos são inevitavelmente engolidos pelos inúmeros desdobramentos totalizantes no interior do pensamento ocidental através do jargão antropológico -, de modo a fazer proliferar também as conexões entre os conceitos indígenas, arredias às sínteses ocidentais, enfrentando o desafio de sua vocação transespecífica, senão mesmo extra, infra ou antiespecífica, inerente.

Uma metodologia de complexificação

De rupturas como essas resultou uma abertura teórica consistente para o estudo de uma cosmopolítica interespecífica, conforme propõe Viveiros de Castro, baseada na confluência entre uma ênfase paradigmática na operação da aliança, por um lado, e a suposição de uma base dita perspectivista do pensamento indígena, por outro.16 16 Uma das principais conclusões de seu artigo-revisão “Filiação Intensiva e Aliança Demoníaca” (Viveiros de Castro 2007) sobre a obra de Deleuze e Guattari, retomada em seu “Posfácio” ao Arqueologia da Violência de Pierre Clastres (2011). Ver também o artigo de base para essa proposição (Viveiros de Castro 1996a). Gostaria, contudo, de assinalar aqui alguns aspectos para discussão que penso relevantes para a etnologia contemporânea com base no alcance das diretrizes já apresentadas pelo trabalho dos filósofos. Tratar-se-ia, a meu ver, de aprofundar a dissolução do antropocentrismo, no seguinte sentido:

a) o conceito de devir deve sempre ultrapassar uma certa “outridade” relacional genérica ou ontológica (o Outro paradigmático da Antropologia retrabalhado etnologicamente enquanto alteridade relacional de todo e qualquer grupo social/indígena), pois há que se levar a sério o caráter fragmentário e solvente, mas sobretudo enquanto pleno de interesse não antropomórfico, dos aspectos-chave dos devires como os verdadeiros operadores das conexões e disjunções que operam. Ou seja, devemos estar atentos às progressões de circunscrição ontológica (por exemplo, do animal ao humano ou vice-versa) como se fossem a linha direcionante do devir:

O erro que se deve evitar é crer em uma espécie de ordem lógica nessa cadeia, nessas passagens ou transformações. E já é muito postular uma ordem que iria do animal ao vegetal, depois às moléculas, às partículas. Cada multiplicidade é simbiótica¸ e reúne em seu devir animais, vegetais, micro-organismos, partículas loucas, toda uma galáxia (Deleuze & Guattari 1980DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. 1980. Mille Plateaux. Capitalisme et Schizophrénie 2. Paris: Les Éditions de Minuit.:306, grifo meu).

b) consequentemente, é preciso levar às últimas consequências a ideia de que o “Estado”, não enquanto forma acabada, evidentemente, mas enquanto configuração gravitacional potencial, sempre esteve presente simultaneamente às forças descentralizantes, ou seja: tomá-lo como parcialmente atualizado nas forças gravitacionais, parte componente de uma cosmopolítica inorgânica e portanto dissolvida ontologicamente.

Ou seja, uma cosmopolítica propriamente cósmica é calcada, antes, sobre microparcialidades e movimentos - como em aspectos (linguísticos) e ritmos (musicais): “traços nômades” (Lima 1998LIMA RODGERS, Ana Paula. 1998. Traços Nômades. Rítmicas da Música Ameríndia. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional , UFRJ Rio de Janeiro.), tão mais nômades quanto permanentemente confrontados pela gravidade em seu nomadismo. Ou, pela perspectiva oposta, se quisermos: linhas sedentárias incessantemente afrontadas pela dispersão em seu sedentarismo. É nesse nível de infinitesimalidade cósmica que está primordialmente concernido Mille Plateaux, pois que a gravidade é um fenômeno também infinitesimal (quântico, por exemplo) e que concorre em diversos níveis com forças de dispersão ou antigravitacionais - toda corporalidade ou continência necessita de certa medida de forças gravitacionais relativamente estáveis. Por isso penso que devemos cuidar para que a linha da indiscernibilidade do devir esteja sempre aberta à multiplicidade, tendo em vista que a sua eventual condensação analítica em alteridade paradigmática (devir-outro), a despeito de sua utilidade em diversos contextos teóricos ou discursivos, não substitui sua deriva fundamentalmente cósmica e múltipla, i.e., mais espiralar que especular17 17 Em Deleuze e Guattari, a noção de devir é central para exprimir uma experimentação menor, a qual dissolve a integridade (ontológica) daquilo que devém - “devir” não é propriamente transformação, nem uma troca de posições estruturalista ou ainda fruto do equívoco resultante de um encontro analogista. Não obstante, é preciso considerar que talvez essa noção de “outro” enquanto ocupando uma posição etnograficamente expressiva seja mais pertinente junto a povos para os quais a guerra com um inimigo próximo é um dispositivo fundamental para a existência do socius como decerto é o caso tupi (Viveiros de Castro 1986:692). .

Proponho a espiral, motivo pregnante na sociocosmologia indígena sul-americana, como uma espécie de circularidade acelerada, matriz de toda centrifugação, antes que subsumida ao seu estriamento ou geometrização triangular necessariamente mais englobante que desengendrante. Na estética cosmo-arquitetônica dos Enawene Nawe, não é o triângulo, ou cone (sua versão tridimensional) que suscita a espiral, mas sempre, o inverso: o cone seria um encapsulador eventual e pontual da espiral - e o espaço aberto do território está coalhado de espirais (maõlo, “remoinhos”, como buracos negros), mas não necessariamente de cones. Mais uma vez com Deleuze e Guattari (1980DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. 1980. Mille Plateaux. Capitalisme et Schizophrénie 2. Paris: Les Éditions de Minuit.:258),

Se existe uma ”geometria” primitiva (proto-geometria), trata-se de uma geometria operatória onde as figuras não são jamais separadas de suas afecções, as linhas de seu devir, os segmentos de sua segmentação: há “rodas”, mas não círculo, ”alinhamentos”, mas não reta etc. Ao contrário, a geometria de Estado, ou antes a ligação do Estado com a geometria, se manifestará no primado do elemento-teorema, que substitui as formações morfológicas flexíveis por essências ideais ou fixas, os afetos por propriedades, segmentações em ato por segmentos predeterminados.

Como diria Nietzsche ao exprimir sua noção de perspectivismo, exposta sobretudo nos dois volumes de A Vontade de Potência: “A subjetividade do universo é uma subjetividade não antropomórfica, mas cósmica: nós somos os personagens que passam pelo sonho de um deus e adivinham o que ele sonha”.18 18 La volonté de puissance (1995 - H. 1870-71 (ix, p.191,§ 134). Lembrando que a prerrogativa de “adivinhar” com o que sonham os “deuses” é exercida por muitos xamãs indígenas - entre os Enawene Nawe, os xamãs estabelecem moradia no céu (eno) onde cultivam uma relação privilegiada (do ponto de vista dos terrestres) com os enore nawe. E com isso, penso, podemos retornar aos povos indígenas sob outras coordenadas, conferindo às suas teorias e filosofias, hoje já devidamente reconhecidas como afeitas aos “pequenos intervalos”, o devido valor e estatuto de alto conhecimento, conforme gozado pelas nossas (Ramos 2012RAMOS, Alcida R. 2012. “The Politics of Perspectivism”. Annual Review of Anthropology, 41:481-494.).

Da potência vibracional: música indígena

Nos trabalhos recentes de música indígena (Beaudet 1997BEAUDET, Jean-Michel. 1997. Souffles d’Amazonie. Les Orchestres Tule des Wayãpi. Nanterre: Societé d’Ethnologie.; Montardo 2002MONTARDO, Deise Lucy. 2002. Através do Mbaraka. Música e Xamanismo Guarani. Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, São Paulo. ; Piedade 2004PIEDADE, Acácio. 2004. O canto do Kawoka. Música, Cosmologia e filosofia entre os Wauja do Alto Xingu. Tese de Doutorado, PPGAS-UFSC, Florianópolis.; Mello 2005MELLO, Maria Ignez C. 2005. Iamurikuma. Música, Mito e Ritual entre os Wauja do Alto Xingu. Tese de Doutorado, PPGAS-UFSC, Florianópolis.; Tugny 2011TUGNY, Rosângela P. 2011. Escuta e poder na estética tikmû’ûn _ maxakali. Série Monografias. Rio de Janeiro: Museu do índio - Funai.; Montagnani 2011bMONTAGNANI, Tommaso. 2011b. Je suis Otsitsi: Musiques rituelles et représentations sonores Chez les Kuikuro du Haut-Xingu. Tese de Doutorado, École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris.; Rosse 2013ROSSE, Eduardo Pires. 2013. Kõmãyxop étude d’une fête en Amazonie (Mashakali/Tikmũ’ũn, MG - Brésil). Tese de Doutorado, Université de Paris-Ouest, Nanterre La Défense. ; Lima Rodgers 2014LIMA RODGERS, Ana Paula 2014. O Ferro e as Flautas. Regimes de Captura e Perecibilidade no Iyaõkwa Enawene Nawe. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, UFRJ, Rio de Janeiro. etc.), vemos florescer uma abordagem focada no rendimento estratégico para a práxis ameríndia dessa minúcia intervalar e motívica em todo o seu aspecto inorganic sized, ou inhuman sized - em contraste à noção de que as “relações” são kinship sized (Strathern 1995STRATHERN, Marilyn. 1995. The Relation. Issues in Complexity and Scale. Cambridge: Prickly Pear Pamphlet, n. 6.). Por exemplo, a análise de Franchetto e Montagnani de um pequeno detalhe etnomusicológico até então insuspeitado na Etnologia sul-americana traz a possibilidade de encontro com uma potência de afecção não antropomórfica e não meramente variacional: pequenos desvios sonoros ao nível musical correspondem, no tecido sonoro sofisticado das flautas kuikuro, à própria presença dos espíritos (Montagnani 2011aMONTAGNANI, Tommaso. 2011a. “Présences sonores. Musique, images et langue chez les Kuikuro du Haut Xingu”. Images Re-vues, n. 8:1-13.). Corroborado às evidências de outros estudos, é possível afirmar que para a musicológica indígena sul-americana ínfimos desvios são plenos de interesse, qualidades próprias, e que tais detalhes não são intercambiáveis como ocorreria, por exemplo, no tonalismo musical, cujo regime se utiliza largamente do esvaziamento desses desvios ao operacionalizar a ideia de “variação” ou “ornamento” - noções que não encontram paralelos relevantes nas línguas e nos conceitos indígenas.

O som das flautas sagradas reproduz ao mesmo tempo as melodias dos espíritos e sua voz. Música e linguagem são, portanto, indissociáveis aqui, como em boa parte da música kuikuro. Mais precisamente, é um fragmento melódico preciso que assume, por cada peça, a pronúncia do nome do espírito que é seu enunciador original. Este momento quando a flauta fala literalmente torna perceptível a presença do espírito no espaço da aldeia (Montagnani 2011aMONTAGNANI, Tommaso. 2011a. “Présences sonores. Musique, images et langue chez les Kuikuro du Haut Xingu”. Images Re-vues, n. 8:1-13.:3).

Entre os Enawene Nawe, essa minúcia intervalar plena de sentido aparece na sequenciação dos cantos acompanhados das flautas: separados melodicamente por diferenças ao nível sempre de pequenas células rítmicas, cada canto traz uma narrativa própria denominada eneware-la (“o nome”-“líquido”), que por sua vez faz nomear os espíritos em uma coda formulaica. Trata-se de um regime musical sutilmente diferente daquele vigente entre os Kuikuro ou os Wauja, parte do complexo de flautas sagradas alto-xinguanas, mas que entretém com ele grande cognação musical (cf. também Piedade 2004PIEDADE, Acácio. 2004. O canto do Kawoka. Música, Cosmologia e filosofia entre os Wauja do Alto Xingu. Tese de Doutorado, PPGAS-UFSC, Florianópolis.).

Outras direções não musicológicas são exploradas por inúmeros estudos na etnologia sul-americana. Ressalto aqui o trabalho de Rodgers (2002RODGERS, David. 2002. “A Soma Anômala: a questão do suplemento no xamanismo e iniciação ikpeng”. Mana. Estudos de Antropologia Social, 8 (2):91-125. e 2013RODGERS, David. 2013. “The Filter Trap: Swarms, anomalies, and the quasi-topology of Ikpeng shamanism”. HAU Journal of Ethnographic Theory, 3 (3):77-105.), que aporta esse descentramento radical até o fim do espectro sociocosmológico: a análise multidimensional da iniciação xamânica, onde fervilham interconexões insuspeitadas entre aspectos sensoriais, conduz à constatação da certeza, pelos Ikpeng, de um destino cósmico literalmente pulverizado da “ontologia” do xamã, além da análise dos fundamentos moleculares da condição guerreira ikpeng, conectada com a dinâmica das posições de líder de guerra, chefe da aldeia e do próprio xamã.

Nesse âmbito, pequenos compósitos de fragmentos, conjuntos de traços em movimento, ou mesmo ínfimos desvios de órbitas podem causar grandes afecções. Formam conjuntos faiscantes de possibilidades experimentadas e a experimentar: a “arborescência dos rios”, a “hidrografia dos rizomas”, é no desvio de cada pequeno ramo que se concentra a singularidade daquilo varia - conceitos de diferenciação e distanciamento mais propriamente indígenas. A singularidade é encapsulada na versão mais fragmentariamente particular do nome do espírito, e nesse nível ela é, sim, antidualista, porque é primordialmente nominalista,19 19 A ideia de “nominalismo” expressa a profunda dedicação estética e política dos povos indígenas aos nomes, de grande rendimento conceitual especialmente na música. Ecoando as ponderações de Sáez (2002), que busca um comprometimento entre “realismo” e “nominalismo”, duas correntes de pensamento opostas no ocidente medieval, também não me parece apropriada a ideia de nominalismo como flatus vocis. O autor propõe “nominismo” o atrelando a uma noção forte de “convocação”, o que traz bom rendimento caso inclua também a intensa experimentação rítmico-musical de cada nome. vibratória, sondadora, auscultadora da pulsação dos espíritos - inscritora acústica.

Diante do material que colhi ao longo de décadas para minha etnografia entre os Enawene Nawe, sugeriria para começar uma recusa da noção de variação conforme é operacionalizada em parte do instrumental heurístico de teorias de base estrutural oriundas de campos da ciência (como linguística, antropologia) ou da arte (como a teoria musical ocidental calcada na hegemonia do tonalismo). Trata-se de um passo crucial para seguir nessa proposta de rearticulação da grande narrativa antropológica sobre a filosofia política dos povos minoritários, a qual, justamente por força do material, tem sido levada a sério pelas várias etnografias musicais sobre povos indígenas sul-americanos.

O evolucionismo impossível do contra-humano

Todo esse exercício de contraevolucionismo profundo nos faz reencontrar em outros termos uma temática assinalada por Marilyn Strathern em seu “Out of Context” (1987STRATHERN, Marilyn. 1987. “Out of Context. The Persuasive Fictions of Anthropology”. Current Anthropology, v. 28 n. 3:251-281.), onde uma certa liberdade das metodologias evolucionistas ou difusionistas do século XIX de “manipulação por fora de contextos” (“playing out of contexts”) é positivada para ganhar novos contornos antievolucionistas no chamado pós-modernismo, que passa a poder “play with contexts”(“jogar com contextos”). Mas para Deleuze e Guattari - cujos propósitos e instrumental por certo ultrapassam as persuasões da empreitada antropológica por si - há mais: à condição de que os “dados” sejam confrontados à complexa concorrência de vetores de territorialização e desterritorialização, captura ou fuga, em tensão dinâmica para cada caso, remetendo a uma verdadeira transversalidade, e através dela, à possibilidade de uma abordagem “universal” rigorosamente não determinista e amplamente política.

Como se vê, isto não se pretende propriamente um modelo, mas acima de tudo um instrumental, um instrumental de complexificação: “Nós só invocamos um dualismo para recusar um outro [e não para chegar a um outro]. Nós só nos servimos de um dualismo de modelos para atingir um processo que recusaria todo modelo” (:31). Os blocos histórico-antropológicos compõem modalidades combinadas de captura e nomadismo (semióticas mistas), acionando e agenciando elementos de potencial ambíguo em certo equilíbrio, configurando o que chamaram de “regimes de signos”.20 20 No Mille Plateaux (1980) esta expressão substitui largamente um uso realmente distintivo dos conceitos de “sociedade”, “cultura” etc. Em L’Anti-Oedipe (1972), a obra anterior, o conceito de “máquina” (ou socius) é utilizado para designar as grandes linhas sociopolíticas da história da humanidade em termos de cortes decisivos em sua dinâmica, calcados no pressuposto de um “inconsciente maquínico” (Guattari 1979). Pois: regimes de signos recuperam a todo momento blocos, pedaços de história e configurações socioculturais, experiências de rupturas e agregações de outros tempos, outras tribos, outras geografias, que instrumentalizam para ampliar redes ou romper hegemonias - bricolagem sociopolítica temporalmente transversal, com a ressalva de que aqui já nos afastamos claramente das premissas “variacionais” do jogo estruturalista; aqui, cada pequeno desvio, ao invés de vazio de interesse intrínseco (onde o que verdadeiramente importa são as relações), é antes pleno de potência própria de afecção.

Em resumo, para operacionalizar esta abordagem o antropólogo, ele também um bricoleur (segundo a formulação clássica de Lévi-Strauss), precisa munir-se de um outro kit (parafraseando Ortner 1984ORTNER, Sherry. 1984. “Theory in Anthropology since the Sixties.” Comparative Studies in Society and History, 26 (1):126-166.:128): um que, simultaneamente ao cultivo do princípio mais indiscutivelmente característico da empresa antropológica, qual seja, o entendimento da vida de diferentes povos e tradições segundo seus próprios termos, busque transversalizar a sociopolítica na geografia e na história. Perscrutar a carga socio ou cosmopolítica de minúcias pelas quais se interessam e nas quais investem os povos indígenas, pois cada detalhe não é uma variação, mas uma microcaptura, cada microdesvio pode ser uma microcaptura. Transversalizar a sociopolítica a esses níveis significa atentar para vetores que atuam desde a infinitesimalidade na conformação ou no desengendramento constante de formas mais ou menos centralizadas.

Assim, é a radicalidade desse não evolucionismo - se o Estado permanece não sendo tudo, esta é a maior prova de que não há mesmo evolucionismo possível -, acompanhada de uma desfiguração colateral do ontológico, que permitirá aos autores propor de maneira condensadamente pioneira uma explosão das fronteiras do humano, abrindo portais consistentes para que se tracem caminhos de conexão cada vez mais transfronteiriços entre as ciências humanas, especialmente a antropologia, e outras ciências, como a etologia, a geologia, a astrofísica, dentre muitas outras. As duas primeiras ocupam lugar privilegiado em Mille Plateaux através dos platôs “Geologia da Moral”, em referência à obra de Nietzsche Genealogia da Moral, e “Do Ritornelo”, platô que lança mão de parâmetros atinentes ao domínio da Música em estreita e surpreendente conexão com problemas de Etologia. Essa des-hominização, ou explosão do antropocentrismo (e mesmo do antropomorfismo), estava essencialmente posta desde o Anti-Édipo, onde foi operada por uma espécie de maquínica: a dinâmica de fluxos e seu manejo maquínico, que os retém ou os faz passar. Bloqueios e passagens, cortes inorgânicos, “corpo sem órgãos” - a flauta indígena pode ser vista assim. É através disso que se produz, mais do que através de uma noção genealógica de produção, pois os objetos são sempre parciais - temática também cara a Strathern. A inorganicidade fundamental da máquina no livro, ou o caráter maquínico do inconsciente, prepara no melhor estilo a ampliação do espectro inumano do Mil Platôs.

Da parte da antropologia estrito senso, Lévi-Strauss permanece o autor clássico que mais abriu as portas para uma explosão dessas fronteiras científicas, sobretudo, mas não apenas, na tetralogia Mitológicas - em continuidade a Mauss, que escrevera diretamente em prol de uma antropologia dos gestos, do lugar crucial da “mistura das artes” (1950MAUSS, Marcel. 1993 [1950]. Sociologie et Anthropologie. Paris: Quadrige/ P.U.F.). Todavia, o aparato estruturalista tende a rebater a gama de afetos infinitesimais que arrola nas análises a uma máquina interpretativa pouco adequada para tratar da dimensão política, e portanto tende a relegar a sua rica existência, densamente esquadrinhada, ao vazio variacional, onde problemas relacionados às formações sociopolíticas não ocupam lugar destacado, toda a riqueza mítico-narrativa dedicadamente estudada pelo autor permanecendo como que dissociada destas consequências21 21 Isto uma reivindicação do próprio Pierre Clastres (Viveiros de Castro 2011:327). - o que não significa que não se possa ter sua obra como um imenso manancial para constante referência e aprendizado, é claro. Mas este é um ponto crucial ao traçarmos as linhas estético-políticas vigentes na cosmopráxis dos povos indígenas sul-americanos, e ainda ponderando a sua inserção em um contexto regional mais amplo. Por este mesmo motivo faz-se relevante o aparato deleuze-guattariano: é nesse potente conjunto de conceitos e pressupostos microfísicos, micropolíticos, microgeográficos, devidamente aplicados em análises oriundas de diversos domínios das ciências, das artes, da filosofia, que reside, a meu ver, a atualidade e o ineditismo da obra de Deleuze e Guattari, além de seu interesse para a antropologia.

Por tudo isso, torna-se claro que falar em bricolagem sociopolítica ou reconhecer o caráter compósito e transversal das formações cosmopolíticas significa recusar tanto a ideia de variações equistatutárias, quanto a de trabalhar preferencialmente com polos-limite: com-Estado, sem-Estado. Não há culturalismo ou ontologismo capaz de dar conta das diferenças entre regimes ou formações sociopolíticas, mas tampouco a renitência de certo culturalismo no novo conceito de cosmopolítica resolve os imensos problemas analíticos colocados pelas formações milenares, intersecivas e cambiantes da América indígena. Os povos da faixa de falantes de língua aruaque provam que há que se aprofundar a análise das formas mais explicitamente intersticiais: seus agregados populacionais promoveriam uma maior amplitude do englobamento, uma maior largura da captura e suas formas correlatas de interiorização de outras culturas indígenas, mais do que apenas comporiam por si mesmos cada qual uma forma sui generis de cultura. Ou ao menos esta é uma perspectiva a ser testada.

“O verme está no fruto”

Para finalizar este ensaio, volto ao ponto inicial, ou seja, aquele de um pequeno desvio das proposições de Clastres na direção de um tratamento mais infinitesimal da “estatalidade” e da “contraestatalidade”, a partir do fato de sua presença arqueológica e etnologicamente constatada em redes ameríndias: não é questão, portanto, do ponto de vista desses autores ou do meu próprio, de se passar de Clastres e suas formulações emblemáticas e poderosamente inspiradoras para diferentes possibilidades de apropriação (acadêmica, militante, artística etc.). Não é este o ponto. Muitos vêm escrevendo sobre isso com pertinência e amplitude, portanto abstenho-me aqui da necessidade de fazê-lo, uma vez que isso implicaria a inevitável repetição de alguns dos insights e análises avançados recentemente.22 22 Cf., por exemplo, Barbosa 2004; Goldman 2011; Sztutman 2009; Viveiros de Castro 2011, para quatro vieses analiticamente distintos no elogio à atualidade das teses de Clastres. Vejamos a exposição sucinta de Barbosa (2004BARBOSA, Gustavo Baptista. 2004. “A Socialidade contra o Estado: a antropologia de Pierre Clastres”. Revista de Antropologia da USP, v. 47, n. 2:529-576.:559) sobre os problemas que levantei ao longo do presente artigo:

“Conjurar é preceder [...] e, se as sociedades primitivas rejeitam o Estado, é porque ele já está lá [...]: ‘sim’ - concede Clastres - ‘o Estado existe nas sociedades primitivas’” (in Carrilho 1976:76). [...]

Exposta a absoluta vulnerabilidade dos dualismos ontológicos excludentes - que obrigam a que as sociedades ou tenham Estado ou não o tenham, que sua política ou se defina como segmentária ou como centralizada, que sejamos ou homens ou jaguares, e que os Bororo sejam ou Bororo ou araras; descartadas apriorística e prematuramente as férteis possibilidades de misturas e justaposições -, novos horizontes descortinam-se para a análise, em indicação de que “fecundantes corrupções” podem - desde que pensemos contra a corrente - revelar potencialidades até então insuspeitas em “idiomas” antes tomados no radical isolamento de seu monadismo.23 23 Ou ainda nas palavras de Bento Prado Jr.: “No limite, como não há pensamento pré-lógico, não há paraíso pré-político. Desde a origem, o verme está no fruto” (Leirner & Toledo 2003).

Fecundantes corrupções que revelem potencialidades insuspeitas - desde que pensemos contra a corrente - define melhor do que eu mesma poderia fazê-lo aquilo a que me proponho aqui e no percurso de minha vida acadêmica. Por esse motivo, e sem negar a força latente de Clastres (e NietzscheNIETZSCHE, Friedrich. 1995 [1901]. La Volonté de Puissance (I & II). Paris: Gallimard., bem entendido) sobre a economia desse texto, é que tratei explicitamente da importante objeção dos filósofos, uma vez que nesse contexto foi ela que efetivamente me abriu as portas para onde pretendi lançar-me, senão para onde os Enawene Nawe exigem que nos lancemos: ao mundo rumoroso e multifacetado de um filosofia complexa e fomentadora de uma diversidade milenar de conhecimentos e práticas indígenas da América do Sul, dentre os quais se incluem em primeira linha os saberes acerca do engendramento e desengendramento do social, das texturas e tessituras que costuram todo (o) plano social em suas oscilações experimentacionais acumuladas, perfazendo formas inconstantes, porém de grande estabilidade na longa duração, de fazer estética e política no continente. Inevitavelmente evocando a célebre inconstância exposta e sintetizada por Viveiros de Castro (2002VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2002. A Inconstância da Alma Selvagem. São Paulo: Cosac & Naif.), mas com desvios importantes os quais devem a todo momento ser avaliados em justa medida. Diferentes formas e calibragens de captura indígena, ou antes, a constância da captura em suas variadas formas, anticentralizantes, contraestatais, revelando uma incomensurabilidade geral em relação ao modus operandi do aparelho de captura estatal, por seu fino trabalho intensivo de desengendramento do poder central, o qual justamente não pode se passar da experimentação oscilante de assimetrias de diversos níveis. É deste tipo de captura que trata o Iyaõkwa, proposição-chave na etnografia Enawene Nawe. Esta indissociação de um conceito nativo, somada à evocação quase imediata do contexto etnológico que ele suscita (amazônico ou terras baixas sul-americanas) e com o qual apresenta alto grau de ressonância, é que confere um estatuto particularmente sólido às injunções dessa proposição. Depois, é provável que o contra-Estado de Clastres emerja reafirmado e mais fortalecido (como sugere Viveiros de Castro 2011VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2011. “O Intempestivo, ainda” (Pósfácio). In: Pierre Clastres, Arqueologia da Violência. São Paulo: Cosac & Naif. pp. 295-361.). Nas palavras de Michael Hardt, na aba da tradução para o português de Mille Plateaux (Vol. 5, 1997HARDT, Michael. 1997. “Abas” de Mil Platôs. (Trad. portug.) Gilles Deleuze & Félix Guattari. São Paulo: Editora 34.):

Ao final, Deleuze e Guattari irão frustrar qualquer aplicação direta de simples fórmulas políticas. Eles dificultarão qualquer slogan ou mot d’ordre. E essa complexidade é parte da riqueza de Mil Platôs enquanto análise propriamente política. A complexidade e as distinções flutuantes, oblíquas, não necessariamente paralisam a ação política.

E é com esta noção de complexidade que gostaria de finalizar este artigo. Pois na simbiose populacional que agenciou a história milenar da ocupação humana no continente, todas as conexões são potencialmente complexas, até mesmo aquelas que constituem um ínfimo fragmento melódico.

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  • WAGNER, Roy. 1975. The Invention of Culture Englewood Cliffs: Prentice-Hall.
  • 1
    Sobretudo em conjunção ao capítulo-platô anterior e de muitas formas complementar intitulado “Tratado de Nomadologia: a Máquina de Guerra”.
  • 2
    O difusionismo historicista de Franz Boas (1938 BOAS, Franz. 1938 [1911]. The mind of the primitive man. New York: The Macmillan Company.[1911]) é um exemplo estratégico: a despeito da verve radicalmente crítica da vinculação entre raça e cultura - um avanço de posição em relação ao racismo dominante -, subsiste a ideia de progresso ou evolução em estágios. Mesmo que conceda a existência de múltiplas linhas civilizacionais se desenvolvendo em temporalidades distintas (:8), reputando “às leis do acaso” essa distinção. A diferença de assimilação intercivilizacional dar-se-ia pela diferença no “método de introdução da cultura” (:14) - como o problema da falta de amalgamação entre a elite dos “Brancos” e a cultura negra, devido ao racismo agudamente excludente dos primeiros. (Falta de) assimilação esta que diferiria de outros tempos ou contextos intra-africanos, onde ocorreria de modo mais equânime através de intercasamentos. O problema de ver essa intercessão constante de grupos humanos como uma questão de assimilação intercultural é que aí subsiste a ideia de evolução civilizacional progressiva (da tecnologia, das ideias, da cultura), mesmo se pontuando, como o faz Boas, os solavancos sofridos no processo para cada tradição ou cultura, mesmo se afirmando que isso não é prerrogativa de nenhuma raça em especial. Subsiste portanto um adaptacionismo/assimilacionismo, como ficará mais claro nos expoentes do neoevolucionismo que se seguirá (com Julian Steward e Leslie White), sempre trabalhando com alguma noção (uni/multilinear) de avanço e eficiência tecnológica e complexidade cultural.
  • 3
    Evoco aqui a teoria de Lynn Margulis da origem das espécies (Margulis & Sagan 2002SAGAN, Dorion & MARGULIS, Lynn. 2002. Acquiring Genomes. A theory of the origins of species. New York: Basic Books.). Ao refutar parcialmente o neodarwinismo, a bióloga propõe que o motor da expansão das espécies (antes que sua evolução) está nas associações simbióticas que podem culminar na simbiogênese através da aquisição de genomas de espécies sempre diferentes, e não na mutação aleatória ou na evolução direcional intraespecífica. Ao refutar o “acaso” ou a aleatoriedade das mutações como gatilho da aparição de novas espécies, pedra de toque da maior parte das teorias evolutivas existentes nas ciências biológicas, a teoria da aquisição simbiótica também pode esvaziar esse pressuposto nas ciências humanas, onde teria vindo ocupar o lugar das concepções deterministas, como vimos para Boas. A aleatoriedade ou mesmo a arbitrariedade (dos signos, por exemplo) são princípios que sugam a potência agentiva das associações simbióticas, plenas de combinatórias qualitativas - tratar-se-ia menos de um código vazio que um código cheio, cujo acoplamento possível com outro código não é exatamente fruto do acaso entre termos infinitamente intercambiáveis (ideia crucial para o pensamento moderno), mas sim de conexões (micro e macro) ecologicamente viáveis de longa data: “Os agentes da mudança evolucionária tendem a ser organismos plenamente vivos, micróbios e suas relações ecológicas, não apenas as mutações randômicas que esses micróbios têm dentro deles” (2002SAGAN, Dorion & MARGULIS, Lynn. 2002. Acquiring Genomes. A theory of the origins of species. New York: Basic Books.:39).
  • 4
    Ver “Continental Introduction” para um panorama desta questão.
  • 5
    A etnografia de Fausto sobre os Parakanã (2001FAUSTO, Carlos. 2001. Inimigos Fiéis. História, Guerra e Xamanismo na Amazônia. São Paulo: Edusp.), seguindo o rol de questões de Ortner, é um exemplo de como tratar a etno-história de um grupo tupi demonstrando as significativas divergências sociopolíticas e sociomorfológicas constitutivas à estrutura social de um mesmo grupo étnico e “local”, concernindo a “abertura à história” (:189) do ponto de vista da longa duração das populações ameríndias anteriormente à invasão europeia, i.e., independente da introdução do evento do “contato” com o mundo ocidental.
  • 6
    Conforme se depreende das proposições de Viveiros de Castro (cf. 2002VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2002. A Inconstância da Alma Selvagem. São Paulo: Cosac & Naif.), nas quais o modelo dos povos Tupi - de especial interesse e ressonância por se tratar dos povos do encontro paradigmático com o colonizador europeu - conduz a interpretação da etnologia sul-americana.
  • 7
    Cf. “aliança transespecífica” (Viveiros de Castro 2007VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2007. “Filiação Intensiva e Aliança Demoníaca”. Novos Estudos - CEBRAP, 77:91-126.).
  • 8
    Os autores continuam: “Assentamentos PPNA (Neolítico Precerâmico A) mostram […] estruturas subcirculares e nenhum traço de plantas e animais domesticados” (Mithen et al 2011MITHEN, Steven. J.; FINLAYSON, Bill; SMITH, Sam; JENKINS, Emma; NAJJAR, Mohammed & MARICEVIC, Darko. 2011. “An 11.600 year-old communal structure from the Neolithic of southern Jordan”. ANTIQUITY, 85:350-364.:351).
  • 9
    Feminino que pode ser visto como a presa paradigmática (Taylor 2000TAYLOR, Anne-Christine. 2000. “Le sexe de la proie. Représentations jivaro du lien de parenté”. L’Homme, 154-155:309-334.).
  • 10
    Na narrativa da origem do sono enawene nawe, diz-se que as mulheres dormem mais que os homens porque Wadare, o demiurgo principal, colocou o pó sonífero (as cinzas de seu irmão) debaixo de seus seios, enquanto para os homens o depositou apenas em suas redes, o que ratifica por vias mitológicas essa ideia da posição feminina mais sedentarizada.
  • 11
    Esse ritual foi registrado em 2010 como Patrimônio Cultural do Brasil (IPHAN, 2018IPHAN. 2018. Dossiê IPHAN {Ritual Yaõkwa do Povo Enawene Nawe}. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional/ OPAN.). Os processos de registro e salvaguarda foram multidisplinares e participativos, incluindo 14 mestres de música como bolsistas, e resultaram no livro de cantos Salomã - Enore Nawe Deta (Lima Rodgers, 2018LIMA RODGERS Ana Paula . 2018. Salomã. Enore Nawe Deta. Brasília. Edições Iphan.).
  • 12
    Convém notar a cerrada cognação entre elementos afins do povo índigena mais próximo culturalmente dos Enawene Nawe, os Paresi: segundo Aroni (2019ARONI, Bruno. 2019. “Intersecções entre materialidades e sonoridades na construção da categoria iyamaka paresi-haliti”. Vivência - Revista de Antropologia, n. 54:114-129. ), iyamaka são as flautas sagradas paresi glosadas corriqueiramente por “jararacas”, relacionadas também aos espíritos yakane.
  • 13
    Mille Plateaux (1980) é a sequência ainda mais complexa de L’Anti-Œdipe. Capitalisme et Schizophrénie (1972DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. 1972. L’Anti-Œdipe. Capitalisme et Schizophrénie. Paris: Les Éditions de Minuit.), onde a força das proposições contidas na etnografia de Clastres - prévias à elaboração de seu La Société contre L’Etat (1974) - já aparece no capítulo “Selvagens, Bárbaros, Civilizados”, dedicado à análise das sociedades cerradamente regidas por códigos (“máquina territorial primitiva”) - aqui, a despeito do título igualmente provocador, assentam as bases para uma análise rigorosamente antievolucionista. “O Anti-Édipo foi um livro essencial para Clastres, que assistiu aos cursos onde ele foi ensaiado (Prado Jr., supra, p. 16), ao mesmo tempo em que sua própria obra ia sendo incorporada ao argumento de Deleuze e Guattari. Mil platôs, por sua vez, publicado após a morte de Clastres, critica e desenvolve em uma direção inteiramente nova as intuições do autor” (Viveiros de Castro 2011VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2011. “O Intempestivo, ainda” (Pósfácio). In: Pierre Clastres, Arqueologia da Violência. São Paulo: Cosac & Naif. pp. 295-361.:333).
  • 14
    O “olhar distanciado”, método etnológico por excelência (Lévi-Strauss 1986 LÉVI-STRAUSS, Claude. 1986 [1983]. O Olhar Distanciado. Lisboa: Edições 70.[1983]).
  • 15
    A desterritorialização bárbaro-estatal não é propriamente segunda em relação ao território selvagem-primitivo, não há que tratar “as sociedades primitivas como se fossem primeiras. Na verdade, os códigos não são jamais separáveis do movimento de decodificação, e os territórios dos vetores de desterritorialização que o atravessam. Trata-se mais de um espaço onde coexistem os três tipos de linhas estreitamente imbricadas, tribos, impérios e máquinas de guerra” (Deleuze & Guattari 1980DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. 1980. Mille Plateaux. Capitalisme et Schizophrénie 2. Paris: Les Éditions de Minuit.:271).
  • 16
    Uma das principais conclusões de seu artigo-revisão “Filiação Intensiva e Aliança Demoníaca” (Viveiros de Castro 2007VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2007. “Filiação Intensiva e Aliança Demoníaca”. Novos Estudos - CEBRAP, 77:91-126.) sobre a obra de Deleuze e Guattari, retomada em seu “Posfácio” ao Arqueologia da Violência de Pierre Clastres (2011CLASTRES, Pierre. 1974. La Société contre l’Etat. Paris: Les Éditions de Minuit.). Ver também o artigo de base para essa proposição (Viveiros de Castro 1996aVIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 1996a. “Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio”. Mana. Estudos de Antropologia Social, v. 2 (2):115-143.).
  • 17
    Em Deleuze e Guattari, a noção de devir é central para exprimir uma experimentação menor, a qual dissolve a integridade (ontológica) daquilo que devém - “devir” não é propriamente transformação, nem uma troca de posições estruturalista ou ainda fruto do equívoco resultante de um encontro analogista. Não obstante, é preciso considerar que talvez essa noção de “outro” enquanto ocupando uma posição etnograficamente expressiva seja mais pertinente junto a povos para os quais a guerra com um inimigo próximo é um dispositivo fundamental para a existência do socius como decerto é o caso tupi (Viveiros de Castro 1986VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 1986. Araweté: os deuses canibais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.:692).
  • 18
    La volonté de puissance (1995 - H. 1870-71 (ix, p.191,§ 134). Lembrando que a prerrogativa de “adivinhar” com o que sonham os “deuses” é exercida por muitos xamãs indígenas - entre os Enawene Nawe, os xamãs estabelecem moradia no céu (eno) onde cultivam uma relação privilegiada (do ponto de vista dos terrestres) com os enore nawe.
  • 19
    A ideia de “nominalismo” expressa a profunda dedicação estética e política dos povos indígenas aos nomes, de grande rendimento conceitual especialmente na música. Ecoando as ponderações de Sáez (2002SÁEZ, Oscar Calavia. 2002. “Nawa, Inawa”. Ilha. v. 4, n. 2:35-57.), que busca um comprometimento entre “realismo” e “nominalismo”, duas correntes de pensamento opostas no ocidente medieval, também não me parece apropriada a ideia de nominalismo como flatus vocis. O autor propõe “nominismo” o atrelando a uma noção forte de “convocação”, o que traz bom rendimento caso inclua também a intensa experimentação rítmico-musical de cada nome.
  • 20
    No Mille Plateaux (1980) esta expressão substitui largamente um uso realmente distintivo dos conceitos de “sociedade”, “cultura” etc. Em L’Anti-Oedipe (1972), a obra anterior, o conceito de “máquina” (ou socius) é utilizado para designar as grandes linhas sociopolíticas da história da humanidade em termos de cortes decisivos em sua dinâmica, calcados no pressuposto de um “inconsciente maquínico” (Guattari 1979GUATTARI, Félix. 1988 [1979]. O inconsciente Maquínico. Ensaios de Esquizo-Análise. Campinas: Papirus Editora.).
  • 21
    Isto uma reivindicação do próprio Pierre Clastres (Viveiros de Castro 2011VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2011. “O Intempestivo, ainda” (Pósfácio). In: Pierre Clastres, Arqueologia da Violência. São Paulo: Cosac & Naif. pp. 295-361.:327).
  • 22
    Cf., por exemplo, Barbosa 2004BARBOSA, Gustavo Baptista. 2004. “A Socialidade contra o Estado: a antropologia de Pierre Clastres”. Revista de Antropologia da USP, v. 47, n. 2:529-576.; Goldman 2011GOLDMAN, Marcio. 2011. “Pierre Clastres ou uma Antropologia contra o Estado”. Revista de Antropologia da USP, v. 54, n. 2:577-599.; Sztutman 2009SZTUTMAN, Renato. 2009. “De nomes e marcas. Ensaio sobre a grandeza do guerreiro selvagem” Revista de Antropologia da USP, v. 51, n. 1:47-96.; Viveiros de Castro 2011VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2011. “O Intempestivo, ainda” (Pósfácio). In: Pierre Clastres, Arqueologia da Violência. São Paulo: Cosac & Naif. pp. 295-361., para quatro vieses analiticamente distintos no elogio à atualidade das teses de Clastres.
  • 23
    Ou ainda nas palavras de Bento Prado Jr.: “No limite, como não há pensamento pré-lógico, não há paraíso pré-político. Desde a origem, o verme está no fruto” (Leirner & Toledo 2003LEIRNER, Piero. & TOLEDO, Luiz Henrique. 2003. “Lembranças e reflexões sobre Pierre Clastres. Entrevista com Bento Prado Junior”. Revista de Antropologia, USP, 46 (2):423-444. ).
  • Declaração de Autoria

    “Declaro que sou autora do presente trabalho, que o mesmo foi elaborado e integralmente redigido por mim. A maior parte deste artigo consta como Prólogo de minha Tese de Doutorado em Antropologia Social pelo Museu Nacional / UFRJ”
  • Financiamento

    Agradeço à FAPERJ pelo apoio financeiro através de uma bolsa de pós-doutorado (E-26/200.005/2016), em cujo período pude iniciar a revisão do presente trabalho.

Editado por

Editora-Chefe:

María Elvira Díaz Benítez

Editor Associado:

John Cunha Comerford

Editora Associada:

Adriana Vianna

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    23 Nov 2021
  • Aceito
    04 Jan 2023
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - PPGAS-Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Quinta da Boa Vista s/n - São Cristóvão, 20940-040 Rio de Janeiro RJ Brazil, Tel.: +55 21 2568-9642, Fax: +55 21 2254-6695 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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