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Os Yoruba do Novo Mundo: religião, etnicidade e nacionalismo negro nos Estados Unidos

RESENHAS

Sérgio Brissac

Antropólogo, perito do Ministério Público Federal, Doutor em Antropologia pelo PPGAS/MN/UFRJ.

CAPONE, Stefania. 2011. Os Yoruba do Novo Mundo: religião, etnicidade e nacionalismo negro nos Estados Unidos. Tradução Márcia Atálla Pietroluongo. Rio de Janeiro: Pallas. 361 pp.

No panorama sociorreligioso global, a vigorosa expansão dos cultos de matriz africana tem sido um fenômeno de significativa relevância. Neste livro, Stefania Capone se propõe a desvelar a rica e complexa trajetória dessa expansão nos Estados Unidos. A autora tem percorrido um itinerário intelectual que a capacita para tal empreitada. Antropóloga italiana, atualmente diretora de pesquisa do CNRS, Capone viveu por 12 anos no Brasil, onde pesquisou em profundidade os cultos afro-brasileiros, tendo feito seu mestrado a respeito do tema no PPGAS do Museu Nacional. Após ter concluído seu doutorado na Universidade de Paris X, Nanterre, acerca da figura de Exu no candomblé brasileiro, ela publicou

A busca da África no candomblé: tradição e poder no Brasil, edição francesa de 1999, lançada em 2004 em nosso país. De 1997 a 2004, a autora realizou nos Estados Unidos pesquisas de campo, as quais, associadas à densa reflexão sobre a história afro-americana, resultaram nesta ampla abordagem das construções identitárias do nacionalismo negro norte-americano, em sua busca por identidade religiosa e étnica.

No capítulo I, a autora aborda os principais posicionamentos teóricos ao longo do século XX acerca das culturas e religiões negras nos Estados Unidos. O foco central dos pesquisadores era investigar como se deu a relação com a África ao longo do processo formativo das culturas afro-americanas, a partir do "debate sobre a continuidade ou a descontinuidade da religião negra norte-americana em relação ao seu passado africano" (:25). Melville Herskovits (1941) enfatizava a continuidade, ao considerar que a predominância da adesão dos escravos do Sul às igrejas batistas relacionava-se à semelhança do batismo por imersão com os rituais aos espíritos das águas da África Ocidental. Já Franklin Frazier (1963) afirmava a descontinuidade causada pela escravidão, que teria rompido as bases sociais da religião africana, considerando que o cristianismo é que teria possibilitado a coesão da comunidade negra. Capone observa que em vários estudos científicos considerou-se emblemático o ring shout – dança ritual em círculo ao som do canto dos spirituals e de orações ritmadas – como reinterpretação da religião protestante segundo um modelo africano (:29). Em seguida, a autora apresenta uma elucidativa síntese historiográfica sobre a presença dos escravos na América do Norte e a relação deles com a religião cristã. São abordadas as contribuições de vários autores, como Sidney Mintz e Richard Price (1976) que assinalaram a heterogeneidade cultural inicial dentre os escravos e a preponderância da criatividade e da adaptabilidade na formação da cultura negra nos Estados Unidos.

No capítulo II, Capone situa historicamente os diferentes grupos religiosos que constituem o que se chamou de Black Church, "Igreja Negra". Ela apresenta um relato que parte do período posterior à abolição da escravatura, em 1865, e chega até a militância dos grupos negros islâmicos da década de 1970. No final do século XIX, alguns propuseram a criação de um território independente para os negros dentro dos Estados Unidos. No início do século XX, ocorreu a chamada "Grande Migração" para as cidades do Norte, ocasionando uma multiplicação de novas igrejas independentes. Nos anos 1930, apareceram grupos "conversionistas" em Nova York, igrejas "taumatúrgicas" em Chicago, e ainda grupos "messiâniconacionalistas" que se opunham ao integracionismo das igrejas convencionais. Alguns desses grupos descreviam Jesus como um messias afro-americano, enquanto outros recusavam o cristianismo, como os Black Jews.

Surgiram também movimentos islâmicos, como o Ahmadiyya Movement e a Nation of Islam. Para além dos grupos religiosos, a Universal Negro Improvement Association (UNIA), com o seu nacionalismo negro, tinha o propósito pan-africanista de reunir os negros espalhados pelo mundo em um único país independente, e teria chegado a contar com 2 milhões de membros norte-americanos. A Nation of Islam, fundada na década de 1930, organizava-se visando à independência econômica dos negros, além de criar milícias paramilitares, e teria alcançado 250 mil membros em 1970. No entanto, ao se afirmarem como descendentes da "civilização árabe", segundo Capone, "eles retomavam os preconceitos dos brancos, dissociando-se da África subsaariana, terra 'não civilizada' e desprovida de qualquer cultura" (:75) e, quanto à sua ética, "a Nation of Islam reforçava a reprodução da ética protestante fundada no trabalho" (:77).

O renascimento cultural afro-americano é enfocado no capítulo III. O bairro do Harlem, em Nova York, viveu uma grande efervescência cultural nos anos 1920 e 1930, que foi denominada Harlem Renaissance. Capone descreve em coloridos detalhes o movimento cultural de exaltação da negritude e afirmação de orgulho racial na literatura, na poesia, no teatro, na música e na dança afroamericana. Também é apresentado um histórico da luta pelos direitos civis, desde o boicote aos ônibus de Montgomery, em 1955, no emergir da liderança do jovem pastor Martin Luther King Jr., passando pelos dilemas entre o pacifismo do mesmo e a resistência armada propugnada por Malcolm X, até o aniquilamento do Black Panther Party. Em seguida, Capone enfoca a importância que tiveram para a difusão dos cultos de origem africana alguns artistas que atuavam no campo da dança e da percussão, promovendo especialmente o conhecimento e a valorização da cultura yoruba.

No capítulo IV, a autora relata a implantação da santería cubana nos Estados Unidos. Antes dos cubanos, o país havia recebido um significativo número de porto-riquenhos, muitos deles espíritas kardecistas. Após a revolução cubana, houve grande imigração de opositores de Fidel Castro, que foram recebidos com programas de assistência social pelo governo norte-americano. Começou a haver uma mútua influência entre as crenças religiosas dos porto-riquenhos e dos cubanos, originando um "afro-espiritismo". Nos inícios dos anos 1960, se deu em Nova York a primeira iniciação na santería. Após descrever o contexto do surgimento das casas de culto santeras, Capone passa a narrar detalhadamente o itinerário religioso de Walter Eugene King, afro-americano nascido em Detroit em 1928, que se tornou um militante do nacionalismo negro e foi iniciado na santería em Cuba, em 1959.

A trajetória de King é paradigmática. Ele se torna um importante líder religioso, passa a utilizar o nome ritual de Oseijeman Adefunmi e funda no Harlem o Shangó Temple, em 1959. No ano seguinte, ele cria no mesmo bairro o Yoruba Temple. Adefunmi buscou desenvolver em sua casa de culto atividades de cultivo da herança cultural africana, com um enfoque político pan-africanista, incentivando, por exemplo, a adoção de penteados e roupas africanas e estimulando o "tornar-se africano". O Yoruba Temple foi se distanciando cada vez mais dos santeros cubanos, já que Adefunmi buscava eliminar do culto os traços de influência católica. Por outro lado, os santeros questionavam a legitimidade da iniciação do líder do Yoruba Temple. A cisão entre ele e a comunidade santera consumou-se em 1964, e logo Adefunmi cunhou um novo nome para a religião: orisha-voodoo.

Capone continua seu relato no capítulo V, apresentando em minuciosa etnografia – acompanhada de rico material fotográfico – o passo seguinte da saga da comunidade de Adefunmi: a criação, na Carolina do Sul, da Oyotunji Village. Ela foi construída em 1970, buscando recriar em solo norte-americano uma "tradicional aldeia yoruba", a partir das descrições feitas por Herskovits nos anos 1930. Em 1972, a aldeia foi transferida para a sua localização atual, e no mesmo ano Adefunmi foi coroado o seu rei, assim permanecendo até seu falecimento em 2005. As vicissitudes do grupo, que chegou a ter quase 200 residentes em finais dos anos 1970, são narradas por Capone, que também salienta a irradiação do trabalho de Adefunmi, que iniciou grande número de adeptos, vários dos quais abriram "filiais" de Oyotunji em grandes cidades dos Estados Unidos.

No capítulo VI, a autora explicita que, apesar do esforço dos praticantes do orisha-voodoo em afirmar seu distanciamento em relação à santería, eles são fundamentalmente devedores desta última. Assim, em algumas práticas "reafricanizadas" dos Yoruba norte-americanos, como a "adivinhação das raízes", na verdade se reproduz a coronación espiritual, ritual da santería, influenciado pelo espiritismo mesa blanca, para a identificação dos espíritos de mortos que influenciam aquele que virá a ser iniciado. Como afirma Capone, "a ênfase na ancestralidade também permite reunir os diferentes cultos afro-cubanos sob um denominador comum: o culto dos ancestrais" (:190). No mesmo capítulo, são abordadas tensões entre os praticantes dos cultos afro-americanos, como as acusações relativas a iniciações realizadas sem tambores consagrados ou a relação, complementar e de rivalidade, entre os oriatés, especialistas que presidem as iniciações santeras, e os babalawo, sacerdotes dos cultos divinatórios de Ifá.

O campo de tensões que começou a ser abordado no capítulo anterior é desenvolvido no capítulo VII. São tratadas questões de gênero, sobretudo aquelas relativas ao lugar das mulheres nos grupos religiosos afro-americanos. O caso de uma mulher judia norte-americana, iniciada por um nigeriano no culto de Ifá, permite entrever a complexidade de um campo onde "tradição" e "inovação" se articulam em meio a disputas numa arena transnacional. A autora, a partir da abordagem não essencialista e interacional da etnicidade, proposta por Barth, mostra o caráter dinâmico dos processos identitários yoruba. Seguindo Anne-Christine Taylor, Capone busca pensar a etnicidade como um "significante flutuante": ela "não é algo monolítico ou um constructo analítico operacional; ela deveria ser pensada como um repertório de signos em constante reagenciamento" (:251), assim, "o campo do que hoje se chama 'religião dos orisha' é estruturado pelas negociações entre diferentes cultos, que implicam a articulação de princípios antagonistas ou contraditórios e a produção de identidades híbridas e polissêmicas" (:252).

A autora apresenta, no último capítulo, as iniciativas internacionais que, desde os anos 1980, têm buscado superar a fragmentação das práticas religiosas de origem africana no mundo. Em 1981, foi realizadaemIlé-Ifé, Nigéria, a 1ª Conferência Mundial sobre a Tradição dos Orisha e Cultura (COMTOC). Capone descreve os principaisatores e as articulações presentes na micropolítica decada uma das conferências, da1 ª à 9ª COMTOC, que se deu noRio de Janeiro, em 2005. Além das COMTOC, a autora enfoca a trajetória do National African Religion Congress, que do mesmo modo busca uma estandardização dos cultos, visando a um reconhecimento legal dos cultos como religiões nos Estados Unidos. No tocante às controvérsias jurídicas, Capone narra as polêmicas envolvendo proibição de sacrifícios de animais e a vitória na Suprema Corte de praticantes da santería da Flórida, em 1993, que tiveram reconhecida sua liberdade religiosa.

Na conclusão, Stefania Capone trata de modo vigoroso e sintético questões de fundo que emergem do estudo dos cultos de origem africana na América. A relevância da obra apresenta-se não apenas para aqueles que se interessam especificamente pelo orisha-voodoo nos Estados Unidos, mas também para os estudiosos das religiões afro-brasileiras. As tensões fundamentais entre "tradição" e "modernidade", desejo de "pureza africana" e influências históricas cristãs europeias, universalismo religioso e particularismo étnico encontram-se presentes tanto no Hemisfério Norte quanto deste lado do Equador. Bem fundamentada na historiografia da religião e da cultura afro-americana, a obra de Capone, de agradável leitura, demonstra um sólido domínio da teoria embutido na construção de seu argumento. E, sobretudo, os longos anos de trabalho etnográfico da autora junto a praticantes do candomblé, da santería e do orisha-voodoo possibilitam ao leitor aceder a um olhar sensível e lúcido sobre a realidade multiforme e florescente dos Yoruba do Novo Mundo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jan 2013
  • Data do Fascículo
    Dez 2012
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