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A catástrofe da sobrenatureza: a relação entre morte e terra no Complexo do Marico

The catastrophe of supernature: the relationship between death and land in the Marico Complex

La catástrofe de la sobrenaturaleza: la relación entre muerte y tierra em el Complexo do Marico

Resumo:

O artigo focaliza eventos mortuários atravessados por atos de colonização e, a partir de sua complexidade, explora uma noção etnográfica de catástrofe. Entre os povos indígenas do “Complexo do Marico” (Maldi 1991), a continuidade ontológica entre corpos e lugares revelada pela morte precisa ser modulada por ritos funerários. Esse controle não está imune ao deslocamento forçado, fechamento e depredação territorial impostos pelos não indígenas. Procedo analisando a codificação mitológica entre distância e guerra, o problema da morte e do luto em espaços perturbados, e o efeito dessa perturbação sobre entes sobrenaturais. A conexão entre esses temas revela a inventividade indígena na continuidade da vida, que é interpretada por meio da noção de “catástrofe da sobrenatureza”.

Palavras-chave:
Morte; Terra; Sobrenatureza; Complexo do Marico

Abstract:

The present article focuses on mortuary events cross cut by acts of colonization. Based on the complexity created by these intersections, we explore an ethnographic notion of catastrophe. Among the indigenous peoples of the "Complexo do Marico" (Maldi 1991), ontological continuity between bodies and places as revealed by death needs to be modulated by funerary rites. This control is not immune to forced displacements, enclosure, and the territorial depredations imposed by non-indigenous peoples. Here, I analyze the mythological codification of distance and war, the problem of death and mourning in disturbed spaces, and the effect of this disturbance on supernatural beings. The connection between these themes reveals indigenous inventiveness in the continuity of life, which is interpreted through the notion of "supernatural catastrophe".

Keywords:
Death; Land; Supernature; Marico Complex

Resumen:

El artículo se centra en acontecimientos mortuorios atravesados por actos de colonización y, desde su complejidad, explora una noción etnográfica de catástrofe. Entre los pueblos indígenas del "Complexo do Marico" (Maldi 1991), la continuidad ontológica entre cuerpos y lugares revelada por la muerte necesita ser modulada por ritos funerarios. Este control no es inmune a los desplazamientos forzados, al cierre y a la depredación territorial impuestos por los no indígenas. Procedo analizando la codificación mitológica entre distancia y guerra, el problema de la muerte y el duelo en espacios perturbados, y el efecto de esta perturbación sobre los seres sobrenaturales. La conexión entre estos temas revela la inventiva indígena en la continuidad de la vida, que se interpreta a través de la noción de "catástrofe de la sobrenaturaleza".

Palabras clave:
Muerte; Tierra; Supernaturaleza; Complejo Marico

Introdução

Desde que cheguei em campo nas aldeias da T.I. Rio Guaporé, em novembro de 2008, surpreendi-me com frequência com o fato de as pessoas chegarem até mim para contar sobre a morte de algum parente próximo, a maneira e a ocasião em que haviam ocorrido, em detalhes minuciosos. Não raramente, esses eram os primeiros relatos que eu escutava quando conhecia alguém. Na minha percepção, eventos tão pesarosos dificilmente deveriam ser contados a um desconhecido. Percebi, contudo, que as condições de minha presença ali incitavam esses relatos. Estar sozinha, num local muito distante, longe dos meus parentes, colocava a dúvida quanto a se realmente eu os tinha, ou se, fato mais provável, eu os havia perdido recentemente e por isso estava distante de minha terra.

Entre os povos do Marico (Maldi 1991MALDI, Denise. 1991. “O complexo cultural do marico: sociedades indígenas do rio Branco, Colorado e Mequens, afluentes do médio Guaporé”. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi (Antropologia), v. 7, n, 2:209-269.) - Makurap, Wajuru, Tupari de língua Tupi-Tupari, Djeoromitxi, Arikapô de língua Macro Jê e Aruá de língua Tupi-Mondé, cujo território imemorial são os afluentes Colorado, Branco e Terebito, da margem esquerda do médio curso do rio Guaporé na Amazônia meridional -, existe uma especial relação entre distância espacial e especificação da morte. Não se diz que fulano morreu, diz-se que fulano foi embora. Esta ideia estava contida numa curiosa frase de um interlocutor sobre um parente morto: “Depois que ele morreu, a gente se afastou”. Mas os relatos de morte indicavam para mim que a primeira conexão estabelecida com meus interlocutores era, do ponto de vista deles, uma espécie de compartilhamento do estado de luto. Mesmo depois de muitas voltas ao campo e de saberem que meus parentes, em sua maioria, estavam vivos, eu continuava despertando esses relatos. Em 2019, porém, um acontecimento mudou algumas das minhas compreensões, por não se restringir a um relato.

Depois de meses transitando pela burocracia dos brancos na cidade mais próxima (IML, MPF, polícia, Funai, Cimi etc.), uma amiga indígena esperou pacientemente cerca de dois dias para me conduzir, meu marido e o cacique de uma outra aldeia pelo percurso realizado por seu filho no dia da sua morte. Ela recriou passo a passo tudo o que havia acontecido e, depois de uma tensa aparição na casa de parentes envolvidos no conflito, chegamos finalmente ao local onde o rapaz caiu morto. Ficamos ali, eu, meu marido e ela, olhando do barranco para baixo e para a casa, abandonada após o ocorrido, que o avizinhava. Tentei apressar nossa saída, não aguentava aquela situação. Ela tomou o rumo oposto ao nosso, em direção à sua casa, cantando o seu filho morto.

Minha amiga estava “chorando em sua própria língua”, como se diz em português sobre a cantilena indígena ofertada aos parentes no rito funerário. Em que pesasse minha profunda tristeza, eu não entendia o que estava acontecendo. O estado de perturbação a que fui levada - naquele dia e anos depois disso -, me deixou perceber que na ocasião eu já sabia que o luto por uma morte violenta requer procedimentos de desconexão com o parente morto. Em decorrência de sua transformação monstruosa, esses procedimentos incluem o imperativo de não lhe render o choro ritual.

A aparente contradição deste momento nos fornece algumas lições sobre o tratamento da morte e a continuidade da vida entre os povos indígenas com os quais convivi na região do baixo rio Guaporé, no sudoeste amazônico. Minha amiga resumiu as dificuldades enfrentadas atualmente por seus parentes em dois aspectos. O primeiro se refere à reunião realizada pelo Serviço de Proteção ao Índio, décadas atrás, num mesmo local, de muitos povos, alguns dos quais desconhecidos entre si. Em sua análise, os conflitos ocorrem porque eles não estão em sua “terra própria”. Ela se referia ao território imemorial de onde foram deslocados compulsoriamente e que é hoje reivindicado ao Estado por seus parentes. O segundo aspecto diz respeito à falta dos pajés poderosos de antigamente, que curavam as comidas e a cerveja de macaxeira que “o espírito mau do matado vem comer e beber”, para que as pessoas não adoeçam ou se tornem violentas no momento pós-homicídio. A falta de especialistas xamânicos tem como consequência, segundo ela, o “avanço da violência igual do branco”. A complexidade inerente aos eventos de morte inclui, assim, tanto a relação com espíritos quanto a história de invasão a que foram submetidos esses povos. Os elementos desse diagnóstico - invasão não indígena e historicidade das forças cósmicas - serão abordados neste artigo, que não exclui minha hesitação quanto ao tratamento teórico deste evento.1 1 As ideias aqui presentes foram primeiramente apresentadas em uma comunicação na UFPR a convite do PET Filosofia, em setembro de 2019, com o tema Terra e Antropoceno. Em 2020, apresentei o texto no Grupo de Trabalho “Cosmo-socio-morfologias ameríndias: entre comparação, contrastes e invenção” na 32ª Reunião Brasileira de Antropologia. Foi também, depois de severas revisões, apresentado em 2021 na Reunião da Antropologia da Ciência e da Técnica, no seminário Antropologia da Catástrofe Diante da Vida, e, em 2022, no Seminário Inovações Ameríndias, do PPGAS/Museu Nacional. Agradeço aos comentários que surgiram nessas ocasiões e a João Vianna pela interlocução duradoura e a leitura crítica das diversas versões. Cristiana Losekann, Karen Shiratori, Oiara Bonilla, Marcela Coelho de Souza, Alyne Costa, Íris Moraes Araújo, Eduardo Viveiros de Castro e Gilberto Azanha fizeram comentários críticos e preciosos aos manuscritos. A responsabilidade pelo texto é inteiramente minha.

No cenário de dura investida contra os direitos dos povos indígenas, como oferecer descrições etnográficas sem que nossa “diplomacia” seja nem ridícula nem insultuosa (Stengers 1997STENGERS, Isabelle. 1997. Cosmopolitiques VII: Pour en vinir avec la tolerance. Paris: La Découverte/ Le Plessis-Robinson (Hauts-de-Seines) Institut Synthélabo pour le progrès de la connaissence.:111) para as pessoas com as quais trabalhamos? Como criar uma exigência política, isto é, modificar a maneira como as razões se apresentam e proteger da indiferença (Stengers 2018STENGERS, Isabelle. 2018. “A proposição cosmopolitica”. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, v. 69: 442-464.:450) fatos tão sensíveis? Como fazer com que a descrição não seja um simples empréstimo dos termos não indígenas para eventos de morte? Como não reduzir os eventos e as pessoas às quais a descrição se dirige “a algo de familiar ou gerenciável” (Bagemihl citado em Despret 2021DESPRET, Vinciane. 2021. O que diriam os animais? São Paulo: Ubu.:227)? Como narrar aquilo que importa para quem permanece vivo “sem cometer mais violência em meu próprio ato de narração” (Hartmann 2020HARTMAN, Saidiya. 2020 [2008]. “Vênus em Dois Atos. Eco-pós ”, v. 23, n. 3:12-33.:15)? De que modo podemos honrar o mecanismo epistemológico formulado por Antônio Bispo quando ele afirma que “tentamos compreender o que faz o colonialista pensar como pensa e como devemos pensar para não nos comportarmos como ele”? (Santos 2018SANTOS, Antonio Bispo. 2018. “Somos da terra”. Piseagrama, Belo Horizonte, n. 12:44-51.:45).

Embora eu não pretenda estar à altura de tais questões, mesmo assim é possível perceber serem perguntas de como permanecer como “cientistas de campo” nesses duros tempos. Mortes violentas não são exatamente um objeto fácil e pretendo demonstrar que guardam continuidade com um certo estado de catástrofe em que os povos indígenas do marico se viram envolvidos desde o “contato”, o que inclui assassinatos de indígenas por não indígenas, que também se multiplicaram recentemente na Amazônia, em geral, e na região em que trabalho, em particular. E essa história é ela mesma inserida em uma serie de invenções indígenas (Wagner 19878), contando as míticas. Não é uma simples reação à catástrofe que os povos indígenas e suas ações encarnam. O modo como realizam o luto - seus pressupostos e consequências - em espaços perturbados pela acumulação e a destruição capitalista ajuda-nos a multiplicar as razões por meio das quais podemos pensar, junto a esses povos, a catástrofe em curso - muitas vezes entendida sob o rótulo de Antropoceno. Uma exploração etnográfica da catástrofe que inclua a inventividade indígena (Vianna et al. 2022VIANNA, João; FONTES, Afonso & CARDOSO, Ilda. 2022. “A doença do mundo: xamanismo baniwa contra a pandemia”. Mana:Revista de Antropologia Social, Rio de Janeiro, 28 (1): 1-33 - http://doi.org/10.1590/1678-49442022v28n1a201.) requerida na continuidade da vida tem o mérito de nos livrar da propensão em tomar esses povos como entes passivos de uma história que lhes escapa. Interessa aqui a conexão entre corpos, lugares e espíritos. Procedo analisando a codificação mitológica do problema da distância e da guerra, os destinos post-mortem e o luto em espaços perturbados, e os efeitos dos atos de colonização sobre entes sobrenaturais. A conexão desses problemas e a inventividade indígena na continuidade da vida são entendidas por meio da noção de Catástrofe da Sobrenatureza.

Vida breve

Expressa na história d’O Começo do Mundo, a relação entre morte e distância espacial inclui também a multiplicidade de povos que hoje convivem. A história do Começo do Mundo apresenta variações entre um povo e outro, mas tais variações reforçam os detalhes que nos interessam. No mito, a diferença linguística e a separação territorial dos coletivos indígenas aparecem como elementos de diferenciação e condição de não guerra entre eles. Wadjidjiká Arikapo e seus filhos djeoromitxi me contaram o seguinte:2 2 E está registrada, bem como parte da interpretação que a segue, em Soares-Pinto (2014).

Antigamente, depois que a primeira humanidade foi quase toda dizimada por uma hecatombe [normalmente um dilúvio, mas pode ser também um grande incêndio] restaram dois sobreviventes, chamados Käwewe e Küropsihi. Andando pelo mundo, eles descobriram que havia gente num buraco que não era exatamente um buraco, mas uma espécie de caverna, pois ficava dentro de uma pedra, localizada no encontro do céu com a terra. Naquele tempo, o céu era bem mais baixo do que é nos dias de hoje. Käwewe e Küropsihi, animados com sua descoberta, resolveram fumar tabaco, e a pedra se abriu.

Beraparatxi,3 3 Beraparitxi está também no caminho dos mortos (hino wi, na língua djeoromitxi). É dele que os recém-chegados devem se desviar para chegar até o Céu, sendo fortes o suficiente para não serem seduzidos pelo seu chamado e capturados por seus longos braços. um monstro canibal, queria sair também e colocou seu enorme braço para fora do buraco. Por esse motivo, Küropsihi rapidamente fechou o buraco, deixando sair somente a metade das pessoas que lá estavam. Uma linda mulher, chamada Djoé, havia esquecido sua linha de algodão, e voltou para buscá-la: foi neste momento que a porta foi fechada e ela ficou presa dentro da pedra. Raivosa, falou: "Eu mandei segurar a porta! Por que vocês fecharam?! Vocês saíram todos, mas vocês vão morrer e vão matar o outro, pois vocês não querem que eu saia”.

Saiu muita gente de lá, e todo esse pessoal falava uma só língua. Contra a vontade de Käwewe, foi Küropsihi, demiurgo mais novo, e mais teimoso, quem começou a falar diversas línguas, ensinando a cada casal uma língua diferente, inclusive a língua dos brancos. Passou-se então uma grande confusão e desentendimento entre eles. Mas Küropsihi ia fornecendo uma língua e conduzindo os casais de falantes de uma mesma língua para um lugar, que passou a ser o local daquele povo.

A história continua sobre as andanças e os eventos associados aos demiurgos e, independente do enredo de cada narrador, terminam estabelecendo uma espécie de continuidade com as malocas de antigamente: Käwewe e Küropsihi continuam andando pelo mundo, sem destino certo, “espalhando seu pessoal”, conduzindo-os para os lugares específicos de suas malocas, dizendo: “Vocês vão morar em cada lugar e não vão brigar nem matar o outro”.

Foram dispostos dois tipos de pares primordiais: um par, os demiurgos djeoromitxi Käwewe e Küropsihi, que não são irmãos, mas wira, e um segundo tipo de par representado pelos casais embrionários dos coletivos indígenas, falantes de mesma língua. Entre pessoas de mesmo sexo, wira é um tipo de relação marcada pela brincadeira (pilhéria pública, saque de objetos e cooperação nos trabalhos) e extrema proteção contra inimigos. Entre pessoas de sexo oposto, codifica o casamento preferencial. A relação wira é, portanto, de “afinidade potencial” (Viveiros de Castro 2002aVIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2002a. “O problema da afinidade na Amazônia”. In: VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo, A Inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac e Naify. pp. 87-180.), de aliança política.

É verdade que os demiurgos wira têm poderes de sobreviver a eventos de morte, dilúvios e incêndios dos tempos primevos, além de apresentarem uma “dualidade desequilibrada” (Lévi-Strauss 1993LÉVI-STRAUSS, Claude. 1993 [1991]. História de Lince. São Paulo: Editora Schwarcz.). Ao demiurgo Käwewe, ancestral Djeoromitxi, o mais velho da dupla, são imputadas sensatez e inclinação para a unificação (ele queria, por exemplo, que todos falassem uma só língua); Wadidjiká Arikapô, a chefe da aldeia Baía das Onças, me contou certa vez que Küropsihi é Makurap, mais novo que Käwewe, e teimoso, desastrado e mentiroso. Por sua teimosia, Küropsihi fornece aos casais diferentes línguas, fazendo com que todos se separem. Mas é a Küropsihi que se deve a conquista das condições da vida atual, pois é ele quem rouba o fogo de Miorô nõtxi, o pica-pau primordial, e destampa a água guardada e sovinada por Kuraheri nõtxi, o nambu preto do começo dos tempos.

O mito djeoromitxi aciona a função da distância: pelas ações de Küropsihi é como se cada “grupo” (casal de falantes de uma língua diversa de outro, na letra do mito) fosse disposto por meio de linhas de fuga que originam a diversidade sociopolítica em outros territórios. Aqui poderia ser aplicada a mesma análise de Lima (2005LIMA, Tânia Stolze. 2005. Um Peixe Olhou Para Mim. O povo Yudjá e a perspectiva. São Paulo: UNESP/ ISA/ NUTI) acerca da “passagem ao discreto” entre os Yudjá: seria a distância a maneira de esses coletivos se diferenciarem num sistema que “conta com quantas perspectivas quantas forem as partes” (Lima 2005LIMA, Tânia Stolze. 2005. Um Peixe Olhou Para Mim. O povo Yudjá e a perspectiva. São Paulo: UNESP/ ISA/ NUTI:52), cada ponto/linha estabelecida pelos wira demiurgos - como por Senaã, o magnifico xamã yudjá - como um ponto de vista “entre-Outros” (Cf. Lima 2005LIMA, Tânia Stolze. 2005. Um Peixe Olhou Para Mim. O povo Yudjá e a perspectiva. São Paulo: UNESP/ ISA/ NUTI).

Note-se o papel que a relação entre morte/guerra e distância desempenha nessa imagem do mito. Em primeiro lugar, uma hecatombe original à qual a dupla de demiurgos sobrevive. Depois, uma reminiscência por meio da mulher que ficou presa na pedra. Daí se extrai a origem da “vida breve” (Lévi-Strauss 2004LÉVI-STRAUSS, Claude. 2004 [1964]. O cru e o Cozido. Trad. Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Cosac & Naify.) que vem acompanhada da especificação da morte: a praga de Djoé torna estranhos os “grupos” uns aos outros, e proclama o estado de guerra, não exclusivamente por vingança: “vocês vão morrer e vão matar o outro”. A sentença seria revertida pela alteridade inerente aos coletivos de gente em face de Outros, representados por casais falantes de mesma língua (origem do grupo local ou do povo) permanecendo separados entre si. Essa reversão está explícita na advertência final da dupla de demiurgos, que encerra a narrativa, “Vocês vão morar em cada lugar e não vão brigar nem matar o outro”. A um só tempo, o mito djeoromitxi marca a origem da vida breve ou a descontinuidade da vida humana e da multiplicidade social, já que no buraco não existiam humanos propriamente ditos, eram todos iguais por falarem a mesma língua. Pois é só quando saem do buraco que a multiplicidade social se instaura, por meio do estabelecimento da descontinuidade territorial que permite o estado de não guerra.

As advertências de Djoé e dos wira demiurgos se conectam e colocam, em par, uma questão. A “guerra” aparece como figura mítica oscilatória entre a profecia advinda de uma mulher que permanece enclausurada e a história das relações possibilitada pelas andanças e pelas ações de Küropsihi. A questão posta: vocês são diferentes agora, então, ou vocês vão viver em uma guerra permanente - mantendo a proximidade, pela qual podem se identificar/assemelhar - ou cada um vai para seu lugar para que, mantendo a distância, possam evitar a matança e manter a diferença. A história desses povos e a etnografia atual revelam a situação inscrita pelo mito.

Um novo local: guerrear na mistura

Os povos do Marico (Maldi 1991MALDI, Denise. 1991. “O complexo cultural do marico: sociedades indígenas do rio Branco, Colorado e Mequens, afluentes do médio Guaporé”. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi (Antropologia), v. 7, n, 2:209-269.) foram muito impactados por epidemias de sarampo na primeira metade do séc. XX, e deslocados compulsoriamente de suas malocas. O momento pré-contato é pensado sempre como o “tempo da maloca”. Parte deste território imemorial foi demarcado, e é hoje a T.I. Rio Branco, parte foi apropriada por não indígenas, sendo posteriormente alagada por Pequenas Centrais Hidrelétricas e desfigurada por cidades que ali se instalaram a partir mais ou menos da década de 1960 - em particular Alta Floresta D’Oeste. Algumas famílias Makurap, Wajuru, Tupari, Djeoromitxi, Arikapô, Aruá, depois de escravizados em barracões de seringa na região do rio Branco, foram empilhados, junto com outros povos de outros locais (os Kujubim, Kanoê, Massacá e Wari’) num mesmo Posto Indígena, de nome Ricardo Franco, hoje a aldeia de mesmo nome, na T.I. Rio Guaporé. Este posto ficava há quase 500 km de distância das antigas malocas (pelos caminhos disponíveis à época). Para Mauro Leonel Jr, o P.I. Ricardo Franco representava “um misto de refúgio paternalista e campo de concentração para famílias de sobreviventes de vários povos indígenas de Rondônia subjugados e dizimados pelas armas e pela doença” (Leonel Jr 1984LEONEL Jr., Mauro de Mello. 1984. “Relatório de Avaliação das Comunidades Indígenas da Área Indígena do Guaporé: ex P.I. Ricardo Franco (Tupari, Makurap, Uari, Aruá, Jaboti, Arikapu, Mequem, Ajuru (Wayoró), Massacá, Canoé e Arara)”. Relatório FIPE, 154-163 pp.:155).

Sua história catastrófica impôs muitas perdas a estes povos indígenas: de alguns artefatos, matérias-primas e conhecimentos antigos, como dos locais moldados pelos seres mitológicos/ancestrais. As perdas mais lamentadas são dos parentes. Todos os considerados velhos que conheci viram seus pais e avós morrendo com as epidemias de sarampo.4 4 No início do século, os Tupari eram cerca de 3 mil pessoas; em 1934, quando receberam a visita do antropólogo Snethlage, havia somente 250 indivíduos; em 1948, segundo Franz Caspar, havia 200 e, em seu retorno em 1955 (meses após uma epidemia de sarampo), apenas 66 pessoas. Na aldeia Ricardo Franco, eu conheci o último velho de um segmento wajuru (os Cotia), sem descendentes, também já falecido, bem como vi um segmento makurap se extinguir. A lista de extinções é grande, mas não maior que a capacidade indígena de prosseguir, que tomo aqui no sentido de uma ação diferenciante, inventiva, seguindo Wagner (1978).5 5 Remeto o leitor ao interessante artigo de Vianna et al. (2022) inspirado também nos conceitos de Wagner e que trata da ação inventiva de um benzedor baniwa no contexto da pandemia de coronavírus. Invenção evidente pela reorganização territorial de vários povos indígenas distintos pós-hecatombe - epidemia, escravização e deslocamento forçado - na abertura e na manutenção de aldeias vizinhas ao Posto, no bojo das demarcações das terras por eles tradicionalmente ocupadas (Funai 1984; Soares-Pinto 2009SOARES-PINTO, Nicole. 2009. Do poder do sangue e da chicha: Os Wajuru do Guaporé (Rondônia). Dissertação de Mestrado, Curitiba, PPGAS/ UFPR., 2014SOARES-PINTO, Nicole. 2014. Entre as Teias do Marico: Parentes e Pajés Djeoromitxi. Tese de Doutorado, Brasília, PPGAS/UnB.).

A vida pós-maloca e numa Terra Indígena distante do seu território imemorial conecta povos antes “vizinhos”, ou desconhecidos, por casamento e sobreposição espacial. “Somos todos misturados”, é o que se pode ouvir nas aldeias da T.I. Rio Guaporé. Essa mistura é um tipo de tecnologia de continuidade da vida, uma “reconstrução das condições para seguir uns com os outros” (Haraway 2020HARAWAY, Donna. 2020. Ficar com o problema. Entrevista com Helen Torres. Trad. Ana Luiza Braga, Caroline Betemps, Cristina Ribas, Damián Cabrera e Guilherme Altmayer. Revisão Ana Luiza Braga. Pandemia Crítica, n. 1. ). A nova terra foi constituída tradicionalmente por meio de casamentos e corresidência entre povos indígenas de diferentes grupos indígenas antigamente endógamos, distantes ou desconhecidos entre si. Os mesmos que, do ponto de vista dos demiurgos, deveriam permanecer “cada um no seu lugar”.

Como alternativa para os chefes das famílias extensas de povos distintos que foram reunidos em torno do Posto, dispersão e fissão - fundação de novas aldeias - evita(ria)m os conflitos decorrentes se tais unidades vindas da maloca permanecessem sobrepostas. Pois a questão que se coloca é como manter a distância - e, portanto, viver bem, não brigar - no "tempo da paz” imposto pelo branco. Esses chefes foram capazes de gerar pontos de identificação e produzir “um reagrupamento das forças” (Deleuze & Guattari 1997DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Felix. 1997. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. Vol. 4. São Paulo: Editora 34.:129). Tal reterritorialização instaurada por casais chefes - ou uma desterritorialização relativa, que consiste em reterritorializar de outra forma (Zourabichvili 2004ZOURABICHVILI, François. 2004. O Vocabulário de Deleuze. Disponibilização eletrônica: Centro Interdisciplinar de Estudos em Novas Tecnologias e Informação. São Paulo: Unicamp.)6 6 Para detalhes sobre a constituição de lugares, ver Soares-Pinto (2017a). Analisei a “mistura” do ponto de vista das teorias nativas da consanguinidade, casamento e da constituição da pessoa (Soares-Pinto 2017b). Aqui o ponto é sua relação com a reterritorialização que ela inscreve. - foi fundada na capacidade de responder aos imperativos de sobrevivência dos que vieram das malocas e dos antigos seringais.

O mundo atualizado é misturado, na ação indígena, para a qual misturar é juntar elementos díspares, é aproximar elementos que na origem Käwewe eram idealmente Um - endogamia, mesma língua etc. Os patrisegmentos atuais são chefiados/organizados por um casal de falantes de língua diversa (idealmente wira entre si), em aldeias que comportam famílias nucleares de povos distintos. O produto atual é a convivência num mesmo espaço das diferenças humanas do mundo social no registro “Küropsihi”. Essa “mistura”, ainda que controversa, está, pois, prefigurada pelo mito.

A conexão ou a convivência num mesmo espaço entre povos distintos corresponde à capacidade de continuar a produzir a diferença coletivamente ancorada pós-hecatombe. Pois as alianças nessa nova terra visavam/visam aproximar estranhos, afinizando-os, facultando uma convivência outrora impensável. Mas tal aproximação via “mistura” só diminui a distância, não efetivamente a abole, dado que as diferenças passam a ser atualizadas. Assim é que um homem pode se referir aos habitantes de outra aldeia como “meus sobrinhos” ou meus “wira”, indexando a coletividade aldeã de acordo com sua relação de parentesco com o casal chefe.

Endereçamentos coletivos que não podem ser ouvidos em relação à aldeia Ricardo Franco, em parte, eu suponho, devido ao fato de que sua característica de Posto nunca chegou de fato a desaparecer. O que se tem ali são diversas mini aldeias - ou famílias extensas compostas por povos distintos - contíguas e entrelaçadas. Apesar disso, se fizéssemos um exercício de colorir os telhados das casas com a cor de pertencimento patrifiliativo do homem do casal, poderíamos notar conjuntos de casas contíguas chefiadas por homens de um mesmo povo, separadas pelos caminhos, insinuando a virilocalidade mesmo num espaço “misturado”. Por isso falo em mini aldeias, e também porque, quando cheguei em Ricardo Franco pela primeira vez, um velho pajé wajuru, hoje falecido, iniciou sua conversa comigo apontando com a mão onde estavam os diversos povos que convivem ali, distinguindo seus lugares na aldeia sem ambiguidade.

Não se opera uma “invenção” sem efeitos de contraefetuação (Wagner 1978). A condição atual de mistura que inaugura o perigo do fim das distâncias no território comum, artificial (criando justamente a convivência forçada e vigiada pelo Branco em uma paz também artificial) onde não se tem mais “cada um o seu lugar”, repõe as condições para a primeira profecia, “morrer e matar o outro”. Entre tais desafios está a resolução ou o apaziguamento dos conflitos, sob o imperativo de que agora “todos são parentes”, pois misturados. Ao mesmo tempo explicita as diferenças atuais em face daquelas construídas por uma dupla originária mítica, cujo destino é a dispersão. Pois a dispersão atual (possível emulação da dispersão mítica) se vê envolvida pela dimensão de “fechamento territorial” a que foram submetidos tais povos. Nessas condições, a contínua divisão dos Outros entre aliados e inimigos - dispositivo de conjunto atribuído por Clastres (2004CLASTRES, Pierre. 2004 [1977]. Arqueologia da Violência. São Paulo: Cosac Naify .) para a efetividade dispersiva de poder da guerra ameríndia - procede em uma espiral difícil de segurar.

Suponho que meus interlocutores estejam envolvidos em, ao menos, duas questões: como manter como inimigo gente que é tão próxima, que faz roça e toma chicha/festa junto? Como manter como parente gente que se mostrou inimigo? Essas questões nos apontam as condições necessárias na construção e manutenção de um espaço concêntrico.

Para Clastres (2004CLASTRES, Pierre. 2004 [1977]. Arqueologia da Violência. São Paulo: Cosac Naify .), no plano político, a aliança é tática para a guerra ameríndia (:261). Essa aliança é função da permanência do “dispositivo de conjunto” (:259), isto é, da divisão dos Outros entre aliados e inimigos, necessária para a indivisão e a autonomia da sociedade primitiva. A concepção de “grupo local” assegura, do ponto de vista do autor, o caráter concêntrico da distinção política entre aliados e inimigos, sublinhando o valor da distância. A inclusão de uma relação essencial com o território só o é na medida em que assegura a multiplicidade, não sendo caudatária de uma simples disputa por recursos: “é contra as outras comunidades que cada sociedade afirma seu direito exclusivo sobre um território determinado, a relação política com os grupos vizinhos é imediatamente dada” (:252).7 7 Clastres abandona a referência aos Guayaki - para os quais, dizia o autor, a vingança era um mecanismo homeostático - ao estabelecer a contiguidade espacial como dispositivo base da relação funcional positiva entre a guerra e a intencionalidade coletiva das chamadas sociedades primitivas. Esse abandono não parece ser fortuito. Talvez porque a essência una e indivisa das sociedades contra o Estado e os efeitos dispersivos (metaestáveis) da guerra dependam, justamente, da i-limitação de seu território - que, sabemos, não estava mais disponível aos caçadores nômades a oeste do rio Paraguai à época da etnografia de Clastres. Acossados e caçados pelos beeru (não indígenas) em seu próprio território, os Aché Guatu se viram obrigados a viver sob a proteção de um deles, nos fundos de uma fazenda em Arroyo Moroti: “Mais que abrigo, a floresta, para eles, tinha se tornado prisão” (Clastres 1995:48).

A teorização etnográfica da “guerra” fornecida por Albert (1985ALBERT, Bruce. 1985. Temps du sang, temps des cendres: representation de la maladie ,systeme rituel et espace politique chez les Yanomami du sud-est (Amazonie bresilienne). Tese de doutorado, Universidade de Paris X.) foi investigada enquanto dispositivo de base das sociocosmologias yanomami, como inerente à sua filosofia, não como resultado de uma carência ou disputa por elementos escassos, nem como advento exógeno. O autor (re)pensou a guerra yanomami como um “sistema de agressão” que inclui não somente agressões físicas diretas, mas também xamânicas. Sua descrição deste sistema como troca de agressões, mortes, substâncias e rituais, a partir de um esquema concêntrico situado num continuum de trocas matrimoniais e políticas, foi a base para importantes teorias a respeito da socialidade amazônica, como aquela que pensou o parentesco em termos de campos sociais mais vastos (Viveiros de Castro 2002aVIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2002a. “O problema da afinidade na Amazônia”. In: VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo, A Inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac e Naify. pp. 87-180.).8 8 Recentemente, Machado (2015) etnografou a guerra yanomami no contexto de suas relações com os brancos, e a forma como os Yanomami têm reinventado seu “sistema de agressão”.

A partir da dependência do valor da inimizade à distância (social/espacial) - já presente na elaboração clastriana que se tornou paradigmática -, é necessário perguntar o modo como a guerra ameríndia pode continuar mantendo-se como um “estado metaestável de hostilidade virtual entre comunidades locais relativamente autônomas” (Viveiros de Castro 2011VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2011. “O Intempestivo, ainda”. Posfácio a P. Clastres, Arqueologia da violência. Pesquisas de antropologia política. São Paulo: Cosac & Naif. pp. 297-361.:298) - em contextos de cercamento territorial e destruição ambiental. Como pensar a metaestabilidade decorrente da guerra quando a socialidade concêntrica que codifica a afinidade/inimizade ameríndia encontra-se perturbada? Parece-me que é esta a questão sobre a qual meus interlocutores refletem, ao almejarem, depois de conflitos, construir novas aldeias e mudar-se provisoriamente, seja para um sítio afastado, seja para a cidade dos brancos.

A etnografia dos povos do marico impõe a reflexão sobre a dependência do valor da inimizade à contiguidade/concentricidade espacial, ante as transformações derivadas dos atos de colonização. No mito do Começo dos Tempos, a dispersão e a posterior territorialização eram a condição humana ideal; atualmente, a “concentração” num mesmo território força o “cruzamento/aproximação” de povos distintos. Essa concentração intercepta seu “dispositivo de conjunto” , fazendo da distância uma questão sensível, não “imediatamente dada” (Clastres1995CLASTRES, Pierre. 1995 [1972]. Crônica dos Índios Guayaki: o que sabem os Aché caçadores nômades do Paraguai. Rio de Janeiro: Editora 34.). Isso porque aproxima também os mortos, colocando problemas ao estado sempre provisório de acomodamento e paz entre os povos hoje misturados.

Pois o produto da morte violenta é uma qualidade tóxica anímica, venenosa, dos lugares e corpos, que impele ao deslocamento, e cuja neutralização eles me dizem não serem mais inteiramente capazes de efetuar. A sobrenatureza da guerra emerge como uma espécie de vortex etnográfico. Sua caracterização, portanto, deve ser capaz de refletir a complexidade do estado de catástrofe contra o qual minha amiga cantava. Sendo a agressão xamânica um tipo de guerra (cf. Albert 1985ALBERT, Bruce. 1985. Temps du sang, temps des cendres: representation de la maladie ,systeme rituel et espace politique chez les Yanomami du sud-est (Amazonie bresilienne). Tese de doutorado, Universidade de Paris X.), é preciso também pensar a sobrenatureza da guerra em espaços perturbados.

A morte e seus lugares

Uma curiosidade presente no documento do Etnodiagnóstico Ambiental Participativo, Etnozoneamento e Plano de Gestão da Terra Indígena Rio Guaporé (Cardozo et al. 2019TERRA INDÍGENA RIO GUAPORÉ. 2019. Organizadores: Ivaneide Bandeira Cardozo, Israel Correa do Vale Junior e Thamyres Mesquita Ribeiro, Brasília: ECAM.) é a definição de “zona sagrada” como aquela que inclui “os locais onde há cemitério, cerâmica, onde se morava antigamente ou onde houve conflitos com outros povos” (:90, grifo meu). Sagrado aqui, suponho, significa principalmente a imposição de “interdição” ou “perigo”. Para melhor avaliar esta suposição e sua relação com uma noção de “lugar”, vou me concentrar agora na relação entre lugares e corpos nos eventos de morte.

Os cuidados que toda morte requer indicam uma espécie de continuidade entre vivos e mortos e entre lugares e espíritos que precisa ser interrompida ou controlada. Embora dependente do “tipo” de morte e do “tipo” de parente, morrer é sobretudo afastar-se, ir para um outro local. Os mortos caminham. O hino wi (o caminho do espírito, em língua djeoromitxi) segue para o Céu, e aparece em forma de arco-íris, que também é uma jiboia. É por onde vão aqueles que morrem por doença, que é entendida como efeito das ações de outros espíritos, quando estes inserem suas flechas ou dardos venenosos no corpo, que se torna, por isso, adoentado - como em muitos outros contextos (Gallois 1988GALLOIS, Dominique. 1988. O Movimento na Cosmologia Waiãpi: criação, expansão e transformação do universo. Tese de Doutorado, FFLCH-USP). Idealmente todos deveriam seguir para o Céu, mas nem todos o fazem, e eu tive a impressão diversas vezes de que o Céu é reservado aos pajés, suas esposas e filhos. Caspar (2015CASPAR, Franz. 2015. Os Tupari. Uma tribo indígena no Brasil ocidental. Trad. Adriana Huber Azevedo, Franz Caspar jun. (copyright).:226) já ressaltara que, entre os Tupari que encontrou na década de 1950, o Céu é duplo: um, a morada dos pajés primordiais, outro, o destino das almas (os kiapoga-pōt) que dependem, para acessar tal destino, de um tratamento ritual marcado pela aspiração de rapé pelos parentes masculinos do morto. Eu mesma nunca presenciei sessões coletivas de rapé, embora saiba que, mesmo progressivamente mais raras, elas acontecem.

O que pude saber é que as pessoas atacadas na mata, seja por uma onça, seja por um espírito Dono de árvore, ou os que morrem afogados ou que são picados por cobras vão para o grupo local post mortem de um novo “cônjuge”, para ser genro ou nora do espírito Dono daquele novo local. Morrer é casar-se em uma outra perspectiva/local. Os lugares dos espíritos Donos (Ibzia) da caça, dos peixes e das grandes árvores-malocas têm grande importância, pois o tipo de relação que se estabelece com os entes/sujeitos desses lugares é definitivo para a vida e a morte dos humanos. A questão não é se podemos pontuar ou não num mapa os lugares dos ibzia, pois tais lugares são dependentes do acontecimento, do encontro, da relação que se estabelece. No "bom encontro" não haverá reação agressiva dos ibzia. A abundância de caça, de peixe ou de frutos do mato e da roça é o próprio índice de uma boa relação. Idealmente tais espíritos devem ser visitados pelos pajés, que os veem em sua forma humana, negociando a caça, o peixe e os frutos e trocando conhecimentos, quando os Donos os recebem com chicha (cerveja de macaxeira, milho, amendoim ou cará) e comida em suas próprias casas. No "mau encontro" algo sucedeu que merece ser comentado, alguém se envolveu demais com determinada caça: matou demais, desperdiçando a caça, ou não conseguiu matar corretamente, somente ferindo ou “baleando” a criação do Dono: uma relação foi concretizada em termos displicentes. É quando os Donos atacam os humanos que “matam mal” e os transformam (seus espíritos) em empregados em sua “fazenda”. Uma má coletora - aquela que saiu de sua casa durante suas regras menstruais ou que desperdiçou seus frutos - pode ser levada para ser nora de um espírito Dono de árvore-maloca.

“Tudo no mundo tem um Dono, então, tudo tem um lugar”, é o que afirmou um respeitado professor djeoromitxi certa vez. Ter um lugar significa estar sob os cuidados e a proteção de um espírito Dono, e os humanos nunca sabem exatamente se estão incorrendo em alguma falta protocolar de tal Dono. Na maioria das vezes, esses lugares são reportados como vórtices de linhas de fuga, se são "pontos" o são na medida em que devem se tornar evanescentes, sendo discerníveis na medida em que estão doentes (intoxicados) ou são a causa da doença (intoxicantes) que causou a morte de um parente. O que quero dizer é que os lugares dos Donos são atratores de um território que só os xamãs devem (afirmar) conhecer, podem estar tanto na plataforma terrestre quanto no céu, dentro das pedras ou no fundo d’água. Mas se um vivo corresidente (não pajé) sabe ou afirma saber exatamente onde tais lugares se localizam, é porque tais lugares são experiências de desterritorializações relativas, isto é, é ser atraído para o lugar, o ponto de vista do Outro.

Ao contrário dos destinos descritos acima, os mortos matados não seguem pelo hino wi até o céu e também não se tornam trabalhadores ou parentes por afinidade de um Dono de lugar. O caminho do “espírito mal do matado”, na expressão indígena, é bem mais sofrido e perigoso: sentem muito frio, ao mesmo tempo em que o sol é escaldante; não se tem onde dormir e, principalmente, eles “já não têm conhecimento com nada, já não é mais pessoa”, como afirmou um amigo wajuru. Esses espíritos perdem sua forma humana e sua capacidade reflexiva, tornando-se espíritos malignos (hipfopsihi em djeoromitxi, wainkõ em wajuru e tchopokot, em makurap). São monstruosos, canibais e errantes, não constituem um local para si, não são capazes de cuidar e fazer crescer outros, como os espíritos Donos. Atacam os humanos sem qualquer motivo aparente e contra eles só se pode guerrear xamanicamente. Apresentam, nesse sentido, um limite oposto à socialidade dos Ibizia.

Sempre me consternou o fato de que é a “vítima” de um conflito entre humanos a que possui o pior destino post mortem possível. Além disso, os efeitos de tais conflitos motivam muita preocupação em meus interlocutores. O sangue do morto por faca, flecha ou tiro se espalha animicamente na aldeia, tendo como foco de origem o local onde foi derramado e pode se transformar em borboletas e lagartas. O “espírito-mal do matado” é sentido por sua “catinga” (pior que a da mucura); se encontrado por um pajé na mata, é multicor e possui pluriformas, e pode ainda ter unhas, dentes e cabelos avantajados. Em aparições repentinas na aldeia dos vivos, vem voando e cai na terra na forma da cobra de duas cabeças (Amphisbaena alba), ser-imagem na qual início e fim são indiscerníveis. Multidimensionalidade fantasmagórica e ubiquidade são importantes características (nenhum mapa ou desenho seria suficiente aqui). O espírito-Dono dos Hipfopsihi é a saúva.

Todas essas características implicam o luto especial das famílias que perdem filhos ou irmãos violentamente. Em qualquer tipo de luto, a esposa, mãe, filhas ou irmãs do/a morto/a queimam ou entregam para outra mulher seu pilão e cocho de chicha - por estarem tristes e porque a bebida por elas produzida atrairia seus parentes mortos. As pessoas enlutadas - filhos/esposos/netos/tios - também não devem dançar nas festas regadas à chicha, principalmente na dança entre casais animadas pelos forrós regionais. O par de sexo oposto parece, pois, mais vulnerável à intromissão da perspectiva dos espíritos. Contudo, além destas restrições, o enlutamento por um parente matado traz consigo o pesado signo da solidão ou do isolamento, traduzido na lamúria póstuma dos parentes do morto de que ninguém compareceu ao velório. Pesa, assim, a interdição de não se “chorar” o morto-matado. Um amigo djeoromitxi me disse o seguinte:

Quando é feito, quando é matado, as pessoas não podem chorar, nem as crianças podem ver, porque para nós o sangue de outra pessoa penetra na gente e a gente acaba ficando muito mal. Pode chegar até a morte ou a matar outra pessoa. Então, nesse período, se matam uma pessoa, a criança não pode chegar perto e nem comer tão cedo assim, porque senão, para nós, você está comendo sangue daquele “cara” que foi morto por flechada e você cresce uma pessoa muito ruim.

Cuidados e constrangimentos corporais marcam esse momento pós-homicídio em vista de um perigo duplo: quem chegar próximo do morto tornar-se-á homicida, em uma espécie de contágio indireto; da mesma maneira, pode-se morrer diretamente por ação do espírito transformado. Para evitar tal captura, as crianças são afastadas do corpo do morto e proibidas de se alimentarem naquele dia. Tais cuidados se somam ao “amansamento” com folhas-do-mato ministrado a crianças durante a infância para que não se tornem violentos na vida adulta. Nos dias de morte matada, os pajés devem curar as comidas, a chicha, para que as pessoas não comam nem bebam daquilo que foi “sujo” pelo espírito mal, evitando igualmente que se tornem homicidas ou que adoeçam e morram. Antigamente, toda a “maloca”, com exceção das crianças, deveria tomar rapé e vomitar o sangue do morto que adentrava os seus corpos, e caía em forma de bolas no chão. As pessoas se formavam pajés na continuidade deste ato, nas sessões coletivas de aspiração de rapé com outros pajés.

O isolamento da família do morto matado se traduz na certeza do perigo anímico. Aqueles que entram em contato com o sangue do morto, seja diretamente, lavando uma camisa suja de sangue, seja simplesmente por olhar o sangue, permanecem doentes e atormentados durante toda a vida, caso não encontrem um pajé forte. As mães, as irmãs e as avós, durante anos a fio, não andam mais nos caminhos por onde seus filhos/irmãos andavam, moravam e, principalmente, onde morreram. Dizem vê-los e se tornam quase loucas, “andando por aí”, sem comer, sem dormir, parecem não mais reconhecer seus parentes. Essas parentas assemelham-se, em grande medida, ao espírito do morto.

Ao se espalhar pela aldeia, virando todo “tipo de bicho”, e se transformando nos espíritos malignos, o sangue do matado precisa ser recolhido por um pajé, ação que se traduz pela expressão “juntar o sangue”. Em seguida, o pajé deve “esfriá-lo”, isto é, despotencializá-lo. Do contrário, o sangue permanece espalhado invisivelmente na aldeia e dentro dos corpos dos parentes, enlouquecendo-os. Assim contou uma amiga makurap:

Quando a gente está com wãinko [espírito maligno, na língua wajuru], ele está dentro da gente, ele quer levar a gente, vai comer a gente. Come a gente no mato. E quando não come, a gente fica um tempo com ele, a gente cresce a unha, cresce, fica tudo igual ele. Dente, venta, tudo, cabelão. Se não tivesse pajé de repente eu não ia ficar boa. [...] A gente é bicho, né? Não vê nada, só com eles mesmo (Soares-Pinto 2009SOARES-PINTO, Nicole. 2009. Do poder do sangue e da chicha: Os Wajuru do Guaporé (Rondônia). Dissertação de Mestrado, Curitiba, PPGAS/ UFPR.:92).9 9 Na época deste relato (2008) de uma mãe enlutada por um filho que morreu vítima das ações desses espíritos, ainda estavam vivos os cinco grandes pajés capazes de chupar as doenças e expeli-las em forma de pedra, que vieram das malocas dos afluentes do Guaporé. Apenas um havia falecido. Todos são atualmente falecidos. Adiante tratarei dos problemas suscitados pela morte dos grandes pajés.

Tal transformação monstruosa é aquilo que os parentes do matado devem evitar. Os eventos (local e os corpos presentes) onde ocorreu um conflito com sangue é fonte de alteração descontrolada e duradoura, tendo que ser curado pelos pajés, ao retirarem o sangue dos corpos e dos lugares e o jogar “para longe” - distanciando o “espírito mal do matado”. Contudo, muitas vezes esse sangue volta em forma de cobra de duas cabeças e mesmo muito longe do local do evento de morte.10 10 Uma cobra de duas cabeças apareceu na chichada oferecida por uma amiga em que eu estava presente e só pôde ser morta pela mais velha da aldeia, ante sua potência anímica. A dona da chicha se questionou, a mim se dirigindo muito assustada, se isso não se devia ao fato de seu irmão ter sido morto na aldeia em que morava muito longe dali. Dissuadiu-se logo em seguida, lembrando que sua mãe já havia contratado um pajé para “juntar o sangue”. A festa arrefeceu logo em seguida. A consternação dos presentes nesta ocasião contrasta, em meu pensamento, com a trivialidade com que as pessoas tratam os momentos em que os pajés se retiram das festas avisando que irão receber em outro local os parentes já mortos que acabaram de chegar.

Como tecnologia contrária à entropia a que seus corpos-pessoas estão submetidos, a mãe, as filhas e as irmãs do morto reclamam pela reconstrução de suas casas em outros lugares, abandonando aquelas em que viviam com seus pais/filhos/irmãos, seja reabrindo um sítio antigo, seja, mais recentemente, mudando-se provisoriamente para as cidades mais próximas. Essas mudanças se dão, suponho, pelo assédio onírico desses seres.

Digo “suponho” porque tais assuntos, quando tratados de forma pública pelos assediados, raramente apontam diretamente o “motivo” da mudança, como se não se precisasse justificar (pois o silêncio é também uma tecnologia antientropia). O que se observa é que os parentes de mortos violentamente afastam-se ou são afastados de seus mortos com ainda mais veemência que os enlutados por parentes que morreram por ataque de espírito Dono. E, por algum motivo, as mulheres me pareceram sofrer mais transformações do que os parentes masculinos enlutados. Os homens que tiveram um irmão, ou um filho morto violentamente sofrem com o imperativo da vingança e também se afastam/mudam de local para evitá-la. Sabem que um ciclo infinito de vingança, no qual todos são “misturados”, acarretaria consequências altamente custosas.

A morte como multiplicidade

O velório proveniente de uma morte violenta - dos jovens homens, em maioria absoluta - contrasta com os velórios dos velhos e das velhas, ao redor dos quais se reúnem muitas aldeias para “chorar o morto”. A reivindicação pela posição de neto do/a morto/a é marcante, e o choro ritual é a repetição ininterrupta, gritada e chorada, da estrofe: “Hotõ/kure medjü txi” (Avô/avó muito bom-bonito/ boa-bonita). São ocasiões marcadas pelo choro ritual de seus parentes e, no caso dos pajés, pela disputa em relação a seus objetos mágicos (banco, chocalho, pena de arara, e armas invisíveis que compõem seu corpo, disputadas por outros pajés). A alta periculosidade do momento se deve à visita dos pajés já mortos, diante dos quais se destinam os atos comedidos de fala e movimento, principalmente das crianças.

Uma notável exceção sobre como as ações dos mortos são reportadas publicamente é a forma como se retratam as saudades sentidas por um velho pajé já falecido. Sempre a respeito “(d)o/a finado/a, este/a que está enterrado/a aí”, são públicos os comentários sobre as saudades que estes velhos sentem de seus parentes que ficaram na terra. Pelas saudades, frequentemente tentam levar consigo - matar desde suas ações no céu - seus parentes mais próximos. Um incêndio na casa de um neto, raios mortais na casa de um filho, e chuvas que acossam os barcos das viúvas todas as vezes que se afastam do local onde esses velhos estão enterrados - indo para a cidade, por exemplo. Contudo, os pajés já mortos não enlouquecem seus parentes; pelo contrário, eles podem protegê-los e muitas vezes os avisam de perigos em sonho. O local de sua sepultura marca uma espécie de centro, um ponto de identificação. A sepultura e a vida de um pajé após sua morte são pontos de “concentração” para aqueles que permanecem vivos, na vizinhança da qual construirão suas casas, roças e pontos de caça, consolidando um território de parentes.

Em muitos lugares, em especial entre povos Tupi - cf. Viveiros de Castro (1986VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 1986. Araweté: Os Deuses Canibais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. ) para os Araweté e Gallois (1988GALLOIS, Dominique. 1988. O Movimento na Cosmologia Waiãpi: criação, expansão e transformação do universo. Tese de Doutorado, FFLCH-USP) para os Wajãpi -, a morte de pajés é mais perigosa. Nos casos aqui abordados, o perigo está muito presente no próprio velório de pajés. Contudo, em face da morte de não pajés, em especial dos mortos matados, essa periculosidade guarda complexidades em termos de sua duração. Os pajés mortos “duram” mais, isto é, suas ações são mais estendidas no tempo, pois identificadas e reportadas pelos próprios parentes na terra durante anos. Eles permanecem pessoas inteiras no post mortem.11 11 Embora suas “armas internas” precisem ser retiradas por outro pajé durante seu velório, nos casos que acompanhei todos os pajés permaneceram armados no post mortem. Ver Soares-Pinto (2015) para detalhes desse processo e a constituição dos corpos dos pajés do Complexo do Marico. Ao seu passo, o corpo do morto matado é de-totalizado no próprio evento da morte e ninguém mais se refere ao morto como pessoa. Porque ele pode transformar seus parentes na sua imagem monstruosa, os procedimentos para se esquecer do morto (Taylor 1993TAYLOR, Anne-Christine. 1993. “Remembering to Forget: Identity, Mourning and Memory Among the Jivaro”. Man, 28 (4):653.) matado são ativados com urgência. Assim, diante dos mortos matados, a duração dos vínculos de parentesco com os pajés mortos guarda um elemento de relativização e ambiguidade sobre a descontinuidade radical entre vivos e mortos, presente na descrição clássica de Carneiro da Cunha (1978CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. 1978. Os mortos e os Outros: uma análise do sistema funerário e da noção de pessoa entre os índios Krahó. São Paulo: Hucitec.). A partir da ascendência no parentesco baniwa, Vianna (2017VIANNA, João. 2017. Kowai e os nascidos: a mitopoese do parentesco baniwa. Tese de Doutorado, PPGAS-UFSC) elabora o ponto:

A pessoa baniwa reconhece uma certa e ambígua continuidade com os seus ancestrais mortos, reconhecendo uma relação com eles, mas, ao mesmo tempo, nota uma descontinuidade importante entre eles, marcada pela transformação destes que morreram: os mortos tornados ancestrais se transformam com a morte em outra coisa que os humanos (:277).

Certamente os pajés mortos do Complexo do Marico são diferentes dos humanos corresidentes, mas essa diferença já estava dada inclusive quando eram vivos. Sua conexão de parentesco com os vivos é que parece não se apagar, mesmo depois de sua morte, evento que os torna perigosos para seus parentes próximos. Daí sua ambiguidade.

Em relação à alteridade dos mortos matados, está aqui também a descontinuidade radical entre vivos e mortos, bem como a síntese canibal embutida na morte violenta: a identificação com o ponto de vista do morto controlada por rituais pós-homicídio (Viveiros de Castro 2002bVIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2002b. “A imanência do inimigo”. In: VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo, A Inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac e Naify . pp. 267-294.:293). Contudo, atualmente, tal identificação não está centrada na transformação do Eu do matador, no seu processo de subjetivação pelo movimento de aproximação fusional de perspectivas, que antes era meio para formação de pajés. Hoje, o que sobressai é o perigo da introjeção do sangue do morto no corpo de parentes não pajés, caso em que a “preensão de perspectivas” pode levar à morte de mais corresidentes. Sublinha-se a falta de tecnologias coletivas para lidar com essas mortes, em especial, a presença de uma coletividade de pajés.

Poderíamos ainda colocar uma questão: há mortes que não sejam matadas (homicídios de alguma perspectiva)?12 12 Agradeço a um(a) do(a)s pareceristas por formular a questão nesses termos e me instigar a incorporar a escatologia dos povos do Marico em um debate mais amplo com a etnologia indígena. Proposta que por falta de espaço e de competência só poderei atender parcialmente. O debate clássico na etnologia americanista mostra que a morte é sempre perpetrada por um ente, sendo a morte de alguém fruto de ação de Outrem e/ou da falta de cuidado dos parentes ou, ainda, do próprio morto. Os povos do marico não me parecem uma exceção: espíritos Donos, conflitos entre "parentes", os brancos (médicos muitas vezes são responsabilizados pela morte dos parentes doentes). Sabemos também que a relação distância / morto (o morto sendo Outro) é igualmente um problema clássico que foi muito debatido (Cf Carneiro da Cunha 2009CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. 2009 [1981]. “Escatologia entre os Krahô”. In: ___, M. Cultura com aspas. São Paulo: Cosac Naify. pp: 59-77.; Taylor 1993TAYLOR, Anne-Christine. 1993. “Remembering to Forget: Identity, Mourning and Memory Among the Jivaro”. Man, 28 (4):653.; Viveiros de Castro 2002bVIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2002b. “A imanência do inimigo”. In: VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo, A Inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac e Naify . pp. 267-294.). No caso em questão, discuti a ambivalência da morte dos pajés, mas para quem continua vivo, as mortes dos parentes matados colocam dificuldades. Isto porque produzem ou revelam uma espécie de toxidade anímica (ou potência perigosa) de certos lugares e certos corpos em um momento em que o recurso à interposição da distância encontra-se constrangido.

Esquecer os mortos via ritos funerários é uma tecnologia para se permanecer vivo (Taylor 1993TAYLOR, Anne-Christine. 1993. “Remembering to Forget: Identity, Mourning and Memory Among the Jivaro”. Man, 28 (4):653.; Carneiro da Cunha 1978CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. 1978. Os mortos e os Outros: uma análise do sistema funerário e da noção de pessoa entre os índios Krahó. São Paulo: Hucitec.), e atualmente muitas vezes dispersar para se afastar do morto, ou afastar o morto, significa ir para cidade, “viver no meio dos brancos”, provisoriamente na maioria dos casos. Contudo, as cidades dos brancos estão, como sustentam meus interlocutores, saturadas de espíritos malignos, visto que nelas ocorrem muitas mortes violentas que não são tratadas corretamente pelos não indígenas. Na cidade “nem todo mundo é humano”, foi o alerta de um pajé djeoromitxi que certa vez me perguntou se nós, os brancos, jogávamos os mortos nos rios, sem enterrá-los, numa demonstração da falta de conhecimento dos não indígenas sobre os tratamentos mortuários adequados.

As mortes provenientes de conflitos entre humanos ou que negligenciaram a relação com os Donos de lugares são acontecimentos cujo sentido, na minha descrição, depende da diferenciação que estabelecem entre si. Martins Lima (2019MARTINS LIMA, Clarissa de Paula. 2019. Deus no Céu e os Índios na Terra: morte e vida em uma aldeia Xukuru do Ororubá. Tese de Doutorado, UFSCAR. ) insiste num ponto semelhante sobre os mortos xukuru do Ororubá: diferentes seres que recebem o mesmo nome (espírito) mas cujos “efeitos de existência não são os mesmos” (:3). Essa homonímia equivocada na descrição de um mundo no qual “a sua presença é irrevogável” (:09), resume a tese da autora:

sob a condição de que não entendamos os que morreram como uma classe homogênea de seres, sustento que estes são parte constitutivas da vida na aldeia, por razões que lhes são próprias e que, por esse motivo, não podem ser resumidas ou condicionadas a uma imagem que os vivos produzem a seu respeito (:05).

Tentei adiantar uma percepção aproximada quando tratei dos lugares dos Donos, que se tornam evanescentes do ponto de vista dos vivos corresidentes, sublinhando essa espécie de não condicionamento total dos espíritos e das diferentes vidas post mortem sob os olhares dos vivos. Para os povos do marico, esse problema - o da assimetria entre o ponto de vista dos vivos e dos mortos - se revela outrossim na diferença entre os tipos de corpos (pajés/não pajés) que morrem, os tipos de mortes e seus lugares de destino. Mas há algo nessa relação entre corpos e lugares que ultrapassa um entendimento mais comum a respeito do regime de transformação ameríndia e para o qual Miller (2023MILLER, Joana. Neste volume. Na Linha: os Mamaindê e as linhas telegráficas. https://www.doi.org/10.1590/1678-49442023v29n1e2023008.pt
https://www.doi.org/10.1590/1678-4944202...
) oferece uma interpretação precisa a partir de uma “teoria das linhas nambiquara”:

a transformação, geralmente descrita para os povos ameríndios como um processo de mudança corporal, também pode ser descrita como uma mudança ou troca de caminhos por onde diversos seres transitam, ou seja, como um deslocamento no espaço.

Um território cujo valor é existencial (Zourabichvili 2004ZOURABICHVILI, François. 2004. O Vocabulário de Deleuze. Disponibilização eletrônica: Centro Interdisciplinar de Estudos em Novas Tecnologias e Informação. São Paulo: Unicamp.), em que a delimitação objetiva de um lugar não é exatamente geográfico, mas circunscreve, para cada ponto de vista, o campo do familiar e do vinculante, marcando as distâncias em relação a outrem e protegendo do caos. Se podemos afirmar que, no caso dos povos indígenas, esse campo do familiar e do vinculante é o próprio campo da humanidade, o “território”, quando visto do ponto de vista das mortes e dos mortos, torna-se inseparavelmente material e sobrenatural, isto é, perspectivo (sensu Lima 1996LIMA, Tânia Stolze. 1996. “O Dois e Seu Múltiplo: reflexões sobre perspectivismo em uma cosmologia tupi”. Mana, 2 (2):21-47.).

Assimetrias

Porque os perigos anímicos decorrentes de mortes violentas são inextrincáveis dos lugares onde ocorreram, o parentesco indígena parece ter que lidar com o fato de que a dispersão que toda morte requer encontra hoje seu limite no território dos brancos. Esse território dos brancos avança cada vez mais com voracidade sobre os territórios dos Outros (humanos e mais que humanos) com os quais meus amigos convivem. Como afirmou Kodjowoi:

Nós acreditamos que existe muita doença, não é porque tem ou existe doença, é porque há muito desmatamento e acaba que os Donos da floresta e dos rios estão ficando com raiva, vai ter muita chuva, vai ter muito relâmpago, vai ter erosão, vai ter tudo, porque não se respeita a natureza. [...] o meu pai dizia: “Nós vamos todos adoecer, porque tem tanta queimada, estão queimando várias folhas que são venenosas e nós vamos sofrer as consequências”. E não está distante disso não, a gente realmente sofre as consequências de desmatamento!

“Doenças” não existem. A coextensividade entre corpo e terra, derivada de “uma concepção de território na qual a mesma topografia constitui pessoas e lugares” (Miller 2023MILLER, Joana. Neste volume. Na Linha: os Mamaindê e as linhas telegráficas. https://www.doi.org/10.1590/1678-49442023v29n1e2023008.pt
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), pode ser extraída do relato de Kodjowoi a partir da dificuldade atual em curar os corpos, atrelada às consequências da renovação dos atos de colonização.. O mesmo princípio foi expresso por uma amiga wajuru ao reportar por telefone o diagnóstico de uma pajé para um conflito ocorrido na aldeia. Seu motivo estaria baseado no afeto de raiva do espírito Dono do barranco do rio, depredado por dragas de mineração ilegal de cascalho realizada por não indígenas. As disposições humanas para o conflito seriam pois efeito do afeto deste espírito Dono.

Portanto, se essa coextensividade - entre corpos indígenas e entes da terra - remete frequentemente a um tempo primordial, “antigamente até as rochas eram humanas”, entre meus interlocutores ela não indexa somente um território em um sentido geopolítico, fenomenológico ou transcendental, mas o modo como se vive na e com a terra (Coelho de Souza et al. 2016COELHO DE SOUZA, Marcela . BARBI, Rafael Costa e Santos; FERNANDES, Janaína; LIMA, Daniela; MOLINA, Luísa; OLIVEIRA, Ester; LEWANDOWSKI, Andressa; SANTOS, Julia; MIRAS, Júlia; SOARES-PINTO, Nicole. 2016. T/terras indígenas e territórios conceituais: incursões etnográficas e controvérsias públicas. Projeto de pesquisa. Brasília.). Por meio da etnografia das mortes aqui exposta, é possível dizer que o processo de parentesco - continuar vivo a despeito dos mortos e suas saudades - guarda situações cujo controle depende da relação com as potências da terra, e que tais relações não estão imunes à história de relação com os não indígenas. Esta seria talvez uma (outra) maneira de (continuar a) pensar a contraefetuação do fundo virtual de afinidade cujo processo de construção de corpos humanos é sua atualização (Viveiros de Castro 2002cVIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2002c “Atualização e contra-efetuação do virtual: o processo de parentesco na Amazônia”. In: VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo, A Inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac e Naify . pp. 401-456.), incluindo as vulnerabilidades mútuas que os corpos indígenas apresentam com os entes com os quais convivem. É neste sentido, suponho, que Rose (1996ROSE, Deborah Bird. 1996. Nourishing Terrains: Australian Aboriginal Views of Landscape and Wilderness. Australian Heritage Commission.) enfatiza que a inegável força de sentimento e conexão com a terra dos povos indígenas está menos nos informando sobre “paisagem” do que demonstrando compromissos ônticos e epistêmicos completamente surpreendentes. Trata-se de uma política sobre o que existe e quem/o que pode conhecê-lo.

Depois daquela ocasião na beira do barranco, minha amiga lamentou diversas vezes o fato de não haver mais pajés para curar seu marido, que estaria sofrendo sérias consequências decorrentes da morte do filho deles. Não conseguir dormir e, mais recentemente, depois de sofrer algumas paralisias, ter sido diagnosticado por médicos não indígenas com o mal de Parkinson. “Quando tínhamos pajés fortes [...] mas agora todos foram embora”, é uma comum aporia para indicar e lamentar o descontrole atual de certos eventos corporais e cósmicos decorrentes das mortes de pajés que nasceram no “tempo da maloca” - justamente aqueles que conseguiram “segurar um pouco” as epidemias passadas, e sem os quais todos teriam morrido. A falta de pajés vivos poderosos - como no tempo da maloca - é um signo eleito por meus interlocutores para expressar a relativa perda de sua capacidade de comunicação e /ou diplomacia com as potências da terra - de se fazerem humanos como no “tempo da maloca”. E saber o motivo exato pelo qual esses pajés “se acabaram” é ainda uma questão em aberto - certamente para mim, mas talvez para eles também - ou de uma indecibilidade irremovível.

O fato de o controle das mortes e da coextensividade entre corpo e terra não ser imune à história de relações com os não indígenas nos coloca uma importante questão. Como ser capaz de incluir na teorização antropológica tanto as repressões impostas a esses povos a partir da invasão das Américas quanto as transformações por eles exibidas na continuidade da vida de um coletivo de parentes? Dizendo de outra forma: o que é a catástrofe, ou o estado de catástrofe, do ponto de vista dos povos indígenas com os quais trabalhamos? E como continuam a viver?

Quando perguntei a um respeitado professor djeoromitxi o que ele achava da ideia de fim de mundo, ele me disse prevê-lo não com um incêndio ou um dilúvio (como já ocorreu em tempos primordiais), mas sob ações de raios cada vez mais frequentes e mortais. “O mundo vai acabar com um raio bem forte”, e completou: “só que não temos mais pajés para controlar [...]. Agora não tem mais pajé para fazer isso”. Essa afirmação foi proferida mesmo em frente a seu irmão mais novo, atual pajé da aldeia, pois ambos sabem que esses raios cada vez mais mortais são o urro dos pajés mortos de antigamente. Signo de seu descontentamento com o modo como as coisas têm andado entre os vivos. A possibilidade do fim do mundo se transforma, e na avaliação do professor se dá por meio da assimetria (ou da relação diferencial) disposta entre povos da terra e povos do céu, ou povos humanos e sobre-humanos.

Estou convencida de que para costurar a descrição das mortes violentas com tais assimetrias, que está na base das elaborações de meus interlocutores sobre seu “estado de catástrofe” prolongado desde o contato, seria preciso pensar a questão em termos de um equívoco ontológico, pois ela está muito além de uma simples relação com a ecologia das práticas científicas. Para Stengers (2013STENGERS, Isabelle.. 2013. “The Challenge of Animism”. Indigenous Cosmopolitics: Dialogues about the Reconstitution of Worlds, 20 May 2013, Sawyer Seminar at UC Davis. Disponível em: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ZSqCwA5Mc-4 . Acesso em 20/11/2022
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), precisaríamos pensar “como essa ecologia é estendida às pessoas outras que humanas, à Pachamama ou àquilo que não é 'uma’ montanha, mas ‘esta’ montanha, um ser poderoso a quem os povos indígenas nomeiam, respeitam e temem enquanto tal?”. E, justamente, minha impressão é a de que os lugares e os entes visitados ou curados na experiência dos pajés com os quais convivi não encontram equivalentes em outros lugares, não são replicáveis ou generalizáveis. Essa convivência com “este” ente em específico e não com “um” ente em geral foi retratada em um sonho de pajé que revisita os temas aqui tratados, e com ele gostaria de encerrar a reflexão.

Catástrofe da Sobrenatureza

Estávamos na aldeia Baía das Onças (T.I. Rio Guaporé) reunidos em festa após o trabalho coletivo de limpeza de roça, quando o pajé Neirí se dirige para sua mãe, dizendo que iria contar um sonho da noite anterior. Ele havia visitado Tohõ, o Sol, que o recebeu em sua casa. Sentado em seu banco e portando seu chapéu, Tohõ lhe contou que estava muito envergonhado e pensava inclusive em ir embora. Com sua luz, Tohõ vê tudo o que acontece aqui na terra, e tem observado a recorrência das brigas, violências e mortes entre as pessoas. Aliado a este fato, Tohõ estava realmente aborrecido com “as fábricas, as químicas e as queimadas” dos eré (não indígenas). Toda a poluição estava prejudicando sua visão e o seu “suspiro”, sua respiração. Tohõ, que lá de cima consegue ver tudo aqui embaixo, não estava mais respirando bem. O pajé sonhador tentou argumentar, dizendo-lhe que ele não poderia abandonar os filhos que ele mesmo havia criado. Seu comentário não surtiu muito efeito, pois Tohõ retrucou: “Antes vocês me davam colar e chapéu, me agradavam. Agora, estou ficando doente e envergonhado! Vou embora”. Neirí acordou preocupado e observou que naquele dia Tohõ demorou a aparecer no horizonte e, quando o fez, estava fraco. Em sua exegese, o pajé sublinhou sua preocupação com a possibilidade da partida definitiva do Sol e o início (e/ou a volta) de um mundo completamente escuro e podre. Genocídio e catástrofe ambiental se conectam em um mesmo diagnóstico fornecido por um ente extra-humano.

A catástrofe da sobrenatureza é o modo como Marco Valentim (com. pessoal), a quem agradeço, me instigou a pensar esse sonho. Esta expressão inverte os termos do conceito cunhado pelo autor, “sobrenatureza da catástrofe”, cuja referência é a dinâmica ontológica dos mundos indígenas em sua leitura da potência destrutiva do Ocidente. Dirigindo-se à potência catastrófica do povo cosmopolita - que rege uma “paz policial” - cada vez mais difícil se ser dissimulada em seu próprio discurso, Valentim afirma que ela se faz (se fez sempre) evidente “do ponto de vista de Outrem”. Ele se referia às elaborações de Davi Kopenawa no livro A Queda do Céu. No sentido precisado pelo autor, sobrenatureza é a “experiência da própria divergência e potencial de transformação entre os mundos [...] a experiência política de um ‘equívoco ontológico’” (Valentim 2018VALENTIM, Marco Antônio. 2018. Extramundanidade e Sobrenatureza. Ensaios de ontologia infundamental. Desterro, Florianópolis: Cultura e Barbárie,:28).

Catástrofe da sobrenatureza é também a maneira mais aproximada que encontrei de realizar uma descrição imanente ao evento no barranco, pois precisei visitar tanto a elaboração mítica da relação entre distância espacial e não guerra entre os povos indígenas, seu deslocamento forçado e acomodação em uma nova terra, quanto a relação entre mortes, corpos e lugares. Mas sua complexidade ainda inclui o efeito que os corpos indígenas sofrem diante dos ataques realizados pelos atos de colonização à (sua) terra, isto é, aos entes sobrenaturais Donos dos lugares com os quais coexistem. Penso que essa inclusão é uma possibilidade - nunca definitivamente garantida - de evitar a “maldição da tolerância” referida por Stengers (2013STENGERS, Isabelle.. 2013. “The Challenge of Animism”. Indigenous Cosmopolitics: Dialogues about the Reconstitution of Worlds, 20 May 2013, Sawyer Seminar at UC Davis. Disponível em: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ZSqCwA5Mc-4 . Acesso em 20/11/2022
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) no tratamento teórico de entes com os quais nossos interlocutores coexistem.

Coexistência baseada na responsabilidade que tomam para si na vida na terra, na manutenção da distância a Outrem para a proteção das forças do caos. Reivindicada por eles mesmos, tal responsabilidade não implica a negação do diagnóstico da potência destrutiva do Ocidente. Antes, baseia-se no fato de que o que acontece à terra (aos entes da terra) acontece ao coletivo de parentes e seus corpos, e tudo o que acontece aos corpos indica a agência da terra e seus entes. Podemos pensar em termos de uma vulnerabilidade mútua, que “emerge do engajamento ativo em uma relação responsável, uma relação na qual cada um dos seres aprende a responder por si e à qual aprendem a responder” (Despret 2021DESPRET, Vinciane. 2021. O que diriam os animais? São Paulo: Ubu.:151).

A ideia de catástrofe da sobrenatureza é, assim, uma tentativa de incluir na teorização sobre a continuidade da vida de um povo indígena tanto as repressões a eles impostas a partir da invasão das Américas quanto as transformações/invenções por eles exibidas na continuidade da vida. E isso se dá, eu suponho, por meio da atenção ao modo como indicam os efeitos da colonização na vida dos entes extra-humanos - aqueles com os quais coexistem, e não com todos os entes em abstrato -, que é conjuntamente um modo de apreciação de sua relação com os entes afetados.

Tal modo de apreciação e agência pode ser entendido por meio de um conjunto de axiomas de existência, entre eles: “a distribuição dos efeitos do poder e o poder de afetar um determinado terreno da existência; e as raízes violentas das epistemologias e ontologias liberais ocidentais” (Povinelli 2021POVINELLI, Elizabeth. 2021. Between Gaia and ground. Four axioms of existence and the ancestral catastrophe of late liberalism. Durham and London: Duke University Press.:15). Esses axiomas parecem-me uma rota de entendimento sobre o ato de fazer do choro junto a dois estrangeiros um tratamento mortuário rendido ao filho. A noção de que os protocolos de negociação com as agências extra-humanas nunca estão definitivamente dados, seu êxito ou sua ruína depende dos acontecimentos, da relação com este ou aquele ente, onde o que está em jogo é a capacidade conquistada pelos humanos em afetar um dado terreno de existência, apesar dos constrangimentos violentos impostos pelos não indígenas. Continua-se vivo por meio da atenção com as potências da terra. E essa atenção inclui não só afetos protetivos de um lado e do outro, mas esperteza, manipulação dos eventos, negociações, em suma, capacidade de relação e invenção, em termos de um controle diferenciante (Wagner 1978; Vianna et al. 2022VIANNA, João; FONTES, Afonso & CARDOSO, Ilda. 2022. “A doença do mundo: xamanismo baniwa contra a pandemia”. Mana:Revista de Antropologia Social, Rio de Janeiro, 28 (1): 1-33 - http://doi.org/10.1590/1678-49442022v28n1a201.).

Uma resposta possível à minha perturbação prolongada suscitada pelo choro de minha amiga é justamente o reconhecimento de sua capacidade inventiva, que para mim se assemelha à criação inerente ao ritornelo: “Não há o tempo como forma a priori, mas o ritornelo é a forma a priori do tempo que fabrica tempos diferentes a cada vez” (Deleuze & Guattari 1997DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Felix. 1997. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. Vol. 4. São Paulo: Editora 34.:167-8). Ela canta o filho morto como quem constitui um outro tempo, voltando-se quiçá para o começo dos tempos, respondendo à Djoé a partir do Fora. Tempo atual e tempo mítico se encontram. Valendo-se desse encontro para permanecer viva, isto é, diferente dos mortos, a atenção para os tipos de corpos e de suas respectivas e diferenciais vulnerabilidades diante das potências da terra não comparece menos na invenção dessa mãe enlutada. Afinal, o que eu meu marido estávamos fazendo ali?

Hesitar e escrever: sonhar

Pedi autorização por telefone à minha amiga para escrever sobre aquele dia no barranco, e conversamos longamente sobre os argumentos aqui apresentados. Mantive diálogo sobre os fatos também com Kodjowoi e com vários colegas antropólogos nos quais confiava. Hesitei, demorei anos... e um dia sonhei que uma dessas pessoas me dizia que eu deveria ler um livro chamado O consentimento dos mortos, escrito por uma antropóloga. Se trago esse sonho ao final é porque talvez seja esta uma das provas sob cujos auspícios os “cientistas de campo” precisemos nos colocar de agora em diante: escrever em presença tanto dos vivos quanto dos mortos.

Por mais difícil - impensável, talvez - que isso possa parecer, expõe a etnografia menos como o resultado de uma “coleta de dados” do que como um vínculo entre sujeitos heterogêneos e responsáveis. Indicando ser imprescindível inventar um tempo que comporte novas questões, não exatamente respostas. Inventar como quem canta junto ao Fora, sabendo que a catástrofe só pode ser apreensível com a ajuda de Outrem, o que necessariamente desloca ou intercepta nossos sonhos. “Uma história que abra caminho para os possíveis, que abra o imaginário ao imprevisível e à surpresa, uma história para a qual seja possível desejar uma continuidade” (Despret 2021DESPRET, Vinciane. 2021. O que diriam os animais? São Paulo: Ubu.:266). Não é isso, afinal, que estávamos fazendo no barranco? Desviando da catástrofe por meio de Outrem? Restituindo uma continuidade possível - na vida e quiçá na escrita?

Entre os Djeoromitxi, esses “desvios” por Outrem estão inclusive marcados linguisticamente. Usa-se uma palavra de provável origem makurap13 13 Agradeço ao linguista Hein van der Voort (com.pess.) que me advertiu sobre essa possibilidade de um ponto vista fonológico e considerando ainda o histórico de relação entre as línguas do Complexo do Marico. para designar os não indígenas, assim como evitam chamar a atenção dos maus espíritos por meio de um ardil designativo. A palavra para branco, “ere”, advertiu-me um interlocutor djeoromitxi, tem ligação com os É, palavra djeoromitxi para se falar dos espíritos Hipfopsihi entre o crepúsculo e a aurora, período em que estes estão acordados. Esse mecanismo é utilizado para que não se chame a atenção deles, desta forma impedindo que uma relação seja estabelecida, que se seja atraído ao ponto de vista desses seres malignos.

Se a catástrofe do povo cosmopolita sempre foi evidente do ponto de vista de Outrem (Valentim2018VALENTIM, Marco Antônio. 2018. Extramundanidade e Sobrenatureza. Ensaios de ontologia infundamental. Desterro, Florianópolis: Cultura e Barbárie,), é também imperioso notar que Outrem é um meio mais adequado para se mirar a catástrofe, lidar com ela, continuar por meio dela. O choro de minha amiga é um refrão perturbador, mas vital.

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  • ZOURABICHVILI, François. 2004. O Vocabulário de Deleuze Disponibilização eletrônica: Centro Interdisciplinar de Estudos em Novas Tecnologias e Informação. São Paulo: Unicamp.
  • 1
    As ideias aqui presentes foram primeiramente apresentadas em uma comunicação na UFPR a convite do PET Filosofia, em setembro de 2019, com o tema Terra e Antropoceno. Em 2020, apresentei o texto no Grupo de Trabalho “Cosmo-socio-morfologias ameríndias: entre comparação, contrastes e invenção” na 32ª Reunião Brasileira de Antropologia. Foi também, depois de severas revisões, apresentado em 2021 na Reunião da Antropologia da Ciência e da Técnica, no seminário Antropologia da Catástrofe Diante da Vida, e, em 2022, no Seminário Inovações Ameríndias, do PPGAS/Museu Nacional. Agradeço aos comentários que surgiram nessas ocasiões e a João Vianna pela interlocução duradoura e a leitura crítica das diversas versões. Cristiana Losekann, Karen Shiratori, Oiara Bonilla, Marcela Coelho de Souza, Alyne Costa, Íris Moraes Araújo, Eduardo Viveiros de Castro e Gilberto Azanha fizeram comentários críticos e preciosos aos manuscritos. A responsabilidade pelo texto é inteiramente minha.
  • 2
    E está registrada, bem como parte da interpretação que a segue, em Soares-Pinto (2014SOARES-PINTO, Nicole. 2017b. “Pequeno manual para se casar e não morrer: o parentesco djeoromitxi”. Mana (UFRJ, impresso), v. 23:519-549.).
  • 3
    Beraparitxi está também no caminho dos mortos (hino wi, na língua djeoromitxi). É dele que os recém-chegados devem se desviar para chegar até o Céu, sendo fortes o suficiente para não serem seduzidos pelo seu chamado e capturados por seus longos braços.
  • 4
    No início do século, os Tupari eram cerca de 3 mil pessoas; em 1934, quando receberam a visita do antropólogo Snethlage, havia somente 250 indivíduos; em 1948, segundo Franz Caspar, havia 200 e, em seu retorno em 1955 (meses após uma epidemia de sarampo), apenas 66 pessoas. Na aldeia Ricardo Franco, eu conheci o último velho de um segmento wajuru (os Cotia), sem descendentes, também já falecido, bem como vi um segmento makurap se extinguir.
  • 5
    Remeto o leitor ao interessante artigo de Vianna et al. (2022VIANNA, João; FONTES, Afonso & CARDOSO, Ilda. 2022. “A doença do mundo: xamanismo baniwa contra a pandemia”. Mana:Revista de Antropologia Social, Rio de Janeiro, 28 (1): 1-33 - http://doi.org/10.1590/1678-49442022v28n1a201.) inspirado também nos conceitos de Wagner e que trata da ação inventiva de um benzedor baniwa no contexto da pandemia de coronavírus.
  • 6
    Para detalhes sobre a constituição de lugares, ver Soares-Pinto (2017aSOARES-PINTO, Nicole. 2017a. “De Coexistênccias: sobre a constituição de lugares djeoromitxi”. R@u, 9 (1):61-82, jan.-jun.). Analisei a “mistura” do ponto de vista das teorias nativas da consanguinidade, casamento e da constituição da pessoa (Soares-Pinto 2017bSOARES-PINTO, Nicole. 2017b. “Pequeno manual para se casar e não morrer: o parentesco djeoromitxi”. Mana (UFRJ, impresso), v. 23:519-549.). Aqui o ponto é sua relação com a reterritorialização que ela inscreve.
  • 7
    Clastres abandona a referência aos Guayaki - para os quais, dizia o autor, a vingança era um mecanismo homeostático - ao estabelecer a contiguidade espacial como dispositivo base da relação funcional positiva entre a guerra e a intencionalidade coletiva das chamadas sociedades primitivas. Esse abandono não parece ser fortuito. Talvez porque a essência una e indivisa das sociedades contra o Estado e os efeitos dispersivos (metaestáveis) da guerra dependam, justamente, da i-limitação de seu território - que, sabemos, não estava mais disponível aos caçadores nômades a oeste do rio Paraguai à época da etnografia de Clastres. Acossados e caçados pelos beeru (não indígenas) em seu próprio território, os Aché Guatu se viram obrigados a viver sob a proteção de um deles, nos fundos de uma fazenda em Arroyo Moroti: “Mais que abrigo, a floresta, para eles, tinha se tornado prisão” (Clastres 1995CLASTRES, Pierre. 1995 [1972]. Crônica dos Índios Guayaki: o que sabem os Aché caçadores nômades do Paraguai. Rio de Janeiro: Editora 34.:48).
  • 8
    Recentemente, Machado (2015MACHADO, Ana Maria. 2015. “‘ Lutamu’: relações interétnicas e protagonismo feminino do Papiu no contexto de um conflito intercomunitário yanomami ”. Dissertação de Mestrado, PPGAS/UFSC.) etnografou a guerra yanomami no contexto de suas relações com os brancos, e a forma como os Yanomami têm reinventado seu “sistema de agressão”.
  • 9
    Na época deste relato (2008MORAES, Bruno. 2017. Do corpo ao pó: crônicas da territorialidade kaiowá e guarani nas adjacências da morte. São Paulo: Elefante. ) de uma mãe enlutada por um filho que morreu vítima das ações desses espíritos, ainda estavam vivos os cinco grandes pajés capazes de chupar as doenças e expeli-las em forma de pedra, que vieram das malocas dos afluentes do Guaporé. Apenas um havia falecido. Todos são atualmente falecidos. Adiante tratarei dos problemas suscitados pela morte dos grandes pajés.
  • 10
    Uma cobra de duas cabeças apareceu na chichada oferecida por uma amiga em que eu estava presente e só pôde ser morta pela mais velha da aldeia, ante sua potência anímica. A dona da chicha se questionou, a mim se dirigindo muito assustada, se isso não se devia ao fato de seu irmão ter sido morto na aldeia em que morava muito longe dali. Dissuadiu-se logo em seguida, lembrando que sua mãe já havia contratado um pajé para “juntar o sangue”. A festa arrefeceu logo em seguida. A consternação dos presentes nesta ocasião contrasta, em meu pensamento, com a trivialidade com que as pessoas tratam os momentos em que os pajés se retiram das festas avisando que irão receber em outro local os parentes já mortos que acabaram de chegar.
  • 11
    Embora suas “armas internas” precisem ser retiradas por outro pajé durante seu velório, nos casos que acompanhei todos os pajés permaneceram armados no post mortem. Ver Soares-Pinto (2015SOARES-PINTO, Nicole. 2015. “Como possuir uma “taboquinha”: sobre a composição corporal dos pajés djeoromitxi”. Campos, 16 (1):75-98.) para detalhes desse processo e a constituição dos corpos dos pajés do Complexo do Marico.
  • 12
    Agradeço a um(a) do(a)s pareceristas por formular a questão nesses termos e me instigar a incorporar a escatologia dos povos do Marico em um debate mais amplo com a etnologia indígena. Proposta que por falta de espaço e de competência só poderei atender parcialmente.
  • 13
    Agradeço ao linguista Hein van der Voort (com.pess.) que me advertiu sobre essa possibilidade de um ponto vista fonológico e considerando ainda o histórico de relação entre as línguas do Complexo do Marico.
  • Financiamento

    A autora agradece o apoio financeiro da FAPERJ; Número de Processo: E-26/200.120/2016

Editado por

Editora-chefe:

María Elvira Díaz Benítez

Editor Associado:

John Comerford

Editora Associada:

Adriana Vianna

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    09 Mar 2022
  • Aceito
    04 Jan 2023
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