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Incest and influence: the private life of a Bourgeois England

RESENHAS

KUPER, Adam. 2009. Incest and influence: the private life of a Bourgeois England. Cambridge e Londres: Harvard University Press. 296 pp

Christiano Key Tambascia

Pesquisador do Núcleo de Estudos de Gênero (PAGU) - Unicamp

O mais recente livro de Adam Kuper, Incest and influence, coloca em evidência uma antiga preocupação antropológica acerca das regras de parentesco na constituição da estrutura da vida social. Entretanto, menos que uma análise de costumes, comportamentos e normas de aliança em sociedades que usualmente são objeto de atenção dos antropólogos - sejam elas as chamadas sociedades "primitivas" ou "tradicionais" - Kuper assinala, acertadamente, a íntima relação que a reflexão sobre o parentesco estabelece com a própria concepção dos antropólogos sobre o que, de fato, constituiria a "civilização" (compreendida, geralmente, em termos comparativos com o que seria considerado "selvagem").

Ao fazer da burguesia britânica vitoriana o foco de seu estudo, o autor realiza um interessante exercício de empatia etnográfica - sem exatamente tornar exóticas as estratégias de casamento dessa burguesia, mas ressaltando a relevância da análise antropológica voltada para a sociedade ocidental.

Tal procedimento talvez pudesse causar certo estranhamento inicial - mesmo que seja possível argumentar a favor de uma "etnografia do passado", como se houvesse uma correlação entre a distância histórica e a dos territórios que se constituíram como o campo de trabalho dos antropólogos. Talvez o leitor também fique surpreso com o novo tema de suas pesquisas (uma etnografia da aliança na sociedade vitoriana) - em parte pelo fato de Kuper aparentemente se distanciar das preocupações africanistas ou sobre a história da disciplina (ainda que um leitor mais atento de sua obra perceba que o antropólogo já havia se aventurado, em certa medida, na investigação sobre a relação entre incesto e a constituição da "autoridade temporal" das ciências humanas, evidenciada na sua preocupação sobre os costumes "primitivos", a mentalidade e mesmo os estudos bíblicos), mas também por tomar como questão uma das bases da antropologia moderna que parece sofrer profundas transformações com as críticas pós-estruturalistas desenvolvidas, por exemplo, nos recentes estudos sobre gênero e família. Afinal, as discussões sobre tecnologias de reprodução, novos arranjos familiares e controvérsias sobre o corpo e a autonomia do indivíduo pareciam relegar os debates clássicos sobre estruturas de parentesco para os cursos de história da antropologia (ainda que atualmente esteja em curso um repensar sobre as teorias de parentesco para lidar com exemplos etnográficos contemporâneos).

Em 2007, Kuper já havia discorrido sobre o assunto na palestra anual Huxley que, naquele ano, coube ao sul-africano ministrar e que seria publicada pelo The Royal Anthropological Institute Journal, em 2008 (vol. 14), sob o sugestivo título "Changing the subject - about cousin marriage, among other things". Nesta palestra Kuper já iria delimitar o objeto de investigação que culminaria no livro em questão. Ou seja, por meio dos exemplos endogâmicos de alguns eminentes "clãs" britânicos, como os Darwin-Wedgwood, realizar uma contextualização da discussão antropológica sobre parentesco e relacioná-la às concepções vitorianas sobre o casamento endogâmico. Segundo o autor: "[...] meu argumento neste livro é que o casamento dentro da família - entre primos, ou entre afins - foi uma estratégia característica da nova burguesia, e que teve muito a ver com o sucesso de alguns dos mais importantes clãs vitorianos" (:27).

Na investigação da "civilizada" burguesia vitoriana estariam, portanto, muitas das pistas, segundo Kuper, para se compreenderem as concepções sobre o incesto naquela sociedade, as quais também constituiriam uma das bases teóricas de uma disciplina que estava em processo de consolidação: "[Essas questões] foram tomadas por um novo grupo de especialistas, os antropólogos. O incesto se tornou uma particular obsessão entre os aliados de Darwin na Sociedade Etnológica" (:101).

Kuper inicia o livro com uma deliciosa história sobre como Charles Darwin resolve se casar, de uma maneira que se mostrou não exatamente inédita (ou a última) entre os Darwin e os Wedgwood, ilustres famílias burguesas com conexões com a comunidade científica britânica. Charles Darwin acabaria por se casar com Emma Wedgwood, filha do irmão de sua mãe - sua prima cruzada matrilinear, de primeiro grau, portanto. Na verdade, ressalta o autor, as relações entre as famílias apenas estavam se fortalecendo com o casamento, uma vez que um irmão de Emma já havia se casado com uma irmã de Charles, e a própria Emma e outras de suas irmãs já haviam sido cortejadas por outro irmão de Charles (outros casamentos seriam realizados nas gerações subsequentes).

Contudo, se, em um primeiro momento, as estratégias dessas famílias da crescentemente consolidada burguesia vitoriana poderiam ser explicadas como uma tentativa de constituir laços que possibilitassem vantagens econômicas nos negócios de que faziam parte, outros fatores teriam de ser considerados. Kuper lembra, em contraste, a influência exercida pelas mães e pelas relações entre irmãos no aspecto sentimental dos arranjos conjugais (ainda que pudessem ser também motivos de atrito e ciúmes). Afirma Kuper: "[...] seguramente, expectativas mais difusas influenciavam a escolha de maridos e esposas. Interesses de outro tipo estavam envolvidos. Poder-se-ia, usualmente, também contar com parentes para ajudar um ao outro em suas carreiras e para oferecer companhia, compreensão e confiança. Os benefícios de cada casamento eram multiplicados na medida em que famílias inteiras eram atraídas para um novo arranjo de relações" (:135).

Haveria, assim, uma afinidade de valores entre certos grupos naquele período: fosse pela própria configuração das empresas familiares e dos estatutos de responsabilidade societária, fosse pela consciência de uma nascente mentalidade burguesa (que se dissociava dos privilégios da Corte e das camadas populares no Reino Unido), fosse, por fim, pela dinâmica da vida familiar, que permitia que indivíduos que compartilhassem interesses em comum dessem às famílias uma oportunidade, vislumbrada no casamento endogâmico, de garantir mútua assistência e potencializar carreiras na vida pública (geralmente por indicações de membros já estabelecidos em posições de destaque na política, academia, comércio ou no mundo das artes).

O que é interessante notar no livro de Kuper é que existe uma correlação entre uma espécie de modelo de aliança e linhagem entrevisto nos casamentos da família burguesa urbana e industrial com as estratégias empregadas por cada "clã" burguês na constituição de redes de parentesco e colaboração (que exibia diferenças em relação à endogamia da realeza e também do restante da população). Afinal, havia algo de recorrente nos arranjos endogâmicos (preferencialmente pelo casamento dos filhos de irmãos para garantir a transmissão de status e propriedade pela linha paterna), demonstrado, interseccionalmente, pelas políticas da sexualidade acerca da legalidade dos casamentos, mas também pelas preocupações da nova intelligentsia científica com o risco de fortalecimento de traços genéticos defeituosos pelas sucessivas alianças endogâmicas e pelas tramas dos romances que tratavam da questão do casamento entre primos - afinal, este estilo literário havia se tornado a forma predileta de literatura dessa burguesia educada. Não obstante, cada rede de relações analisada no livro dispunha de suas próprias motivações para controlar o ingresso de estranhos na família, bem como para contornar suas rusgas e ciúmes. Estes grupos, fossem eles os cientistas Darwin-Wedgwood, os banqueiros Rothschild, os políticos reformistas de Clapham ou os intelectuais e artistas de Bloomsbury, tinham uma percepção dos interesses comuns que desejavam defender por meio das redes de amizades e casamentos, e "poderiam, apropriadamente, ser descritos como seitas, ou mesmo cultos. As fronteiras da rede eram rigorosamente policiadas. Relações pessoais dentro do grupo tinham algo de sagrado" (:240).

Kuper, em seu estilo notadamente ácido e irônico, desfila pelas páginas de seu livro diagramas de parentesco, descreve os inúmeros casamentos sobrepostos entre famílias (que acabam por reforçar seus laços), faz uso de estatísticas de prevalência de casamentos endogâmicos, analisa os romances dos principais autores do período (de Jane Austen às irmãs Brontë), em uma vertiginosa compilação das conexões entre algumas das mais influentes personalidades britânicas que parece deixar o leitor com a impressão de que se poderia tratar de uma etnografia de alguma pequena sociedade africana. Mas a mensagem está lá: a obsessão vitoriana com incesto, endogamia e genealogia seria reflexo e causa de uma profunda transformação política e econômica da sociedade britânica e do desenvolvimento de uma nova elite intelectual, relacionada, por sua vez, às estratégias de distinção e status e às chances de defender moralidades partilhadas.

O livro é dividido em três abordagens: a discussão em torno do incesto na sociedade vitoriana; a da mentalidade familiar sobre o casamento endogâmico e as relações entre estes arranjos e a constituição de "clãs" intelectuais. Uma das partes mais estimulantes do livro, a propósito, refere-se ao esboço de uma análise da densa rede de relações estabelecidas pelo grupo de Bloomsbury, herdeiro direto das alianças dos intelectuais formados em Cambridge no século XIX. As diferenças com os outros exemplos fornecidos são muitas, mas ali estão os princípios de reforma e modernidade que permitiram que os artistas e intelectuais de Bloomsbury se vissem e fossem vistos como um grupo distinto. A aparente promiscuidade e as relações homossexuais dos "bloomsberries", em um momento em que se passava da mentalidade vitoriana para a eduardiana, colocam em evidência a dissolução do modelo de casamento endogâmico que havia formado, ao longo de gerações, os "clãs" burgueses. A experiência da Primeira Guerra, a queda da taxa de natalidade, as crises econômicas do começo do século, todas estas questões contribuíram para o fim do casamento entre primos e afins. Entretanto, a relevância do fenômeno do período anterior está assegurada. Para quem imagina que tudo não passa de mera curiosidade histórica ou um exercício estéril de construção de modelos estruturais de aliança, resta pensar na ainda contemporânea preocupação com as desvantagens genéticas de casamentos endogâmicos e nas percepções sobre incesto e moralidade dos indivíduos, no Reino Unido e alhures.

Ao tomar para si a tarefa de responder sobre a "naturalidade" ou a "culturalidade" do tabu do incesto, a própria genealogia da disciplina antropológica está inscrita nesta vigorosa história vitoriana.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Ago 2011
  • Data do Fascículo
    Abr 2011
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