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ECONOMIA POLÍTICA DA SAÚDE NO TERRITÓRIO FRANCÊS E A PRODUÇÃO FARMACÊUTICA GLOBALIZADA

ECONOMIE POLITIQUE DE LA SANTÉ DANS LE TERRITOIRE FRANÇAIS ET LA PRODUCTION PHARMACEUTIQUE MONDIALISÉE

RESUMO

Abordamos a produção de biomedicamentos no território francês como um circuito espacial produtivo. Esse circuito está entre outros que compõem o complexo industrial da saúde (CIS), conceito que permite entender o contexto espacial e histórico para a análise da economia política da saúde na França. Inicialmente, justificamos o emprego do conceito de complexo industrial da saúde, e não complexo médico-industrial, como é comumente utilizado na França e em países anglo-saxões, e sua relação com a economia política da saúde. Depois, explicamos por que o circuito espacial produtivo é mais adequado a uma abordagem geográfica desse complexo industrial do que cadeia produtiva. Por fim, tratamos da produção de biomedicamentos e, mais especificamente, da importância que assume os Contract Development and Manufacturing Organization (CDMO) na produção dessa tecnologia para atender aos grandes laboratórios farmacêuticos, favorecendo a produção global desse ramo industrial.

Palavras-chave:
complexo industrial da saúde; circuito espacial produtivo; biomedicamentos; economia política da saúde; França

RÉSUMÉ

Nous envisageons la production de biomédicaments dans le territoire français comme un circuit spatial productif. Celui-ci compte parmi les autres circuits qui composent le complexe industriel de la santé (CIS), concept qui nous permet de comprendre le contexte spatial et historique afin d'analyser l'économie politique de la santé en France. Tout d'abord, nous justifions l'emploi du concept de complexe industriel de la santé, et non celui de complexe médico-industriel, couramment utilisé en France et dans les pays anglo-saxons, ainsi que sa relation avec l'économie politique de la santé. Ensuite, nous expliquons pourquoi le circuit spatial productif est davantage approprié à une approche géographique de ce complexe industriel plutôt que la chaine de production. Enfin, nous évoquerons la production de biomédicaments et, plus particulièrement, l'importance de la Contract Development and Manufacturing Organization (CDMO) dans la production de cette technologie dans la perspective de répondre aux besoins des grands laboratoires pharmaceutiques, favorisant ainsi la production globale de cette branche de l'industrie.

Mots-clés:
complexe industriel de la santé; circuit spatial productif; biomédicaments; économie politique de la santé; France

ABSTRACT

We approach the production of biomedicines in France as a productive spatial circuit. This circuit is part of the health-industrial complex (HIC), a concept that helps to explain the spatial and historical context to analyze the political economy of health care in France. Initially, we justify the use of the concept of the health-industrial complex, rather than the medical-industrial complex, as is commonly used in France and in Anglo-Saxon countries, and its relation to the political economy of health care. Then, we explain why the productive spatial circuit is more appropriate to a geographic approach of this industrial complex than the productive chain. Finally, we deal with the production of biomedicines and, more specifically, the importance of the Contract Development and Manufacturing Organization (CDMO) in the production of this technology to serve the major pharmaceutical laboratories, favoring the global production of this industrial branch.

Keywords:
health industrial complex; productive spatial circuit; biomedicines; political economy of health care; France

INTRODUÇÃO

A linha de raciocínio aqui proposta é a de que existem, em alguns países, complexos industriais da saúde (CIS) constituídos por circuitos espaciais produtivos, isto é, com especializações industriais voltadas ao fornecimento de produtos relativos ao trato da saúde humana e que têm presença nas diferentes escalas geográficas - lugar, região, mundo - devido à dimensão global que a produção no setor atingiu nas últimas décadas.

Segundo Santos (1988)SANTOS. Metamorfoses do espaço habitado. São Paulo, Nobel, 1988., os circuitos espaciais produtivos são sistemas de produção globais, e uma forte evidência disso encontramos nos crescentes fluxos de insumos produtivos entre as indústrias em todo o mundo, e não apenas fluxos de produtos acabados entre países (ANTAS Jr., 2019ANTAS Jr., R. M. A articulação dos aconteceres na construção dos fluxos globais: notas sobre o circuito espacial produtivo de medicamentos na França e no Brasil. 2019. Inédito.). No Brasil, um caso que se revela paradigmático é o do circuito de agentes produtivos e não produtivos envolvendo o laboratório farmacêutico global Sanofi e os fluxos dirigidos ao território francês. Em 2016, essa empresa liderava o ranking das empresas de medicamentos com maior faturamento no mercado farmacêutico brasileiro e mundial.

Aqui, a expressão insumo produtivo designa um produto manufaturado cuja finalidade é a de ser empregado em outra produção industrial, para produtos finais ou não. Esse é um dado importante para compreender o modus operandi da produção industrial global, isto é, dos circuitos espaciais produtivos. Assim, os dados selecionados de exportação e importação circunscrevem apenas produtos que passaram por algum tipo de transformação industrial e, portanto, de agregação de valor. Matérias-primas oriundas da agricultura ou de extração mineral e destinadas diretamente à exportação ou importação não constam no universo analisado.

A existência, consolidação e expansão do CIS depende diretamente das ações dos Estados, ainda que estes possam não participar diretamente com empresas estatais. No entanto, os circuitos espaciais produtivos se desenvolveram como lógica das corporações para ação em escala planetária e que submete e orienta a produção de empresas de menor porte segundo suas estratégias de ação nos diferentes mercados. Mas não se trata de realidades independentes e autônomas ou, ao contrário, conflitantes. Na economia política da saúde, constata-se forte simbiose entre Estado e as corporações de base industrial.

COMPLEXO INDUSTRIAL DA SAÚDE E ECONOMIA POLÍTICA DA SAÚDE

A construção conceitual de uma estrutura industrial complexa, especificamente voltada à produção de insumos médico-hospitalares, já vem sendo formulada há décadas em diferentes países e, pelo menos até fins dos anos 1980, o comando dessa estrutura sempre foi identificado com EUA/Canadá, Europa Ocidental e Japão, a chamada "tríade". Ainda que indústrias eletroeletrônicas e principalmente laboratórios farmacêuticos estivessem presentes em grande número de países, a identificação de um complexo médico-industrial robusto e bem ramificado se restringia a esses territórios (RELMAN, 1980RELMAN, A. The New Medical-Industrial Complex, New England Journal of Medicine (303) 17, 23 October, 1980.; BROMBERG, 1984BROMBERG, M. The Medical-Industrial Complex: our national defense. Journal of Medicine, New England, 309(21): 1314-1315, 24 Nov. 1983.; STARR, 1983STARR, P. The Social Transformation of American Medicine. New York: Basic Books, 1983., 1985STARR, P. The New Entrepreneurialism in Health Care, The New York Academy of Medicine (61) 1, January/February, 1985.).

O quadro atual não é exatamente o mesmo, embora não se possa afirmar que esteja radicalmente alterado, uma vez que esses países ainda são os líderes mundiais dessa especialização produtiva. No caso do ramo de laboratórios farmacêuticos, entre os dez maiores mercados farmacêuticos em 2016, estavam EUA/Canadá com 49,3%, Europa Ocidental com 15,4% (representada apenas por Alemanha, França, Itália, Reino Unido e Espanha) e Japão com 8,4%. A novidade entre os dez maiores mercados foi o aparecimento da China, com 7,7%, e do Brasil, com 2,4%, que em 2006 não constavam entre os dez maiores desse ranking.

Tabela 1
Principais mercados farmacêuticos no mundo em 2016

Mas a grande mudança ocorrida no complexo médico-industrial como um todo se deve sobretudo ao engendramento da produção stricto sensu no processo de globalização, o que deu nova importância e força aos lugares bem preparados para acolher indústrias do setor e/ou com localização estratégica para alcançar novos mercados (SCOTT e STORPER, 1987SCOTT, A. J., and STORPER, M. High technology industry regional development: a theoretical critique and reconstruction. International Social Science Journal 112, 215-232, 1987., 220-222). No caso da indústria especializada na produção de insumos médico-hospitalares, o que se viu foi um maior espraiamento em todo o mundo a partir da década de 1990.

Evidentemente, a disseminação de unidades produtivas pelos países não é homogênea, pois há territórios fora do núcleo citado com maior ou menor presença de plantas industriais instaladas antes do período de globalização, e esse é um dado importante na decisão das empresas para ampliarem seu leque de ação. Ou seja, os ramos do complexo industrial da saúde se expandiram por todo o mundo, mas alguns países conheceram o processo mais intensamente.

Um bom exemplo disso é o Brasil. Mesmo nas décadas de 1970 e 1980, já havia análises que identificavam a existência de um complexo médico-industrial no território (CORDEIRO, 1980CORDEIRO, H. A indústria da saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1980., 1984), mas sem paralelos com a "tríade". No entanto, nos anos 1990, quando o processo de globalização deixa de estar restrito aos setores financeiro e comercial e chega à produção industrial, o quadro muda bastante (SANTOS, 1988SANTOS. Metamorfoses do espaço habitado. São Paulo, Nobel, 1988.; ANTAS Jr., 2017aANTAS Jr., R. M. A economia política da saúde no território brasileiro e seu complexo industrial: uma análise a partir do conceito de circuito espacial produtivo. Sociedade & Natureza, Uberlândia, 29 (2): 243-256, nov. 2017. ISSN 1982-4513. Disponível em: .), particularmente tendo a indústria da saúde como referência, uma vez que se intensificaram bastante suas atividades produtivas no território nacional.

É devido a essa grande mudança de parâmetros da indústria de insumos médico-hospitalares no território brasileiro que Gadelha (2003)GADELHA, C. A. G. O complexo industrial da saúde e a necessidade de um enfoque dinâmico na economia da saúde. Ciência e Saúde Coletiva; 8:521-35, 2003. desenvolve o conceito de CIS entendido como um arranjo produtivo e organizacional do setor mais bem desenvolvido e disciplinado e com mais laços institucionais com o Estado. De fato, o que inicia um novo período no setor é a emergência de uma divisão territorial do trabalho de maior complexidade tecnológica e mais fragmentada espacialmente do que em momentos anteriores. Isso não só no Brasil, que conhecia parcialmente essa intensificação que vem até o presente, mas sobretudo nos principais países produtores.

Causa alguma estranheza o fato de raramente encontrarmos referências ao conceito de CIS na produção acadêmica francesa ou anglo-saxã. O que se observa de um modo geral é que essa estrutura produtiva ainda é denominada Medical-Industrial Complex ou Complexe médico-industriel, embora algumas análises recentes trabalhem com uma concepção renovada (BALON et al., 2018BALON, R., BERESIN, E. V., e GUERRERO, A. Medical-Education-Industrial Complex? Academic Psychiatry, 42: 495-497, 2018.), diferente dos momentos iniciais dessa elaboração, quando o tema emergia como descoberta e frequentemente era tratado como denúncia da influência das empresas capitalistas na corporação médica e dos encaminhamentos de combate às doenças pela excessiva medicalização (DUPUY E KARSENTY, 1974DUPUY, J. P., and Karsenty, S. L'invasion pharmaceutique. Paris: Éditions du Seuil, 1974.; SALOMON, 1998SALOMON, J. C. The medico-industrial complex - Some seldom asked questions. November, Cancer Journal 11(6):268-271, 1998.).

Aqui chamamos atenção para essas denominações porque não se trata de uma questão meramente semântica. Mesmo que as duas elaborações justifiquem sua definição baseadas na formulação do conceito de complexo industrial-militar (RELMAN, 1980RELMAN, A. The New Medical-Industrial Complex, New England Journal of Medicine (303) 17, 23 October, 1980.; STARR, 1983STARR, P. The Social Transformation of American Medicine. New York: Basic Books, 1983.; MENDONÇA; CAMARGO Jr., 2012MENDONCA, A. L. O. e CAMARGO Jr., K. R. Complexo médico-industrial/financeiro: os lados epistemológico e axiológico da balança. Physis, Rio de Janeiro, v. 22, n. 1, p. 215-238, 2012. http://dx.doi.org/10.1590/S0103-73312012000100012.
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; GADELHA, 2006GADELHA, C. A. G. Development, health-industrial complex and industrial policy. Revista de Saúde Pública, 40 (spe), 11-23, 2006. https://dx.doi.org/10.1590/S0034-89102006000400003
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; VIANNA, 2002VIANNA, C. M. M. Estruturas do Sistema de Saúde: do Complexo Médico-industrial ao Médico-financeiro. PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 12(2):375-390, 2002 entre outros), a definição de complexo industrial "da saúde", e não "médico", indica que a formação desse setor econômico não se restringe mais à relação dos grandes laboratórios farmacêuticos e/ou de equipamentos eletroeletrônicos com a corporação médica, e sim ao conjunto de políticas púbicas de saúde, isto é, refere-se a uma economia política da saúde na qual o Estado é elemento chave:

[...] o complexo industrial da saúde pode ser delimitado como um complexo econômico [...] a partir de um conjunto selecionado de atividades produtivas que mantêm relações intersetoriais de compra e venda de bens e serviços [...] e/ou de conhecimentos e tecnologias (ERBER, 1992ERBER, FS Desenvolvimento industrial e tecnológico na década de 90 - uma nova política para um novo padrão de desenvolvimento. Ensaios FEE 13(1):9-42, 1992.). Além disso, seguindo uma tradição de economia política, que considera o próprio mercado um espaço institucionalmente construído, esse conjunto particular de setores econômicos está inserido num contexto político e institucional bastante particular dado pelas especificidades da área da saúde. Como decorrência da convergência de setores de atividades, empresas, instituições públicas, privadas e da sociedade civil para um determinado espaço econômico de geração de investimento, consumo, inovação, renda e emprego, conforma-se um complexo industrial (no sentido de atividades que seguem o padrão industrial mesmo que formalmente pertençam ao setor de serviços) como uma base concreta e empírica para a delimitação de um locus analítico e normativo determinado (GADELHA, 2003GADELHA, C. A. G. O complexo industrial da saúde e a necessidade de um enfoque dinâmico na economia da saúde. Ciência e Saúde Coletiva; 8:521-35, 2003., p. 523/524).

O Quadro 1 é uma formulação de Gadelha em dois artigos produzidos em momentos distintos (2003 e 2006) para representar as principais características do CIS. Nesse esquema explicativo, introduzimos alguns elementos tais como os retângulos laterais (cinza escuro), com maior detalhamento das formas da presença do Estado e de serviços privados responsáveis pela construção de uma cooperação capitalista global, além de outras mudanças menos significativas. Expusemos mais minuciosamente tais mudanças em outro artigo (ANTAS Jr., 2018ANTAS Jr., R. M., e THERY, H. O complexo industrial da saúde no território francês: uma análise do circuito espacial produtivo de biomedicamentos. 2018. Inédito.).

QUADRO 1
Esquema geral do complexo industrial da saúde (CIS)

Importa ressaltar que as intervenções no Quadro I foram feitas porque a análise dos circuitos espaciais produtivos desse complexo apontou algumas lacunas quando se busca entender não só a existência de um CIS em dado território nacional, mas particularmente a dimensão global que apresenta esse tipo de produção industrial cuja divisão territorial do trabalho engloba os aparatos produtivos presentes em diferentes países.

No concernente à produção industrial, a proposta original de Gadelha (2003GADELHA, C. A. G. O complexo industrial da saúde e a necessidade de um enfoque dinâmico na economia da saúde. Ciência e Saúde Coletiva; 8:521-35, 2003., 2006)GADELHA, C. A. G. Development, health-industrial complex and industrial policy. Revista de Saúde Pública, 40 (spe), 11-23, 2006. https://dx.doi.org/10.1590/S0034-89102006000400003
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pressupõe a produção com enfoque estritamente econômico e concebe a produção a partir de cadeias produtivas e clusters. Mas, para uma abordagem espacial, como é próprio da geografia, é fundamental observar conjuntamente o processo histórico de formação desse complexo, assim como o conjunto de agentes que coexistem para a realização dessa produção especializada que, apesar da enorme importância e do volume atingido atualmente, nem sempre é analisada com as particularidades do setor de saúde e as demandas específicas que ele impõem às tecnologias de produção voltadas a esse campo.

Daí que não seja possível ignorar a economia política da saúde (VIANA et al., 2007VIANA, A. L., SILVA, H. P., and ELIAS, P. E. Economia política da saúde: Introduzindo o debate. Divulgação em Saúde para Debate, Rio de Janeiro, n. 37, p. 7-20, January/ 2007.) e seu dado fundamental, que é a circularidade envolvendo a produção, a circulação e o consumo de produtos para atender demandas do trato à saúde humana. Assim, é necessário considerar as localizações industriais e a centralização da produção em determinadas áreas do território, mas também a diversidade de empresas relativas a uma especialização produtiva, a concentração do capital e os respectivos lugares de comando no país e no mundo.

Aqui, é fundamental entender o CIS segundo os circuitos espaciais produtivos, pois, ao mesmo tempo em que é um conceito instrumental para orientar a análise considerando o território e a formação socioespacial da qual faz parte, implica que se analise o contexto mais amplo, da ação global dos agentes econômicos mais poderosos. Por serem globais, tais circuitos permitem que se reconheçam alguns centros de comando externos aos territórios nacionais de determinadas especializações produtivas. Comandos que podem ter sua força tanto pela concentração do capital operado por determinadas empresas globais como por inovações técnico-científicas que são empreendidas num ou noutro país com patentes asseguradas a institutos e universidades.

Neste último aspecto constata-se o papel crucial do Estado. Por mais que as grandes empresas invistam em ciência e tecnologia, há sempre determinadas formas pelas quais o poder público fomenta a inovação, além de outros papéis do Estado na construção de um complexo industrial da saúde.

A maior parte destas considerações tem como base análises empreendidas por economistas, geógrafos e historiadores especialistas em saúde pública, entre outros, preocupados com a formação e a atuação das empresas no território brasileiro em suas respectivas produções para o setor de saúde (GADELHA, 2006GADELHA, C. A. G. Development, health-industrial complex and industrial policy. Revista de Saúde Pública, 40 (spe), 11-23, 2006. https://dx.doi.org/10.1590/S0034-89102006000400003
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; VIANA et al., 2007VIANA, A. L., SILVA, H. P., and ELIAS, P. E. Economia política da saúde: Introduzindo o debate. Divulgação em Saúde para Debate, Rio de Janeiro, n. 37, p. 7-20, January/ 2007.).

Quando analisamos a economia da saúde no território francês, podemos observar claramente todas essas relações que definem o CIS. O consumo público e privado, os incentivos à produção, a criação de parques de biotecnologia e a implementação de plantas industriais, entre outros fatores, mostram que não se trata apenas de uma competição entre empresas que investem em inovação e em expansão da atividade produtiva fundadas na "pura" lógica de mercado e na livre concorrência.

Antes, vemos o Estado organizando o que cabe a cada agente produtivo e, conforme determinado tipo de produto que venha a corresponder às garantias de soberania no campo da saúde, é possível constatar a intervenção do Estado com o claro objetivo de garantir autonomia ao sistema de saúde francês, impedindo que esta ou aquela produção industrial venha a conhecer escassez, deixando o sistema de saúde refém de uma escalada de preços devido ao jogo entre oferta e demanda, afetando, assim, os cuidados em saúde da população.

Um exemplo lapidar é a criação da Établissement Français du Sang (EFS) e da empresa decorrente, a Laboratoire Français du Fractionnement et des Biotechnologies (LFB), ambas controladas pelo Estado (100% e 51% respectivamente). Enquanto a primeira garante o fornecimento de produtos gerados a partir de sangue para uso hospitalar e também para o suprimento de insumos produtivos1 para indústrias, a LFB obtém plasma da EFS para fracionamento e produção de biomedicamentos.

A EFS está relacionada a serviços hospitalares e ambulatoriais, públicos e privados, com 150.000 unidades laboratoriais no território, sem os quais não há coleta de sangue, que legalmente deve ser obtido por doação, tendo a EFS prioridade nesse acesso. Em 2016, foram três milhões de doações, que seguiram para algumas das seis plantas industriais dessa empresa em território francês que produzem plasma e outros derivados mais complexos. Nesse ano, a produção da EFS gerou receita de US$ 995 milhões na França.

Parte da produção da EFS fornece insumos industriais para a produção de biomedicamentos. Para a LFB, que é sua principal cliente, o fornecimento para esse tipo de produção industrial foi de 866.297 litros de plasma em 2016. Parte desse insumo é destinado à produção de medicamentos voltados ao consumo final, outra parte significativa é para a produção e o fornecimento de insumos produtivos para empresas de grande porte como Sanofi, Novartis etc., mas também para pequenos e médios produtores.

Os principais produtos da LFB estão relacionados às áreas de imunologia, hemostasia, doenças raras e cuidados intensivos de perinatalidade, além de serviços especializados como a transferência de know-how. Em 2016, sua receita foi de US$ 575 milhões, sendo 30% desse valor resultado de exportações ou produção no exterior onde há filiais2. A empresa está presente em dez países, incluindo a França, e conta com 20 unidades produtivas, sendo cinco no território francês.

Outro exemplo paradigmático que corrobora a existência de um CIS no território francês é o modo como o Estado está presente no consumo da produção de toda sorte de medicamentos3. Em 2016, o volume total de negócios do mercado de medicamentos francês gerou US$ 62,6 bilhões (LEEM, 2018LEEM. and Roland Berger. Repères sur la production pharmaceutique. Rapport, 2018.). Chama atenção a composição desse resultado no tocante ao consumo de medicamentos o fato de que 47,7% provenham de exportações e que essa taxa venha crescendo a cada ano. O mais importante, entretanto, são as classes de consumo interno que perfazem os 52,3% dos medicamentos restantes: 33,7% são de medicamentos reembolsáveis, 14,8% de consumo direto pelos hospitais (sendo a maior parte desse consumo igualmente reembolsável) e apenas 3,8% não são reembolsáveis (FRANCE, 2017FRANCE, Comité économique des produits de santé - CEPS Rapport d'activite 2016. Rapport, 2017.).

Sem adentrar o debate sobre as consequências positivas e/ou negativas das formas de acesso aos medicamentos, é importante frisar que nesse reembolso a participação do Estado é majoritária, quando não exclusiva, em muitos casos. Ou seja, vemos o poder público como garantidor do consumo de medicamentos no território francês, o que permite a manutenção e expansão das empresas no território, dada a margem de segurança proporcionada ao consumo pelos cidadãos.

Assim, há um conjunto de ações envolvendo Estado, produções industriais, hospitais e ambulatórios que evidencia uma dinâmica envolvendo todos os agentes, e não é possível compreender uma economia tão complexa como a da saúde instrumentalizado apenas pelo conceito de cadeias produtivas, pelo menos se o objetivo é entender o papel do território nacional na economia política da saúde, pois implica considerar conjuntamente a saúde como direito, como bem econômico e como campo de acumulação de capital (VIANA et al., 2007VIANA, A. L., SILVA, H. P., and ELIAS, P. E. Economia política da saúde: Introduzindo o debate. Divulgação em Saúde para Debate, Rio de Janeiro, n. 37, p. 7-20, January/ 2007.; ANTAS Jr., 2017ANTAS Jr., R. M. A economia política da saúde no território brasileiro e seu complexo industrial: uma análise a partir do conceito de circuito espacial produtivo. Sociedade & Natureza, Uberlândia, 29 (2): 243-256, nov. 2017. ISSN 1982-4513. Disponível em: .). Com base nesses três elementos, é possível distinguir a dimensão da saúde como sistema de proteção social, sua dimensão política e sua dimensão industrial (FREEMAN e MORAN, 2002FREEMAN, R., e MORAN, M. A. saude na Europa. In: Negri B, Viana ALA, (Org.). O SUS em dez anos de desafio. São Paulo: Sobravime / Cealag; p. 45-64, 2002.).

A integração territorial entre produção de conhecimento, mercado farmacêutico, incentivo à produção, implementação de unidades produtivas e relações entre agentes públicos e privados é o que dá a dimensão espacial dessa economia política da saúde. Daí que o conceito operacional para a análise da produção de insumos médicos seja o CIS, pois proporciona uma compreensão global dos agentes envolvidos e das diferenças inerentes aos territórios, condicionando ou incentivando as produções industriais, sobretudo aquelas que têm alcance global.

E, ainda, se o objetivo de fundo é destacar as relações espaciais que jogam a favor ou contra o estabelecimento desse complexo industrial, bem como o gerenciamento e a expansão dessa economia política da saúde indissociável do território que a produz, é necessário igualmente um instrumento analítico embasado numa teoria que tenha o espaço geográfico como fundamento. Aqui, o conceito de circuito espacial produtivo vem como uma proposição relevante para abordar essas questões (SANTOS, 1988SANTOS. Metamorfoses do espaço habitado. São Paulo, Nobel, 1988., 1996SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: HUCITEC, 1996.).

Especialmente no período de globalização, não é possível ignorar os fluxos de capitais e de produções industriais de produtos acabados e insumos produtivos, que conectam diferentes lugares e regiões em todo o mundo. Daí ser imperativo compreender que tais complexos industriais da saúde são compostos por circuitos espaciais produtivos, e não somente pelas cadeias de suprimentos encerradas na lógica pura de mercado.

COMPLEXO INDUSTRIAL DA SAÚDE E CIRCUITOS ESPACIAIS PRODUTIVOS: DISTINTAS RELAÇÕES COM AS FORMAÇÕES SOCIOESPACIAIS

O conceito de circuito espacial da produção é caraterizado principalmente por ser instrumental à análise de processos produtivos em escala global, como contraponto às economias regionais (SANTOS, 1988SANTOS. Metamorfoses do espaço habitado. São Paulo, Nobel, 1988., p. 50; SANTOS e SILVEIRA, 1999). Nesse conceito, é central entender que as escalas global e regional da produção industrial corporativa são interdependentes. Os fluxos globais dependem dos lugares e das regiões em que se inserem para lograr a competitividade necessária e atingir suas metas de expansão da mais-valia global.

Os circuitos espaciais produtivos são sistemas técnicos e organizacionais da esfera produtiva em sua dinâmica global. Análises da emergência de processos econômicos no que concerne ao agronegócio, sistema bancário e produção industrial (CASTILLO, 2015; CONTEL, 2011CONTEL, F. B. Território e finanças. Técnicas, normas e topologias bancárias no Brasil. 1. ed. São Paulo: Annablume, v. 1. 316p., 2011.; ANTAS Jr., 2017ANTAS Jr., R. M. A economia política da saúde no território brasileiro e seu complexo industrial: uma análise a partir do conceito de circuito espacial produtivo. Sociedade & Natureza, Uberlândia, 29 (2): 243-256, nov. 2017. ISSN 1982-4513. Disponível em: .) vêm constatando a emergência dessas combinações entre sistemas técnicos hegemônicos com sua variada gama de possibilidades e os sistemas de ações que se apropriam delas. Sempre levando em conta que a escolha e a apropriação das possibilidades ofertadas são um dado da política e, portanto, um elemento central do circuito espacial produtivo.

Os processos engendrados pelas corporações industriais transnacionais e seus novos modos de criar cooperação capitalista concernem à política das empresas. A construção de um arranjo global entre agentes produtivos requer uma política própria, com mecanismos que transcendem a escala da formação socioespacial4 iv Embora não caiba aqui aprofundar o conteúdo teórico da categoria formação socioespacial, é importante registrar que há uma correspondência com a categoria marxista de formação econômica e social, não considerando apenas a formação histórica, mas também geográfica (SANTOS, 1977, p. 7). "Os modos de produção escrevem a História no tempo, as formações sociais escrevem-na no espaço. Tomada individualmente, cada forma geográfica é representativa de um modo de produção ou de um de seus momentos. A história dos modos de produção é também, e sob este aspecto preciso, a história da sucessão das formas criadas a seu serviço. A história da formação social é aquela da superposição de formas criadas pela sucessão de modos de produção, da sua complexificação sobre seu 'território espacial'". . Mas isso se dá sempre em adição à tradicional política dos Estados, da qual depende toda a tipologia das indústrias. Evidentemente, a aqui chamada "política das empresas" (SANTOS, 1997SANTOS. Da política dos Estados à política das empresas. Cadernos da Escola do Legislativo. São Paulo, julho/1997.) é restrita aos agentes corporativos de presença global - o que significa presença em muitos territórios nacionais, mas não em todos.

Tal construção da cooperação capitalista global é realizada por grupos de agentes interessados no fomento das relações produtivas, porque retiram daí seu quinhão da produção global de riqueza. São sindicatos patronais, empresas de feiras globais especializadas em setores produtivos, consultorias financeiras e técnicas e empresas de produção jurídica corporativa (DEZALAY, 1992DEZALAY, Y. Marchands de droit. Paris: Fayard, 1992.)5 v Referimo-nos à perspectiva do pluralismo jurídico no campo econômico, com desenvolvimento jurídico privado de resolução de litígios corporativos com o expediente da arbitragem, a lex mercatoria (FARIA, 1999), mecanismos jurídicos transnacionais de organização, padronização global da produção, formas de contabilidade com autorizações jurídicas privadas para não taxação por autoridades estatais etc. , entre outros agentes econômicos não produtivos envolvidos na realização da cooperação global capitalista. Santos (1988)SANTOS. Metamorfoses do espaço habitado. São Paulo, Nobel, 1988. definiu esses ramos econômicos especializados nessa construção capitalista global como círculos de cooperação no espaço.

Assim, é possível afirmar que tais círculos de cooperação são formas de caracterizar o modo de construção da política das empresas e implicam a circulação de crescentes volumes de dinheiro para que se logre realizar cooperação capitalista na escala mundo. E, em que pese ser custoso, é de enorme proveito para os balanços financeiros das corporações, além de distingui-las das demais empresas, de outros portes, devido às decisões das políticas globais de que participam em determinados ramos produtivos e, não raro, para além deles.

Tais produções sempre ganham concretude nos lugares, na medida em que estes tenham presença na economia nacional e se articulem com as políticas regionais de fomento à produção, como parques tecnológicos, incentivos fiscais, presença de trabalho qualificado e redes informacionais e logísticas (PERRAT, 2006PERRAT, J. Division spatiale du travail et nouvelles organisations productives: des territoires "segments" aux territoires "modules"?. Innovations, n. 24 (2), 91-114, 2006. https://doi.org/10.3917/inno.024.0091
https://doi.org/10.3917/inno.024.0091...
). As corporações preveem que o Estado proveja esses quesitos, ainda que aceitem participar dessa construção ou fortalecê-los no território mediante trocas vantajosas. Caracterizar a dimensão dessas barganhas e trocas de benefícios nos territórios requer uma análise sistemática de alguma especialização produtiva, o que buscamos empreender nesta análise sobre os laboratórios farmacêuticos e os biomedicamentos.

Antes de adentrar nessa especialização produtiva, importa reforçar que, além de uma organização complexa que constitui os circuitos espaciais produtivos em termos de processos globais, tais circuitos não são independentes da política dos Estados ou de sua soberania territorial. Também não seria acertado afirmar que dependem da "tradicional política dos Estados", uma vez que, neste período histórico, o poder soberano tem contornos muito distintos de outros momentos e faz uso de sistemas organizacionais e tecnológicos corporativos na construção do poder político e nas formas de intervenção no território.

Entre várias formas de ação política, chamamos atenção para o reconhecimento que os Estados conferem à "relativa autonomia jurídica" do poder corporativo e para as alianças que vêm sendo feitas entre ambos pelo menos desde a década de 1990 (FARIA, 1999FARIA, J. E. O Direito na economia globalizada. São Paulo: Malheiros, 1999.), e isso vale para economias desenvolvidas e em desenvolvimento. Outro ponto fundamental é o uso de tecnologias de informação e comunicação na organização política e econômica do território.

Esse Estado instrumentalizado por tecnologias corporativas geralmente é denominado neoliberal, o que implica pensá-lo como mínimo ou como tendente à máxima diminuição. É importante destacar que essa diminuição é verificável no que tange à propriedade de empresas estatais, mas isso não vem implicando obrigatoriamente a diminuição de seu poder econômico, como se nota pelo constante crescimento de sua apropriação da riqueza gerada em toda a atividade econômica.

Nesse processo, assiste-se ao crescimento econômico/financeiro de muitos Estados territoriais, em grande parte oriundo do crescimento de sua capacidade de arrecadação, fruto desse mesmo processo de enxugamento do Estado que levou a sua retirada dos sistemas de proteção social. Onde havia o esforço constante para apoiar as economias nacionais com dinheiro público para a população e para empresas, passa a haver mecanismos de controle fiscal e financeiro e desincumbência de investimento subsidiado. Trata-se de um Estado neoliberal e mais rico para atender aos interesses corporativos.

São esses acordos com as transnacionais que permitem menor responsabilidade dos Estados diante de sua população e proporcionam aumento do poder corporativo frente aos agentes produtivos de menor porte, que em grande medida dependiam de ações dos Estados em economias regionais ou locais. Assim, com a diminuição da intervenção produtiva do Estado na economia, as empresas nacionais ficam mais dependentes das políticas das corporações, que se apropriam de parte da mais-valia gerada pelos agentes produtivos restritos às escalas regional ou local.

A emergência dos circuitos produtivos globais está ligada às transformações das políticas soberanas e à ascensão de um poder corporativo global. De fato, afirmar uma dimensão global da produção industrial implica considerar todo esse quadro abrangente e que envolve uma reestruturação da divisão territorial do trabalho na escala mundo. Tais transformações podem ser mais bem compreendidas na medida em que se faz um esforço analítico sobre um ramo econômico ou sobre alguma especialização desse ramo, pois o grau de aprimoramento técnico-científico-informacional atingido assim o exige, para que se conheçam as efetivas práticas corporativas e estatais.

Generalizações teóricas sobre processos globais de como este ou aquele ramo econômico se desenvolve em cada parte do mundo conduzem frequentemente a elaborações lógicas mas nem sempre lastreadas em práticas reais. Isso porque se de fato assistimos à homogeneização de determinadas práticas para as quais algumas generalizações teóricas são importantes e necessárias, por outro lado, tais práticas ganham contornos próprios em cada formação socioespacial. Afinal, a política dos Estados é parte integrante dos circuitos espaciais produtivos, e a dinâmica histórica de cada território nacional tem uma construção distinta, com uma economia política indissociável de seu processo histórico.

Pelas razões levantadas aqui, partimos do pressuposto de que os complexos industriais da saúde são nacionais, enquanto os circuitos espaciais produtivos que os constituem são regidos por lógicas globais corporativas (SANTOS, 1988SANTOS. Metamorfoses do espaço habitado. São Paulo, Nobel, 1988.; ANTAS Jr., 2015ANTAS Jr. Complexos industriais, circuitos espaciais produtivos e direito reflexivo. Boletim Campineiro de Geografia, Campinas, v. 5, n. 1, p. 53-71, 2015.), ainda que os circuitos também sejam compostos por empresas médias e pequenas de alcance local, regional ou nacional.

Assim, para existir como tal, o CIS depende da presença do Estado, por meio de linhas de crédito especiais, incentivos fiscais, compra estatal de medicamentos ou mesmo laboratórios e indústrias estatais, além de concertos institucionais e regulatórios. É crucial o fomento do Estado para que exista essa coesão de um setor industrial da saúde no território. Por outro lado, desde algumas décadas, cresceram práticas corporativas globais nas finanças, no comércio e, de modo menos concomitante, na produção (SCOTT, 2006SCOTT, A. J. Creative cities: conceptual issues and policy questions. Journal of Urban Affairs, 28(1), 1-17, 2006. Retrieved from https://escholarship.org/uc/item/77m9g2g6.
https://escholarship.org/uc/item/77m9g2g...
). Atualmente, a produção global dos grandes laboratórios é um dado que reafirma seu poder.

Os circuitos espaciais produtivos da saúde tanto são constituídos por indústrias nacionais de todos os tamanhos e capacidades técnico-científicas como são controladas pelas corporações no que tange aos fluxos globais de insumos produtivos e produtos acabados. Esses circuitos produtivos só podem ser amplamente conhecidos se forem considerados tanto os Estados como as corporações desse setor da saúde.

A seguir, analisamos a presença do circuito espacial produtivo de biomedicamentos que compõe o CIS na França, de modo a identificar o que é peculiar ao território francês e o que permite paralelos com outros territórios onde há estruturas produtivas semelhantes. Não se trata, pois, de uma análise comparativa, mas sim de entender como uma divisão do trabalho tem dimensões específicas a uma formação socioespacial e como ela guarda correlações com processos gerais que unem alguns ou vários territórios nacionais na realização conjunta de capital desse ramo econômico.

A INDÚSTRIA FARMACÊUTICA E O CIRCUITO ESPACIAL PRODUTIVO DE BIOMEDICAMENTOS NA FRANÇA: A CONSTRUÇÃO DE COOPERAÇÃO CAPITALISTA POR MEIO DAS EMPRESAS CDMO

Na economia política da saúde na França, tem destaque a forte presença do poder público em várias frentes: na construção, manutenção e regulação de todos os serviços ligados aos cuidados de saúde pública, pela oferta de equipamentos públicos de saúde de toda sorte de atendimento como hospitais, pronto atendimento, serviços de urgência etc. e demais formas institucionais que estruturam os serviços de saúde. Evidentemente, aqui, trata-se de uma presença ordinária do Estado num sistema majoritariamente público como é o francês.

Mas a forte presença do Estado se faz sentir também em outros pontos da circularidade dessa economia política: a presença estatal diversificada no que concerne ao consumo direto pelos cidadãos e pelo sistema hospitalar dos produtos de saúde, a participação na produção industrial segundo determinadas formas de incentivo à produção ou mesmo com a criação de estatais estratégicas do setor como as já mencionadas EFS e LFB. De fato, entre consumo e fabrico de produtos de saúde na França, há uma separação tênue, quando não estão inteiramente imbricados entre as esferas pública e privada.

Uma das características mais importantes desse mercado é o peso dos medicamentos reembolsáveis. No que tange ao consumo, os recursos privados das famílias para a compra de medicamentos têm em geral subsídios como parte de uma política pública de saúde, pois a maior parte dos gastos é reembolsada pelo sistema de seguridade social. Assim, de um total aproximado de US$ 25 bilhões do faturamento dos laboratórios farmacêuticos em 2016, foram reembolsados mais de US$ 17 bilhões, ou cerca de 80%.

Há diferentes taxas de reembolso para medicamentos no regime geral de seguridade social: produtos com 15%, 30%, 65% ou 100% do preço comercializado. Os reembolsos de 65% e 100% somaram US$ 16,7 bilhões de um total de US$ 17,3 bilhões. E, de modo geral, 71% do faturamento das farmácias está baseado em medicamentos reembolsáveis.

Esses números mostram como é sensível a participação do Estado na garantia da produção laboratorial. No entanto, não se deve presumir que seja uma política exclusivamente voltada para a produção industrial instalada no território francês. Dos principais medicamentos reembolsados, apenas 22% são produzidos na França. Além disso, esse desempenho é frágil, pois é baseado em medicamentos de menor valor agregado. Uma característica do mercado farmacêutico francês é que a maior parte da produção é de "medicamentos maduros", isto é, aqueles que estão há mais tempo no mercado, geralmente baseados em princípios ativos químicos e, em grande parte, genéricos (FRANCE, 2017FRANCE, Comité économique des produits de santé - CEPS Rapport d'activite 2016. Rapport, 2017., 21).

Na Tabela 2, nota-se que grande parte do reembolso de medicamentos de maior valor (situados nas faixas de 65% e 100%) é destinado a produtos importados e, mais grave, a maior parte das vendas da indústria francesa é de medicamentos de baixo valor agregado, o que vem sendo alvo de muitas críticas, seja do governo, seja dos sindicatos patronais. Os biomedicamentos, considerados de última geração devido ao investimento em inovação científica e, portanto, com maior valor agregado, são atualmente os mais consumidos no país, sendo a maior parte importada. Esse tema ainda será retomado.

Tabela 2
Participação da produção industrial francesa na venda de medicamentos reembolsáveis na França - 2016

Antes, porém, vale destacar algumas características da participação do setor farmacêutico no CIS francês. O emprego industrial farmacêutico é um pilar da produção manufatureira no país. Em 2014, ocupava o segundo lugar entre os empregos da produção manufatureira e o oitavo na União Europeia, com 40.800 empregos (44.136 em 2016) e impacto estimado de US$ 5,5 bilhões.

Em 2016, havia 271 plantas industriais voltadas à produção farmacêutica de forte desempenho, com expertise tecnológica e grande capacidade logística. Atualmente, esse aparato produtivo está em quarto lugar na Europa (atrás de Suíça, Alemanha e Itália), com valor de produção industrial em torno de US$ 23,8 bilhões. Entre 1995 e 2008, a França ocupava o primeiro lugar nesse ranking (LEEM e ROLAND BERGER, 2018LEEM. and Roland Berger. Repères sur la production pharmaceutique. Rapport, 2018.).

Em termos de negócios totais, o setor farmacêutico gerou US$ 61,8 bilhões, sendo US$ 29,1 bilhões voltados à exportação. Essa indústria representa 5% do valor agregado da produção na França e, em 2016, a mobilização de sua capacidade produtiva atingiu 80,2%, acima da média de toda a indústria no território, que é de 79,9% (LEEM, 2018LEEM. and Roland Berger. Repères sur la production pharmaceutique. Rapport, 2018., p. 6/7/35; 2017, p. 66/79). É a quinta força do mercado mundial de produção de medicamentos (Tabela 1), e a terceira maior empresa no mercado mundial é a francesa Sanofi (QuintilesIMS, 2017QUINTILES/IMS. Outlook for Global Medicines through 2021. Report by the QUINTILES/IMS Institute, 2017.).

Tabela 3
Dez primeiras empresas farmacêuticas no mundo em 2016

Considerando os setores produtivos que compõem o CIS (Quadro 1), a produção farmacêutica está entre as principais, com manutenção de altos índices de investimento em inovação, apesar do quadro atual pouco favorável ou menos responsivo às demandas nacional e mundial. E é notável o papel do Estado francês na coesão que ele promove nessa indústria em termos globais relativamente às empresas que constituem o complexo.

Segundo dados e análises setoriais de instituições governamentais, sindicatos patronais e institutos de pesquisa sustentados por grandes laboratórios farmacêuticos, constata-se que há um esforço para inserir o país entre os maiores produtores de biotecnologia, hoje considerado "o calcanhar de Aquiles" do setor. Isso porque está entre os ramos especializados da indústria farmacêutica gerador de maior valor agregado e que representa o maior déficit na importação de medicamentos. Um indicador desse fraco desempenho: de 130 novas moléculas autorizadas pela European Medicines Agency (EMA) entre 2012 e 2014, apenas oito eram de laboratórios presentes em território francês (ROLAND BERGER, 2014ROLAND BERGER. Comment relancer la production pharmaceutique en France? Rapport, octobre, 2014.).

Tabela 4
Número de empresas e trabalhadores nos principais países europeus produtores de biotecnologia em 2016

A produção de biomedicamentos se dá segundo a lógica dos circuitos espaciais produtivos, isto é, apresenta uma dinâmica muito expressiva na economia global. E, segundo os sindicatos patronais, esse baixo desempenho da França é devido ao modo de funcionamento da política de reembolso, que concorre para a baixa de preços dos medicamentos, e à pouca atratividade para ingresso de novas empresas.

As indústrias estabelecidas em território francês se mantêm na produção de medicamentos maduros, que exigem menor investimento, o que se relaciona com os preços baixos (relativamente aos praticados no Reino Unido, na Alemanha e na Suíça, principalmente), não estimulando a entrada de indústrias inovadoras produtoras de biotecnologia.

Os circuitos espaciais produtivos são globais, mas se instalam onde encontram fortes mercados de consumo e obtêm maiores vantagens territoriais para a instalação. Vemos aqui novamente o Estado como pilar do desenvolvimento industrial no ramo de biomedicamentos no território francês. Seja para geração e desenvolvimento de empresas nacionais que se disponham a investir nessa especialização produtiva, seja por meio da criação de vantagens competitivas para atrair indústrias (de todos os portes) que dominem o conhecimento sobre os medicamentos biológicos e as tecnologias para sua produção industrial.

Os circuitos espaciais produtivos são constituídos por ações tanto dos Estados como das empresas, sobretudo de corporações farmacêuticas. Na França, isso é observado segundo a ação de ambos os agentes, com fortes associações entre o capital corporativo e o poder público.

Daí que existam movimentos combinados entre poder público e capital, como por exemplo o esforço do Estado para criar e fomentar a instalação e ampliação de "parques de biotecnologia", com incentivo à criação de startups objetivando a produção de biomedicamentos e incentivos para as empresas consolidadas como os grandes laboratórios, criando condições favoráveis para acordos com universidades e instituições de pesquisa de fundo e aplicada como o Instituto Pasteur, que atualmente tem com a Sanofi, em Lyon, uma das maiores plantas de produção de vacinas da França e do mundo.

Em 2005, o relatório "La place des biotechnologies en France et en Europe", produzido pela Assembleia Nacional, demonstrava a deficiência da França na produção de biotecnologia e evidenciava como outros países com tradição na produção de tecnologias ligadas às "ciências da vida" já vinham crescendo, particularmente EUA, Alemanha e Suíça. O relatório apontava a urgência de o Estado francês fomentar tal produção, pois "A França está muito mal no campo da inovação farmacêutica" (FRANCE, 2005FRANCE. La place des biotechnologies en France et en Europe. Rapport. Assemblée Nationale, 2005., p. 44). À época, entre 2001 e 2003, de 53 produtos solicitando licença para produção com base em biotecnologia no mundo, apenas um vinha da França (FRANCE, 2005FRANCE. La place des biotechnologies en France et en Europe. Rapport. Assemblée Nationale, 2005., p. 45). Outro dado, mais recente, é o de que, em 2017, a EMA autorizou 91 novos medicamentos, e apenas seis seriam produzidos na França.

Uma das primeiras medidas do Estado no território foi o esforço de implementar equipamentos e criar estruturas organizacionais a partir de 2007/2008 com o lançamento dos Biopolos, parques tecnológicos concebidos como "Rede de polos de competitividade na área da saúde" criando "economias de aglomeração" para fomentar a cooperação entre empresas na produção de tecnologia de ponta (SCOTT, 2006SCOTT, A. J. Creative cities: conceptual issues and policy questions. Journal of Urban Affairs, 28(1), 1-17, 2006. Retrieved from https://escholarship.org/uc/item/77m9g2g6.
https://escholarship.org/uc/item/77m9g2g...
). Mesmo concentrando-se em determinadas regiões do país, as empresas de cada polo estão presentes em outros, de modo a atender encomendas de insumos produtivos, demandas logísticas de circulação pelo território ou realização de exportações e importações, formando redes de polos.

A abordagem do polo de competitividade não é apenas indicativa de uma mudança na lógica das políticas públicas, mas também está revelando os diferentes tipos de relacionamento que podem existir entre a proximidade geográfica e os requisitos de inovação (PERRAT, 2006PERRAT, J. Division spatiale du travail et nouvelles organisations productives: des territoires "segments" aux territoires "modules"?. Innovations, n. 24 (2), 91-114, 2006. https://doi.org/10.3917/inno.024.0091
https://doi.org/10.3917/inno.024.0091...
, p. 100).

É expressivo o esforço do Estado francês para fomentar a produção industrial farmacêutica pela implementação de Biopolos (Figura 1): são 7 parques tecnológicos voltados sobretudo à inovação, construídos logo após os debates no congresso francês sobre o baixo investimento em inovação (FRANCE, 2005FRANCE. La place des biotechnologies en France et en Europe. Rapport. Assemblée Nationale, 2005.). Ressalte-se que essa participação do Estado não se resume ao interesse em estimular o investimento na geração de valor agregado, sem dúvida importante, mas também existe o empenho para garantir um equilíbrio da produção industrial na economia política da saúde de modo a não ficar refém das importações e assim assegurar o funcionamento dos sistemas hospitalares e o abastecimento do mercado de biomedicamentos.

Figura 1
Rede de polos de competitividade na área da saúde

Outro movimento relativo à produção de biomedicamentos vem sendo estabelecido pelos laboratórios farmacêuticos com contratos nos moldes da Contract Development and Manufacturing Organization (CDMO), conhecidos na França como production pour tiers, que vêm ganhando muita força no mercado farmacêutico e não são exclusivos para a produção de biomedicamentos.

É uma modalidade de empresa no mercado farmacêutico mundial que se tem mostrado bastante atrativa para as especificidades desse tipo de produção, que envolve muita aplicação de conhecimento. As empresas especializadas em contratos CDMO logram promover a associação com as Big Pharma e também com laboratórios de grande e médio porte.

The 40 years during which Pharmaceutical Technology has served the bio/pharmaceutical industry have been years of momentous growth and change in the way drugs are discovered, developed, manufactured, and sold. Contract development and manufacturing organizations (CDMOs) have long played a part in the industry's growth, but it is only in the past 20 years that they have become a critical element in bio/pharmaceutical company operations (MILLER, 2017MILLER, J. Contract Manufacturing Through the Years. Pharmaceutical Technology magazine (article is reprinted from the July 2017). Pharmaceutical Technology Volume 41, Issue 7, p 76-78, 2017. http://www.pharmsource.com/contract-manufacturing-through-the-years/
http://www.pharmsource.com/contract-manu...
, p. 77).

As CDMO são empresas que atendem outras da indústria farmacêutica para fornecer serviços que vão desde o desenvolvimento até a fabricação de medicamentos. Isso permite que as principais empresas terceirizem determinados aspectos de seus interesses para ajudar na produção em escala ou permitir que a grande empresa se concentre na descoberta e no marketing de medicamentos (ERNST & YOUNG, 2017ERNST & YOUNG. Consolidation of the CDMO industry: opportunities for current players and new entrants. Report (16p.) September, 2017, p. 3).

Os serviços oferecidos pelas CDMOs incluem pré-formulação, desenvolvimento de formulação, estudos de estabilidade, desenvolvimento de métodos, materiais de testes clínicos pré-clínicos e de Fase I, ensaios clínicos em estágio final, aumento de escala, registro de lotes e produção comercial e acreditação nas agências de vigilância sanitária em diferentes países. As CDMOs são fabricantes contratados, mas também existe a prática de criação de empresas startups que assumem investimentos em projetos de inovação, liberando os grandes laboratórios de determinados riscos inerentes ao desenvolvimento de novos medicamentos, preferindo comprar ou dividir a patente.

Um dos motivos das empresas CDMO terem tido um crescimento moderado no início dos anos 1990 foi a relutância dos grandes laboratórios, que receavam comprometer a credibilidade da marca em determinados nichos de mercado, interferindo diretamente nas vendas. Ainda no relatório de 2016, a Sanofi justificava com ressalvas a adoção dessa prática e sua necessidade6.

Não é incomum que uma empresa CDMO adquira uma planta industrial de uma Big Pharma para lhe fornecer a produção, garantindo exclusividade (por um período determinado). Mas, se tiver capacidade produtiva ociosa, ela poderá fechar contrato com outros agentes do mercado.

Uma característica importante dessa classe de empresas é sua presença em vários países, atuando como base de fornecimento de produtos nos padrões rígidos necessários aos grandes laboratórios e sua produção tecnológica. A Fareva está presente em 10 países com 17 filiais. Outra empresa com presença no território francês é a Delpharm, que comprou 12 plantas industriais de grandes laboratórios farmacêuticos, a maior parte na França:

Tabela 5
Aquisições de plantas industriais pela Delpharm

A emergência dessa classe de empresas vem cumprir um importante papel na realização de uma cooperação capitalista global, facilitando a ação dos grandes laboratórios no concerto das ações produtivas globais.

O Quadro 2 apresenta as principais marcas industriais que operam com contratos CDMO no território francês. Estão listadas as que são especializadas em CDMO, como Carbogen, Novasep e Recipharm, entre as maiores, e outras operam de forma mista; inclusive, a própria Sanofi trabalha como CDMO no território francês.

Quadro 2
Indústrias CDMO de biomedicamentos no território francês em 2016

Ressaltamos que as empresas exclusivamente CDMO estão presentes em muitos países com o objetivo de servir à estrutura produtiva farmacêutica fornecendo insumos ou produzindo o medicamento completo (particularmente genéricos). Segundo o relatório da Ernst & Young (2017, p. 2-16)ERNST & YOUNG. Consolidation of the CDMO industry: opportunities for current players and new entrants. Report (16p.) September, 2017, "Consolidation of the CDMO industry: opportunities for current players and new entrants", a indústria farmacêutica de CDMO é muito fragmentada, com cerca de 600 empresas globais e locais, e na última década vem conhecendo um processo intensivo de fusões e aquisições (em 2016, somou US$ 16,2 bilhões em todo o mundo).

Figura 2
Fluxos de Investimento por meio de Fusões e Aquisições em US$ bilhões

Essas empresas fazem intensas trocas de insumos entre suas unidades em diferentes países para atender os mercados, obtendo vantagens competitivas (matérias-primas mais baratas para produzir insumo, associadas ao trabalho especializado com menor remuneração) e resultando em mais fluxos de insumos para os grandes laboratórios - do território onde a empresa CDMO está instalada e para outros. Frequentemente, os fluxos de insumos globais mais expressivos se dão entre as filiais de uma corporação. Essa lógica de uma divisão territorial crescentemente fundada na fragmentação técnico-científica da produção é característica fundamental dos circuitos espaciais produtivos contemporâneos.

Tomando o maior mercado farmacêutico (que faz trocas com quase todos os países do mundo) para ilustrar essa dinâmica: só em insumos produtivos em 2003, os EUA exportaram US$ 4,3 bilhões e importaram 3,5 bilhões; em 2010, exportaram US$ 12,1 bilhões e importaram US$ 9 bilhões; e em 2017, exportaram US$ 10,9 bilhões e importaram US$ 12,2 bilhões.

Tabela 6
Movimento de exportação e importação de insumos para produção de medicamentos e de medicamentos acabados entre os EUA e o mundo, em US$ bilhões e percentualmente

Nota-se como a prática de troca de insumos suportou o forte crescimento de exportação e importação de medicamentos acabados (Tabela 5). Assim, o que se observa é a prática crescente de fluxos de insumos (e não apenas de medicamentos embalados ou acondicionados em doses) como característica da divisão territorial do trabalho atual, ao menos no que concerne ao mercado farmacêutico.

A produção de insumos padronizados e adequados a outras linhas de produção, distribuídos em diferentes países, é a expertise das grandes empresas CDMO. E o fluxo de insumos produtivos vem se firmando como o modus operandi dos circuitos espaciais produtivos, promovendo de modo crescente a finalização do produto em várias partes do mundo e, frequentemente, de modo simultâneo.

Tal simultaneidade não nos parece fortuita, mas antes uma construção gradativa para tirar proveito de uma nova manipulação das relações espaço-tempo que se dão em cada formação socioespacial em favor da acumulação capitalista e corporativa (ANTAS Jr., 2019ANTAS Jr., R. M. A articulação dos aconteceres na construção dos fluxos globais: notas sobre o circuito espacial produtivo de medicamentos na França e no Brasil. 2019. Inédito.).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A relação estruturante do complexo industrial da saúde com o Estado tem paralelo com a importância das corporações na formação e no controle dos circuitos espaciais produtivos. Onde os Estados têm forte presença na economia da saúde, por meio da oferta de serviços, regulação e intervenção direta, estrutura-se essa noção de um complexo produtivo. Por sua vez, as corporações vêm sendo as responsáveis pela formação dos circuitos espaciais produtivos de abrangência global (SANTOS, 1988SANTOS. Metamorfoses do espaço habitado. São Paulo, Nobel, 1988.).

Como apontam Freeman e Moran (2002)FREEMAN, R., e MORAN, M. A. saude na Europa. In: Negri B, Viana ALA, (Org.). O SUS em dez anos de desafio. São Paulo: Sobravime / Cealag; p. 45-64, 2002., quando ganha dimensão de estrutura social, a partir da criação de serviços para proporcionar cuidados à vida humana, a saúde também invoca, ao longo de sua formação histórica, a produção, o comércio e as finanças. É a política que conduz as relações entre esses diferentes setores econômicos. E, quando o serviço de saúde é público e universal, como na França, as relações obrigatórias do mercado com o Estado impõem o estabelecimento de acordos e cooperação no planejamento territorial, dando contornos ainda mais definidos ao CIS.

Os complexos industriais da saúde se formam onde os Estados logram dotar o território de sistemas de hospitais e de prontos atendimentos, produção de conhecimento, fiscalização etc. E formam uma economia política da saúde que é específica da condição do desenvolvimento econômico e social do país, pois grandes populações urbanas demandam condições técnicas e organizacionais para o trato da saúde humana.

Frisamos, entretanto, que a lógica global das corporações não se instalou simultaneamente nos lugares e nas regiões produtivas de diferentes países, nem em todas as suas atividades econômicas, tendo experimentado inicialmente as finanças e o marketing (no caso das farmacêuticas e de muitas outras empresas). A dinâmica produtiva no setor está se instalando intensamente, mas levou mais tempo para chegar ao patamar atual. E o uso da simultaneidade como fator competitivo (ANTAS Jr., 2019ANTAS Jr., R. M. A articulação dos aconteceres na construção dos fluxos globais: notas sobre o circuito espacial produtivo de medicamentos na França e no Brasil. 2019. Inédito.) para controlar determinadas especializações produtivas é restrito às trocas de insumos produtivos e produtos acabados entre um conjunto de cerca de 50 países que têm aparato industrial para participar dos circuitos espaciais, mas só 20 respondem por 90% dessas trocas (US TRADE, 2018U.S. CENSUS BUREAU: Economic Indicators Division USA Trade Online. Source: U.S. Import and Export Merchandise trade statistics. 20/11/2018. 1982-4513. https://www.census.gov/foreign-trade/index.html
https://www.census.gov/foreign-trade/ind...
).

Por isso é importante lembrar que os circuitos espaciais produtivos são globais mas não planetários. São globais pelas práticas transnacionais que as corporações constroem com a espacialidade e a historicidade da produção, diferentemente das demais empresas nos países em que estão presentes. As empresas CDMO ilustram essas práticas para ampliar a cooperação capitalista global respondendo às demandas produtivas e jurídicas envolvidas na produção de medicamentos, particularmente os biomedicamentos.

Assim, pudemos constatar a expansão de circuitos espaciais produtivos apesar da crise global de 2008. Em relatórios de Estados e de grandes empresas, encontramos a afirmação de que a saúde não acompanha o ritmo de outros setores nas crises econômicas, e isso se deve à economia política da saúde em que o Estado está presente e ao valor socialmente atribuído aos cuidados com a saúde humana.

A expansão se mantém devido à demanda dos serviços de saúde, que também cresce, sobretudo em países de grande população urbana. É nesses países que se assiste à intensificação de práticas corporativas que buscam operar novas formas de relação espaço-tempo para aumentar a competitividade da produção industrial.

NOTAS

  • i
    A expressão insumo produtivo designa aqui um produto manufaturado cuja finalidade é a de ser empregado em outra produção industrial, para produtos finais ou não.
  • ii
    Vale apontar que grande parte dos negócios da empresa fora da França são gerados no Brasil, seja pela construção da empresa pública brasileira Hemobras, da qual LFB é participante e à qual vendeu tecnologia e equipamentos, seja por sucessivas vendas de produtos imunobiológicos.
  • iii
    Aqui, nos limitamos a tratar dos medicamentos, mas isso atinge outras áreas do complexo como os diagnósticos por imagem, implantes de próteses etc.
  • iv
    Embora não caiba aqui aprofundar o conteúdo teórico da categoria formação socioespacial, é importante registrar que há uma correspondência com a categoria marxista de formação econômica e social, não considerando apenas a formação histórica, mas também geográfica (SANTOS, 1977SANTOS. Da política dos Estados à política das empresas. Cadernos da Escola do Legislativo. São Paulo, julho/1997., p. 7). "Os modos de produção escrevem a História no tempo, as formações sociais escrevem-na no espaço. Tomada individualmente, cada forma geográfica é representativa de um modo de produção ou de um de seus momentos. A história dos modos de produção é também, e sob este aspecto preciso, a história da sucessão das formas criadas a seu serviço. A história da formação social é aquela da superposição de formas criadas pela sucessão de modos de produção, da sua complexificação sobre seu 'território espacial'".
  • v
    Referimo-nos à perspectiva do pluralismo jurídico no campo econômico, com desenvolvimento jurídico privado de resolução de litígios corporativos com o expediente da arbitragem, a lex mercatoria (FARIA, 1999), mecanismos jurídicos transnacionais de organização, padronização global da produção, formas de contabilidade com autorizações jurídicas privadas para não taxação por autoridades estatais etc.
  • vi
    No Relatório de Atividades de 2016, encontramos inicialmente que a "Sanofi optou por integrar internamente a fabricação de seus produtos para controlar melhor sua qualidade" e, em seguida, "Alguns elementos da produção são terceirizados [...]. Os principais subcontratados farmacêuticos da Sanofi são a Famar, a MSD, a Unither, a Delpharm e a Saneca" (SANOFI, 2016SANOFI. Document de référence 2016., p. 117).

AGRADECIMENTOS

Este artigo é baseado em projeto apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), Processo N. 2017/21787-0. As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de responsabilidade do(s) autor(es) e não necessariamente refletem a visão da FAPESP. Também apoiou a produção deste artigo o Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento (CNPq), processo 307702/2017-0

REFERÊNCIAS

  • ANTAS Jr., R. M. A articulação dos aconteceres na construção dos fluxos globais: notas sobre o circuito espacial produtivo de medicamentos na França e no Brasil. 2019. Inédito.
  • ANTAS Jr., R. M., e THERY, H. O complexo industrial da saúde no território francês: uma análise do circuito espacial produtivo de biomedicamentos. 2018. Inédito.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jul 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    14 Fev 2019
  • Aceito
    29 Mar 2019
  • Publicado
    15 Maio 2019
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