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O xaxado como dança dionisíaca a partir da filosofia Nietzscheana

The xaxado how to dance dionysian from philosophy Nietzschean

Resumos

Tendo como referencial teórico as obras do filósofo alemão Friedrich Nietzsche, o objetivo deste artigo foi promover uma discussão, sobre como o modelo apolíneo e dionisíaco e o super-homem, se relacionam com o xaxado, proveniente do cangaço. Nesta perspectiva o artigo se divide em duas partes: na primeira, discute temas inerentes à filosofia nietzscheana como transvaloração, super-homem, modelos apolíneos e dionisíacos; na segunda apresenta a alegoria do xaxado como dança dionisíaca, e como este pode ser uma possibilidade para o surgimento do super-homem. Que criaria seus próprios valores, de acordo com sua vontade de potência, seu sentimento de poder.

Xaxado; Nietzsche; Dança; Filosofia


Having as reference theoretical the works of German philosopher Friedrich Nietzsche, the aim of this article was to promote a discussion on how the model Apollonian and Dionysian and the superman relate with the xaxado, from the cangaço. In this perspective the article is divided into two parts: the first discusses issues related to the Nietzschean philosophy as unwethung, superman, Apollonian and Dionysian models. The second presents the allegory of xaxado as Dionysian dance, and how this may be a possibility for the emergence of the superman, that would create its own values, according to his will to power, their sense of power.

Xaxado; Nietzsche; Dance; Philosophy


ARTIGO ORIGINAL

O xaxado como dança dionisíaca a partir da filosofia Nietzscheana

The xaxado how to dance dionysian from philosophy Nietzschean

Rafael Valladão; Mauricio Fidelis

Grupo de Cultura Corporal da Universidade Castelo Branco, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Rafael Valladão Proped, curso de mestrado da UERJ Rua Barbosa, 193 - Cascadura Rio de Janeiro RJ Brasil 21350-020 Telefone: (21) 7707-4247 e-mail: rafaelvalladao1@gmail.com

RESUMO

Tendo como referencial teórico as obras do filósofo alemão Friedrich Nietzsche, o objetivo deste artigo foi promover uma discussão, sobre como o modelo apolíneo e dionisíaco e o super-homem, se relacionam com o xaxado, proveniente do cangaço. Nesta perspectiva o artigo se divide em duas partes: na primeira, discute temas inerentes à filosofia nietzscheana como transvaloração, super-homem, modelos apolíneos e dionisíacos; na segunda apresenta a alegoria do xaxado como dança dionisíaca, e como este pode ser uma possibilidade para o surgimento do super-homem. Que criaria seus próprios valores, de acordo com sua vontade de potência, seu sentimento de poder.

Palavras-chave: Xaxado. Nietzsche. Dança. Filosofia.

ABSTRACT

Having as reference theoretical the works of German philosopher Friedrich Nietzsche, the aim of this article was to promote a discussion on how the model Apollonian and Dionysian and the superman relate with the xaxado, from the cangaço. In this perspective the article is divided into two parts: the first discusses issues related to the Nietzschean philosophy as unwethung, superman, Apollonian and Dionysian models. The second presents the allegory of xaxado as Dionysian dance, and how this may be a possibility for the emergence of the superman, that would create its own values, according to his will to power, their sense of power.

Key Words: Xaxado. Nietzsche. Dance. Philosophy.

Introdução

Nietzsche (2005) considerava que o homem era algo incompleto que deveria ser sobrepujado, superado, para dar lugar a uma nova concepção anunciada como super-homem, Übermensch ou além do homem. Este novo homem, através da sua sede de poder, sua vontade de potência, para o autor, se levantaria contra o tradicionalismo e a moral, re-avaliando velhos valores, a fim de criar novos, pela transvaloração.

A primeira transvaloração ocorreu com o advento do Cristianismo, que reformulou os valores da Antiguidade Clássica que, para Nietzsche (2001), proporcionaram a decadência da civilização. O filósofo propõe, portanto, um novo símbolo, para uma nova transvaloração, que é o Deus grego Dionísio, abandonando o velho simbolismo representado pelo Deus Apolo.

A partir desses dois deuses gregos - Apolo e Dionísio - Nietzsche (2007) desenvolve duas concepções de ser humano: a apolínea, inspirada em Apolo, deus da razão, da clareza, da ordem e; a dionisíaca, inspirada em Dionísio, deus da aventura, da música, da fantasia, da desordem. O modelo dionisíaco, para o filósofo, assim como a dança, caracterizam-se em caminhos que irão levar ao surgimento do super-homem, responsável pela nova transvaloração de todos os valores.

A dança é, para Nietzsche (2001), uma manifestação e extensão do pensamento, enquanto potência ativa, e não, simplesmente, uma consequência deste. Por esta razão o pensar deve ser aprendido como o dançar, como um tipo de dança.

Neste contexto, o xaxado, criado pelos cangaceiros, com seus movimentos bruscos e rudes, descompromissados com a métrica exigida pela dança apolínea acabava por romper com uma ordem social constituída, colocando o corpo como condutor da sua própria moral. O que para muitos era visto como pecado, heresia e uma verdadeira barbárie contra a ordem constituída. Os cangaceiros, neste momento, se apropriando (inconscientemente) da concepção dionisíaca, criavam uma dança que poderia se constituir numa possibilidade de alcançar o super-homem de Nietzsche - o xaxado.

Tendo em conta essas considerações iniciais, esse estudo tem por objetivo, considerando como referencial teórico as obras do filósofo alemão Friedrich Nietzsche, promover uma discussão sobre como o modelo apolíneo e dionisíaco e o super-homem se relacionam com o xaxado, proveniente do movimento do cangaço no nordeste brasileiro.

O artigo em questão discute a temática do papel que a dança, tendo como perspectiva a relação entre o modelo dionisíaco e o xaxado, promove na valorização da experiência humana. Além de apresentar duas disposições fundamentais do ser humano: a apolínea e a dionisíaca.

Nesta perspectiva o artigo se divide em duas partes: na primeira, discute temas inerentes à filosofia nietzscheana como transvaloração, super-homem, modelos apolíneos e dionisíacos; na segunda apresenta a alegoria do xaxado como dança dionisíaca, e como este pode ser uma possibilidade para o surgimento do super-homem de Nietzsche.

A dança apolínea e dionisíaca

Nietzsche (2001) verificou uma mudança nos valores, ou transvaloração, na Antiguidade, quando os judeus-cristãos, pelo simbolismo "Deus na cruz" ou "o crucificado", no que se refere à figura e doutrina pregada por Jesus Cristo, implantaram a perspectiva dos "escravos na moral". Tal perspectiva, abrange todos os valores judaico-cristãos que, para o filósofo, devem ser extirpados, de modo a abrirem caminho para a instauração de novos valores. Esse acontecimento, essa transvaloração por parte do Cristianismo, encoberto por dois mil anos, teve uma tentativa fracassada de reversão na época do Renascimento.

Segundo Rubira (2005), o cristianismo seria o solo a partir do qual todos os demais valores do homem moderno brotariam. Valores que, para Nietzsche (2001), são a expressão da decadência humana. Representados pela simbologia de "o crucificado", o filósofo propõe um novo símbolo, para uma nova transvaloração, que é Dionísio.

(....) se a judaico-cristã operou no âmbito de valores nobres, tendo como símbolo máximo "o crucificado", a transvaloração nietzschiana precisa operar sobre todos os valores que, desde então, se estabeleceram; e seu símbolo é Dionísio. Entende-se, assim, a derradeira inscrição em Ecce homo: "Dionísio contra o crucificado..." (...), ou seja, símbolos que expressam, (...), uma transvaloração ocorrida e, por outra, uma nova transvaloração que, aos olhos do filósofo, necessita ocorrer. Vê-se, portanto, por que o projeto de transvaloração de todos os valores nietzschiano é algo demasiadamente polêmico: com ele Nietzsche vem questionar, nada menos, que dois milênios de história (RUBIRA, 2005, p. 118).

Através da sede de poder, manifestado pela rejeição, rebeldia, negação e rebelião contra o tradicionalismo e a moral, re-avaliando velhos valores, afim de criar novos, pela transvaloração, em um processo contínuo de superação, Nietzsche (2005) anuncia, portanto, o Übermensch, o além do homem, ou super-homem.

O homem, para Nietzsche (2005), é algo incompleto que deve ser sobrepujado, superado. Para isso ele deve mudar sua essência, metamorfosear-se, primeiramente, passando pelo espírito do camelo, manifesto pela idéia do "tu deves", que representa aquele homem que trabalha, que suporta grandes cargas, que obedece, que é submisso, para o espírito do leão, que é a expressão do "eu quero", que tem em si o poder, a onipresença, a capacidade de se impor, que é forte em sua essência, tranqüilo em sua presença, absoluto em sua dominação. Ocorre ainda a necessidade de ir mais além, e alcançar o espírito da criança, que para Roble (2009), é o mais poderoso de todos, uma vez que é capaz de brincar com a vida, de esquecer ativamente, de ser livre e amar a existência.

A dança como metáfora da criança que brinca e aceita a vida, sem os artificialismos, esquecida das regras e focada naquilo que é essencial, que é o contato do indivíduo com o que lhe é vital, que lhe é próprio. Seria um retorno ao estado infantil do homem, pois ele se encontraria em toda sua capacidade criativa e livre da sociedade que mais tarde lhe imporia suas normas.

Este estado de retorno, para Nietzsche (2002), sugere que a alternância de prazer e desprazer se repete: criação e destruição, alegria e tristeza, saúde e doença, bem e mal, belo e feio, tudo acaba e tudo retorna ao longo da vida. Neste contexto, convém reproduzir literalmente uma das idéias mais nítidas de Nietzsche sobre este conceito:

E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: "Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e seqüência - e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez - e tu com ela, poeirinha da poeira!" Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasses assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderías: "Tu és um deus e nunca ouvi nada mais divino!" Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse: a pergunta diante de tudo e de cada coisa: "Quero isto ainda uma vez e inúmeras vezes?" pesaria como o mais pesado dos pesos sobre o teu agir! Ou, então, quanto terias de ficar de bem contigo e mesmo com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela! (NIETZSCHE, 2002, p. 223, 224)

O bem, na filosofia Nietzscheana, seria tudo o que viria a favorecer essa vitalidade humana, que intensifica e exalta o sentimento de poder, e o mal tudo que proviria da fraqueza, da incorporação dos valores dos considerados fracos. Essa fraqueza proviria de toda moral existente, em especial a moral socrática, judaico-cristã e burguesa, arduamente criticadas pelo filósofo alemão. Rubira (2005) afirma que é bom tudo aquilo que eleva o sentimento de poder, a vontade de potência, o poder no homem. E mal, tudo o que procede da debilidade.

Já Cotrim (2006) entende que a conclusão a que Nietzsche chegou foi de que não existem noções absolutas de bem e de mal, e que as concepções morais são elaboradas a partir de interesses humanos, como produtos sócio-históricos. O judaísmo e o cristianismo viriam impor valores morais, produtos da "vontade de Deus", e que grande parte das pessoas se acomodam, tornando-se "escravos na moral". Neste contexto, Nietzsche (2005), querendo reintegrar o homem e a natureza e romper com estes valores, elege a dança para mostrar a íntima conexão que existe entre a arte humana e a arte natural. Este via na dança a possibilidade de uma nova transvaloração, anunciada pelo profeta Zaratrusta, em seu livro "Assim falou Zaratrusta", com o advento do super-homem.

O dançar poderia, portanto, ser um dos caminhos para intensificar a vitalidade e atingir a condição de Übermensch, onde um novo mundo de símbolos se fará necessário, com todo um simbolismo corporal de gestos bailantes dos membros em movimentos rítmicos (LEMOS, 2009). O que de certa forma justifica a metáfora de que só se poderia acreditar em um Deus que soubesse dançar (NIETZSCHE, 2005). Mas o fato de se dançar não conferiria, simplesmente, a quem quer que fosse o título de super-homem.

Nietzsche (2001) afirma ainda, que o pensar deve ser aprendido, como o dançar, ou seja, como um tipo de dança. O pensamento se apresentando através da metáfora da dança, ou o pensamento pode ser pensado como dança ou como dançante. A dança é, portanto, uma manifestação e extensão do pensamento, enquanto potência ativa, e não, simplesmente, uma consequência deste.

A dança corresponde à idéia nietzchiniana do pensamento como (...) potência ativa. Cada gesto, cada traço da dança deve se apresentar, não como uma conseqüência, mas como aquilo que revela a própria fonte ou recurso da mobilidade. Para Nietzsche o pensamento não acontece fora de lá onde ele se dá, o pensamento é efetivo no seu lugar, aquilo que se intensifica sobre ele mesmo, ou ainda o movimento de sua própria intensidade (HANDOFSKY, 2005, s/p).

Nietzsche (2001) critica a tradição da filosofia ocidental a partir de Sócrates, a quem acusa de ter negado a filosofia pré-socrática e estabelece a distinção entre dois modelos: o apolíneo e o dionisíaco. A partir dos deuses gregos: Apolo, deus da razão, da clareza, da ordem e Dionísio deus da aventura, da música, da fantasia, da desordem, esses modelos foram separados na Grécia, por Sócrates, optando pelo culto à razão, fragmentando a vertente criadora da filosofia, contida na dimensão dionisíaca (COTRIM, 2006).

Para Roble (2009) e Lemos (2009), a dança não poderia ser uma forma de contemplação, não devendo se importar com a escultura do passo, com a técnica, das formas exatas, da ordem, com coreografias ritmadas ou pré-estabelecidas, dentro da perspectiva do modelo apolíneo. Mas sim, dançar "naturalmente", com movimentos livres, com participação, entrega do indivíduo ao contexto, a espontaneidade, pelo modelo dionisíaco.

Para compreender o contraste apolíneo frente ao impulso dionisíaco, princípio dicotômico estético, essencialmente metafísico, proposto por Nietzsche (...), faz-se necessário desfazer o olhar teórico predominante na cultura atual, (...) visão fragmentária e individual, que tem o tom do "Nada em demasia" e "Conhece-te a ti mesmo", inscrições do oráculo de Delfos, dedicadas a Apolo, que buscam consciências bem delimitadas sobre assuntos bem específicos (VASCONCELOS NETO, 2008, p.3).

Para Machado (2005), o apolíneo é o princípio da individualização, um processo de criação do indivíduo, que tem o objetivo de encobrir o sofrimento, ocultando seus traços, pela criação de uma ilusão. Já o dionisíaco, para o mesmo autor, em vez de um processo de individualização, é uma experiência de reconciliação das pessoas umas com as outras e com a natureza, uma harmonia universal e um sentimento místico de unidade. É a possibilidade de escapar da divisão, da individualidade, e se fundir ao uno, ao ser; é a possibilidade de integração da parte à totalidade.

A dança dionisíaca é a espontaneidade, a expressão de um transe desindividualizante e coletivo. Há certos tipos de danças que prezam pela técnica, pelas habilidades corporais, valorizando a forma. Talvez não haja nada de dionisíaco em algo que se vê sentado, como se estivesse em um circo vendo um acrobata. A dança dionisíaca é, ao contrário, aquela que leva o indivíduo para fora de si, que o retira da estreiteza da consciência. Como, por exemplo, o xaxado, do cangaceiro.

O xaxado como dança dionisíaca do cangaço

"E que se considere perdido todos os dias em que se não tenha dançado ao menos uma vez" (NIETZSCHE, 2005, p. 193).

O cangaço que se constituiu num movimento armado do início do século XX foi liderado por Virgulino Ferreira, conhecido como Lampião, e acabou por ganhar um caráter popular por trazer para o movimento a música, a dança, o artesanato e os versos da cultura popular nordestina. A canção popular, e tudo que existe envolto neste contexto, configuram-se no modelo dionisíaco de Nietzsche (2007).

Desse universo de guerras, lutas, muitas das vezes ocorridas pela honra, pela vingança, os cangaceiros se libertavam, entravam num estado de transe completo, libertos da medida e da consciência de si do modelo apolíneo, xaxando, dançando, bebendo, transfigurando para seus rifles a imagem da mulher, que inicialmente no cangaço, não existia. Transe este, que pode ser comparado ao culto das bacantes, que segundo Machado (2005), eram cortejos orgiásticos de mulheres, vindas da Ásia, que, em transe coletivo, dançavam, cantavam e tocavam tamborins, nas montanhas, à noite, em honra de Dioníso.

O xaxado que, segundo Luis Gonzaga, "era dança de cabra macho", tipicamente marcada como sendo de cangaceiros, arremete a imagem mitológica, ora heróica, ora bárbara que estes representavam.

Embora a crença desses homens tivesse sido forjada na moral cristã, muito influenciada pela figura do padre Cícero, tendo o catolicismo medieval como prisma destes valores, os cangaceiros foram criados envoltos a uma visão mística que deu origem a várias interpretações acerca de sua cultura. Como, por exemplo, a crença, do nordestino, de serem os cangaceiros pessoas com poderes que somente os deuses, ou semi-deuses, possuíam, como revela Assunção (2007).

No cangaço, a dança num primeiro momento surgiu com o xaxado, seguido do baião e do forró. Os cangaceiros com movimentos bruscos e rudes, descompromissados com a métrica exigida pela dança apolínea acabavam por romper com este imaginário, colocando o corpo como condutor da sua própria moral. O que para muitos era visto como pecado, heresia e uma verdadeira barbárie contra a ordem constituída.

Na própria formação do povo sertanejo podemos ver este divisor, pois como é dito, por Barroso (1931), a predominância na mestiçagem dentro do sertão foi de povos portugueses e indígenas. O primeiro preso a valores cristãos. O segundo tem elo com a liberdade, com o gestual livre, com a dança para louvação (ou não) de suas divindades, a interação com a natureza, sendo este, talvez, o traço da cultura indígena que remete a estética dionisíaca. E, talvez, este fato tenha ocorrido por ter tido o cangaceiro, na herança cultural do índio (além da do português), segundo Barroso (1931), a referência mais forte e mais autêntica que o xaxado impele.

Lampião era um ser livre, desprendido de valores morais que o aprisionasse. Era um espírito rebelde, como afirma Carvalho ([1977?]): "é ele um espírito de incorrigível rebeldia, que vem preferindo resistir no erro, a aceitar a orientação dos espíritos de luz" (p. 341). Lampião era um cangaceiro que, como tantos outros, tiveram que se adaptar a produzirem alegrias em meio à dureza daquele sertão. "Para quem sofre é uma alegria esquecer o seu sofrimento. Alegria inebriante e esquecimento de si mesmo me pareceu um dia o mundo" (NIETZSCHE, 2005, p.39).

Os combates quando vencidos pelos cangaceiros eram sempre muito festejados com o xaxado. Nome oriundo do som produzido pelas sandálias de couro ao arrastarem as mesmas no chão de terra, sempre usadas para insultar os inimigos, comemorar as vitórias, enaltecer os guerreiros. Segundo Fonte Filho (1999, p. 81), o próprio folclore popular se encarrega de definir o que é xaxado: "Xaxado é dança 'macho' / Dos cabras de Lampião / Xa, xa, xa, xa, xaxado / (Primo do baião) / Vem lá do sertão / Xaxado, meu bem, xaxado / Xaxado vem do sertão / É dança de cangaceiro / Dos cabras de Lampião".

Depois de passar pelas adversidades climáticas que os sertões, as secas, lhes impunham, de enfrentar a polícia, depois de viver um caos dentro de si, estes homens encontravam na dança a vivacidade tão peculiar às suas tradições. Apesar das mazelas vividas, o cangaceiro encontrou uma forma de ser feliz, de criar cultura com seu corpo que, neste momento, para Viana (2008), deixa de ser massa inerte para dar lugar às ações originais da cultura popular, que se expressa em sua diversidade.

Os cangaceiros encontravam, na dança, a alegria que por vezes os deixavam em transe, que os elevavam para o além mundo, bailando na corda que separa o animal do super-homem, aproximando-se do homem idealizado por Nietzsche (2005).

Nietzsche (2009), diz que o homem ativo, aquele que é violento, excessivo, que segue seus instintos, seu sentimento de poder, sua vontade de potência está sempre mais perto da justiça. Ao contrário do homem reativo, que vive uma vida de submissão, de culpa, de ressentimento, prezo a valores, inibindo seus instintos. Nesse sentido os cangaceiros, como homens ativos, se viam como justiceiros que matavam, torturavam, coagiam, mas apesar de tudo dançavam, cantavam e escreviam poemas. Estes eram dotados de uma arte tão popular, aproximando-se do modelo dionisíaco, pois muitos se viam naquelas formas belas e ao mesmo tempo tão descompassadas, sobrepujando a moral, o estético, em detrimento da realização, da satisfação, da vontade. Numa ação de resgate de uma moral menos racional, mesmo que isso, por vezes, rompesse com a ordem vigente. Por esta razão que Nietzsche (2001), desprezava a moralidade rousseauriana. Que para o próprio Rousseau (2008), deveria se constituir num caminho que iria enquadrar o homem ao ambiente social, desvinculando-o da natureza e, através da razão, deveria gerar um estado de consenso.

Rousseau, este primeiro homem moderno, idealista e canalha em uma única pessoa; que tinha a necessidade da "dignidade" moral, para perseverar em seu próprio aspecto; doente de uma vaidade e de um auto-desprezo desenfreados. (...) Eu odeio Rousseau ainda na revolução: ele é a expressão histórico-mundial para esta dualidade de idealista e canalha. (...) o que odeio é a sua moralidade rousseauniana (NIETZSCHE, 2001, p. 39-40).

Conclusão

Atualmente, o entendimento sobre uma dança é, normalmente, vulgarizada ou conduzida tecnicamente, o que acaba por desviar a essência do entendimento dionisíaco em torno desse conceito. Acreditar no papel da dança como fenômeno educativo e transformador, expressão da vitalidade por excelência, como a vontade de poder, é vislumbrá-la como um veículo de uma profunda transvaloração.

Conclui-se que a dança dionisíaca pode ser importante para levar o homem a abandonar a condição de "fraco", de "moral de rebanho" imposto pela visão socrática e judaico-cristã. E o xaxado, enquanto manifestação do simbolismo do deus Dionísio, como dança dionisíaca, forjado por Lampião e seus cangaceiros no nordeste brasileiro, interpretado segundo a filosofia nietzscheana, poderia se configurar numa possibilidade para o surgimento do super-homem de Nietzsche. Que criaria seus próprios valores, de acordo com sua vontade de potência, seu sentimento de poder.

Este homem que não afirma a morte, que rompe com o modelo de moral pré-estabelecido, que tem a coragem de lidar com as escolhas feitas em sua vida e com os conflitos que essas escolhas lhe proporcionarão, que se supera, que dança. Tais fatores corroboram com as ações dos cangaceiros empreendidas nos sertões nordestinos, excluindo de si a fraqueza, pois, como afirmou Euclides da Cunha (1984, p. 51), em sua obra clássica "Os Sertões": "o sertanejo é, antes de tudo, um forte". Sendo a tradição popular nordestina um fator que poderá, talvez, levar o homem a condição plena de Übermensch, descrita por Nietzsche em suas obras.

Recebido em: 11 de março de 2010.

Aceito em: 28 de dezembro de 2010.

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      03 Out 2011
    • Data do Fascículo
      Jun 2011

    Histórico

    • Aceito
      28 Dez 2010
    • Recebido
      11 Mar 2010
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