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CLASSIFICAÇÕES, RÓTULOS E GIROS: O PANORAMA DA DISCUSSÃO EPISTEMOLÓGICA DA EDUCAÇÃO FÍSICA BRASILEIRA NO SÉCULO XXI

CLASSIFICATIONS, LABELS AND TURNS: THE OVERVIEW OF THE EPISTEMOLOGICAL DISCUSSION OF BRAZILIAN PHYSICAL EDUCATION IN THE 21ST CENTURY

CLASIFICACIONES, ETIQUETAS Y GIROS: EL PANORAMA DE LA DISCUSIÓN EPISTEMOLÓGICA DE LA EDUCACIÓN FÍSICA BRASILEÑA EN EL SIGLO XXI

Resumo

O objetivo deste artigo foi analisar o panorama da discussão epistemológica da Educação Física (EF) brasileira, no século XXI, com o intuito de contribuir com novas chaves de leitura para o debate. Para tal, além da análise da produção científica do campo sobre o assunto, foram realizadas entrevistas com oito pesquisadores que publicam artigos sobre o tema da epistemologia, sendo eles: Valter Bracht, Mauro Betti, Paulo Fensterseifer, Pedro Hallal, Felipe Quintão de Almeida, Juliano de Souza, Marcelo Moraes e Silva e Ricardo Rezer. A partir da produção científica e das entrevistas é possível concluir que a discussão epistemológica da EF brasileira avança rumo a uma condição de pluralidade que parece vir acompanhada de problemas em relação à formação científica.

Palavras-chave
Epistemologia; Educação Física; Linguagem; Ontologia

The objective of this article was to analyze the panorama of the epistemological discussion of Brazilian Physical Education in the 21st century, with the aim of contributing new reading keys to the debate. To this end, in addition to analyzing the field's scientific production on the subject, interviews were conducted with eight researchers who publish articles on the epistemology of Brazilian Physical Education, namely: Valter Bracht, Mauro Betti, Paulo Fensterseifer, Pedro Hallal, Felipe Quintão de Almeida, Juliano de Souza, Marcelo Moraes e Silva and Ricardo Rezer. From the scientific production and the interviews, it is possible to conclude that the epistemological discussion of Brazilian Physical Education moves towards a condition of plurality, however, it seems to be accompanied by problems in relation to scientific training.

Keywords
Epistemology; Physical education; Language; Ontology


El objetivo de este artículo fue analizar el panorama de la discusión epistemológica de la Educación Física brasileña en el siglo XXI, buscando contribuir con nuevas claves de lectura para el debate. Para ello, se analizó la producción científica del campo sobre el tema y se realizaron entrevistas con ocho investigadores que publican artículos sobre la epistemología de la Educación Física brasileña, a saber: Valter Bracht, Mauro Betti, Paulo Fensterseifer, Pedro Hallal, Felipe Quintão de Almeida, Juliano de Souza, Marcelo Moraes e Silva y Ricardo Rezer. A partir de la producción científica y de las entrevistas, es posible concluir que la discusión epistemológica de la Educación Física brasileña transita hacia una condición de pluralidad, sin embargo, parece estar acompañada de problemas en relación a la formación científica.

Palabras clave
Epistemología; Educación Física; Lenguaje; Ontología


1 INTRODUÇÃO

Se no século XX, sobretudo, a partir da década de 1970, o debate sobre a epistemologia da EF brasileira girava em torno da crise identitária e da indefinição epistemológica, no século XXI, essas discussões ficaram secundarizadas e novas temáticas passaram a ocupar o centro do debate. Ao fazer a leitura da transição do século XX para o século XXI, pode-se afirmar que a mudança do foco das discussões epistemológicas foi influenciada pelos seguintes motivos: a) incapacidade de um consenso mínimo; b) intensificação de movimentos dualistas e; c) (re)ações à pluralidade do campo (ALMEIDA; VAZ, 2010ALMEIDA, Felipe Quintão de; VAZ, Alexandre Fernandes. Do giro linguístico ao giro ontológico na atividade epistemológica em Educação Física. Movimento, v. 16, n. 3, p. 11- 28, jul./set. 2010. DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8918.12485
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; ALMEIDA; BRACHT; VAZ, 2012ALMEIDA, Felipe Quintão de; BRACHT, Valter; VAZ, Alexandre Fernandes. Classificações epistemológicas na Educação Física: redescrições... Movimento, v. 18, n. 4, p. 241-263, out./dez. 2012. DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8918.27727
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; BUNGENSTAB, 2020BUNGENSTAB, Gabriel Carvalho. Epistemologia da Educação Física brasileira: (re) descrições da atividade epistemológica no século XXI. Movimento, v. 26, p. 1-14, 2020. DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8918.100551
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).

O clima do debate do final do século XX e início do século XXI foi bastante frenético e não houve qualquer sinalização de um consenso mínimo no campo. As proposições feitas entre as chamadas vertente científica e a vertente pedagógica não se aglutinaram. Grosso modo, os efeitos dessa lógica podem ser sentidos ao observar as divergências sobre a compreensão do objeto da área (cultura corporal, cultura corporal de movimento, movimento humano etc.). Esse quadro representa um pouco da pluralidade do campo. Dessa atmosfera, engendrou-se um cenário de ambivalência epistemológica, ontológica, gnosiológica, axiológica e ideológica entre os adeptos da matriz crítico dialética e os teóricos da virada linguística (ALMEIDA; BRACHT; VAZ, 2012ALMEIDA, Felipe Quintão de; BRACHT, Valter; VAZ, Alexandre Fernandes. Classificações epistemológicas na Educação Física: redescrições... Movimento, v. 18, n. 4, p. 241-263, out./dez. 2012. DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8918.27727
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). Subsequentemente, originou-se um debate ultra especializado sobre os giros epistemológicos, cujo mote de discussão circunscreve-se, em suma, ao modo como o ser humano conhece a realidade. Nesse bojo, interessou saber nessa pesquisa o que os pesquisadores que discutem os fundamentos epistemológicos da EF no Brasil têm a nos dizer?

Portanto, o objetivo deste texto é analisar o panorama da discussão epistemológica da EF brasileira no século XXI com o intuito de contribuir com novas chaves de leitura para o debate. Para tal, o presente artigo se divide no seguinte itinerário reflexivo: 1) percurso metodológico; 2) o “giro” linguístico e o “giro” ontológico na EF brasileira e, 3) conclusões.

2 METODOLOGIA

O percurso metodológico desse artigo teve início a partir de um levantamento qualitativo para mapear, mediante a análise do impacto da contribuição científica, autores importantes no que se refere à discussão sobre a epistemologia da EF brasileira1 1 Não interessou a quantidade de produções que o intelectual tem sobre a epistemologia da Educação Física brasileira, mas sim o(s) impacto(s) e a importância que o seu(s) trabalho(s) teve/tiveram para o campo. . Para tal, foram definidos os seguintes critérios de inclusão: a) autores de nacionalidade brasileira; b) autores com graduação em EF; c) doutores e; d) ter produção de impacto, em revistas especializadas, sobre o debate epistemológico da EF.

Realizado esse mapeamento, selecionou-se doze pesquisadores, sendo quatro autores da subárea da biodinâmica do movimento e saúde e oito das subáreas sociocultural e pedagógica, para os quais foram convidados a participar da pesquisa. No entanto, a maioria dos autores convidados da subárea biodinâmica do movimento e saúde não tiveram interesse em participar da pesquisa e/ou não tinham disponibilidade. Dessa maneira, foram entrevistados sete autores das subáreas sociocultural e pedagógica e apenas um da subárea biodinâmica do movimento e saúde (ver quadro 3)2 2 Apresentamos os nomes dos entrevistados porque eles, ao assinarem o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), concordaram em ter seus nomes divulgados na pesquisa. .

Quadro 3
Pesquisadores entrevistados, seus vínculos institucionais e subárea de estudo.

Para os autores que aceitaram participar da pesquisa, enviou-se, por e-mail, uma via do TCLE com a finalidade de esclarecer os objetivos da entrevista e da pesquisa. As entrevistas foram agendadas conforme a disponibilidade dos entrevistados e elas só aconteceram após esse projeto ter a aprovação do comitê de ética da Universidade Estadual de Goiás (Parecer Consubstanciado do CEP-UFG n°. 4.898.746).

Isto posto, coadunando com Triviños (1987)TRIVIÑOS, Augusto Nibaldo Silva. Introdução à pesquisa em ciências sociais. São Paulo: Atlas, 1987., a entrevista semiestruturada foi eleita como técnica para a coleta de dados da pesquisa de campo. O Objetivo com as entrevistas foi analisar como esses autores avaliam as questões centrais do debate epistemológico da área. Apesar disso, ressalta-se que o entrevistado teve liberdade para seguir “[...] espontaneamente a linha de seu pensamento e de suas experiências dentro do foco principal colocado pelo investigador [...]”, possibilitando ao entrevistado “[...] participar na elaboração do conteúdo da pesquisa” (TRIVIÑOS, 1987TRIVIÑOS, Augusto Nibaldo Silva. Introdução à pesquisa em ciências sociais. São Paulo: Atlas, 1987., p. 146). As entrevistas foram realizadas de modo remoto a partir do aplicativo Google Meet iniciando no dia 18 de agosto de 2021 e finalizando no dia 29 de outubro de 2021.

Os dados das entrevistas foram analisados seguindo os ciclos de cinco fases propostos por Yin (2016)YIN, Robert K. Pesquisa qualitativa do início ao fim. Porto Alegre: Penso Editora, 2016.. A primeira fase consistiu na compilação dos dados, na qual os dados obtidos das transcrições das entrevistas e as anotações foram lidas várias vezes para na sequência serem organizados. Na segunda fase os dados já compilados foram decompostos, sem codificação. A decomposição dos dados por meio de uma leitura mais sistemática dos dados culminou na criação de notas reflexivas da pesquisa. Nessas notas os pontos centrais das ideias e dos conceitos oriundos dos dados das entrevistas foram destacados. A terceira fase foi constituída pela recomposição dos dados. Nessa etapa procurou-se identificar padrões nos dados das entrevistas que fossem significativos para os objetivos, para os conceitos e para a hipótese da pesquisa. Ademais, através de arranjos feitos no programa Word, foram separados trechos das entrevistas que apresentavam conceitos similares e, também, trechos de conceitos que tinham divergências. Na quarta etapa ocorreu a interpretação dos dados. E por fim, na quinta etapa ocorreu a conclusão da análise, no qual se apresentam as sínteses derivadas de todo o processo de análise.

3 ENTRE “GIROS” E RÓTULOS NA EPISTEMOLOGIA DA EF BRASILEIRA

O debate entre os giros epistemológicos não é algo particular do campo da EF brasileira, ele advém, especificamente, das discussões em torno da linguagem que foram travadas no âmbito da filosofia a partir do século XIX. Uma perspectiva que ganhou grande notabilidade e relevância nesse contexto foi denominada de virada linguística (depois também nomeada de giro linguístico). Assim, eclodiu o debate que ficou conhecido como giros epistemológicos. De um lado temos os teóricos que sustentam o giro linguístico (virada linguística), do outro os que defendem o giro ontológico (reação ontológica). Pode-se definir o/a giro linguístico/virada linguística como:

1) Aquilo que Wittgenstein fez no Tractatus, ou seja, alçar a análise da linguagem ao primeiro plano, nesse momento ainda com a intenção idealista de resolver os problemas filosóficos de uma vez por todas através de uma linguagem perfeitamente clara [...].

2) Movimento geral em direção à linguagem no século XX [...].

3) Mudança na concepção de linguagem, que inclui:

3.1) a disseminação da não neutralidade da linguagem – a linguagem como atividade que está imbricada na fundação do conhecimento e não somente como invólucro do pensamento [...];

3.2) a exploração da linguagem como ação, seu aspecto não representativo [...].

4) Mudança de paradigma, que desloca o foco do sujeito para a linguagem, leva a um questionamento de universais e essências, enfatizando a construção linguística e histórica [...]

5) Debate que leva ao abandono da tentativa de elaborar uma linguagem ideal e neutra para a ciência. No que diz respeito à neutralidade, a linguagem científica não pode ser diferenciada da linguagem ordinária, na verdade ela é uma especialização ou um desenvolvimento da linguagem ordinária por um determinado grupo social [...]

(FONTES, 2020FONTES, Flávio Fernandes. O que é a virada linguística? Trivium-Estudos Interdisciplinares, v. 12, n. 2, p. 3-17, 2020. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2176-48912020000300002&lng=en&nrm=is&tlng=pt. Acesso em: 11 nov. 2023.
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?scr...
, p. 13-14).

Considerando todas as nuances da virada linguística, talvez o mais assertivo seja falar em “viradas linguísticas” ou “giros linguísticos”, pois não se trata de uma perspectiva totalmente harmônica e singular. Logicamente, existe o fio condutor que serve como ponto de partida e de apoio para todas as perspectivas dos giros linguísticos, quer seja: a centralidade da linguagem. No entanto, existem diferenças significativas que impossibilita tratá-las como se fossem completamente iguais.

[...] essa chamada virada linguística aconteceu a partir de diferentes matrizes, você tem uma matriz neopragmática, que vem da filosofia analítica, tem uma virada linguística operada pela hermenêutica, uma virada linguística operada a partir da ideia da pragmática universal, com Apel, Habermas

(Valter Bracht).

Naturalmente, os giros linguísticos encontraram resistência de outras perspectivas. Uma delas foi o/a giro ontológico/reação ontológica que, conforme Sánchez Gamboa (2007), pode ser assim compreendido:

[...] penso que seria mais apropriado denominar esse “giro ontológico” de “re-virada”, “inflexão ou reação ontológica”, uma vez que se pretende, segundo o próprio Marx, se referindo à filosofia idealista de Hegel, de colocar o homem com os pés na terra e a cabeça sobre um corpo fincado na realidade. Ou, de defender a tese de que “os homens pensam como vivem” e não o contrário, “os homens vivem, segundo seus pensamentos ou representações” (tese idealista). Isto é, os homens vivem, têm experiências concretas e a partir dessas condições concreta, eles criam seu imaginário

(SÁNCHEZ GAMBOA, 2007SÁNCHEZ GAMBOA, Silvio. Reações ao giro linguístico: o resgate da ontologia ou do real, independente da consciência e da linguagem. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DO ESPORTE, 15., 2007, Recife. Anais... Recife: CBCE, 2007., n.p.).

A reação ontológica, de acordo com Sánchez Gamboa (2007)SÁNCHEZ GAMBOA, Silvio. Reações ao giro linguístico: o resgate da ontologia ou do real, independente da consciência e da linguagem. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DO ESPORTE, 15., 2007, Recife. Anais... Recife: CBCE, 2007., também possui algumas variações. Contudo, como no debate do campo da EF brasileira os autores que sustentam o giro ontológico se remetem quase sempre à perspectiva desenvolvida por Lukács, a definição supracitada é suficiente para um entendimento mínimo das teses da reação ontológica.

Para uma melhor abordagem sobre o embate entre os giros epistemológicos na EF brasileira, além da literatura, recorrer-se-á, nas linhas que se seguem, às respostas dos entrevistados que expuseram suas análises sobre essa temática. Salienta-se, desde já, que o propósito não é advogar para nenhum dos lados dessa polarização, mas sim situar o debate e apresentar as problemáticas que dele se desencadeiam3 3 Como nenhum intelectual da matriz crítico-dialética foi entrevistado, as referências para as análises provenientes do giro ontológico serão exclusivamente oriundas da produção do conhecimento. .

A partir da análise das respostas dos pesquisadores da EF brasileira que foram entrevistados nessa pesquisa e das produções de científicas, constatou-se as seguintes posições4 4 O objetivo aqui é tão somente o de organizar as posições dos autores para facilitar o desenvolvimento argumentativo. Não há qualquer intenção de classificá-los ou rotulá-los. (alguns transitam entre elas) no que se refere ao debate sobre os giros epistemológicos: a) aproximação com a perspectiva dos giros linguísticos (Valter Bracht, Paulo Fensterseifer Felipe Quintão Almeida, Marcelo Morais e Silva e Ricardo Rezer); b) aproximação com a perspectiva da reação ontológica ( Silvio Sanchez Gamboa, Michele Sacardo e Maristela Souza); c) defesa de outra perspectiva (Mauro Betti e Juliano de Souza); d) indiferença com o debate (Marcelo Moraes e Silva; Mauro Betti e Pedro Hallal).

Um primeiro ponto a ser destacado sobre esse hermético debate dos giros epistemológicos refere-se à existência de vários mal-entendidos. Não no sentido de se ter perspectivas teóricas divergentes, e sim no sentido de, às vezes, faltar um tratamento epistemológico mais cauteloso e diligente para com as teorias e para com as questões que estão no centro do debate. Nesse panorama, Valter Bracht chama a atenção dizendo:

[...] há aí muitos mal-entendidos e muita demarcação política polarizada que muitas vezes dificulta um debate mais aprofundado. Eu vejo uma dificuldade de origem, de alguma forma, que é certa resistência daqueles que trabalham com o materialismo histórico-dialético, a qualquer questionamento dos princípios dessa perspectiva. Qualquer questionamento é entendido como certo desvio histórico.

(Valter Bracht).

Embora a crítica de Bracht seja pertinente, será que os autores que se aproximam da perspectiva dos giros linguísticos também não cometem equívocos teóricos e interpretativos? A título de exemplo, Barros Júnior et al. (2022)BARROS JÚNIOR, Bartolomeu Lins de; MORAES, Danielle Batista de; DIAS, Eldernan dos Santos; GAMA, Augusto César Vilela; HÚNGARO, Edson Marcelo. Aspectos controversos de uma interpretação do giro linguístico sobre a ontologia de Lukács como referência crítica na Educação Física. Movimento, v. 28, p. e28034, 2022. DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8918.122538
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desenvolveram um trabalho que objetivou evidenciar os equívocos teóricos dos autores dos giros linguísticos na intepretação sobre a concepção ontológica do filósofo György Lukács.

O principal terreno de inflexão do debate dos giros epistemológicos no campo da EF brasileira tem como foco a compreensão sobre a verdade. Os pesquisadores que concordam com os giros linguísticos (posição A) operam com uma concepção de verdade mais flexível, ao passo que os pesquisadores da reação ontológica sustentam uma compreensão de verdade ancorada nas metanarrativas e na objetividade do materialismo histórico-dialético. Sobre isso, Valter Bracht e Paulo Fensterseifer argumentam que:

Na verdade, não se questionou a existência da realidade, como alguns querem colocar, o que se questionou foi basicamente o nosso entendimento de verdade [...] o que a virada linguística vai mostrar é que nosso acesso à realidade é linguisticamente mediado, sempre, e que nossos códigos linguísticos operam como pré-conceitos como diria o Gadamer, porque nós fomos culturalizados a partir de mediações linguísticas

(Valter Bracht).

A única questão é que a partir do giro linguístico se a gente vai falar numa ontologia, seria uma ontologia que se desse também na linguagem, que não pode abdicar da linguagem. Eu não posso invocar um real que não seja pela linguagem, do ponto de vista da construção de uma argumentação de uma justificação social, então eu preciso ter esse tensionamento, mas preciso levar além da linguagem.

(Paulo Fensterseifer).

Nesse viés, nota-se que Bracht e Fensterseifer não concordam com a concepção de uma verdade imperativa, monológica e teleológica. Para eles, o acesso à realidade, por conseguinte, à verdade, se dá sempre por meio da mediação da linguagem, sendo imprescindível uma disposição de provisoriedade, historicidade, contextualidade, temporalidade, intersubjetividade e de dialogismo.

Sendo assim, a linguagem representa um condicionante essencial para a compreensão da realidade e dos conhecimentos que dela se originam. Como abordar/entender a realidade e os conhecimentos da cultura corporal de movimento sem recorrer primeiramente à linguagem? Na leitura dos adeptos dos giros linguísticos não há como. Em oposição à concepção dos giros linguísticos, os pesquisadores da reação ontológica defendem a seguinte concepção de verdade:

É evidente esclarecer que nossa posição contrária aos giros epistemológicos e/ou linguísticos parte da assertiva de que, para o conhecimento existir é necessário que existam os objetos a serem conhecidos, como também, entender que este objeto existe independente do conhecimento que temos dele. [...] compreendemos a realidade, um objeto real, produzido em determinado momento histórico, levando em consideração as suas condições históricas concretas, uma vez que só puderam ser construídas por homens históricos e sociais. [...]. Deste modo, essa visão de realidade objetivo-concreto/materialista - parte do princípio de que os indivíduos reais concretos, por meio de suas práticas e experiências, criam e direcionam, a partir dessas condições, suas representações/pensamentos.

(SACARDO; SILVA, 2017SACARDO, Michele; SILVA, Régis Henrique dos Reis. A crítica crítica dos giros epistemológicos e/ou linguísticos no debate político-epistemológico da área da Educação Física. Germinal: Marxismo e Educação em Debate, v. 9, n. 2, p. 26-39, 2017. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/revistagerminal/article/view/15883. Acesso em: 11 nov. 2023.
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, p. 29 e 33).

[...] a realidade concreta, em sua totalidade, como um todo estruturado e em constante movimento e transformação, é o ponto de partida – o referente objetivo – para a produção de conhecimento, a prática social é o critério de verdade e as contradições históricas são o motor que nutri a articulação coletiva para construir outra forma de vida, outra relação social

(SCAPIN; SOUZA, 2022SCAPIN, Gislei José; SOUZA, Maristela da Silva. Epistemologia da Educação Física e a agenda pós-moderna: uma descrição histórica para situar o debate. Germinal: marxismo e educação em debate, v. 14, n. 3, p. 366-383, 2022. DOI: https://doi.org/10.9771/gmed.v14i3.51128
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, p. 380).

Como expresso, para os pesquisadores da reação ontológica a matéria/realidade antecede a consciência e a linguagem. Isso porque na óptica da dialética marxista, o ponto de partida é sempre o concreto-dado, ou seja, parte-se do que é existente, mas não se limita ao que se apresenta como aparente, porque busca-se compreender e superar os determinantes contraditórios da realidade que está posta. A propósito, na leitura dessa concepção, a linguagem e o pensamento, muitas das vezes, pode servir como uma máscara da realidade (aparato ideológico) que intenta esconder as contradições da realidade do mundo capitalista. Assim sendo, o pensamento e a linguagem conseguem representar apenas uma parcela do real, mas jamais conseguirá ser o real, uma vez que ele existirá independentemente de qualquer coisa.

Os pesquisadores dos giros linguísticos criticam a postura de absolutidade, da concepção de objetividade assumida pelos representantes da reação ontológica, porquanto nos critérios analíticos desta corrente epistêmica, o real, a verdade, a razão/racionalidade, o conhecimento só possuem coerência, legitimidade e autenticidade se forem assentados nos aparatos teóricos da dialética marxista. Qualquer teoria, pensamento ou análise que prescindir das bases marxistas (que é preconizada como a única capaz de desvelar o real), ganha alcunhas do tipo: idealista, irracionalista, relativista, conservadora, burguesa, pós-moderna, aliada do capital, reacionária etc. Nas palavras do pesquisador Felipe Quintão de Almeida, as críticas assim se manifestam:

[...] O problema é quando você acredita demais na sua teoria e não tem dúvidas, acho que isso é um problema, muitas vezes na EF a gente tem muitas certezas, as pessoas têm muitas certezas e poucas dúvidas, acho isso problemático, não estou dizendo que a gente não tem que ter certeza em algumas coisas, mas a gente é muito crente em várias coisas, às vezes nesse texto aí dos giros, talvez por força ou impulsionado pela necessidade de marcar uma posição você acaba construindo um argumento mais duro, por assim dizer, se colocando mesmo contra, mas diria que às vezes é se colocar contra mas também com, é contra mas também com, não tem problema essa ambiguidade eu diria, acho que isso não é um problema, o problema é quando você acha: “minha perspectiva é melhor” porque ela reproduz a verdadeira leitura da realidade, uma leitura mais completa, a leitura que oferece um ponto de vista que você não é capaz de ver porque você não usa a mesma referência que eu, isso é problemático. Em última instância isso é totalitarismo epistemológico, uma posição que não compartilho, acho um pecado formar as pessoas a partir dessa lógica

(Felipe Quintão de Almeida).

Se de um lado critica-se o caráter categórico da noção de verdade, do outro, os adeptos da reação ontológica denunciam que a noção de verdade sustentada pelos giros linguísticos contribui para o estabelecimento de perspectivas e narrativas totalmente subjetivas, convencionalistas e relativas, não tendo nenhum grau de objetividade e conexão com as determinações da realidade concreta:

Os ceticismos, os irracionalismos e relativismos contribuem para a reprodução e legitimação do atual quadro econômico, político e ideológico, sob a mistificação fragmentária, individualista, hedonista da prática social e sob a redução do real à expressão linguística, pois objetiva e subjetivamente inviabilizam a formação de um coletivo, com interesses de mesma ordem, que supere tal quadro

(SCAPIN; SOUZA, 2022SCAPIN, Gislei José; SOUZA, Maristela da Silva. Epistemologia da Educação Física e a agenda pós-moderna: uma descrição histórica para situar o debate. Germinal: marxismo e educação em debate, v. 14, n. 3, p. 366-383, 2022. DOI: https://doi.org/10.9771/gmed.v14i3.51128
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, p. 380).

Algumas das críticas endereçadas aos giros linguísticos levam a um entendimento de que os pesquisadores dessa corrente concordam com um relativismo extremo, no qual não haveria qualquer pretensão de verdade/objetividade, como se tudo que fosse justificado “linguisticamente”, sem qualquer critério, ou por meio de consensos, pudesse ter validade em nome de uma verdade relativa e subjetivista. Se assim fosse, ter-se-ia uma concepção plenamente inconsequente e desarrazoada, cuja máxima seria uma espécie de “vale tudo” epistêmico em que se teria o “universo das verdades do arbítrio”. Nem mesmo uma orientação idealista, se levar a cabo a radicalidade dessa crítica, seria possível, pois o idealismo possui seus critérios de análise e de compreensão da realidade (como a lógica dialética de Hegel). Ou somente os critérios analíticos da lógica da dialética materialista são válidos? Não há nenhum fundamento lógico que justifique epistemologicamente a crença de que apenas os critérios analíticos de uma única linha teórica são autênticos. Em resposta às críticas que acusam os giros linguísticos de operar com uma perspectiva que caminha em direção a um imperativo de inverdades, Valter Bracht assevera que:

[...] não significa que a verdade tenha desaparecido, ou que ela não nos interessa mais [...] o que nós temos que ter clareza é que esse conhecimento é mediado linguisticamente, ele é relativo, é histórico e assim por diante. Isso tem um significado e uma importância inclusive política, porque a ideia de democracia é muito mais facilmente compatível com uma ideia de verdade histórica, relativa, etc., do que com uma verdade cabal, do que uma dialética com uma síntese final. A dialética é importante, mas ela é interessante na medida que deixa o processo sempre em aberto, ou seja, uma dialética sem síntese

(Valter Bracht).

Ademais, rotiniza-se tachar de idealista as perspectivas dos giros linguísticos, desconsiderando as discrepâncias epistemológicas do próprio idealismo com as diferentes linhas teóricas que integram os giros linguísticos (ALMEIDA; BRACHT; VAZ; 2012ALMEIDA, Felipe Quintão de; BRACHT, Valter; VAZ, Alexandre Fernandes. Classificações epistemológicas na Educação Física: redescrições... Movimento, v. 18, n. 4, p. 241-263, out./dez. 2012. DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8918.27727
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). Em vista disso decorre a impressão de que na leitura dos pesquisadores da reação ontológica só há duas possibilidades de orientação lógica, o idealismo e a dialética materialista, pois basicamente tudo aquilo que difere da lógica dialética materialista é rotulado pelos seus seguidores, quase sempre de maneira pejorativa, como sendo uma perspectiva de linhagem idealista (usa-se o termo de virada idealista como sendo sinônimo de virada linguística).

Rotular de idealistas as perspectivas que, em Filosofia, praticaram os “giros” linguísticos, acusando-as de tornar impossível o conhecimento pleno da realidade, significa desconsiderar que idealismo e “giro” linguístico nada têm em comum, pois são tradições distintas não apenas historicamente, mas, também, em seus pressupostos epistemológicos

(ALMEIDA; BRACHT; VAZ, 2012ALMEIDA, Felipe Quintão de; BRACHT, Valter; VAZ, Alexandre Fernandes. Classificações epistemológicas na Educação Física: redescrições... Movimento, v. 18, n. 4, p. 241-263, out./dez. 2012. DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8918.27727
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, p. 253).

Então, esse tipo de postura de imputar rótulos de forma generalizada e sem a devida coerência teórica-epistemológica não contribui em nada para o desenvolvimento e amadurecimento do debate, muito pelo contrário, empobrece-o, na medida em que denota uma grande fragilidade teórica e analítica. Ademais, essa atitude coadjuva para a propagação de “estereótipos teóricos” que podem prejudicar, sobremaneira, a formação científica (por favorecer fragilidades na recepção e na apropriação teórica), mormente, dos sujeitos que encontram-se em processo de formação inicial (SOUZA et al., 2022SOUZA, Juliano de; BUNGENSTAB, Gabriel Carvalho; SILVA, Marcelo Moraes e; GARCIA, Rui Proença. Interfaces entre educação física e teoria social–reflexões e desafios para a formação científica. Educação, Ciência e Cultura, v. 27, n. 2, 2022. DOI: https://doi.org/10.18316/recc.v27i2.8575
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).

Os autores que se alinham aos giros linguísticos advogam pela pluralidade do campo da EF brasileira, por isso objetam o ideário de haver uma “Verdadeira EF” que só poderia ser acessada mediante a utilização de uma chave de leitura que seria concedida de maneira exclusiva por uma determinada linha teórica (FENSTERSEIFER, 2000FENSTERSEIFER, Paulo Evaldo. A crise da racionalidade moderna e a Educação Física. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, v. 22, n. 1, 2000. Disponível em: http://revista.cbce.org.br/index.php/RBCE/article/view/751. Acesso em: 11 nov, 2023.
http://revista.cbce.org.br/index.php/RBC...
). Esses autores sustentam ser mais prolífico preocupar-se em compreender as diferentes “formas-de-ser” da EF brasileira que vêm sendo edificadas no cenário hodierno (REZER, 2010REZER, Ricardo. O trabalho docente na Formação Inicial em Educação Física: reflexões epistemológicas. 2010. Tese (Doutorado em Educação Física) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2010.). Sendo o diálogo e a disposição argumentativa para o debate uma (ainda que frágil) possibilidade de composição de uma unidade para o campo (FENSTERSEIFER, 2000FENSTERSEIFER, Paulo Evaldo. A crise da racionalidade moderna e a Educação Física. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, v. 22, n. 1, 2000. Disponível em: http://revista.cbce.org.br/index.php/RBCE/article/view/751. Acesso em: 11 nov, 2023.
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).

Essa atitude de uma disposição dialógica e plural no contexto do debate da EF brasileira é interpelada por Sacardo e Silva (2017)SACARDO, Michele; SILVA, Régis Henrique dos Reis. A crítica crítica dos giros epistemológicos e/ou linguísticos no debate político-epistemológico da área da Educação Física. Germinal: Marxismo e Educação em Debate, v. 9, n. 2, p. 26-39, 2017. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/revistagerminal/article/view/15883. Acesso em: 11 nov. 2023.
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. Para elas, nota-se uma demasiada contradição na postura dos pesquisadores dos giros linguísticos, dado que eles argumentam em favor da pluralidade teórica e política, mas, no fim das contas, ensejam afirmarem seus discursos no campo ao terem ações para silenciarem outras perspectivas. Nos termos dos autores, isso representa:

[...] uma das primeiras inconsistências daqueles que acreditam no atual quadro de “pluralismo teórico e político” na área, pois, se nos Colóquios promovidos até 2010 o debate sobre a referida polêmica entre modernidade e pós-modernidade ofereceu espaço para as diferentes perspectivas epistemológicas, já a partir do VI Colóquio (2012), o debate dito como “plural” concentrou-se naqueles que se alinham à determinada perspectiva, qual seja, a do “giros linguísticos ou giros epistemológicos”. A impressão que ficou foi a necessidade de se evitar o debate e de se auto afirmar o discurso, até porque os defensores dessa perspectiva têm criticado, veemente, concepções de verdade, razão e crítica; portanto, contraditoriamente, parece que são suas próprias ideias que estão além de toda a crítica ou de contra argumentação

(SACARDO; SILVA, 2017SACARDO, Michele; SILVA, Régis Henrique dos Reis. A crítica crítica dos giros epistemológicos e/ou linguísticos no debate político-epistemológico da área da Educação Física. Germinal: Marxismo e Educação em Debate, v. 9, n. 2, p. 26-39, 2017. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/revistagerminal/article/view/15883. Acesso em: 11 nov. 2023.
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, p. 28).

No que se refere à essa crítica de Sacardo e Silva (2017)SACARDO, Michele; SILVA, Régis Henrique dos Reis. A crítica crítica dos giros epistemológicos e/ou linguísticos no debate político-epistemológico da área da Educação Física. Germinal: Marxismo e Educação em Debate, v. 9, n. 2, p. 26-39, 2017. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/revistagerminal/article/view/15883. Acesso em: 11 nov. 2023.
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, Felipe Quintão de Almeida contra argumenta dizendo que ela não é plausível, pois, para ele, os motivos pelo qual o materialismo histórico-dialético perdeu força no campo não possui relação com esta suposta pluralidade teórica seletiva. Na análise do autor:

Perdeu força porque outras teorias apareceram, é natural isso. E muitas dessas teorias colocam em questão a própria tradição do marxismo. Normal, nenhuma teoria oferece a única leitura da realidade [...]. O pensamento marxista saiu do GTT”, não sei a causa, agora no último CONBRACE tem vários trabalhos da Celi, de Silvio Gamboa, então não tem patrulha ideológica [...] Trabalhei na RBCE vários anos e tive duas gestões de GTT de epistemologia, posso dizer com tranquilidade, nenhum trabalho foi recusado por ser marxista, ele foi recusado por ser um trabalho ruim [...] acho que uma parte considerável daquilo que se chama de pedagogia marxista da EF é ruim, é o marxismo ruim, e não tem que ter medo de falar isso, porque opera mal com outros conceitos, porque considera que autocríticas realizadas no âmbito da própria tradição marxista não valem, porque não é mais marxismo, é outra coisa, menos marxismo.

(Felipe Quintão de Almeida).

Nessa seara, muito dos embates travados caminham mais na dimensão pessoal e política do que na esfera epistemológica (ALMEIDA, BRACHT, VAZ, 2012ALMEIDA, Felipe Quintão de; BRACHT, Valter; VAZ, Alexandre Fernandes. Classificações epistemológicas na Educação Física: redescrições... Movimento, v. 18, n. 4, p. 241-263, out./dez. 2012. DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8918.27727
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).

[...] se a gente entra no campo de disputa para ver quem é o mais bonito, isso, em certa medida, encerra a possibilidade de um debate que amadureça as relações entre aportes teóricos incomensuráveis e em que medida esses aportes podem produzir questionamentos que produzem esse amadurecimento e que possam permitir leituras de mundo mais qualificadas

(Ricardo Rezer)

Alguns dos entrevistados não compactuam com nenhuma das perspectivas dos giros epistemológicos (giro linguístico e giro ontológico), pois se fundamentam em outras correntes teóricas que lhes possibilitam outras lentes de leitura, interpretação e compreensão das questões que estão no cerne desse debate. Sendo assim, eles fogem da dicotomização advinda dos embates entre os giros linguísticos e sugerem alternativas diferentes (posição C).

O pesquisador Juliano de Souza rechaça as duas perspectivas dos giros epistemológicos. Em sua visão, nenhuma delas consegue contribuir para o avanço epistemológico do campo. Ao invés disso, para ele, elas têm reforçado determinadas dualidades e fragmentações que podem causar a entropia da área. Para ele, ambas as correntes dos giros epistemológicos não possuem no núcleo de suas perspectivas teóricas a preocupação com a especificidade da EF. Abordam e debatem diferentes temáticas, mas deixam de lado questões que são singulares daquilo que seria a essência da EF, a saber, o movimento humano (SOUZA, 2021SOUZA, Juliano de. Do homo movens ao homo academicus: rumo a uma teoria reflexiva da Educação Física. São Paulo: Liber Ars, 2021.).

Souza (2021)SOUZA, Juliano de. Do homo movens ao homo academicus: rumo a uma teoria reflexiva da Educação Física. São Paulo: Liber Ars, 2021. argumenta em favor da recuperação de uma orientação ontológica para a EF, porém deixa bem demarcado que a sua compreensão de ontologia é totalmente divergente da concepção que é defendida pelos pesquisadores da reação ontológica. Para ele, deve-se compreender a ontologia de maneira reflexiva e não com base em uma teleologia determinística como a sustentada pela base marxista:

Tenho insistido que a questão crucial é dar um passo atrás e fazer um recuo ontológico, não ao modo marxista. Para muitos, quando se fala em ontologia estamos nos remetendo ao marxismo. Pelo contrário, há várias outras ontologias. Trabalho com uma ontologia reflexiva e não determinística do mundo social.

(Juliano de Souza).

Em outra passagem, Souza (2021)SOUZA, Juliano de. Do homo movens ao homo academicus: rumo a uma teoria reflexiva da Educação Física. São Paulo: Liber Ars, 2021. expõe de maneira mais pormenorizada a sua concepção ontológica e, simultaneamente, direciona críticas à perspectiva dos giros linguísticos. O centro da preocupação dele está em tentar mostrar que a EF possui uma base ontológica (o movimento humano) própria que lhe garante a sua especificidade, não sendo plausível e profícuo importar bases ontológicas de outras áreas. Necessita-se, portanto, na análise do referido intelectual, circunscrever e (re)direcionar o debate para as problemáticas que são essencialmente inerentes ao homo movens (homem em movimento) (SOUZA, 2021SOUZA, Juliano de. Do homo movens ao homo academicus: rumo a uma teoria reflexiva da Educação Física. São Paulo: Liber Ars, 2021.).

Note-se que o modelo de inteligibilidade histórica assentado na figura do giro linguístico acentuou a fragmentação no interior da área. Fez-se da fragmentação das identidades culturais um projeto para tentar definir a identidade epistemológica da EF escolar [...] A EF escolar e mais amplamente a EF se encontram muito especializadas e fragmentadas. Daí a necessidade de recuperarmos o paradigma perdido de nossa área, a sua base ontológica, o seu objeto [...] Nossa ontologia é a do homem em movimento ou, tão somente, do movimento humano, do homem que se movimentou para além das cadeias operatórias normais, para além daquela socialização primária da natureza que garantiu sua subsistência

(SOUZA, 2021SOUZA, Juliano de. Do homo movens ao homo academicus: rumo a uma teoria reflexiva da Educação Física. São Paulo: Liber Ars, 2021., p. 22).

Por seu turno, Mauro Betti argumenta que a sua perspectiva não corresponde a uma terceira alternativa para compor o debate, mas sim a única que pode conseguir romper com as dicotomias dos giros epistemológicos e dar melhores explicações sobre as questões atinentes à realidade. O autor fundamenta-se na corrente teórica denominada de semiótica que tem as suas bases oriundas dos pensamentos de Charles Sanders Peirce. Essa corrente teórica defende que o real não pode ser acessado sem a mediação dos signos.

Eu vejo a semiótica ou lógica geral dos signos de Peirce não como uma terceira via, mas a única via; não é a terceira, é a única! Porque existe o real bruto, mas a ele é inacessível de modo direto, eu não consigo acessá-lo diretamente, eu só consigo acessá-lo pela intermediação dos signos. Essa é a posição do Peirce, que seria uma espécie de idealismo objetivo; então não há dicotomia entre objetivo e subjetivo. É interessante o giro linguístico: a própria denominação refere-se à língua, às palavras [...], mas o que o Peirce propõe é que qualquer coisa (não só as palavras) pode ser signo: um objeto, um gesto, um movimento, uma dança, uma coreografia, um drible no futebol, um movimento na capoeira, tudo é ou pode ser signo, e o signo é para alguém

(Mauro Betti).

Por defender que a semiótica é uma perspectiva mais fértil e integrativa do que a dos giros linguísticos e do giro ontológico, Betti assume também uma postura de indiferença com esse debate dos giros epistemológicos (posição C). Para ele o debate tem servido muito mais para uma questão de demarcação de espaço no campo e definição de “adversários teóricos”, do que propriamente para o desenvolvimento epistemológico da EF brasileira. Por isso, na sua concepção, trata-se de “uma discussão estéril” (Mauro Betti).

De maneira análoga, apesar de ter mais anuência com a agenda dos giros linguísticos, o pesquisador Marcelo Moraes e Silva entende que os debates travados entre os grupos dos giros epistemológicos não dispõem de fecundidade epistemológica (posição C). Há, no prisma dele, outras problemáticas extremamente mais relevantes e prementes para serem debatidas pelos pesquisadores da EF brasileira do que as que são discutidas por esse embate entre as correntes dos giros epistemológicos. Sobre isso, o autor diz:

[...] são discursos especializados, eles dominam alguns autores, mas vejo esse debate um pouco inócuo, apesar de tender um pouco a concordar com a crítica que o giro linguístico faz, não acredito muito nessa ortodoxia marxista. Portanto, teoricamente me afino mais a isso, mas pensando em EF como área, eu acho que o debate não chega a lugar nenhum

(Marcelo Moraes e Silva).

O fato de o pesquisador Pedro Hallal preferir não se posicionar sobre a questão referente ao debate dos giros epistemológicos (posição C) demonstra o seu teor ultraespecializado e a sua feição esotérica (no sentido de ser algo exclusivo de certos grupos da EF brasileira). Corroborando com Bracht, esse debate não incomoda o campo como um todo, muito pelo contrário, ele se limita à perspectiva de apenas alguns poucos grupos vinculados à subárea sociocultural e pedagógica.

Nesse sentido, pode-se perguntar: por quais motivos esse debate deveria interessar a todo o campo? Para que e para quem esse debate tem “serventia”? Quais os desdobramentos concretos desse debate para o desenvolvimento da EF brasileira? Obviamente, não é o caso e não compete ao presente trabalho responder a essas questões, as quais são apenas provocações para os pesquisadores que estão imersos na disputa desse jogo epistemológico considerarem (claro, se acharem por bem fazer isso) e refletirem.

4 CONCLUSÃO

Diante do que foi abordado nesse texto, depreende-se que as principais problemáticas do debate epistemológico da EF brasileira estão contidas na seguinte temática: I) pluralidade: como o campo deve lidar com sua condição plural? É possível ter uma unidade ou um consenso mínimo em um universo de pluralidade? Quais os riscos e as consequências da pluralidade? Quais as possibilidades de se pensar área de maneira integrativa e relacional?

A partir da produção científica e das entrevistas, conclui-se que a discussão epistemológica da EF brasileira avança rumo à uma condição de pluralidade, contudo, ela parece vir acompanhada de problemas em relação à formação científica, sobretudo, pelos vícios referentes às apropriações teóricas dos autores (e das teorias) e, também, pela formação especializada que inviabiliza o diálogo entre os pesquisadores das diferentes subáreas. Cada qual segue se especializando continuamente na sua linha de pesquisa e a partir disso, refaz-se “[...] o mito da Torre de Babel, cada especialidade fala numa linguagem própria e hermética e já ninguém se entende” (GAYA, 2017GAYA, Adroaldo Cezar Araújo. O Pós-graduação e a formação de professores de educação física no Brasil. Revista Brasileira de Educação Física e Esporte, v. 31, p. 71-75, 2017. DOI: https://doi.org/10.11606/1807-55092017000nesp071
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, p. 72). Por isso, Valter Bracht e Juliano de Souza alertam-nos sobre a imprescindibilidade de o campo passar a se preocupar de maneira mais diligente com a especificidade da área e com um currículo que garantirá uma base sólida e integrativa para os sujeitos em formação.

Por fim, salienta-se que não há nenhum problema quando determinado pesquisador escolhe os conhecimentos de uma teoria específica que lhe dará melhores possibilidades para o desenvolvimento da sua pesquisa/atuação profissional, dado que “[...] em cada nível de análise, existem epistemologias e metodologias adequadas” (TANI, 1996TANI, Go. Cinesiologia, educação física e esporte: ordem emanente do caos na estrutura acadêmica. Motus Corporis, v. 3, n. 2, p. 9-50, 1996., p. 29). Entretanto, o problema surge quando as teorias são apresentadas e defendidas de modo a desqualificar e marginalizar outras sem o devido rigor teórico-epistemológico.

  • 1
    Não interessou a quantidade de produções que o intelectual tem sobre a epistemologia da Educação Física brasileira, mas sim o(s) impacto(s) e a importância que o seu(s) trabalho(s) teve/tiveram para o campo.
  • 2
    Apresentamos os nomes dos entrevistados porque eles, ao assinarem o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), concordaram em ter seus nomes divulgados na pesquisa.
  • 3
    Como nenhum intelectual da matriz crítico-dialética foi entrevistado, as referências para as análises provenientes do giro ontológico serão exclusivamente oriundas da produção do conhecimento.
  • 4
    O objetivo aqui é tão somente o de organizar as posições dos autores para facilitar o desenvolvimento argumentativo. Não há qualquer intenção de classificá-los ou rotulá-los.
  • FINANCIAMENTO

    O presente trabalho foi realizado sem o apoio de fontes financiadoras.
  • ÉTICA DE PESQUISA

    A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética de Pesquisa da Universidade Federal de Goiás, com o número de protocolo 4.898.746
  • COMO REFERENCIAR

    GARCIA, Silas Alberto; BUNGENSTAB, Gabriel Carvalho. Classificações, rótulos e giros: o panorama da discussão epistemológica da educação física brasileira no século XXI. Movimento, v. 29, p. e29056, jan./dez. 2023. DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8918.130119

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    » https://doi.org/10.22456/1982-8918.27727
  • ALMEIDA, Felipe Quintão de; VAZ, Alexandre Fernandes. Do giro linguístico ao giro ontológico na atividade epistemológica em Educação Física. Movimento, v. 16, n. 3, p. 11- 28, jul./set. 2010. DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8918.12485
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  • BUNGENSTAB, Gabriel Carvalho. Epistemologia da Educação Física brasileira: (re) descrições da atividade epistemológica no século XXI. Movimento, v. 26, p. 1-14, 2020. DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8918.100551
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  • YIN, Robert K. Pesquisa qualitativa do início ao fim Porto Alegre: Penso Editora, 2016.

Editado por

RESPONSABILIDADE EDITORIAL

Alex Branco Fraga *, Elisandro Schultz Wittizorecki *, Mauro Myskiw *, Raquel da Silveira *
*Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança, Porto Alegre, RS, Brasil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    22 Mar 2023
  • Aceito
    05 Out 2023
  • Publicado
    14 Dez 2023
Universidade Federal do Rio Grande do Sul Rua Felizardo, 750 Jardim Botânico, CEP: 90690-200, RS - Porto Alegre, (51) 3308 5814 - Porto Alegre - RS - Brazil
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