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A FORMA DO ENSAIO DE ROBERTO SCHWARZ: Acumulação crítica e o fio solto do modernismo brasileiro

The Form of Roberto Schwarz’s Essay: Critical Accumulation and the Loose End of the Brazilian Modernism

RESUMO

Este texto busca entender como a dialética de Roberto Schwarz se insere na própria forma ensaística de sua obra. Argumenta-se que há em sua crítica uma percepção aguda para a escrita do ensaio por meio do qual a literatura e a cultura brasileira são analisadas e interpretadas. Diante disso, reavalia-se a relação de Schwarz com o modernismo brasileiro, além de se recuperar sua própria obra de criação, como A lata de lixo da história e Corações veteranos.

PALAVRAS-CHAVE:
Roberto Schwarz; ensaio; modernismo

ABSTRACT

This article aims at understanding how the dialectics of Roberto Schwarz presents itself in the form of his essay. It argues that his critique shows a keen perception for the writing of the essay by which Brazilian literature and culture are analyzed and interpreted. By doing so, it re-evaluates the relation between Schwarz and the Brazilian modernism, besides recovering his own creative work like A lata de lixo da história and Corações veteranos.

KEYWORDS:
Roberto Schwarz; essay; modernism

Desta forma, aproximam-se coisas que pareciam muito distantes umas das outras.

Ernst Bloch, A herança deste tempo

Ao comentar a abordagem de Antonio Candido à obra de Sílvio Romero, Roberto Schwarz (1999______. Sequências brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1999., p. 11) se detém na forma com que ele elabora o ensaio. Percebe, assim, que, para dar consistência a um ambiente cultural sentido como ralo ou dispersivo em relação às sociedades que lhe serviam de padrão, Candido precisava “reconhecer e superar o desequilíbrio e a precariedade de nossa herança cultural”, centrada, no caso da historiografia literária, na figura de Sílvio Romero. A própria escrita de Candido é reconfigurada diante dos problemas específicos que se colocam: “Para escrever a respeito, o crítico desenvolve um estilo que combina a seriedade e o senso amistoso do ridículo, estilo que registra e reequilibra nos termos devidos a importância que tem para nós […] a nossa formação cultural defeituosa”.

Desse modo, a imersão da obra crítica de Antonio Candido em uma série de objetos singulares - no caso, a tradição da crítica e da literatura brasileira - resulta em uma escrita que incorpora criteriosamente algo de seu objeto: linguagem, dinâmica, movimento interno, aspiração, achados e reversão de defeitos por via do humor, o que contribui decisivamente para sua pertinência.

Nesses termos, é possível se perguntar, igualmente, de que modo a dialética de Roberto Schwarz se insere na própria forma ensaística de sua obra. A hipótese que aqui se apresenta é a de que a seu pensamento original corresponde uma forma de escrita igualmente original. Para tanto, Schwarz mobilizou, além da teoria crítica internacional,1 1 “Meu trabalho seria impensável igualmente sem a tradição — contraditória — formada por Lukács, Benjamin, Brecht e Adorno” (Schwarz, 1990, p. 13). um conjunto de obras literárias e críticas da literatura brasileira, entre as quais as de Machado de Assis, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Manuel Bandeira, Augusto Meyer e Antonio Candido. A mobilização criteriosa e original da obra crítica de seus predecessores não se restringe à recuperação de problemas e impasses da literatura brasileira: inclui também uma percepção aguda da forma do ensaio em que essa literatura era analisada e interpretada. Essa percepção é tributária, em grande medida, do período de agitação política e cultural, bem como de provocação artística, das décadas de 1960 e 1970, em que a recuperação da estética modernista, sobretudo de Oswald de Andrade, convivia com o estudo renovado da obra de Marx. Ensaios como “Cultura e política, 1964-1969” e “As ideias fora do lugar” são pontos altos dessa conjunção entre estética inconformista e crítica marxista.

A recepção crítica da obra de Roberto Schwarz raramente se debruçou sobre seu ensaio como forma. Em um dos poucos textos a respeito, Flora Süssekind (1988Süssekind, Flora. “Ou não? Reflexões parciais sobre a crítica de Davi Arrigucci e Roberto Schwarz”. Novos Estudos Cebrap , n. 20, mar. 1988, pp. 96-109.) comparara os métodos de análise de Roberto Schwarz e Davi Arrigucci a partir do pressuposto de que ambos dão continuidade à relação dialética entre literatura e sociedade presente na obra de Antonio Candido. Enquanto Arrigucci tenta mimetizar “amorosamente” em sua escrita os objetos de análise, visando “encantar” o leitor, Schwarz procede por uma “desconfiança permanente”, em uma escrita alerta e concisa, “colando o método dialético à própria sintaxe e fazendo da elipse verdadeiro paradigma estilístico, parece testar todo tempo o seu interlocutor, tirando-lhe qualquer possibilidade de relaxamento” (Süssekind, 1988, p. 98).

Considerações igualmente precisas sobre o ensaio schwarziano surgiram de um debate publicado na revista Novos Estudos, n. 29, a propósito do lançamento de Um mestre na periferia do capitalismo (1990)______. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Duas Cidades, 1990.. Aí, a descrição mais detalhada é a de José Antônio Pasta Jr., que mapeia, por exemplo, o esgotamento de campos semânticos em torno de certas noções-chave como “desfaçatez”. Sua formulação é quase hiperbólica: “É uma espécie de poema em prosa crudelíssimo embutido no seu texto, um rápido poema em prosa contra si mesmo, antipoético” (Pasta Jr. apudSchwarz et al., 1991______; Alencastro, Luiz Felipe de; Arrigucci Jr., Davi; Gianotti, José Arthur; Naves, Rodrigo; Oliveira; Francisco de; Pasta Jr., José Antônio. “Machado de Assis: um debate”. Novos Estudos Cebrap, n. 29, mar. 1991, pp. 59-84., p. 79). Em seguida, descreve o material aparentemente heterogêneo que, no entanto, potencializa a linguagem crítica: “A sintaxe muito culta, muito armada, e o vocabulário da filosofia muito presente - das ciências humanas, mas da filosofia em particular - junto com localismos e até caipirismos”. Tocando num ponto de particular interesse para este texto, Pasta Jr. conecta esses procedimentos ao legado estético do modernismo, presente na ensaística de Schwarz: “Há aí uma filiação modernista mais marcada, um cultivo da prosa do Mário e que vai longe, vai a um uso da língua que espanta. […] Você vai de desenvolvimentos extremamente complicados a particularizações muito súbitas” (idem).

Roberto Schwarz, com frequência ambivalente em suas avaliações do modernismo brasileiro, quando não francamente hostil ao que seriam os pressupostos de classe do movimento, como se lê em “A carroça, o bonde e o poeta modernista” (Schwarz, 1987______. Que horas são?. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.), explica até que ponto a linguagem de sua escrita se apoia nessa estética. Pensando em críticos dialéticos como Marx, Adorno, Sartre e Benjamin, observa que haveria um tipo de disciplina da escrita: “[…] cada frase tem que conter, de alguma maneira, a contradição de que você está tratando, e os termos da contradição estão dentro da frase, de maneira que você de certo modo interioriza no estilo a contradição que está tentando descrever” (Schwarz, 1991______; Alencastro, Luiz Felipe de; Arrigucci Jr., Davi; Gianotti, José Arthur; Naves, Rodrigo; Oliveira; Francisco de; Pasta Jr., José Antônio. “Machado de Assis: um debate”. Novos Estudos Cebrap, n. 29, mar. 1991, pp. 59-84., p. 81). Para percorrer esses meandros, o crítico absorveu os diversos registros da língua, dentre os quais o coloquial tem lugar de destaque, e daí a vinculação com o modernismo, embora, como afirma, “sem querer”: “De minha parte, por exemplo, aliás sem querer, a adesão ao coloquial eu tingi de Modernismo, que é a escola local para fazer esse tipo de coisa” (grifos nossos). Pensando exclusivamente na estética modernista dos anos 1920, ele busca se distanciar do movimento, pois neste “não há essa preocupação com a lógica do social”, com exceção, segue Schwarz, da prosa de Oswald, que se aproxima da atitude revolucionária do marxismo nos seguintes termos: “Ele busca radicalizar as questões ao máximo em cada frase, levar ao máximo de escândalo. Se poderia fazer uma análise da disciplina política da prosa do Oswald, da mais anárquica, é claro” (idem, pp. 81-2).

Ao recuperar o que mapeamos até agora na recepção da escrita de Schwarz, notamos que seu ensaio dialético e interdisciplinar desconfia dos materiais teóricos e literários de que dispõe, colocando o leitor em alerta o tempo todo. Para isso, o recurso à elipse é constante, com justaposições bruscas e sobreposição de registros de linguagem. Esses últimos recursos recuperam o legado modernista não apenas em seu aproveitamento do coloquial, mas igualmente no levantamento dos registros de linguagem, criando um arcabouço localista capaz de conferir concreção ao movimento das ideias. A essa função propriamente hermenêutica, em que o conhecimento da linguagem é parte do conhecimento do país, soma-se o elemento de desierarquização - anárquico e provocador - presente sobretudo em Oswald, mas difuso pelo movimento como um todo.

MATÉRIA E FORMA: A CONSTITUIÇÃO DE UM PONTO DE VISTA INTERNO À PRÓPRIA LITERATURA BRASILEIRA

Uma vez circunscritos alguns componentes básicos da forma de seu ensaio, cumpre fazer o mesmo com sua matéria. Quanto à perspectiva histórica, a primeira providência do crítico foi estabelecer um ponto de vista analítico e interpretativo interno à própria literatura brasileira. Acompanhemos, então, de modo sucinto, um dos percursos desse ponto de vista interno.

Mário de Andrade, em “O Movimento Modernista”, concluiu que o nacionalismo cultural do modernismo ultrapassava a esfera da literatura e buscava intervir na cultura e na sociedade como um todo. Nesse sentido, a autoconsciência do modernismo quanto a sua própria posição e seu significado podia se tornar, ela mesma, uma perspectiva analítica. Essa perspectiva, ao olhar para a história da literatura brasileira, vê que algo análogo aconteceu no Romantismo (isto é, um movimento literário que busca intervir, construir e pesquisar a nacionalidade brasileira). Essa relação estreita entre literatura e sociedade, mediada pelo empenho do artista, leva Mário a concluir que esse processo, essa atitude “diferencia fundamentalmente Romantismo e Modernismo das outras escolas de arte brasileiras” (Andrade, 2002Andrade, Mário de. Aspectos da literatura brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia, 2002., p. 274). Pode não parecer, mas esse passo é ousado e de longo alcance: o modernismo se erige em perspectiva para narrar a história da cultura no Brasil e projeta retrospectivamente seus valores. Assim, o romantismo será no século XIX um tipo de espelho, de análogo do que foi o modernismo no século XX.

Próximo ao modernismo e até certo ponto seu herdeiro, Antonio Candido incorpora essa arquitetura histórico-literária do modernismo e afirma, em “Literatura e cultura de 1900 a 1945”, que a literatura brasileira tem dois momentos decisivos: o romantismo no século XIX e o modernismo no XX (Candido, 2008Candido, Antonio. Literatura e sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2008., p. 119). Porém, Antonio Candido vai além e se propõe a levar ao limite esse espelhamento modernista. Em Formação da literatura brasileira (1959), busca aderir à perspectiva (não aos valores, bem entendido) da primeira geração romântica para entender o processo que vai do nativismo árcade (1750) à maturidade do Machado de Assis crítico (1873). Não é o caso de remontar o argumento de Candido, mas de perceber como se constitui um ponto de vista histórico-literário consistente baseado no adensamento de uma experiência do presente do crítico, que reconhece e recompõe um influxo interno na história cultural do Brasil.

Uma década depois de Formação da literatura brasileira, pode-se ver uma transformação dessa experiência do presente no balanço feito por Roberto Schwarz em “Cultura e política, 1964-1969”. Após repassar a agitação política e cultural das décadas de 1950 e 1960, Schwarz faz a seguinte análise do golpe de 1964:

A integração imperialista, que em seguida modernizou para os seus propósitos a economia do país, revive e tonifica a parte do arcaísmo ideológico e político que necessitava para a sua estabilidade. De obstáculo e resíduo, o arcaísmo passa a instrumento intencional da opressão mais moderna, como aliás a modernização, de libertadora e nacional passa a forma de submissão. (Schwarz, 1978______. O pai de família e outros estudos. São Paulo: Paz e terra, 1978., p. 74)

Retomando o procedimento de espelhamento retrospectivo que vimos em “O movimento modernista”, de Mário de Andrade, podemos então nos perguntar: qual seria o espelho histórico, retrospectivo, da união entre o moderno e o arcaico que Roberto Schwarz observa no Brasil em 1964-68? Sobre que momento da história brasileira essa experiência da ditadura militar lança luz? Essa experiência permitiu vislumbrar em retrospectiva a convivência altamente problemática entre liberalismo e escravismo no século XIX, fenômeno que ele denominou “As ideias fora do lugar”, em que o nó da vida intelectual brasileira consistia na convivência contínua e contraditória dos imperativos da racionalidade produtiva (liberalismo) e da dominação arcaica (escravidão).

A reflexão de Roberto Schwarz sobre a matéria histórica brasileira vai transformá-lo em um intérprete do Brasil. Reduzido a seus componentes fundamentais - que são achados crítico-teóricos de primeiríssima linha -, o trajeto da obra de Schwarz que vai de “Cultura e política, 1964-1969” a Um mestre na periferia do capitalismo gravita em torno de três eixos principais: a imagem tropicalista como alegoria da nação; o convívio complementar e contraditório de liberalismo e escravidão no século XIX brasileiro (base de “As ideias fora do lugar”); e a refração desse convívio na composição de Memórias póstumas de Brás Cubas, isto é, a volubilidade.

De modo resumido, esses três princípios irradiariam da seguinte maneira: a imagem tropicalista forma a base da interpretação não só do tropicalismo como de todo recurso à montagem que recupere algum elemento “pré-burguês”, o que incluiria o modernismo e também parte substantiva da produção artística que, a partir dos anos 1960, buscou unir avanços tecnológicos e matéria local por meio da justaposição. Do convívio entre liberalismo e escravidão no século XIX derivam, basicamente, as relações entre norma europeia burguesa e exceção brasileira, que, dialetizadas com propriedade, tirariam a exceção brasileira da irrelevância e denunciariam a norma burguesa como ideologia, sem prejuízo das desigualdades reais. Assim, o Brasil faria praça de avançado por ter protagonizado com antecedência e de modo mais substantivo o caráter destrutivo do sistema capitalista. Por fim, o narrador volúvel significa a possibilidade - que revela o gênio machadiano em perspectiva marxista - de mimetizar o comportamento de classe como elemento compositivo da forma narrativa, original em si e, igualmente, no modo como demanda a renovação da própria concepção de realismo literário, adequado ao contexto local e ao mesmo tempo parte do sistema literário global do século XIX. Com isso, evidencia-se como a defesa da estética realista pode ser também a defesa de um processo literário original de desvelamento do funcionamento social brasileiro para o qual as ciências sociais do século XIX e de parte do XX não tinham nome nem métodos de compreensão.

Embora ancorada na experiência do pós-1964-68, a interpretação do Brasil por Schwarz se centra no século XIX e na obra de Machado de Assis. Mais que isso, a constelação socioestética composta pelas “ideias fora do lugar” e pela volubilidade é equacionada ao próprio país como formação histórica específica. A nação é, assim, circunscrita a seu momento fundacional, compreendido e estilizado por Machado de Assis, o que foi formulado por Neil Larsen da seguinte maneira: “O Brasil mesmo como conteúdo determinado, quer dizer, como conteúdo formado, como forma histórica per se” (Larsen, 2007Larsen, Neil. “Por que ninguém consegue entender Roberto Schwarz nos Estados Unidos”. In: Cevasco, Maria Elisa; Ohata, Milton (orgs.). Um crítico na periferia do capitalismo: reflexões sobre a obra de Roberto Schwarz. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 20). Acessado por uma relação entre forma literária e processo social, o “Brasil como forma” ultrapassa a singularidade das obras literárias que compõem sua literatura e, pela via machadiana, se erige em singularidade conceitual, que passa a operar em chave histórico-filosófica como vanguarda negativa pelo que revela do sentido da sociedade capitalista como um todo. Acrescidos do “sentido da colonização”, tal qual descrito por Caio Prado Jr. (2004Prado Jr., Caio. Formação do Brasil contemporâneo: Colônia. São Paulo: Brasiliense, 2004., p. 10), a convivência entre liberalismo e escravidão, no século XIX, e o golpe de 1964, no século XX, ultrapassam sua contingência histórica e são hiperdimensionados como momentos decisivos de má infinitude da formação brasileira. Assim, o Brasil-forma-conceito se torna ele mesmo uma vanguarda, na ponta da temporalidade regressiva e da sociabilidade destrutiva que o mundo do capital criou.

O feito interpretativo da obra de Roberto Schwarz é de fato admirável e mesmo, pode-se dizer, assombroso. Quanto ao século XIX, ele transforma um país de cultura aparentemente acanhada em ponto de vista do sistema capitalista como um todo, dando estatura especulativa global ao que se tomava por mera anomalia. Quanto à classe dominante que triunfa em 1964, o revide discursivo é duplo, e seu horizonte não é menos amplo. Os vitoriosos são moralmente rebaixados pela posição subalterna no interior do capitalismo global, que, por sua vez, tem sua verdade revelada justamente por essa elite brasileira, o que é um tipo de vexame ao quadrado. Nesses termos, a operacionalidade da “interpretação do Brasil” de Schwarz no interior de um pensamento de esquerda confere vitalidade a uma crítica original da expansão capitalista nos séculos XIX, XX e na parcela já vivida do XXI. No entanto, é justamente na energia eloquente de sua formulação que reside seu paradoxo, pois, pela força de sua coerência interna e sua reprodução intelectual, ela corre o risco de se enrijecer e se erigir em um modo singular de totalização político-cultural.

Nesse sentido, o Brasil-forma-conceito se separa, como síntese negativa, da dialética de forma literária e processo social que lhe deu origem, pois, na perspectiva de Schwarz, a nação é ela mesma forma, e o processo social se converteu em má infinitude. Em sua força especulativa se encontram também seus limites. O país assim interpretado passa naturalmente a funcionar como régua e critério de valor, e obras literárias ou momentos históricos que não sejam convergentes com o que está preestabelecido são tidos como ilusórios, inocentes, secundários ou irrelevantes. A própria interpretação que Schwarz faz do modernismo brasileiro, como veremos, demonstra a hierarquia literária subjacente a essa interpretação do Brasil. Desse modo, o Brasil-forma-conceito tem como efeito colateral sobrepor sua própria lógica à singularidade e à autonomia dos objetos que não coincidam com ele. A primeira autonomia que não tem recebido a atenção devida, dada a preeminência da interpretação do país como um todo, é a própria singularidade da ensaística de Roberto Schwarz e sua relação com a obra de criação do autor.

CRÍTICA E CRIAÇÃO EM “O PAI DE FAMÍLIA", “CORAÇÕES VETERANOS" E “A LATA DE LIXO DA HISTÓRIA"

Para avaliar a especificidade do ensaio schwarziano, convém aproximá-lo de suas criações artísticas. Nessa perspectiva, algo que chama a atenção é que, até 1978, a bibliografia de Schwarz conta com o mesmo número de livros (três) de crítica literária (A sereia e o desconfiado, 1965______. A sereia e o desconfiado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965.; Ao vencedor as batatas, 1977______. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2000 [1. ed. 1977].; O pai de família e outros estudos, 1978______. O pai de família e outros estudos. São Paulo: Paz e terra, 1978.) e de criação, sendo dois destes de poesia (Pássaros na gaveta, 1959Schwarz, Roberto. Pássaro na gaveta. São Paulo: Massao Ohno, 1959.; Corações veteranos, 1974) e um de dramaturgia, A lata de lixo da história (1977)______. A lata de lixo da história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.. Lembro ainda que “Utopia”, conto presente em O pai de família e outros estudos, foi antes oferecido como “brinde” da editora de Corações veteranos, a Coleção Frenesi, a quem adquirisse seus livros no lançamento.2 2 Devo a lembrança desse “brinde” a César Marins, de quem orientei, em 2015, na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), a iniciação científica Unidos perderemos: Cacaso, Roberto Schwarz e a poesia de resistência. Desde então, Marins vem compilando material disperso da obra de Roberto Schwarz, de cuja pesquisa este texto é em boa medida tributário. Segundo a descrição de Carlos Alberto Messeder Pereira, os livros da Coleção Frenesi “vinham acompanhados de um ‘brinde’ que consistia na reunião, em oito páginas, de mais alguns poemas dos mesmos autores” (Pereira, 1980, p. 138). Somada a essa sobreposição evidente de criação e crítica, note-se que O pai de família é construído de maneira heterogênea, pois, além de “Utopia”, há um folheto de militância política (“Didatismo e literatura”), um “manifesto” irônico (“19 princípios de crítica literária”), uma entrevista (“Cuidado com as ideologias alienígenas”) e uma carta (“Revisão e autoria”).

Seria apressado, e certamente equivocado, supor que o livro seja uma colcha de retalhos da produção de Schwarz entre 1966 e 1978. Ao contrário, a organização tem lógica própria, pois, ancorada na heterogeneidade de seus materiais e na diversidade de assuntos tratados, compõe uma justaposição irreverente que descompartimenta as esferas de produção intelectual, artística e política. A irreverência subjacente ao arranjo é visível na dedicatória - “Ao meu mestre-açu Acê” -, que nos remete à estética de Macunaíma pela recuperação de morfemas tupis (“açu”, isto é, “grande”), pelo jogo das sonoridades (açu/Acê) e pela transformação do nome “Antonio Candido” em sigla transcrita foneticamente (AC = Acê). Além disso, a diversidade dos materiais de que o livro é composto é reposta na variedade dos assuntos abordados: romance brasileiro, romance internacional, política, cinema, arquitetura, música e vanguarda. “Cultura e política, 1964-1969” traz uma síntese tanto da multiplicidade dos assuntos (pois trata do golpe de 1964, do Partido Comunista Brasileiro, do Cinema Novo, do Tropicalismo, de arquitetura e de teatro) quanto da heterogeneidade dos materiais presente em sua escrita (de que trato a seguir).

Avançando um pouco o argumento, a hipótese aqui apresentada é a de que a prosa analítica, centrada na clareza expositiva de sua argumentação, é potencializada por recursos de origem literária, que dimensionam sua forma para além de seu conteúdo, conferindo a ela relativa autonomia. Evidentemente, não existe texto neutro, e procedimentos literários aparecem onde quer que seja. No entanto, a sistematicidade e as posições-chave que alguns recursos assumem no ensaio de Schwarz conferem a sua escrita não só personalidade própria como também uma forma específica. Um dos traços mais cortantes de sua prosa é o uso estratégico do aforisma. Ele aparece em formulações como: “A História não é uma velhinha benigna” (Schwarz, 1978______. O pai de família e outros estudos. São Paulo: Paz e terra, 1978., p. 92), “Um marxismo especializado na inviabilidade do capitalismo, e não nos caminhos da revolução” (p. 67) e “De revolucionárias passaram a símbolo vendável da revolução” (p. 79). A conclusão aforística, por um lado, tem a força de ser a culminação da análise e, por outro, dobra-se sobre si mesma como uma expressão separável do texto, com força própria. São momentos em que a prosa ensaística fica eriçada, agindo de maneira aguda sobre o leitor.

Outro componente que se destaca no texto é a ironia fina, de corte machadiano, perceptível em trechos como: “Ora, uma vez consumada esta aliança [entre PCB e populismo] tornou-se difícil a separação dos bens” (p. 64), que traz certa proverbialidade comezinha a questões de grande relevância pública ou espiritual; ainda nesse tópico, Schwarz escreve a respeito do revés do Partido Comunista em 1964: “todos os dias anteriores ao último lhe davam razão”, em que a ilusão é levada a sério (todos os dias lhe davam razão) e olhada com desencanto (menos o último), sem prejuízo do humour resultante; ou: “Estava feita uma espécie de revolução brechtiana, a que os ativistas da direita, no intuito de restaurar a dignidade das artes, responderam arrebentando cenários e equipamentos, espancando atrizes e atores” (p. 81), com um argumento que simula o razoável (uma contraposição de posições políticas e suas consequências) e é contradito pela escolha das palavras (dignidade × arrebentação). Nessas frases, percebe-se não somente o leitor de Machado de Assis mas igualmente o gesto do ensaísta que visa criar um distanciamento em relação a seu assunto para melhor elaborar a perspectiva crítica.

Mais usual é o procedimento da frase tensionada, como em “Zumbi repetia a tautologia de Opinião: a esquerda derrotada triunfava sem crítica, numa sala repleta, como se a derrota não fosse um defeito” (p. 83), que junta pela sintaxe termos que se negam mutuamente; ou então a frase é torcida por ideias contraditórias que coabitam: “Além disso há também a penetração instituída e maciça da cultura dos EUA, que não casa bem com Deus, pátria e família, ao menos em sua acepção latino-americana” (p. 73); ou ainda esta, sobre o novo cinema e teatro, em que “as opções mundiais aparecem de dez em dez linhas e a propósito de tudo, às vezes de maneira desastrada, às vezes muito engraçadas, mas sempre erguendo as questões à sua contingência histórica, ou a uma caricatura dela” (p. 64). São modos de construção que mantêm a contradição em tensão na mesma frase, trazendo o nervo do pensamento dialético para o próprio eixo da sintaxe.

O procedimento mais recorrente, entretanto, é uma espécie de precipitação dessa frase tensionada, em que os termos saltam seus próprios nexos e se justapõem no que se poderia denominar “frase sintética” - uma realização da já citada elipse. “Cultura e política, 1964-1969” se inicia, aliás, por uma frase sintética: “Em 1964 instalou-se no Brasil o regime militar, a fim de garantir o capital e o continente contra o socialismo” (p. 61). Ela une, de modo irreverente, uma dimensão econômica e outra geográfica com conotação geopolítica, além de metonímica (tomando a parte pelo todo), tendo em vista que o continente precisou de mais alguns golpes para se defender do socialismo. A justaposição irreverente dá rapidez ao raciocínio. Ela desconcerta o leitor e o obriga a raciocinar por si mesmo. O procedimento aproxima, por sua vez, ironia machadiana (“Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis”) e uso sistematizado da justaposição de elementos distantes trazida pelo modernismo e sua estética da montagem. Outra configuração é o sintagma sintético funcionando no interior da frase, como nesta descrição da esquerda pré-golpe vinculada ao Partido Comunista: “uma espécie desdentada e parlamentar de marxismo patriótico” (p. 63), em que os adjetivos vão do rebaixado “desdentada” ao usual “parlamentar”, com conotação envenenada - um revolucionário parlamentar -, complementada pela expressão tensionada “marxismo patriótico”, formada por termos que se negam mutuamente. Ou esta descrição do Teatro Oficina como lugar que “torna habitável, nauseabundo e divertido o espaço do niilismo de após-64”, pondo em choque termos que se contradizem e, por isso, criam uma imagem nova.

Embora a imagem tropicalista, cujo fundamento é a montagem, seja um dos alvos principais do texto, de cujo núcleo argumentativo deriva em linhas gerais a crítica à obra de Oswald de Andrade e ao modernismo brasileiro da década de 1920 como um todo, é justamente por meio da transposição desse procedimento em chave analítica e na forma do ensaio que sua escrita se torna mais original. Aliás, há em “Cultura e política, 1964-1969” uma passagem que se aproxima tanto da própria criação de Schwarz da década de 1970 quanto da obra de Oswald. Ao abordar os efeitos culturais do golpe e descrever o avanço das ideias tacanhas da direita, Roberto escreve, entre aspas: “‘Corações antigos, escaninhos da hinterlândia, quem vos conhece?’” (p. 71). Não estaria aí o próprio título do livro de poemas de 1974, Corações veteranos? Lembrando ainda que o antípoda do coração antigo/veterano reaparece justamente em seu poema “Macunaíma nos ajude”, nos versos: “Meu alegre coração/ onde estás?/ na barriga do Gorila” (apudHollanda, 2007Hollanda, Heloísa Buarque de (org.). 26 poetas hoje. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2007., p. 89). Note-se, assim, não só o quanto a atmosfera social, afetiva e psicológica do pós-1964 é matéria central de Corações veteranos e demais poemas das décadas de 1960-1970 como o fato de que o aprofundamento dos estudos sobre o marxismo e sobre o Brasil (nutridos pelo Seminário Marx, pelo Grupo 2 do Seminário Marx e pela revista Teoria e Prática) convivia com uma disposição criativa que absorvia o modernismo à sua maneira, no mesmo momento em que elaborava a estratégia para recusá-lo no plano da crítica (a imagem tropicalista como alegoria do Brasil).

Avancemos a hipótese colhendo dois momentos em que Oswald aparentemente surge, de modo não nomeado, no ensaio e na criação de Schwarz. Quando descreve, logo após a citação que começa com “Corações antigos…”, o avanço ideológico da contrarrevolução, os “tesouros de bestice rural e urbana” (p. 70), o ensaísta abandona a descrição e abre uma série de perguntas em discurso direto: “Curiosidades antigas vieram à luz, estimuladas pelo inquérito policial-militar que esquadrinhava a subversão. - O professor de filosofia acredita em Deus? - O senhor sabe inteira a letra do Hino Nacional? - Mas as meninas, na Faculdade, são virgens? - E se forem praticantes do amor livre? - Será que o meu nome estava na lista dos que iriam para o paredão?” (p. 70). Até que ponto, podemos nos perguntar, não se trata da recuperação do poema de Oswald “escola berlites”, em que a falta de encanto dos livros e professores de língua estrangeira são expostos pelo mesmo recurso de perguntas bestas de conotação socioestética?

Todos os alunos têm a cara ávida Mas a professora sufragete Maltrata as pobres datilógrafas bonitas E detesta The spring Der Frühling La primavera scapigliata Há uma porção de livros pra ser comprados A gente fica meio esperando As campainhas avisam As portas se fecham É formoso o pavão? De que cor é o Senhor Seixas? Senhor Lázaro traga-me tinta Qual é a primeira letra do alfabeto? Ah! (Andrade, 1972Andrade, Oswald de. Poesias reunidas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972., pp. 60-1)

A possibilidade de deixar a estupidez falar por si própria, pelo discurso direto, em contexto de irreverência e ponto de vista crítico, une poema e trecho de ensaio, embora em contexto vitalista no primeiro (a primavera em várias línguas) e de luta político-cultural no segundo. Se não estiver forçando a nota, essa tentativa de corrigir politicamente a estética oswaldiana reaparece, com menos sucesso, no plano da criação propriamente dita. O poema “pobre alimária”, utilizado em “A carroça, o bonde e o poeta modernista” para concluir, segundo o argumento resumido de Paulo Arantes, que “é ao modernismo que devemos a transformação da convivência entre primitivismo e modernidade em álibi de classe” (Arantes, 2002, p. 101), fora reescrito dez anos antes do texto crítico no poema em prosa “Passeio”, de Corações veteranos. Comparemos:

pobre alimária O cavalo e a carroça Estavam atravancados no trilho E como o motorneiro se impacientasse Porque levava os advogados para os escritórios Desatravancaram o veículo E o animal disparou Mas o lesto carroceiro Trepou na boleia E castigou o fugitivo atrelado Com um grandioso chicote. (Andrade apud Schwarz, 1987______. Que horas são?. São Paulo: Companhia das Letras, 1987., p. 58) Passeio Os automóveis da burguesia cortam as ruas da cidade asfaltada em seu benefício. A impaciência do motorista é um gesto de classe, a cara esportiva e a cara composta da motorista são gestos de classe. Já a fúria do motorista de praça é fratricida. Perto de 40.000 automóveis engolem as avenidas, levam para o centro a burguesia, de 80 a 100.000 imbecis passando na frente e sendo passados. Com 800 ônibus iam todos para o fogo. FILHO DA PUTA de quem buzinou. Ele os outros. (Schwarz, 1974______. Corações veteranos. Rio de Janeiro: Coleção Frenesi, 1974., s/n)

Ambos os poemas estão no meio do trânsito. Em um, os contrastes entre a carroça “pré-burguesa” e o bonde trariam efeito cômico; em outro, menos comicidade e mais escracho, já que o fundo de absurdo do excesso de automóveis no espaço urbano se resolve numa “filha-da-putice” generalizada. O “lesto carroceiro” se modernizou e virou um taxista (“motorista de praça”) fratricida. Os advogados se tornaram mais abstratos, são motoristas burgueses e burguesas. O “atravancamento/desatravancamento” de um se revela luta intraclasses no outro, com “imbecis passando na frente e sendo passados”. O contexto semiurbano de um seria “inocente”, apto a pular do “pré-burguês” para o “pós-burguês”, enquanto o do outro é plenamente urbano e dá nome aos responsáveis pelo caos citadino: a “burguesia” e seus “gestos de classe” (duas vezes).

Oswald de Andrade - o poema “Passeio” parece querer dizer - poderia manter seu tom provocador, desde que, “como qualquer leitor de romances naturalistas sabia” (Schwarz, 1987______. Que horas são?. São Paulo: Companhia das Letras, 1987., p. 27), colocasse as classes sociais na relação que lhes cabe no movimento conjunto da totalidade social, que mostrasse a feição moderna do trânsito em articulação com a irracionalidade e/ou seu atraso correspondente, que abandonasse, enfim, o elemento relacional e arbitrário da montagem e reconhecesse a superioridade do ângulo mimético, isto é, da estética realista tal qual realizada por Machado de Assis no século anterior.

Esse passo é decisivo para que a obra de Roberto Schwarz se tornasse o que ela é, pois é por aí que entra a obra de Machado de Assis como centro de seu interesse crítico. Contudo, perceba-se o quanto a versatilidade e a agudeza crítica de seu ensaio absorvem procedimentos modernistas para abordar seus objetos com a desenvoltura necessária. Nesse ponto, sua obra criativa possui um inegável papel de antessala e laboratório da crítica marxista, que negará valor crítico justamente aos procedimentos que ensaia e de que se utiliza. Veja-se, muito brevemente, o papel da montagem em A lata de lixo da história. A descrição da gestualidade de Simão Bacamarte no final da primeira cena é bem característica do tom geral da peça:

Fanfarras. Sai o rei em desespero, a mão na testa. Quando acaba de sair, Simão corre até o espelho e ensaia várias poses. Ouve-se batucada e começa um samba. Simão experimenta o passo diante do espelho, em seguida sai de passista entre os bonecos, em que bate de passagem. Bate mais e mais brutalmente, até perder o ritmo e chegar à pancadaria. Guincha, berra, monta nos bonecos e acaba sentado no chão, exausto de bater. Para o samba. Pausa. Simão levanta e vai até o espelho para rearranjar a figura. Recomeça o samba. Simão sai no passo, com respeitabilidade. (Schwarz, 1977______. A lata de lixo da história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977., p. 9)

Embora o trecho esteja alinhado com o humor escrachado da chanchada, e talvez por isso mesmo, Schwarz traz nele, de modo justaposto, uma série de questões de primeira linha em sua obra. Bacamarte transita por vários registros: cientista, narcisista, sambista, agressor dos bonecos negros, narcisista de novo - um quadro inteiro, meio cômico, de “ideias fora de lugar”. Já estão aqui: Machado de Assis, a denúncia de classe, o humor e a cultura popular modernista. E é justamente no tom avacalhado da chanchada/montagem que Schwarz põe, na última cena, um revide de classe imaginário. Um notável vai esbofetear um boneco, daí:

o boneco, que é um homem, apara com a esquerda e com a direita aplica-lhe colossal bofetada, que lança o notável a vinte metros, para dentro de um buraco, sobre o qual está escrito em letras garrafais: A LATA DE LIXO DA HISTÓRIA; o boneco esfrega as mãos e vai para casa. (idem, p. 86)

Uma conclusão a ser tirada dessas cenas é a de que, na criação, Schwarz se permite formas artísticas e mesmo conclusões políticas que são negadas na esfera da formulação crítica, em que entram, não obstante, como componentes fundamentais de sua ensaística. O revide final de A lata de lixo da história, por exemplo, não é resultado da mimese histórica, mas da saturação de justaposições absurdas ao longo da peça que, mais que imagem alegórica do país, figura a exigência (e mesmo a configuração) utópica de sua superação. Está presente aí um componente libidinal que não é propriamente mimético. Em Corações veteranos, os poucos poemas que se separam da temática política se organizam em torno do desejo erótico. Em um deles, “Primavera”, Schwarz retoma já no título um tema presente no poema “escola berlites”:

Lá fora a boquirrota, a fraudulenta e festiva Paris troca de pele pela enésima vez e mostra à freguesia atônita os seus múltiplos charmes catalogados Pela janela aberta entra o amor e se mistura na luz do sol espalhada pelo quarto. Alegre música muda, O poeta ri porque está de pau duro.

O verso inicial muito longo é distanciado e mostra que a “sereia” parisiense não vai seduzir o poeta “desconfiado” com seus truques. Contudo, anexo à cidade, no espaço doméstico do quarto, não é Paris que entra, mas o amor e a luz do sol, que, juntos, compõem uma “alegre música muda”. O “verso de ouro”, bem ao gosto da estética dos poetas “marginais” dos anos 1960/1970, quebra o tom lírico pela franqueza de uma alegria mais corpórea, de risada e ereção. No todo, porém, a leitura que aqui se defende é a de que os três versos finais compõem um quadro irreverente da primavera em que amor, sol, alegria, música muda, risada e ereção são, em sentido pleno, a primavera do poeta, um tipo de libido expandida de que o “pau duro” é o ponto de chegada. Tendo em mente a presença constante do erotismo na criação poética de Schwarz nos anos 1960-1970, e lembrando também que o conto “Utopia”, recolhido em O pai de família, é igualmente uma narrativa erótica, pode-se postular um processo em que o erotismo (quase se diria um “priapismo”)3 3 Não creio ser arbitrário, nesse sentido, que a paródia do formalismo concretista tenha sido levada a cabo por Schwarz como imagem do “Mão no pau” no poema assim intitulado. Assim, se a forma tem um componente libidinal, o fetiche da forma necessariamente redundaria na masturbação (Schwarz, 1985, p. 12). tematizado na poesia se reporia na forma do ensaio como um tipo de libido irreverente da linguagem, crítica e de esquerda. Do ponto de vista formal, isso reivindicaria uma espécie de poesia da inteligência, ativa e alerta, de onde se originariam as frases sintéticas, as frases tensionadas, a ironia de corte machadiano e os aforismas que dão a um tempo encanto e força crítica a seu ensaio.

“AS IDEIAS FORA DO LUGAR”: FORMA E CONTEÚDO

O ensaio “As ideias fora do lugar” corresponde à pesquisa de Schwarz sobre a “diferença brasileira” como algo integrado ao movimento geral do sistema capitalista. Trata-se de uma análise da classe dominante brasileira pelo foco das ideias e da cultura, isto é, dos efeitos de sua configuração local e de como a formação da literatura era também (e talvez principalmente) saber mimetizar e transformar em forma literária justamente o que essa classe dominante tinha de próprio. A literatura brasileira configura, desse modo, um momento singular e muito pouco elogiável da constituição das classes dominantes globais do assim chamado capitalismo liberal do século XIX.

Quanto à forma, para além da clareza expositiva e da agilidade da argumentação, “As ideias fora do lugar” recupera alguns dos procedimentos já descritos. Está presente o aforisma, em “Sem prejuízo de existir, o antagonismo se desfaz em fumaça e os incompatíveis saem de mãos dadas” (Schwarz, 2000______. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2000 [1. ed. 1977]., p. 18), que cria sínteses para equilibrar na escrita o disparate da matéria localizada; a ironia de corte machadiano comparece em “A compensação simbólica podia ser um pouco desafinada, mas não era mal-agradecida”, que é seguida de uma frase tensionada: “Ou por outra, seria desafinada em relação ao liberalismo, que era secundário, e justa em relação ao favor, que era principal” (p. 18). De passagem, note-se que a frase tensionada “Em matéria de racionalidade, os papéis se embaralhavam e trocavam normalmente: a ciência era fantasia e moral, o obscurantismo era realismo e responsabilidade, a técnica não era prática, o altruísmo implantava a mais-valia etc.” traz basicamente uma sinopse de A lata de lixo da história, que encena a questão, a qual reitera ainda uma vez a conexão entre criação e crítica na obra de Schwarz.

Contudo, o que diferencia “As ideias fora do lugar” de “Cultura e política, 1964-1969”, do ponto de vista da escrita, é um uso menor do que chamamos de “frase sintética” e a utilização mais frequente do que se poderia denominar “escolha lexical desconcertante”, valendo-se de uma palavra coloquial como base de um raciocínio exigente e dotando de irreverência o andamento argumentativo. Assim, sobre o dia de trabalho do escravo em comparação com o do assalariado: “É preciso espichá-lo, a fim de encher e disciplinar o dia do escravo” (Schwarz, 2000______. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2000 [1. ed. 1977]., p. 14);4 4 Todos os grifos nas citações são meus. em outro passo, diante da escravidão, a ideologia liberal “descarrilhava” (p. 15); em momento realmente inspirado de irreverência crítica, Schwarz afirma que, no século XIX brasileiro, a ninguém ocorreria “ser, digamos, um Kant do favor, para bater-se contra o outro” (p. 17) - perceba-se, nessa formulação, que a graça não está na palavra colhida na língua coloquial, mas na amplificação da exigência filosófica, apalhaçada quando posta a serviço do favor. Prosseguindo, “O quiproquó das ideias não podia ser maior” (p. 19) e, em uma das ideias mais complexas do ensaio, que integra a impropriedade brasileira ao mundo como um todo, é uma onomatopeia que será atribuída ao momento brasileiro da temporalidade oitocentista: “O tic-tac das conversões e reconversões de liberalismo e favor é o efeito local e opaco de um mecanismo planetário” (p. 30).

O ensaio se inicia com uma astúcia formal. Após trazer o aforisma “Toda ciência tem princípios, de que deriva o seu sistema” (p. 11), descreve-o como resumo de um “panfleto liberal”, dando o tom de um texto que busca antes fazer refletir sobre si mesmo o sistema ideológico do século XIX do que enunciar a verdade sobre as ideias e seu lugar. Esse sistema ideológico é, logo nas primeiras duas páginas do texto, montado sobre a citação de três fontes: um panfleto liberal de 1863, a polêmica Alencar-Nabuco de 1875 e o depoimento da firma comercial de por volta de 1850. A unidade do problema - a conjunção de liberalismo e escravidão - justifica os saltos cronológicos5 5 Agradeço a Rodrigo Soares de Cerqueira pelo argumento de que Schwarz costuma lidar de modo não linear com a cronologia do século XIX em seus textos. Agradeço também à leitura atenta, aos comentários e às críticas de Daniel Bonomo e dos participantes do grupo de estudos Estética e Modernidade: além de Rodrigo Cerqueira, Eliane Paradela Arakaki, Leandro Nascimento, Carlos Moacir Vedovato Jr., Juliana Giannini, Dimitri Arantes, Tauan Tinti, João Victor Silva, Matheus Tomaz, Guilherme Marchesan, João Pace e Philippe Freitas. sem deixar de fazer notar ao leitor atento a desenvoltura do procedimento.

No entanto, se a composição do texto se aproveita em larga escala da justaposição de material heterogêneo, a estética que lhe é mais afim nas letras brasileiras - o modernismo - é abordada de modo ambíguo, senão derrisório, nesse momento em que todas as forças da obra de Roberto Schwarz se voltam para a análise do romance realista de Machado de Assis. Assim, no Brasil, a “eternidade das relações sociais de base” teria como resultado a “lepidez ideológica das elites”, que tornaria epidérmica a sucessão de estilos de época no plano das artes, como na seguinte passagem: “um latifúndio pouco modificado viu passarem as maneiras barroca, neoclássica, romântica, naturalista, modernista e outras, que na Europa acompanharam e refletiram transformações imensas na ordem social” (p. 25). Salvo engano, não são nomeados nessa lista o parnasianismo, o simbolismo e o realismo. Sabendo do pouco apreço de Schwarz por parnasianismo e simbolismo, é de se pensar se apenas o realismo estaria livre da fatalidade de ser uma “maneira”. O realismo seria uma estética que independe de transformações imensas na ordem social? Seria o único estilo capaz de denunciar corretamente a lepidez das elites diante da eternidade das relações de base? Seria a separação do romance machadiano da lógica das “maneiras”? Seria o realismo a estética mais afim ao marxismo, ele mesmo a base teórica mais equipada para perceber o descompasso entre a base social inerte e a fatuidade do movimento cultural no topo? Certamente um pouco de cada coisa, mas, de qualquer forma, isso cria uma relativa dissociação entre alguns dos procedimentos que compõem o ensaio, de um lado, e o estilo de época que é o foco de “As ideias fora do lugar”, de outro.

Senão, vejamos: para percorrer do modo mais concreto o século XIX brasileiro, Schwarz lança mão de uma quantidade expressiva de citações que vão, grosso modo, das vésperas da independência política (é citada, na p. 24, uma declaração do governo revolucionário de Pernambuco de 1817) ao Hino à República de 1890. Com isso, é possível perceber que é à sucessão dos materiais que devemos a visualização do nó ideológico acompanhado pelo ensaio. Este muitas vezes se configura como um mosaico oitocentista de material primário justaposto, que o estilo com frequência acompanha, embora uma exposição clara e bem argumentada seja o fio condutor de todo o ensaio. Schwarz não deixa de intuir a lógica subjacente ao procedimento: “Enfim, nas revistas, nos costumes, nas casas, nos símbolos nacionais, nos pronunciamentos de revolução, na teoria e onde mais for, sempre a mesma composição ‘arlequinal’, para falar com Mário de Andrade” (p. 25). Ressalte-se que o texto de certa maneira mimetiza o mosaico de losangos para reconjuntar o desconjuntado, não à toa lembrando o poeta modernista, de modo talvez um pouco envenenado. Não custa sublinhar que o “arlequinal” de Mário não é somente a enumeração das contradições mas também a possibilidade da descoberta e/ou criação de algo novo por meio da justaposição intensificada.

Nesse sentido, “As ideias fora do lugar” pode pular para a frente e para trás nas datas, para todos os lados no recurso aos materiais, porque o que interessa é o fundamento ideológico que une datas e textos por meio da justaposição. Logo, é a capacidade de juntar pontos distantes no século XIX brasileiro em uma mesma composição que dá a medida da revelação do ensaio. Em um texto saturado de justaposições, mas distante do partido estético da montagem, pois seu foco é o romance realista de Machado de Assis, o modernismo se torna um fio solto, do ponto de vista teórico, sem prejuízo de conferir musculatura estética à forma de seu ensaio.

Esse ponto de chegada, entretanto, revela certo desequilíbrio na perspectiva teórica de Schwarz sobre a literatura brasileira. Sua forma pressupõe que a tradição ensaística da teoria crítica internacional seja refratada localmente por questões específicas e também por uma linguagem própria. Aí entram a sobriedade estética de Antonio Candido, a recuperação crítica de hipóteses de leitura - como a volubilidade, de Augusto Meyer, e a dialética da malandragem, de Candido -, os movimentos desconcertantes e provocativos de Oswald, além de raciocínio a um tempo claro e complexo apoiado nos diversos registros da língua, com destaque para o elemento coloquial, presente na prosa crítica de Manuel Bandeira e Mário de Andrade.

Vistos pelo filtro tropicalista, cuja imagem alegórica eternizava o país do pós-golpe de 1964, os modernistas figuram de modo ambivalente na obra de Schwarz e, quando olhados de frente, costumam ser destacados pelos compromissos de classe, pela ingenuidade na visão artística do país e pela indistinção entre estética experimental e ideologia conservadora. A acumulação ensaística e crítica que a obra de Schwarz pressupõe aponta, no entanto, para o outro lado, em que a invenção artística pode ser absorvida pelo ensaio. Do mesmo modo, a linguagem modernista é capaz de mapear e trazer à consciência uma hermenêutica social (expressões, comportamentos, marcas de classe, humor), além de ter composto uma visão não apenas empenhada, mas também desabusada tanto do país quanto da modernidade global do século XX de que o Brasil é parte. Entre imagem arbitrária e alegórica, à maneira do Tropicalismo, e força estética e intelectual que é absorvida pela forma do ensaio crítico, a obra de Roberto Schwarz parece optar por ambas. Como ficamos?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • ______. O pai de família e outros estudos São Paulo: Paz e terra, 1978.
  • ______. “Mão no pau”. Folhetim São Paulo, 1º/12/1985.
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  • Süssekind, Flora. “Ou não? Reflexões parciais sobre a crítica de Davi Arrigucci e Roberto Schwarz”. Novos Estudos Cebrap , n. 20, mar. 1988, pp. 96-109.
  • 1
    “Meu trabalho seria impensável igualmente sem a tradição — contraditória — formada por Lukács, Benjamin, Brecht e Adorno” (Schwarz, 1990______. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Duas Cidades, 1990., p. 13).
  • 2
    Devo a lembrança desse “brinde” a César Marins, de quem orientei, em 2015, na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), a iniciação científica Unidos perderemos: Cacaso, Roberto Schwarz e a poesia de resistência. Desde então, Marins vem compilando material disperso da obra de Roberto Schwarz, de cuja pesquisa este texto é em boa medida tributário. Segundo a descrição de Carlos Alberto Messeder Pereira, os livros da Coleção Frenesi “vinham acompanhados de um ‘brinde’ que consistia na reunião, em oito páginas, de mais alguns poemas dos mesmos autores” (Pereira, 1980Pereira, Carlos Alberto Messeder. Retrato de época. Poesia marginal - Anos 70. Rio de Janeiro: Funarte, 1980., p. 138).
  • 3
    Não creio ser arbitrário, nesse sentido, que a paródia do formalismo concretista tenha sido levada a cabo por Schwarz como imagem do “Mão no pau” no poema assim intitulado. Assim, se a forma tem um componente libidinal, o fetiche da forma necessariamente redundaria na masturbação (Schwarz, 1985______. “Mão no pau”. Folhetim. São Paulo, 1º/12/1985., p. 12).
  • 4
    Todos os grifos nas citações são meus.
  • 5
    Agradeço a Rodrigo Soares de Cerqueira pelo argumento de que Schwarz costuma lidar de modo não linear com a cronologia do século XIX em seus textos. Agradeço também à leitura atenta, aos comentários e às críticas de Daniel Bonomo e dos participantes do grupo de estudos Estética e Modernidade: além de Rodrigo Cerqueira, Eliane Paradela Arakaki, Leandro Nascimento, Carlos Moacir Vedovato Jr., Juliana Giannini, Dimitri Arantes, Tauan Tinti, João Victor Silva, Matheus Tomaz, Guilherme Marchesan, João Pace e Philippe Freitas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Set 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    07 Out 2020
  • Aceito
    31 Maio 2021
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