RESUMO
Com quadros expostos na Semana de Arte Moderna de 1922, Vicente do Rego Monteiro é, atualmente, tido como um dos mais importantes pintores do modernismo brasileiro. Esse reconhecimento, no entanto, só se deu após sua morte, em 1970. Considerando tomadas de posição artísticas e políticas, o artigo reconstrói a trajetória do pintor, explorando alguns dos possíveis motivos que levaram Vicente do Rego Monteiro a falecer em pleno esquecimento.
PALAVRAS-CHAVE: modernismo brasileiro; regionalismo; sociologia da arte; arte e poder
ABSTRACT
Vicente do Rego Monteiro is considered one of the most important painters of Brazilian modernism. His reputation, however, came only after his death in 1970. Considering his artistic and political positions, the article reconstruct the trajectory of the painter and explores some possibles reasons for Vicente do Rego Monteiro’s death in oblivion.
KEYWORDS: Brazilian modernism; regionalism; sociology of art; art and power
Apesar de Vicente do Rego Monteiro ter se destacado já no início do século XX, compondo o grupo de expositores da Semana de Arte Moderna de 1922, sua atuação sistemática no cenário cultural pernambucano ocorreu, praticamente, apenas em dois momentos: a partir de meados dos anos 1930 até 1946 e de 1957 até sua morte, em 1970. As viagens constantes e as longas estadas no Rio de Janeiro e em Paris afastaram-no de sua cidade natal. Seu envolvimento com outras atividades artísticas, como a poesia e a tipografia, minimizou o impacto de sua obra no universo da pintura nacional. Neste artigo, busca-se explorar a trajetória desse artista para compreender por que uma carreira em ascensão tornou-se declinante.
Vicente era o terceiro filho de Ildefonso do Rego Monteiro - representante comercial da Havendich & Co., empresa inglesa do ramo de tecidos - e de Elisa Cândida Figueiredo Melo do Rego Monteiro - professora normalista e prima em terceiro grau dos pintores Pedro Américo de Figueiredo e Melo e Francisco Aurélio de Figueiredo e Melo, ambos muito bem entrosados nas lides do Império e depois da República. Os cinco filhos do casal receberem formação religiosa e dirigiram-se para carreiras ligadas às artes. José foi arquiteto; Fédora, Vicente e Joaquim, pintores; Débora, formada na Faculdade de Direito do Recife, tornou-se escritora.
Provavelmente a desenvoltura do pai em viagens internacionais teria levado toda a família a Paris em 1911, cerca de três anos depois de terem se transferido para o Rio de Janeiro, onde Vicente acompanhava a irmã Fédora em suas aulas na Escola Nacional de Belas Artes. Em Paris, enquanto seu irmão José estudava arquitetura, Vicente, acompanhando Fédora na Académie Julian, matriculou-se num curso para adolescentes e foi vinculado ao departamento de escultura. Frequentou também os cursos noturnos de desenho e croquis da Académie Colarossi e da Académie de La Grande Chaumière.
Quando estoura a Primeira Guerra Mundial, a família Rego Monteiro é obrigada a retornar ao Brasil, fixando-se no Rio de Janeiro. Assim, aos catorze anos de idade, Vicente conhecia os museus de Paris, Londres, Bélgica, Alemanha, Itália e Suíça. Já tinha exposto por duas vezes no Salon des Indépendants com uma de suas obras possuindo feições cubistas2 e um currículo de cursos de fazer inveja a muitos artistas locais mais velhos.
Todo o clã Monteiro retornou ao Recife em 1917. Lá, Vicente participou de um concurso para um monumento escultórico em homenagem aos revolucionários de 1817, perdendo para o futuro fundador da Escola de Belas Artes de Pernambuco, o escultor profissional Bibiano Silva. Abandonou a escultura, passando, então, a dedicar-se ao desenho e à aquarela. Uma série de vinte trabalhos com temas mundanos parisienses compôs sua primeira exposição, em 1919, no Recife. Era considerável seu descompasso com a arte produzida no estado e com as expectativas do público. Os grandes nomes da pintura local, nas primeiras décadas do século XX, ainda eram aqueles vinculados à tradição dita “acadêmica” (Lassailly, Telles Júnior, Álvaro Amorim, Baltazar da Câmara, Mário Nunes, entre outros). Vicente, com uma linguagem um tanto nova e, ao mesmo tempo, com temáticas que não correspondiam às paisagens, marinhas e vistas “locais”, ou mesmo aos temas “nacionais”, permitiu que um crítico do Diário de Pernambuco comentasse: “V. Rego Monteiro não é de modo nenhum um artista nacional, antes se poderá dizer dele que é um artista puramente francês”.3
Recepção muito diferente teve sua segunda mostra, de 1920, a qual, além de permanecer exposta no Recife, circulou por São Paulo e Rio de Janeiro. Nela, os 43 desenhos e aquarelas materializavam a pesquisa a respeito da arte marajoara a que Vicente se dedicava, nesse momento, na biblioteca de Lucilo Varejão, no Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro, e, posteriormente, no Musée d’Ethnographie du Trocadéro, em Paris. A edição recifense dessa exposição contou com um comentário favorável no jornal A Província do dia 10 de janeiro de 1920. Consideraram-na um sucesso pelo fato de o artista ter vendido praticamente a totalidade de suas obras, “que pela sua nota pessoal, seu colorido forte, seu desenho e sua originalidade, tem um lugar marcado nas galerias dos nossos colecionadores e amadores da arte”. Mais à frente, o jornal marcava o caráter de promessa que o pintor adquiria por ser o mais moço dentre os artistas pernambucanos. “Dentro de pouco tempo será um nome feito, se não desanimar e se persistir na pintura”, dizia o periódico.4
Durante a turnê dessa exposição de 1920 e em sua exposição subsequente, a de 1921 no Rio de Janeiro, Vicente entrou em contato com os demais artistas e intelectuais que, em 1922, organizariam a Semana de Arte Moderna. Foi por meio dessas novas relações que articulou vendas de seus quadros em São Paulo e no Rio de Janeiro. Entre seus compradores estavam Ronald de Carvalho, colecionador responsável por incluir os quadros de Rego Monteiro na Semana de 1922 mesmo sem a presença física do pintor, que, nesse momento, já tinha revertido o dinheiro adquirido com as vendas numa nova viagem a Paris, onde permaneceu até 1932.5
Sua estadia de praticamente dez anos em Paris distanciou-o do movimento artístico de São Paulo, do Rio de Janeiro e do Recife. Mesmo regressando ao estado natal antes da primeira exposição dos chamados Independentes, em 1933, Vicente não se integrou aos artistas desse grupo, considerado por muitos intelectuais pernambucanos como os inauguradores da arte moderna no estado. Em 1960, Ladjane Bandeira comparou o movimento dos Independentes à Semana de Arte Moderna de 1922. Não fez referência, no entanto, a Vicente, seja como um pernambucano figurando na Semana, seja como um pintor que, regressando de Paris, poderia ter contribuído para a renovação artística local.
Freyre, no Livro do Nordeste, de 1925, é mais ambíguo ao se referir aos trabalhos de Vicente. Lamenta seu afastamento do país e afirma que a “pintura de composição não é por certo daquelas que possam prescindir de raízes: ela requer uma como base física por mais imaginoso que seja o artista. Pelo menos na fase de formação”.6 Trata-se de uma leve crítica a Vicente, que, até então, pouco se dedicara a temas pernambucanos. Entretanto, em seguida, Freyre argumenta que “pessoal no traço e na concepção, é Vicente dos mais interessantes pintores novos do Brasil. Talvez o mais pessoal e ao mesmo tempo o mais brasileiro”.7 Usando trechos de artigo de Ronald de Carvalho, procura mostrar como Vicente teve um reconhecimento no Rio de Janeiro e em São Paulo, o que confirmaria suas qualidades.
Dessa época são suas obras de inspiração indianista que resultaram no livro Légendes, croyances et talismans de l’Amazone, impresso em Paris em 1923.8 A tentativa clara de vincular-se a uma temática nacional não é menos evidente do que o acompanhamento do movimento das vanguardas europeias em busca do primitivo: Picasso e os cubistas com as máscaras africanas, Gauguin com sua vida no Taiti... Pelo que indica a fortuna crítica, o livro e essa temática foram
bem recebidos pelo público parisiense.9 O êxito logrado incentivou Vicente a produzir, em 1925, o livro Quelques visages de Paris, no qual o artista fabula ter encontrado um índio que outrora viajara incógnito à Cidade Luz e que, agora, lhe confiava seus desenhos de registro dos locais mais pitorescos. Em ambos os casos, o diálogo estabelecido é mais intenso com artistas e o público europeu do que com o mundo das artes em Pernambuco.
Em 1925, Vicente casa-se com a francesa Marcelle Louis Villard. A herança que ela recebe do ex-marido falecido em 1926 tira o pintor da penúria financeira. Além de auxiliá-lo na organização de exposições e salões de poesia - indicando uma divisão de trabalho clivada pelas assimetrias de gênero -, a herança de Marcelle permitiu a Vicente executar diferentes caprichos. Passaram a morar numa grande mansão em Montmartre, e não mais no pequeno apartamento da rue Gros. Como descreve Zanini, “é sintomático que a exposição dos 49 artistas da Escola de Paris que ele e Géo-Charles organizaram e trouxeram ao Brasil em 1930 ocorresse nesse momento de abundância”.10 Essa abundância levou Vicente a comprar uma limousine, carros de corrida e motocicletas. As outras atividades que passa a exercer (fazer poesia e organizar salões de poesia, ser piloto de corrida automobilística, disputando o Grand Prix do Automóvel Clube da França em 1931) tiram seu foco da pintura.
Não restam dúvidas de que o estilo de vida do casal, associado à crise econômica de 1929 e ao fracasso de vendas da exposição da Escola de Paris em 1930 (no Recife, em São Paulo e no Rio) levaram Vicente e Marcelle a vender os carros e outros bens, alugar a mansão de Montmartre e se instalar em Pernambuco, entre 1932 e 1933. Em carta de 29 de outubro de 1931 ao seu amigo e sócio da exposição da Escola de Paris em terras tropicais, Géo-Charles, Vicente diz que sua situação financeira o obrigou a migrar.
Nos últimos meses só tive aborrecimentos financeiros, morais e de saúde, aborrecimentos de toda a espécie cujos detalhes poupar-lhe-ei. [...] Com a queda da libra pude comprar bem barato passagens no Lloyd Inglês, de modo que partiremos bruscamente [para Recife]. Não pensávamos nem mesmo em ir este ano. Mas a situação está tão ruim que seria mesmo forçado a emigrar dentro de um ano, caso o estado de coisas não melhorasse. Vamos tentar construir um rancho em Várzea Grande.11
Na mesma carta, anuncia seu plano de construir um rancho em Várzea Grande para, em sociedade com o cunhado, marido de Débora, Salgado Bastos, produzir as cachaças Caninha Cristal e Gravatá. Paralelamente, Vicente se engaja em empregos públicos estaduais, como uma forma de obter fonte de renda mais estável.
Em 1935, incorpora-se à redação da revista Fronteiras, ao lado de Manuel Lubambo. A historiadora Maria Almeida caracteriza Lubambo, secretário da Fazenda no Estado Novo, como “católico e nacionalista”. Diz ela: “Podemos considerá-lo como um antissemita convicto e doutrinador, que fazia de Fronteiras o arauto do antissemitismo em Pernambuco”.12 A historiadora justifica a incorporação de Vicente do Rego Monteiro nas fileiras da imprensa oficial por ser considerado por Agamenon Magalhães - o então interventor de Pernambuco - como um pintor “ovacionado por não aderir às escolas de ‘arte degenerada’ assim como Di Cavalcanti, dentre outros”.13
Desse modo, retratado pela fortuna crítica como um vanguardista, participante da Semana de 1922,e como um artista que partira para Paris, Vicente do Rego Monteiro regressa ao Recife como um “não degenerado”, o que lhe permite, em 1938,ser nomeado diretor da Imprensa Oficial do Estado de Pernambuco e professor de desenho do Ginásio Pernambucano, ambos, cargos oficiais submetidos à interventoria do Estado Novo. Deixando a revista Fronteiras, passou a dirigir a revista Renovação a partir de 1939. Assinava, ao lado de Edgar Fernandes, os editoriais dessa publicação também de vertente monárquica e integralista, apoiadora da ditadura de Vargas, apesar de manter um discurso menos exaltado do que Fronteiras. Em carta a seu amigo francês, o poeta Géo-Charles, ele escreve:
Saibam que devido a uma justa reação do meio e à minha experiência de civilizado eu me tornei propagandista do retorno da monarquia ao Brasil. Apesar das últimas agitações extremistas [referindo-se a Intentona Comunista, de 1935], nós temos grandes chances.
Uma vez dentro da engrenagem, eu tive que pegar no lápis e na pena. Eu faço manifestos, artigos e retratos à linha para os jornais. Esta é uma nova atividade que me agrada. Eu não tenho nenhuma intenção de fazê-lo aderir à minha nova evolução, mas espero um dia que você me faça justiça.
Aí estão, meu velho Charles, as surpresas para 1936. 14
O próprio Zanini não consegue explicar a guinada direitista que Vicente assumiu ao retornar a Pernambuco, uma vez que, em Paris, convivia com intelectuais e artistas de esquerda.
Defendendo a monarquia, sempre sob influxo religioso, renegou os movimentos de vanguarda do início do século. A Picasso, particularmente - de quem fora próximo como membro do grupo L’Effort Moderne nos anos 20 -, reservou duras palavras: “obra de Picasso hermética e ao mesmo tempo vulgar não é a obra metafísica e humana. É obra especulativa, oportunista, anárquica e de esquerda”.
Considerou Picasso como “a encarnação mais espantosa da crise de nossa época”. Noutro artigo, “A Internacional das Artes”, investiu contra os “marchands” e reduziu a Escola de Paris, a que pertencera, a uma “sucursal da Grande Internacional onde os cristãos eram substituídos pelos ateus e livres-pensadores”. Pelo passado de Rego, junto ao movimento artístico moderno e os relacionamentos que cultivara, suas reações causam estranha sensação. 15
Fica difícil imaginar que, com essas declarações, Vicente do Rego Monteiro tivesse boas amizades com Cícero Dias, que, em 1939, mudara-se para Paris e, posteriormente, tivera como padrinho de sua filha, Sylvia Dias, o próprio Picasso. Não é por menos que, em nenhuma das obras biográficas dedicadas a Vicente, o nome de Cícero Dias ou de Lula Cardoso Ayres sejam mencionados, mesmo todos tendo em comum o amigo Gilberto Freyre, assim como a vida pendular entre o Recife e Paris. Se eram conhecidos entre si, o que parece evidente numa cidade como a do Recife daquela época, onde todos se conheciam, tal acaso não se reverteu em colaborações ou projetos coletivos de um grupo, de uma geração, que se reconhecesse como tal. Definitivamente essa identificação, presente entre Cícero Dias, Lula Cardoso Ayres e até mesmo Manoel Bandeira (o pintor), não se estende a Vicente do Rego Monteiro.
Ademais, é possível notar uma grande interrupção nas exposições de Rego Monteiro em terras tropicais. Depois das de 1920/1921, a mostra seguinte ocorreu apenas em 1939, isso sem contar seus quadros expostos junto aos da Semana Arte Moderna, em 1922, e aos da exposição da Escola de Paris, em 1930. A sua ausência no Recife, associada à falta de uma estratégia para ser exposto na cidade, ou para ser ao menos lembrado ou integrado a um círculo, colaborou para seu pouco envolvimento no curso das artes do estado.
Como defendem Zanini, Ayala e a maioria dos estudiosos de sua obra, a grande parte de seus quadros data dos anos 1920. A partir dos anos 1930, o artista deixa de pintar com tanta frequência e passa a dedicar-se à editoração, à tipografia, à ilustração e à corrida automobilística. Dedicando-se à poesia e fazendo viagens constantes a Paris, a pintura de Vicente só volta a figurar no Recife em 1942, numa exposição no Museu do Estado, onde apresentou naturezas-mortas e telas muito menos ousadas do que as abstrações, as estilizações e o decorativismo de inspiração marajoara elaborados na década de 1920.16
É preciso marcar bem os diferentes posicionamentos sociais de Vicente do Rego Monteiro ao longo de sua vida. Até 1932, estava ligado com maior ênfase às redes de sociabilidade de Paris do que às do Recife. Seu aprendizado e sua circulação nas artes pouco passaram pela vida pernambucana. O Vicente do Rego Monteiro modernista não é, de fato, pernambucano, se for considerada sua formação. Tampouco sua obra impactou artistas locais das primeiras décadas do século XX, ou dialogou com eles. Se for tomada emprestada a concepção de sistema literário de Antonio Candido, poder-se-ia considerar o Vicente do Rego Monteiro vanguardista um estranho à pintura pernambucana. O pintor não fez suas obras circularem em meio a um público e a uma crítica no estado. Primeiro porque, nas primeiras décadas do século XX, Pernambuco não apresentava condições objetivas de assimilação (um público formado, um sistema de críticos qualificados escrevendo sistematicamente, escolas e instituições voltadas às artes etc.) e segundo porque Vicente investiu na recepção pernambucana apenas no final da década de 1930,quando sua produção pictórica mais inovadora já se revelava intermitente. Ademais, logo em 1946, decide retornar a Paris, de onde regressa apenas onze anos depois, em 1957.
Mesmo tendo ficado mais de dez anos em Pernambuco, seu senso prático não o levou a criar e a manter-se presente numa rede de sociabilidade na cena cultural pernambucana, mesmo que à distância.17
Indicador nítido, nesse sentido, é a sua ausência do ciclo de exposições promovido pelo diretório acadêmico da Faculdade de Direito em 1948, no qual Cícero Dias, Lula Cardoso Ayres e até a estreante Ladjane Bandeira foram apresentados. Sua ausência pode sugerir a pouca solidariedade entre os estudantes e o pintor simpatizante do integralismo, a baixa produtividade pictórica de Vicente nesse período (uma vez que se dedicava mais à poesia) ou, ainda, sua falta de interesse em se firmar como pintor naquela época.
No período em que integra a vida artística de Pernambuco de maneira um pouco mais sistemática, de 1935 a 1946, sua inserção se dá nos mesmos moldes de enquadramento profissional da maioria dos pintores e artistas conterrâneos de então. Divide-se entre o trabalho na imprensa e as aulas de desenho em cursos secundários, tal como Percy Lau, Elezier Xavier, Mário Nunes etc. No seu caso, porém, são revistas da Imprensa Oficial, ele mesmo assumindo sua direção, e o prestigioso Ginásio Pernambucano: afinal, seu currículo, suas convicções políticas e sua origem familiar garantiam-lhe trunfos maiores, naquela configuração social, do que os de seu pares.
Com a implementação do Estado Novo em Pernambuco, o interventor Agamenon Magalhães instaura uma política educacional que utilizou as instituições de ensino (como o Ginásio Pernambucano) e a imprensa (como o seu jornal A Folha da Manhã e as revistas dirigidas por Vicente do Rego Monteiro) para ampla divulgação dos ideais estado-novistas. Como ressalta a pesquisadora Maria Almeida, “os princípios” que norteariam “este novo paradigma pedagógico deveriam trazer em seus cânones a trilogia fascista - religião, pátria e família - e a reificação do conceito de ordem em contraponto à ideia de desordem [...]”.18
Dessa forma, não pode ser tomada como mera coincidência, ou simplesmente reconhecimento do pintor modernista, a nomeação de Vicente do Rego Monteiro, em 1938, para o cargo de professor de desenho do Ginásio Pernambucano e diretor da Imprensa Oficial. O fervor com que Vicente defendia os preceitos da extrema direita nas duas revistas que dirigiu evidencia seu acordo ideológico com o projeto que se instaurava.
É possível identificar esse acordo também em sua participação no Salão de Pintura do Museu do Estado de Pernambuco de 1942, quando é classificado em primeiro lugar.19 Concorrendo com quatro naturezas-mortas, a de título Estudo nº 31 série R,20 vencedora do prêmio, cristaliza as adequações estéticas e políticas operadas quando se instalou em Pernambuco e passou a integrar as fileiras do Estado Novo.
Trata-se de um óleo sobre tela sem grandes inovações. O realismo é garantido em todos os detalhes da composição equilibrada. Não há distorção de cores, de contornos, de proporções. Pelo contrário, até mesmo o reflexo da janela e da moringa no vidro da garrafa de cachaça e no interior da xícara é bem trabalhado pelo artista. Um pires posto por detrás da garrafa revela-se através do vidro com suas dimensões levemente alteradas pelo mesmo efeito de óptica que aumenta as letras do jornal sobre o qual estão pousados pires e garrafa.
Esse jornal aparece parcialmente. Pode-se ver claramente a primeira parte do título do periódico Folha da. O rótulo da cachaça esconde um pedaço do último “a” e a parte inferior da letra “M”, que iniciaria a segunda palavra. É muito provável que a referência seja à Folha da Manhã, jornal de propriedade de Agamenon Magalhães e porta-voz da política do Estado Novo.
Esse quadro nada deve aos trabalhos dos anos 1920, nos quais Vicente explorava motivos marajoaras na busca de uma arte decorativa. Ou ainda em outras telas nas quais introduz vistas urbanas de maneira mais ousada como Torre Eiffel, de 1922. Sem falar em telas como A flautista, também de 1922, ou as ilustrações do livro Quelques visages de Paris.21 Em todas essas vertentes Vicente explora a linguagem de um modo muito mais consistente do que na tela vencedora do salão de 1942.
Sua natureza-morta, ao mesmo tempo que se adéqua ao movimento de retorno à ordem vivido por outros artistas do cenário nacional,22 está sintonizada com o tipo de produção de seus concorrentes no salão de 1942.Mário Nunes, o segundo colocado, apresentou telas retratando interiores de igrejas e claustros, paisagens de praias, coqueirais e vistas urbanas, todas temáticas com uma relação explícita com o que, ao longo do século XX, passa a se configurar como o patrimônio arquitetônico e natural do estado. Em sua tela premiada, O claustro-interior do Mosteiro de S. Bento Olinda,23 ele também não ousava novas formas de pintura, mantendo-se comportado e longe das vanguardas. Mesmo assim, conseguia tirar grandes elogios do crítico contemporâneo Lucilo Varejão, em 1942.
Varejão não dedica tanta paixão às telas de Vicente do Rego Monteiro. Carlos Rubens, por sua vez, num livro publicado um ano antes do artigo de Varejão, nem sequer cita Vicente do Rego Monteiro entre os artistas atuantes no Recife. Menciona, sim, com muitos elogios, sua irmã Fédora e Mário Nunes.24
O Salão de Arte do Museu do Estado de Pernambuco de 1942 e esse texto de Lucilo Varejão, publicado no mesmo ano, mostram como a presença de Vicente no Recife não significou uma total renovação das artes no estado. Por um lado, boa parte da crítica ainda preferia uma pintura mais próxima de Nunes do que das vanguardas. Por outro, o próprio Vicente tentou adequar-se a esse gosto pernambucano, pintando naturezas-mortas, tais como a premiada.
Comentando pintores mais ousados, Lucilo Varejão, nesse mesmo texto de 1942, afirma:
Luiz Soares, Cícero Dias e Augusto Rodrigues Filho - esses não sentiram correspondência no meio ambiente e já lá se foram. De certo não voltarão. É lamentável que isso tenha ocorrido, pois Cícero Dias e Augusto Rodrigues seriam dos grandes intérpretes dos costumes pernambucanos. 25
As obras biográficas sugerem o fim da guerra como sendo o elemento decisivo para o retorno do pintor a Paris em 1946. No entanto, pode-se fazer outra interpretação, retirando todos os elementos dessas próprias obras biográficas. Com a derrocada do Estado Novo, seus empregos e o clima em seu entorno poderiam ter ficado insustentáveis, sobretudo para ele, que assumira posições tão radicais no período ditatorial.
Zanini afirma que o estilo de vida levado por Vicente, comprando carros de corrida, entre outras extravagâncias, teria colaborado fortemente para dilapidar a herança de sua esposa.
Os negócios mal gerenciados do engenho acabaram em desastre. Sua residência no Recife, à avenida Visconde de Suassuna - ponto de reunião de amigos, entre eles os jovens poetas da cidade -,em cujas paredes viam-se obras de Derain, Lhote, Herbin, Marcoussis, dele mesmo e do irmão Joaquim - remanescentes da exposição itinerante de 1930 -,era alugada.
Ao regressar a Paris, em 1946, não conseguiria recuperar a residência da avenue Junot. O inquilino, que pagara impostos por muito tempo, inclusive durante a guerra, entrara em juízo e tornara-se o proprietário. Ao casal Rego Monteiro restou receber uma quantia proporcionalmente modesta, suficiente, porém, para a aquisição do acanhado apartamento da rue Didot. 26
A rede de sociabilidade do casal também se restringe cada vez mais. Em carta de 10 de setembro de 1945, endereçada ao casal Géo-Charles, Vicente comenta que, por atritos, distanciara-se de Aníbal Fernandes, de sua irmã Fédora e de sua mãe. Seis meses depois, em 10 de maio de 1946, Marcelle escreveu para sua amiga Lucienne Géo-Charles, perguntando sobre a vida doméstica em Paris no pós-guerra, comentando como o casal franco-brasileiro estava solitário. A intenção era migrar imediatamente.
Responde sinceramente Lulu, você acha que não encontraremos do que nos alimentar nos primeiros meses? Não queremos estabelecer nossa vida futura sobre uma falsa prosperidade devida à vontade dos amigos (daqui) que podem se cansar, nós queremos viver em Paris como todos os artistas que aí vivem, sofrem e se auxiliam mutuamente na certeza do restabelecimento natural de nossa querida França. Estamos bem decididos a aceitar qualquer trabalho para podermos prover às nossas necessidades. Todos esses anos passados aqui foram para mim um sofrimento moral por constatar a indiferença e a falta de compreensão em relação a Vicente de todos os seus falsos amigos, egoístas, invejosos, maldosos mesmo. Enquanto seus pais eram vivos eu julguei um dever viver com eles e assisti-los até o último instante, e estávamos de acordo no tocante a quaisquer sacrifícios. Atualmente que estamos sozinhos, uma única coisa preocupa-me: o futuro artístico de meu caro Vicente. Faço tudo para convencê-lo de que seu lugar é em Paris e não aqui e creio não estar errada em pensar assim. Tenho também um grande desejo de revê-los, de ir ao teatro de que tanto gosto (se possível, mesmo no galinheiro).Estou farta de ser devorada pelos mosquitos e outros insetos que Géo conhece 27
Pela carta, não é difícil imaginar que Marcelle já não suportava mais viver no Recife. Com a morte dos pais, as relações estremecidas com sua irmã mais próxima e com “falsos amigos, egoístas, invejosos, maldosos mesmo”, Vicente já não tinha amarras para se manter na cidade.
Nesse momento, ainda não sabiam que já tinham perdido a mansão da avenue Junot, portanto possuíam algum patrimônio em Paris. Migram ainda em 1946, no mesmo ano da carta de Marcelle.
Uma vez restabelecido em Paris, não na mansão, mas no apartamento da rue Didot, Vicente instala sua tipografia manual - a La Press à Bras - e passa a editar poemas seus e de amigos. Nesse período, pouco produz em termos de pintura. Dedica-se, sobretudo, à poesia, escrevendo e organizando salões. Permanece em Paris até 1957. Pelo que indica a pesquisa de Zanini, esse foi um período de pouca produção pictórica. O crítico ressalta, porém, dois momentos em que Vicente teria pintado. O primeiro, em 1947, quando realizou uma série de quadros “com princípios figurativistas dos anos 20”28 que teriam culminado em uma exposição na Galeria Visconti, em Paris, apresentada por Géo-Charles, na qual apresentava, também, alguns quadros dos anos 1920.Do segundo momento seriam as “obras abstrato-informais”, apresentadas a partir de 1954 e até início dos anos 1960.
A exposição feita em julho de 1954, na qual foram exibidos quadros seus ao lado de trabalhos de Fédora e Joaquim, no prestigioso Teatro Santa Isabel, teve pouquíssima repercussão. A página de Ladjane Bandeira apenas publica uma minúscula nota anunciando que a exposição encontrava-se aberta.29 Abelardo Rodrigues também comenta a atuação de Vicente no cenário artístico pernambucano.
Quando [Rego Monteiro] vinha ao Brasil, não vinha como pintor. Realizava-se de outra forma. Sua grande mágoa era não ser reconhecido. Era o pessimismo em pessoa. Sua exposição no Teatro Santa Isabel (com os irmãos, em 1954) foi um fracasso. Ele era para nós um marginal em matéria de pintura.30
Um tanto fora de foco, Vicente foi incapaz de manter uma estabilidade econômica mínima em Paris. Tampouco conseguiu criar uma rede pernambucana que sustentasse sua arte. Quando enfartou pela primeira vez, em 1955, seus companheiros franceses mobilizaram-se para, em socorro às suas despesas hospitalares, atribuir-lhe o prêmio Le Mandat des Poètes, destinado a poetas pobres.
Em 1957, impossibilitado de manter suas atividades de tipógrafo manual, por conta do enfarte, Vicente inicia um movimento pendular anual entre Brasil (Recife ou Brasília) e Paris que durará até sua morte, em 1970. No ano de seu retorno, expõe monotipias “abstrato-informais” no Teatro Santa Isabel. É contratado pela Escola de Belas Artes de Pernambuco - nesse momento já incorporada à Universidade Federal de Pernambuco - como professor de natureza-morta.31
De alguma forma, Vicente, nessa nova estadia, parece mais preocupado em inserir-se no meio artístico recifense. Além de sua cadeira na escola, participa, em 1960, da exposição coletiva de inauguração da Galeria de Arte do Recife, promovida pelo Movimento de Cultura Popular, ao lado de artistas mais jovens, como Anchises Azevedo, Gilvan Samico, Montez Magno, José Cláudio. Foi incluído também, por Ariano Suassuna, na exposição Pintores Pernambucanos Contemporâneos, que integrou o Congresso Brasileiro de Crítica e História Literária na então Universidade do Recife, em 1960.
Nessa exposição, Vicente foi incluído na geração “modernistas, com sua variante regionalista” (ao lado de Cícero Dias e Lula Cardoso Ayres). Exibindo telas datadas dos anos 1920, essa exposição organizada por Ariano Suassuna talvez seja uma das primeiras nas quais Vicente figura não como um artista atuante, mas como um artista incorporado ao patrimônio de um modernismo pernambucano já consolidado.
Outro indício da preocupação de Vicente em inserir-se no meio artístico recifense pode ser encontrada em seu trabalho de ilustração de poemas de Edson Régis,32 conhecido como Caligramas. A parceria, em alguma medida, fortaleceu vínculos com intelectuais locais, seja no universo social da poesia, seja no âmbito das artes plásticas. Expôs os Caligramas em 1961, associando-se a Wilton de Souza - seu ex-aluno no Ginásio Pernambucano e jovem artista formado pelo Atelier Coletivo, de Abelardo da Hora -, que trabalhava nas Lojas do Bom Gosto, do comerciante judeu José Rozenblit. Souza organizava uma minigaleria associada aos ambientes decorados com os móveis, principal produto do estabelecimento. Muitos dos artistas pernambucanos passaram por essa galeria.33
Aos poucos, Vicente abandona as “obras abstrato-informais” e passa a dedicar-se a motivos relacionados mais diretamente à vida cultural pernambucana. Simultaneamente à opção por ilustrar os poemas do pernambucano Edson Régis e por expor no mesmo circuito que os jovens pintores está o crescimento da produção de telas com motivos regionais. Danças de frevo, datada do final da década de 1950, é um exemplo.34
São dos anos 1960 também as duas encomendas de Gilberto Freyre para o Museu do Açúcar, representando trabalhadores dos engenhos em suas atividades de transporte da cana.35 Ambas são telas com forte apelo regional, tão descritivas quanto as de Lula Cardoso Ayres voltadas a personagens folclóricos. Não se trata mais de telas inovadoras. Quando muito, elas guardam a paleta, a fatura e as formas escultóricas que, durante as décadas de 1920 e 1930, fizeram a crítica associar o artista ao amigo e consagrado escultor Victor Brecheret.
Pode-se falar de Vicente do Rego Monteiro como um pintor pernambucano apenas na década de 1960. Sua participação em algumas exposições e ateliês mostra qual foi sua inserção nesse universo. Em 1963, participa da exposição Artistas do Nordeste, no Museu de Arte Moderna de Salvador, então dirigido por Lina Bo Bardi. Em 1964, expõe não apenas na Primeira Exposição do Atelier da Ribeira, em Olinda, como também participa do movimento de fundação dos ateliês na cidade, seja no Mercado da Ribeira, seja na rua de São Bento,154 e 164, o Atelier + 10, ao lado de artistas como João Câmara, Guita Charifker, Adão Pinheiro e Montez Magno, entre outros.
Suas posições políticas continuam, porém, bastante reacionárias. Em 1963, tenta, sem sucesso, eleger-se vereador pelo conservador Partido Social Democrático (psd).36 Em 1965,depois da queda do antigo prefeito Eufrásio Barbosa e do artista plástico Adão Pinheiro, da Diretoria de Turismo da Prefeitura de Olinda, Vicente foi indicado para o cargo de diretor dessa mesma diretoria,que,segundo Ayala,foi uma “providência sem dúvida de socorro, determinada por amigos, e que nada tinha a ver com a atividade e natureza pessoal de Vicente”.37 Segundo Edson Nery da Fonseca,38 em 1966, Vicente integrou o grupo de docentes contratados pela Universidade de Brasília para substituir os professores cassados e os mais de duzentos que pediram demissão em solidariedade. Como professor-colaborador do Centro de Arte da UNB, assumiu a direção da Gráfica Piloto. Apesar de seu desligamento ter se dado em 1968, juntamente com outros 67 professores, Vicente já contava 69 anos, aproximando-se, assim, da sua aposentadoria compulsória. Na obra de Zanini e no texto de Fonseca, não fica claro se Vicente teria sido demitido pelos militares ou se simplesmente se aposentado. De toda maneira, para os estudantes da UNB, ele era identificado com o regime, e teve seu ateliê ocupado por manifestantes de esquerda. Lamentando sua situação em Brasília, Vicente escreve a Bardi em 24 de abril de 1968:
Caro amigo Bardi,
Aqui estou de volta de Paris. Umas férias caras e trabalhosas. Uma vez realizado o XVI Salon de Poesie, aliás com grande êxito, voltei a toque de caixa para Brasília, pois informaram-me que o meu atelier situado num barraco de madeira no campus universitário e onde funcionava um curso de desenho industrial fora ocupado pelos estudantes-grevistas e transformado em dormitório para os mesmos!!...
[...] Assim estes novos bárbaros não respeitam mais nada. [...] Por mim o prejuízo é moral. Estou sem ânimo para lutar. Não tenho onde alojar meu material para trabalhar com a intensidade desejada. Trouxe de Paris algo interessante. Tenho primeiro que encontrar um local fora do campus universitário, que no momento não dá garantias. Com os novos gênios que transformaram salas de aulas e ateliers de professores em dormitórios o que podemos esperar de bom para o futuro? [...] Veja só, enquanto os novos bárbaros invadiam meu atelier no campus universitário, eu em Paris punha em valor poemas de poetas universitários! Não há justiça39
Além de suas posições políticas, que com certeza colaboraram para que a crítica de arte nacional não lhe dedicasse tanta atenção, a inserção de Vicente junto aos novos artistas evidencia como suas escolhas profissionais e estéticas das décadas anteriores pesaram nesses últimos anos de sua vida. Suas opções de venda e de representação comercial parecem-lhe semelhantes às dos artistas locais que pouco ou nenhuma circulação nacional e internacional tiveram. Em 1969, Vicente associa-se ao marchand Carlos Ranulpho, o mesmo que direcionaria os trabalhos de Wellington Virgolino e Mário Nunes para temas e formatos cada vez mais ligados ao decorativismo e ao figurativismo.
Assim como, na mesma década de 1970, Wellington Virgolino passou a pintar a série Sete pecados capitais, Vicente do Rego Monteiro, nos últimos trabalhos de sua vida, também sob contrato com Ranulpho, fez obras de temas ligados à religiosidade com uma atmosfera naïf, como a tela Santo Antônio falando aos peixes, de 1970.40 Desse modo, o artista dividiu seu tempo pintando telas dedicadas aos assuntos socialmente consagrados como regionais, abdicando de linguagens mais ousadas e refazendo pinturas de décadas anteriores. Zanini afirma que Vicente do Rego Monteiro chegou a datar retroativamente alguns de seus trabalhos.
Pode-se concluir que, a despeito de Vicente do Rego Monteiro ter nascido em Pernambuco, apenas com dificuldade poderia ser considerado um pintor modernista pernambucano, tal como a própria crítica recifense assinalou em suas primeiras exposições na cidade. Sua produção das décadas de 1920 e 1930 pouco dialoga com o perfil das artes naquele estado e fracamente se insere num sistema autor-obra -crítica que caracterizaria um sistema cultural local. Aliás, o grosso de sua produção é anterior ao seu estabelecimento duradouro no Recife. Uma vez estabelecido na cidade, passa a dedicar-se a outras atividades artísticas; assume postura de extrema direita, que o afasta dos demais intelectuais que sofriam com as sérias repressões do Estado Novo.
A partir de meados dos anos 1950, quando volta a pintar sistematicamente, seus trunfos de pintor experiente já estão de tal forma dispersos e esmaecidos pela falta de investimentos passados que se vê obrigado a refazer um percurso de artista iniciante. O Vicente dos anos 1960 pinta sob as mesmas constrições sociais que agiam sobre jovens artistas locais. A necessidade de se associar a ateliês coletivos, seja para dividir custos, seja para garantir espaço expositivo, a inserção no circuito de exposições que inclui lojas de decoração e a submissão às preferências do galerista Ranulpho são constrições diversas das de outros artistas modernistas de sua geração, como Lula Cardoso Ayres e Cícero Dias.
Nas primeiras décadas do século XX, a trajetória de Vicente assemelhava-se ao percurso de formação e circulação dos pintores modernistas. Já nos anos 1960, ele seguiu o caminho de pintores e artistas em início de carreira no cenário pernambucano. O fato de estar submetido às constrições sociais semelhantes àquelas de jovens iniciantes parece pouco condizente com as possibilidades que estavam abertas anos antes para os pintores de sua geração. Em 1963, por exemplo, foi um dos artistas pernambucanos recusados na Bienal de São Paulo. O júri barrou todos os jovens artistas pernambucanos, mas aceitou os antigos modernistas do estado: Lula Cardoso Ayres e Cícero Dias. Se logo foi comparado a Ayres e Dias - ou ainda mesmo àqueles um pouco mais jovens, como Francisco Brennand e Aloísio Magalhães -, Vicente, a partir dos anos 1950, iniciou um trajeto de deslocamento em termos geracionais.
Lula Cardoso Ayres, também oriundo de uma família economicamente decadente, sustentava-se com a venda de sua força de trabalho, seja em encomendas particulares, seja como professor da Escola de Belas Artes de Pernambuco. Em termos objetivos, mantinha uma semelhança clara com a posição ocupada por Vicente. Ainda assim, Lula conseguiu manter uma grande casa em Piedade. Cícero Dias, também com um movimento pendular entre Brasil e França, conseguiu firmar-se como uma personalidade artística do modernismo brasileiro, mesmo sem ter participado da Semana de 1922. Tanto a trajetória de Cícero Dias quanto a de Lula Cardoso Ayres parecem econômica e profissionalmente mais estáveis do que aquela vivida por Vicente do Rego Monteiro, que, em 1970, faleceu em seu pequeno apartamento no decadente Edifício Holiday, em Boa Viagem.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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- _______.Vicente do Rego Monteiro: artista e poeta. São Paulo: Empresa das Artes/ Marigo, 1997b.
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1
Este artigo é composto por parte da tese de doutorado defendida em 2014 no Programa de Antropologia Social da Universidade de São Paulo sob o título Regional como opção, regional como prisão: trajetórias artísticas no modernismo pernambucano, que contou com auxílio da Fapesp e do PDEE/Capes.
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2
Zanini, 1997a, p. 44.
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3
“Artes & artistas”. Diário de Pernambuco, 19 dez. 1919 apud Zanini, 1997a, p. 61.
- 4
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5
Amaral, 1972, p. 124.
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6
Freyre, 1925, p. 129.
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7
Freyre, 1925, p. 129.
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8
No catálogo organizado por Zanini, 1997a, há reproduções de imagens e páginas desse livro. Em 2005, a Edusp lançou o título Do Amazonas a Paris: as lendas indígenas de Vicente do Rego Monteiro, uma edição fac-similar dos dois livros do artista: Légendes, croyances et talismans de l’Amazone (1923) e Quelques visages de Paris (1925).
- 9
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10
Zanini, 1997b, p. 30.
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11
Reproduzido em Zanini, 1997a, p. 258.
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12
Almeida, 2007, p. 249.
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13
Almeida, 2007, p.250.
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14
Carta de Vicente do Rego Monteiro a Géo-Charles, Engenho Várzea Grande, 31 de dezembro de 1935, reproduzida em Oiticica Filho, 2004, p. 16.
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15
Zanini, 1997a, p. 33-34.
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16
Penso aqui em telas como Mulher diante do espelho, 1922, col. Luiz Antônio de Almeida Braga, Rio de Janeiro, reproduzida em Zanini, 1997a, p. 109; Composição abstrata, 1922, col. particular, São Paulo, reproduzida em Zanini, 1997a, p. 172; ou ainda Motivo indígena, 1922, col. Max Perlingeiro, Rio de Janeiro, reproduzida em Zanini, 1997a, p. 171.
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17
Essa foi a estratégia de Cícero Dias. Mantendo-se próximo a Gilberto Freyre, que, com frequência, mencionava seu nome em seus artigos na imprensa, ele nunca deixou completamente a cena pernambucana.
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19
Deve-se lembrar que o grande idealizador dos Salões do Museu do Estado de Pernambuco foi o jornalista e inspetor estadual de Monumentos Nacionais Aníbal Fernandes, casado com a irmã de Vicente, Fédora do Rego Monteiro.
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20
Vicente do Rego Monteiro, natureza-morta Estudo nº 31 série R, 1942, col. Museu do Estado de Pernambuco, reproduzida em Zanini, 1997a, p. 306.
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21
Torre Eiffel, 1922, col. particular, São Paulo, reproduzida em Zanini, 1997a, p. 175; A flautista, 1922, col. Ricard Takeshi Akagawa, São Paulo, reproduzida em Zanini, 1997a, p.184.
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23
O claustro — interior do Mosteiro de S. Bento Olinda, segundo prêmio em 1942,60 cm x 70 cm, reproduzido em Museu do Estado de Pernambuco, 1944, p. 12.
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25
Varejão, 1942, p. 177.
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26
Zanini, 1997a, p. 32.
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27
Reproduzido em Zanini, 1997a, p. 321.
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28
Zanini, 1997a, p. 17.
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30
Reproduzido em Zanini, 1997a, p. 347.
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31
Torna-se, assim, colega de Murillo La Greca, Baltazar de Câmara, Mário Nunes, mas também de Lula Cardoso Ayres e Paulo Freire. Nesse mesmo ano conhece Crisolita Pontual Barreto Beltrão, com quem terá três filhos. Não há praticamente nenhuma informação publicada sobre essa união. Das biografias depreende-se, no entanto, que Vicente do Rego Monteiro manteve-se casado com Marcelle, que durante esse período morava em Paris.
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32
Edson Régis de Carvalho, poeta e jornalista, foi amigo de Vicente do Rego Monteiro. Durante o período da ditadura civil-militar (1964-1985) foi secretário de governo de Pernambuco e procurador federal. Foi uma das duas vítimas fatais do atentado à bomba no Aeroporto Internacional do Recife/Guararapes, em 1966. Em carta a Pietro Maria Bardi, datada de 27 de julho de 1966, Vicente escreve: “Deixei o Recife na véspera do trágico atentado terrorista que custou a vida do meu grande amigo o poeta Edson Régis. Assim é a vida. Morrem uns inocentes pelos pecadores” (Reproduzido em Bruscky, 2004, p. 481).
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33
Wilton de Souza afirmou em depoimento ao autor, em 7 de junho de 2010, que auxiliou Vicente do Rego Monteiro a vender boa parte da tiragem dos Caligramas junto a vereadores e políticos locais para que ele pudesse fazer sua viagem anual a Paris.
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34
Danças de frevo, óleo sobre cartão, fim da década de 1950, col. particular, reproduzido em Zanini, 1997a, p.330.
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35
O cambiteiro, 1961, óleo sobre tela, 59 cm x 72 cm, Fundação Joaquim Nabuco, reproduzido em Museu do Homem do Nordeste, 2000, p. 138.
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36
Agamenon Magalhães e Etelvino Lins eram integrantes do PSD, partido getulista que congregava antigos interventores de diferentes estados.
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37
Ayala, 1980, p. 53.
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38
Fonseca, 2002, p. 46-47.
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39
Carta de Vicente do Rego Monteiro a Pietro Maria Bardi, Brasília, 24 de abril de 1968, reproduzida em Bruscky, 2004, p. 503.
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40
Santo Antônio falando aos peixes, óleo obre cartão, 1970, col. Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Nov 2015
Histórico
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Recebido
09 Jul 2015