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ÉMILE DURKHEIM E O REINO DOS FINS: Considerações sobre a sociologia da moral

Émile Durkheim and the Kingdom of Ends: Considerations on the Sociology of Morals

RESUMO

Este artigo pretende demonstrar como a sociologia da moral de Durkheim é uma continuação e uma superação (sociológica) de certos pontos centrais da teoria de Kant, como as ideias de autonomia e de reino dos fins; e propor, por conseguinte, uma chave para a compreensão da própria dimensão normativa da sociologia durkheimiana, que possui tanto peso quanto a etapa analítica que a precede.

PALAVRAS-CHAVE:
Durkheim; Kant; moral; individualismo

ABSTRACT

This article intends to demonstrate how Durkheim’s sociology of morals is a continuation and a (sociological) overcoming of certain central points of Kant’s theory, such as the ideas of autonomy and the kingdom of ends; and therefore proposes a key to understand the normative dimension of Durkheimian sociology, which has as much weight as the analytic stage that precedes it.

KEYWORDS:
Durkheim; Kant; moral; individualism

INTRODUÇÃO

A sociologia pode ser vista como a área do conhecimento que tem como propósito inter-relacionar, sistematicamente, estruturas sociais, culturas e práticas de modo a responder a questões sobre as concepções e possibilidades da ação, da ordem e da mudança social. Essa é a formulação usada por Vandenberghe (2015Vandenberghe, Frédéric. “A sociologia como uma filosofia prática e moral (e vice-versa)”. Sociologias, Porto Alegre, ano 17, n. 39, 2015. Disponível em: <Disponível em: https://doi.org/10.1590/15174522-017003903 >. Acesso em: 10/11/2021.
https://doi.org/10.1590/15174522-0170039...
, p. 66) para argumentar que, por essas características, a teoria sociológica seria atualmente a área responsável por dar continuidade à tradição da filosofia moral moderna. O autor argumenta que, uma vez que consideremos essa afirmação uma premissa verdadeira, teremos uma área da sociologia - ainda a ser consolidada - chamada de “sociologia da moral”. E, na medida em que exista tal área, seu cânone seria, ainda de acordo com Vandenberghe, Émile Durkheim. Essa última afirmação será corroborada por intérpretes da teoria durkheimiana que discutiremos abaixo, como Weiss (2010Weiss, Raquel. Émile Durkheim e a fundamentação social da moralidade. Tese (doutorado em filosofia). São Paulo: Departamento de Filosofia/FFLCH-USP, 2010.), Massella (2015Massella, Alexandre. “Apresentação”. In: Durkheim, Émile. Sociologia e filosofia. Trad. de Evelyn Tesche. São Paulo: Edipro , 2015.) e Miller (2009________. “Investigando o projeto de Durkheim para a constituição de uma Ciência Social”. In: Massella, Alexandre et al. (orgs.). Durkheim: 150 anos. Belo Horizonte: Argumentum, 2009.).

Nosso objetivo, entretanto, não é atribuir a Durkheim o começo e o fim da sociologia da moral. Há outras tradições e autores relevantes nessa área - como é o caso, por exemplo, da discussão de Weber a respeito dos valores, da Escola de Baden ou, mais recentemente, da sociologia crítica de Boltanski. Nosso intuito é, antes, propor a interpretação da teoria de Durkheim como uma contribuição original para a teoria moral e demonstrar quanto essa contribuição propõe uma releitura sociologizada de Kant. Demonstrar a apropriação criativa que Durkheim faz de Kant permite interpretar sua teoria não apenas como uma sociologia da coerção, como costumeiramente é tomada, mas também como uma sociologia da autonomia.

Podemos dizer com segurança que Durkheim fez da questão da moral o ponto nevrálgico de sua sociologia: ao buscar responder à questão que serviu de fio condutor a toda a sua obra, a saber, “como é possível a ordem social?” ou, em outras palavras, “por que a sociedade não se desintegra?”, o autor acreditou ter encontrado no que chamou de “densidade moral” sua melhor resposta (Collins, 2009Collins, Randall. “A tradição durkheimiana”. In: Quatro tradições sociológicas. Trad. de Raquel Weiss. Petrópolis: Vozes, 2009., p. 158). Para ele, a sociologia é a única ciência capaz de fornecer fundamentação ao estudo da moral, posto que “o homem só é um ser moral porque vive em sociedade, pois a moralidade consiste em ser solidário de um grupo e varia de acordo com essa solidariedade. Façam desaparecer toda vida social, e a vida moral desaparecerá ao mesmo tempo, não tendo mais objeto a que se prender” (Durkheim, 2010________. Da divisão do trabalho social. Trad. de Eduardo Brandão. São Paulo: wmf Martins Fontes, 2010., p. 421).

É no modo como essa moralidade se realiza na vida social que consiste a principal questão da dimensão normativa da teoria de Durkheim. Para isso, o sociólogo teve como um de seus principais fios condutores a proposta de atualizar e fundamentar cientificamente a metafísica dos costumes de Kant, pela qual o filósofo propôs a realização da moralidade na ideia de reino dos fins - sem que, no entanto, isso signifique manter os mesmos pressupostos metateóricos. Como observa Raquel Weiss, Durkheim considerava que suas formulações seriam insuficientes para um tratamento científico da questão, pois resultavam da “adoção de um princípio epistemológico incompatível com uma abordagem científica do problema” (Weiss, 2011________. “Émile Durkheim e a revolução copernicana no conceito de moral”. In: Weiss, Raquel; Oliveira, Márcio (orgs.). David Émile Durkheim: a atualidade de um clássico. Curitiba: Editora ufpr, 2011., p. 133). Ainda segundo Weiss, Durkheim defendeu um deslocamento, no entendimento da moral, na definição de sua origem e de seu fundamento (idem, p. 132).

POR UMA CIÊNCIA DA MORAL

O primeiro aspecto a ser levantado aqui é a respeito das limitações da leitura unidimensional que costumeiramente se faz da teoria de Durkheim. Lembrado por sua contribuição para a fundação da sociologia, além de interpretado como um sociólogo da ordem devido a suas proposições metodológicas e sua visão dos fatos sociais como coisas, há uma dimensão de sua obra que resta pouco explorada. Nas palavras de Weiss (2010Weiss, Raquel. Émile Durkheim e a fundamentação social da moralidade. Tese (doutorado em filosofia). São Paulo: Departamento de Filosofia/FFLCH-USP, 2010., p. 11), “além de seu obstinado esforço para explicar os elementos do ser, Durkheim se dedicou, talvez com a mesma ênfase, à questão do dever ser, o que fica mais claro numa leitura mais aprofundada de sua obra, em que podemos observar seu lado mais propositivo”.

Outros intérpretes também ressaltaram a importância desse aspecto de sua obra. Watts Miller afirma que o cerne do projeto durkheimiano repousa sobre “sua ambição teórica e prática mais fundamental - a possibilidade de estabelecer a passagem do ‘ser’ ao ‘dever ser’, que endossa a moderna ética universalista do indivíduo enquanto homem” (apud Weiss, 2010Weiss, Raquel. Émile Durkheim e a fundamentação social da moralidade. Tese (doutorado em filosofia). São Paulo: Departamento de Filosofia/FFLCH-USP, 2010., p. 17). A esse respeito, Célestin Bouglé, em prefácio escrito para a edição de 1924 de Sociologia e filosofia, também ressalta que as questões morais permearam toda a obra de Durkheim:

sua maior preocupação sempre foi explicar a essência da moralidade, seu papel e o modo como ela se forma e se desenvolve nas sociedades, traduzindo suas aspirações. Todos os seus estudos relacionam-se, mais ou menos, com a sociologia moral. […] Chegar a conclusões práticas, fornecer direções à ação social: tal era sua ambição suprema. (Bouglé, 2015Bouglé, Céléstin. “Prefácio à edição original de 1924”. In: Durkheim, Émile. Sociologia e filosofia. Trad. Evelyn Tesche. São Paulo: Edipro, 2015., p. 20)

Uma expressão desse anseio pode ser observada em seu engajamento em torno do caso Dreyfus, que marcou profundamente seu pensamento e que ele caracterizou como uma profunda crise moral. Durkheim viu o caso como um ataque de forças reacionárias a valores da Revolução Francesa que, até então, ele acreditava estarem inscritos de modo indelével na identidade e na cultura francesas.1 1 Também concorreu, para que o caso adquirisse tal importância em seu pensamento, a profunda influência de Charles Renouvier, que teria sido, de acordo com Susan Stedman Jones (2001, pp. 227-8), um pensador central para os dreyfusards e que teria inspirado grande parte das ideias kantianas presentes na obra de Durkheim.

Além do famoso manifesto “J’accuse…!”, de Émile Zola, intelectuais dreyfusards publicaram um manifesto - subscrito, entre outros, por Durkheim - cujo propósito era reforçar a ideia de que “o respeito à dignidade de cada indivíduo deveria ter precedência sobre qualquer ‘razão de Estado’, na medida em que esse seria um valor verdadeiramente universal” (Weiss, 2015________. “Durkheim: um ‘intelectual’ em defesa do ‘ideal humano’”. In: Consolim, Márcia; Oliveira, Márcio; Weiss, Raquel (orgs.). O individualismo e os intelectuais. São Paulo: Edusp, 2016., p. 101). A resposta reacionária a esse manifesto levou Durkheim a redigir o texto mais abertamente normativo de sua carreira, O individualismo e os intelectuais: nas palavras de Miller (2016________. “O individualismo e os intelectuais de Durkheim”. In: Consolim, Márcia; Oliveira, Márcio; Weiss, Raquel (orgs.). O individualismo e os intelectuais. São Paulo: Edusp, 2016., p. 107), “uma expressão apaixonada e pública de seus compromissos éticos mais fundamentais”. Nele, Durkheim pôde expor elementos teóricos que resultavam da preocupação com a necessidade de explicar a essência da moralidade de modo a fornecer direções à ação social.

Seu anseio também emergia de uma necessidade teórica, resultante de uma premissa básica que permeou toda a sua empreitada para tornar o sistema moral objeto da sociologia, que é o fato de ele ter procurado demonstrar - nessa como em outras áreas - a “inexistência de uma razão pura prática, no sentido definido por Kant, o que constitui uma impossibilidade de se encontrar um princípio puro a priori que permita determinar e julgar a ação humana de forma segura e absolutamente racional” (Weiss, 2010Weiss, Raquel. Émile Durkheim e a fundamentação social da moralidade. Tese (doutorado em filosofia). São Paulo: Departamento de Filosofia/FFLCH-USP, 2010., p. 15). O propósito de trazer concepções kantianas para o terreno da materialidade expressava-se num esforço para transpor o suposto abismo instaurado pelo imperativo categórico entre razão e sensibilidade, que teria significado a privação da ação moral de razões (Massella, 2015Massella, Alexandre. “Apresentação”. In: Durkheim, Émile. Sociologia e filosofia. Trad. de Evelyn Tesche. São Paulo: Edipro , 2015., p. 12).

Para Durkheim, as formas de julgar - assim como as formas de pensar e sentir - não são passíveis de serem definidas de forma pura, ou seja, despojadas de qualquer componente empírico, mas têm sua origem determinada pela “síntese sui generis” que é o social. Assim, o juízo moral seria projeção do todo social e dos vínculos nele imbricados, como são em geral os elementos da vida propriamente humana. Portanto, deve ser tratado no domínio do “ser”, logo, abordado como objeto que deve ser conhecido e compreendido (Durkheim, 2015________. “Determinação do fato moral”. In: Sociologia e filosofia. Trad. de Evelyn Tesche. São Paulo: Edipro, 2015., p. 51).

Até aqui, a proposta do sociólogo para a teoria da moral manteve-se apenas no terreno do ser. A outra etapa - que deve, necessariamente, vir após aquela que consiste em conhecer e compreender - é a de julgar os fatos morais (idem, ibidem). O próprio autor esclarece qual seria a finalidade prática de uma ciência da moral (Weiss, 2015________. “Durkheim: um ‘intelectual’ em defesa do ‘ideal humano’”. In: Consolim, Márcia; Oliveira, Márcio; Weiss, Raquel (orgs.). O individualismo e os intelectuais. São Paulo: Edusp, 2016., p. 14), conforme se pode ver no trecho a seguir:

Mas do fato de que nos propomos, antes de mais nada, a estudar a realidade não resulta que renunciemos a melhorá-la: estimaríamos que nossas pesquisas não são dignas de uma hora de trabalho, se elas só devessem ter um interesse especulativo. Se separamos com cuidado os problemas teóricos dos problemas práticos, não é por desprezar estes últimos; ao contrário, é para nos colocarmos em condições de melhor resolvê-los. No entanto, é um hábito o de criticar todos os que empreendem o estudo científico da moral por sua impotência em formular um ideal. Diz-se que seu respeito pelo fato não lhes permite superá-lo; que podem muito bem observar o que existe, mas não nos fornecer regras de conduta para o futuro. […] a ciência pode nos ajudar a determinar o ideal para o qual tendemos confusamente. (Durkheim, 2010________. Da divisão do trabalho social. Trad. de Eduardo Brandão. São Paulo: wmf Martins Fontes, 2010., p. xlv)

Entretanto, resta responder: se Durkheim negava a existência de uma fundamentação a priori do dever moral, de que modo ele pretendeu fundamentar o juízo do certo e do errado? Noutros termos: como foi que ele escapou do relativismo moral se buscou derivar sua concepção moral de uma “vida em sociedade” empírica, que se manifesta de modo diferente em cada cultura? Afinal, qual seria a proposta de Durkheim para apropriar-se de elementos normativos de teorias morais de modo a conferir-lhes fundamentação científica? Para responder a essas perguntas é necessário que atravessemos, antes, e ainda que sinteticamente, a filosofia da qual ele se apropriou para tais formulações.

A CONCEPÇÃO KANTIANA DA MORALIDADE COMO AUTONOMIA

Ainda que não pretendamos discutir a filosofia moral de Kant exaustivamente, é necessário expor elementos de sua abordagem das questões morais ao menos na medida em que isso seja necessário para demonstrar de que modo Durkheim delas se apropriou para proceder a sua reformulação em moldes sociológicos.

Começamos por ressaltar o que consideramos o ponto central da doutrina proposta por Kant: sua concepção da moralidade como autonomia. Tenhamos em mente que a intenção de Kant nesse campo, de acordo com o próprio autor (Kant, 2011________. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. de Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2011., p. 19), foi fornecer, por meio de sua fundamentação, aquilo que ele acreditava ser o “princípio supremo da moralidade”, que determinaria a concepção pura de “bem”. Tal concepção está diretamente atrelada à ideia de autonomia da vontade.

Jerome Schneewind (2005Schneewind, Jerome. “A invenção da autonomia e Kant na história da filosofia moral”. In: A invenção da autonomia. Trad. de Magda França Lopes. São Leopoldo: Unisinos, 2005.) aponta que a concepção de uma vontade autônoma em Kant emergiu da consideração do esforço para oferecer uma alternativa às concepções de moralidade como obediência às ordens de Deus - pois tais concepções se baseariam na ideia de que a maioria das pessoas é incapaz de proporcionar a si mesmas orientação moral adequada e, portanto, deve obedecer àqueles a quem Deus teria permitido compreender e ensinar suas ordens morais - reside, pois, na ideia de vontade autônoma a possibilidade de desvencilhar-se dessa postura servil (Schneewind, 2005Schneewind, Jerome. “A invenção da autonomia e Kant na história da filosofia moral”. In: A invenção da autonomia. Trad. de Magda França Lopes. São Leopoldo: Unisinos, 2005., p. 556). Em sua empreitada para delinear as bases do que acreditava constituir as luzes da Razão, Kant (1988Kant, Immanuel. “Resposta à pergunta: o que é Iluminismo?”. In: A paz perpétua e outros opúsculos. Trad. de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1988.) determinou que a incapacidade de fazer uso do próprio entendimento sem a direção de outrem mantinha o homem na menoridade. A maioridade significaria a capacidade de agir não segundo determinações externas, mas de acordo com a própria vontade, ou seja, de forma autônoma. E é só a vontade autônoma, que é a que parte do próprio sujeito e não a que segue imposições externas, que pode ou não ser considerada moral. Por isso a moral não pode ser movida pela heteronomia:

Ao pressupor a hipótese da heteronomia, se pressupõe um interesse prévio; a existência de tal interesse é necessária para que se possa ter uma razão de obedecer a um mandamento moral. Ora, isto significa que tais mandamentos assumem necessariamente a forma: faze A se desejas B […]. Desse modo, as exigências morais se reduzem a considerações de prudência, o que equivale, segundo Kant, a negar a moralidade. (Canto-Sperber, 2003Canto-Sperber, Monique. Dicionário de ética e filosofia moral. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2003., p. 135-6)

Afirmamos que Kant buscava determinar um princípio puro da moralidade, ou seja, alguma coisa que pudesse ser considerada boa a priori, independentemente de sua manifestação empírica. Tendo em mente a premissa de que o homem seria capaz de determinar por si próprio o modo de cumprir o dever moral por meio da razão, ou seja, do entendimento próprio, Kant destaca que “se a razão nos foi dada como faculdade prática, isto é, como faculdade que deve exercer influência sobre a vontade, então o seu verdadeiro destino deverá ser produzir uma vontade, não só boa quiçá como meio para outra intenção, mas uma vontade boa em si mesma” (Kant, 2011________. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. de Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2011., p. 26). Não podendo estar relacionado ao efeito esperado por essa ação, mas ao princípio que a direciona, o valor moral não reside em parte alguma que não na vontade, que abstrai os fins. Se for tirado o fim da ação da equação que direciona a vontade, é-lhe tirado todo o princípio material, restando apenas a determinação formal, pura, dessa vontade, que é a vontade que orienta a ação não para objetos externos, mas a partir do princípio do dever (idem, p. 31). É apenas aos seres dotados de razão que é dada a possibilidade de impulsionar a ação por uma vontade modelada pelo princípio do dever, que é a boa vontade. A razão, portanto, é a única que pode orientar a ação por um princípio bom em si mesmo - a ação modelada pelo princípio autônomo.

Essa relação entre o princípio da moralidade e a autonomia da vontade deve-se ao fato de que a razão é a única força capaz de orientar a vontade de acordo com o bem - isso porque “nada senão a representação da lei em si mesma, que em verdade só no ser racional se realiza, enquanto é ela, e não o esperado efeito, que determina a vontade, pode constituir o bem excelente a que chamamos moral” (idem, p. 33). Desse modo, resta compreender o que levou Kant a postular que a lei pela qual a ação deve se orientar é, ela mesma, algo dotado de valor moral. Se a vontade que motiva a ação orientada por dever é, para Kant, o princípio absoluto do bem, em que consiste esse dever? Ou melhor, o que caracteriza a lei de acordo com a qual os indivíduos têm o dever moral de agir?

Como dissemos, só o ser dotado de razão é capaz de escolher de acordo com o que a razão determina como bom. Logo, essa escolha deve estar destituída não apenas de imposições de outrem como também da coerção das próprias inclinações e desejos do indivíduo. Por isso, é justamente a percepção da força interna do dever, que vem da própria consciência de quem procura agir conforme o bem, que diferencia a prática do dever de outros tipos de práticas não especificamente humanas. Na teoria do filósofo, “a representação de um princípio objetivo, enquanto obrigante para uma vontade, chama-se um mandamento (da razão), e a fórmula do mandamento chama-se Imperativo” (idem, p. 51). Os imperativos exprimem-se pelo verbo dever e:

mostram assim a relação de uma lei objetiva da razão para uma vontade que segundo sua constituição subjetiva não é por ela necessariamente determinada (uma obrigação). Eles dizem que seria bom praticar ou deixar de praticar qualquer coisa, mas dizem-no a uma vontade que nem sempre faz qualquer coisa só porque lhe é representado que seria bom fazê-la. Praticamente bom é, porém, aquilo que determina a vontade por meio de representações da razão, por conseguinte não por causas subjetivas, mas objetivamente, quer dizer por princípios que são válidos para todo ser racional como tal. Distingue-se do agradável, pois que este só influi na vontade por meio da sensação em virtude de causas puramente subjetivas que valem apenas para a sensibilidade deste ou daquele, e não como princípio da razão que é válido para todos. (idem, p. 52)

A respeito desses imperativos, Kant determina que todos eles “ordenam hipotética ou categoricamente. Os hipotéticos representam a necessidade prática de uma ação possível como meio de alcançar qualquer coisa que se quer (ou é possível que se queira)” (idem, ibidem), enquanto o imperativo categórico (no singular) é aquele que determina uma ação como necessária por si mesma, isto é, sem qualquer relação com outro fim. Enquanto o imperativo hipotético é uma orientação heterônoma da vontade, a vontade autônoma é aquela que age de acordo com o imperativo categórico - por ser a única orientada pela razão é que pode constituir-se conforme o dever.

Ademais, o imperativo categórico é uma proposição sintética a priori, ou seja, “se pensar num imperativo categórico, então sei imediatamente o que é que ele contém” (idem, p. 61), pois trata-se de um “mandamento incondicional [que] não deixa à vontade a liberdade da escolha” (idem, p. 60). Essa formulação, aparentemente paradoxal, define que a vontade autônoma é aquela que move a ação de acordo com o imperativo categórico, isto é, de acordo com o dever, e portanto não possui liberdade de escolha. A explicação que Kant elabora para desvencilhar-se desse paradoxo está justamente contida na sua concepção de homem autônomo.

O imperativo categórico, sendo um só, deve ser universalizável, deve poder orientar a vontade de todos aqueles que são dotados de razão. Está implícita nessa ideia uma noção universalizante de humanidade: todos aqueles dotados de razão são capazes de modelar a vontade para agir de acordo com o bem. Portanto, o imperativo deve possuir uma formulação tal que possibilite que seja válido como lei universal. Por conseguinte, o cânone pelo qual julgamos moralmente uma ação é a ideia de que essa ação deve estar orientada por uma máxima tal que possa ser transformada em lei universal, isto é, tratando-se da boa vontade, ela só pode orientar a ação de modo que possamos querer que a máxima que orienta tal ação seja universalmente válida. Isso porque, se todos os seres humanos são dotados de razão, só é universal a máxima que pode ser desejada por todos igualmente ou “tem de valer portanto para todos os seres racionais (os únicos aos quais se pode aplicar sempre um imperativo), e só por isso pode ser lei também para toda a vontade humana” (idem, p. 68). De acordo com essa lógica, Kant primeiramente formula o imperativo categórico da seguinte forma: “age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal” (idem, p. 62).

Ao mesmo tempo, Kant postula que a única possibilidade de um fim ser o móbil da boa vontade (relacionando o imperativo ao terreno da experiência) é se esse fim for algo que possua valor em si mesmo, ou seja, um valor absoluto (idem, p. 71). Ora, para Kant, o homem, como ser racional, existe como fim em si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário, em todas as suas ações, aí incluídas as que se dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre de ser dado “simultaneamente como fim” (idem, p. 72). De acordo com esse raciocínio, o imperativo prático possível será o seguinte: “Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio” (idem, p. 73).

Temos então a ideia da humanidade como fim em si mesmo, como o fundamento de uma humanidade universal. Esse princípio está de acordo com uma ideia de razão prática universal que sustenta a humanidade como sujeito de uma vontade legisladora universal, ao mesmo tempo que está submetida a ela. Chegamos, pois, à ideia do Reino dos fins: o homem está ligado às leis pelo dever, mas apenas como sujeito de sua própria legislação, que, por sua vez, é uma legislação universal. Segundo Kant (2011________. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. de Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2011., p. 80), “o conceito segundo o qual todo ser racional deve considerar-se como legislador universal por todas as máximas de sua vontade para, deste ponto de vista, se julgar a si mesmo e às suas ações leva a um outro conceito muito fecundo que lhe anda aderente e que é o de um Reino dos fins”.

É nesse reino dos fins, em que cada ser racional é um fim em si mesmo e ao mesmo tempo sujeito de uma vontade legisladora, que temos a noção kantiana de dignidade: é sujeito da dignidade aquele ser racional que não obedece a outra lei senão àquela que ele mesmo se dá. As altas exigências impostas pela intenção moralmente boa só teriam justificativa pela “possibilidade que [esta] proporciona ao ser racional de participar na legislação universal e o torna por este meio apto a ser membro de um possível reino dos fins” (idem, p. 83). Ou seja, a vontade modelada pela razão possibilita aos homens ser parte do reino em que eles são fins em si mesmos e, consequentemente, todos são igualmente dotados de dignidade e autonomia da vontade.

A SOCIOLOGIA DURKHEIMIANA DA MORAL

Iniciamos esta seção citando o próprio Durkheim, numa passagem em que demonstra ser herdeiro da teoria moral de Kant, ao mesmo tempo que pretende superar as limitações do alcance de sua filosofia, que, na forma como se apresentou, teria oferecido “uma análise relativamente fiel da consciência moral mas que descreve mais do que explica” (Durkheim, 2015________. “Determinação do fato moral”. In: Sociologia e filosofia. Trad. de Evelyn Tesche. São Paulo: Edipro, 2015., p. 74). Nesta passagem, em que Durkheim introduz sua definição de “fato moral”, o autor procura delinear os traços distintivos das regras morais:

1-º Mostrar-se-á que regras morais são investidas de uma autoridade especial que as faz serem obedecidas simplesmente porque comandam. Retomar-se-á, assim, mas por uma análise puramente empírica, a noção do dever, que definiremos muito similar a Kant. A obrigação constitui, portanto, uma das primeiras características do fato moral. 2-º Porém, ao contrário do que disse Kant, a noção do dever não esgota a noção da moral. É impossível executarmos um ato justamente porque este nos foi comandado, abstraindo de seu conteúdo. Para que possamos ser agentes do ato, é necessário que ele cative, em alguma medida, nossa sensibilidade, que nos pareça, de algum modo, desejável. A obrigação ou dever exprimem, assim, apenas um dos aspectos - e um aspecto abstrato - da moral. Certa desejabilidade é outra característica, não menos essencial que a primeira. (idem, p. 52)

A sociologia da moral de Durkheim é, em grande medida, uma tentativa de atribuir um caráter sociológico - portanto, científico - às proposições morais de Kant. No entanto, é preciso ressaltar que sua sociologia da moral não se resume a uma sociologização de Kant: Durkheim elabora sua própria abordagem do sistema moral, que chamou de “religião da humanidade” (Durkheim, 2016________. “O individualismo e os intelectuais”. Trad. de Márcio de Oliveira. In: Consolim, Márcia; Oliveira, Márcio; Weiss, Raquel (orgs.). O individualismo e os intelectuais. São Paulo: Edusp, 2016., p. 47).2 2 A proposição de uma “religião da humanidade” foi concebida, primeiramente, por Auguste Comte, que propunha a substituição de uma moral teológico-metafísica por uma moral “positiva”, ou seja, com bases intelectuais e racionais (Comte, 1976). Porém, Durkheim se distanciou muito da concepção formulada por Comte, pois este não oferecia uma fundamentação sociológica para essa moral positiva, como fez Durkheim, e tomava a ideia de religião de forma mais literal, na medida em que propunha uma religião com culto, sacerdócio e dogmas, ainda que seculares — algo que, por si só, já representa a negação da fundamentação científica buscada por Durkheim. Trata-se de “uma versão própria do ideário iluminista […], que teria originado uma forma de ‘religião particular’, que teria no respeito ao indivíduo o seu principal culto e na autonomia da razão o seu principal dogma” (Weiss, 2010Weiss, Raquel. Émile Durkheim e a fundamentação social da moralidade. Tese (doutorado em filosofia). São Paulo: Departamento de Filosofia/FFLCH-USP, 2010., p. 29). Ao falar de “religião” da humanidade, Durkheim pretendia solucionar algumas limitações do imperativo categórico, ressaltando no sistema moral o caráter de vínculo social que o autor atribuía à definição das religiões no geral, que, sumariamente, podemos entender como uma instituição que provê um vínculo de pertencimento que move os indivíduos não apenas pelo dever, mas pela desejabilidade. Como podemos observar na obra O individualismo e os intelectuais, para Durkheim:

uma religião não implica necessariamente símbolos e ritos propriamente ditos, nem templos ou padres; todo este aparato exterior não é mais do que a parte superficial. Essencialmente, ela não é outra coisa que um conjunto de crenças e de práticas coletivas oriundas de uma autoridade particular. A partir do momento que um fim é perseguido por todo um povo, ele adquire, em consequência dessa adesão unânime, uma espécie de supremacia moral que eleva bem acima dos fins privados e lhe confere assim um caráter religioso. (Durkheim, 2016________. “O individualismo e os intelectuais”. Trad. de Márcio de Oliveira. In: Consolim, Márcia; Oliveira, Márcio; Weiss, Raquel (orgs.). O individualismo e os intelectuais. São Paulo: Edusp, 2016., p. 53)

A concepção que Durkheim defende é a de uma religião laica, que tem o homem em geral como seu principal objeto: um sistema moral que “aparece às consciências que o aspiram como impregnado de religiosidade” (idem, p. 45). Essa religião, de acordo com ele, é uma doutrina centrada não no interesse pessoal como objetivo da conduta - em que qualquer motivação pessoal é entendida como a própria fonte do mal -, mas naquela máxima de Kant segundo a qual “estou certo de bem agir apenas quando os motivos que me movem se ligam não às circunstâncias particulares em que me encontro, mas à minha qualidade de homem in abstracto” (idem, p. 43). Para Durkheim, tratava-se de uma doutrina erguida sobre a base do assim chamado individualismo moral.

Durkheim encontrava-se num contexto em que se viu levado a defender concepções que considerava básicas, e foi como resposta ao acalorado debate acerca do caso Dreyfus que ele elaborou sua concepção de individualismo moral. Os intelectuais envolvidos no caso foram acusados pelos conservadores antidreyfusards de defender uma perspectiva individualista, acusação esta que tinha como intuito desqualificá-los perante a opinião pública. Durkheim respondeu à acusação dizendo que se tratava de serem movidos não pelo individualismo egoísta do utilitarismo de Spencer e dos economistas (idem, p. 41), mas por um individualismo “mais difícil de ser vencido”, aquele que:

é professado, há um século, por uma diversidade de pensadores bastante grande: o de Kant e de Rousseau, o dos espiritualistas, o que a Declaração dos Direitos do Homem tentou com mais ou menos sucesso traduzir em fórmulas, o que se ensina correntemente nas escolas e tornou-se a base de nosso catecismo moral. (idem, pp. 41-3)

Seu individualismo consistia em uma defesa intransigente da dignidade do indivíduo: encontrando-se no nível das coisas sagradas,3 3 A ideia de sagrado é a fundamentação elementar do caráter excepcional da religião para Durkheim. É apenas a operação psíquica que confere sacralidade a um determinado objeto que torna a religião uma religião propriamente dita (Durkheim, 1996). A ligação afetiva com esse objeto sagrado torna-se, para o indivíduo, a inspiração de um sentimento de autoridade desse objeto, de modo que o indivíduo passa a desejar reverenciá-lo. Ora, a religião da humanidade nada mais é do que a versão laica dessa operação: nela, a própria sociedade, na figura de um Outro genérico, é internalizada como objeto de sacralidade. Assim, a violação à dignidade desse Outro teria a força de uma heresia religiosa. A internalização desse Outro é fruto do processo educacional que transforma o ser associal e egoísta num ser social (Fernandes, 1994; Durkheim, 2014). a pessoa humana estaria acima de qualquer contingência empírica; nem mesmo uma razão de Estado poderia desculpar um atentado contra a pessoa, já que seus direitos estão acima até mesmo do Estado. Os direitos do indivíduo estão, portanto, no centro da teoria normativa de Durkheim, que acreditava conferir o devido tratamento sociológico ao ideal kantiano do “reino dos fins” e assim realizar a devida defesa do ideal de autonomia - inclusive no sentido da autonomia intelectual daqueles que colocam sua razão acima da autoridade (Weiss, 2016________. “Durkheim: um ‘intelectual’ em defesa do ‘ideal humano’”. In: Consolim, Márcia; Oliveira, Márcio; Weiss, Raquel (orgs.). O individualismo e os intelectuais. São Paulo: Edusp, 2016., pp. 102-3). De acordo com Weiss, a defesa dessa prerrogativa dos intelectuais é feita:

a partir de uma clara alusão a Kant, quando este afirma que o “esclarecimento” consiste em ter a coragem de servir-se do seu próprio entendimento. De certo modo, o texto todo é marcado por referências a Kant, pois é a ideia kantiana de “pessoa” que está na base da sua defesa do individualismo. Os intelectuais são, portanto, aqueles que possuem essa coragem, professando a fé na autonomia da razão em detrimento da obediência a uma autoridade exterior. (idem, p. 102)

O erro da doutrina de Kant foi ter colocado na base de sua moral um ato irracional de fé e de submissão, o que, para Durkheim, seria de certo modo autoritário. Por isso ressalta o caráter de religiosidade do individualismo: “Essa religião da humanidade tem tudo o que é preciso para falar a seus fiéis em um tom não menos imperativo que as religiões que [ela] substitui” (Durkheim, 2016________. “O individualismo e os intelectuais”. Trad. de Márcio de Oliveira. In: Consolim, Márcia; Oliveira, Márcio; Weiss, Raquel (orgs.). O individualismo e os intelectuais. São Paulo: Edusp, 2016., p. 47).

Esta seção foi iniciada com uma citação de Durkheim em que ele afirma que determinará o fato moral a partir de uma noção de dever similar à de Kant, mas a definição de dever a partir do imperativo categórico seria insuficiente como base da moral. Encontramo-nos agora em melhores condições de entender por quê, retomando a questão do abismo entre razão e sensibilidade. Durkheim acreditava que se, por um lado, a moral estava na capacidade de “ir além” dos impulsos egoístas, por outro, ela era fundamentada emocionalmente. Logo, para explicar devidamente o fato moral, é necessário mostrar:

como a sociedade é algo bom, desejável para o indivíduo, que não pode negá-la sem negar a si mesmo; e como, ao mesmo tempo, porque ela transcende o indivíduo, este não pode querê-la e desejá-la sem trair em certa medida sua natureza de indivíduo; apontar-se-á como a sociedade, ao mesmo tempo que é algo bom, é uma autoridade moral que, comunicando-se a certos preceitos de conduta que lhe são particularmente caros, confere a eles caráter obrigatório. (Durkheim, 2015________. “Determinação do fato moral”. In: Sociologia e filosofia. Trad. de Evelyn Tesche. São Paulo: Edipro, 2015., p. 53)

A tentativa durkheimiana de superar aquele abismo instaurado por Kant encontra-se na concepção ontológica do homo duplex: “bem longe de sermos simples, nossa vida interior tem como que um duplo centro de gravidade. De um lado, há nossa individualidade e, mais especialmente, nosso corpo que a fundamenta; de outro, tudo aquilo que, em nós, exprime outra coisa que não nós” (Durkheim, 2013________. “O dualismo da natureza humana e suas condições sociais”. In: Botelho, André (org.). Essencial sociologia. São Paulo: Penguin Classics/Companhia das Letras, 2013., p. 292), ou seja, o centro de gravidade representado pela sociedade, pelos vínculos que o indivíduo possui com outros seres humanos.

Durkheim concorda com Kant a respeito da coexistência, no indivíduo, de “uma faculdade de pensar sob a perspectiva do individual, a sensibilidade, e uma faculdade de pensar sob a perspectiva do universal e do impessoal, a razão” (idem, p. 295); entretanto, ele acredita que, se somos feitos de “duas metades que parecem pertencer a seres diferentes” (idem, ibidem) e que nos orientam em sentidos opostos, essas duas metades não podem ter a mesma origem. Portanto, para entender como o homem pode ser, ao mesmo tempo, um ser individual e egoísta e um ser social, capaz de se vincular a algo que o ultrapassa, é necessário compreender que a gênese dessa duplicidade possui também uma dimensão exterior ao ser humano individual - e isso exige entender o processo que substitui o ser puramente sensível por esse ser inteiramente novo, “capaz de domar esse egoísmo natural [e] subordinar-se a fins mais elevados” (Durkheim, 2014________. Educação e sociologia. Trad.de Stephania Matousek. Petrópolis: Vozes, 2014., p. 70).

Apesar de concordar com Kant a respeito do caráter supraindividual da moral, Durkheim entendia que esse caráter não era uma característica imanente do indivíduo, mas produzido socialmente e incorporado pelo indivíduo ao longo de sua própria formação como indivíduo. É daí que surge a importância central que Durkheim confere à educação. Segundo ele, o papel da educação seria principalmente o de construir, na criança, o ser social capaz de se apropriar das regras exigidas pela vida coletiva - que já estavam estabelecidas antes de seu nascimento - para poder fazer parte dela. Caberia à educação produzir esse outro ser, ao transmitir à criança as exigências da vida coletiva que são necessárias para que exista, entre os indivíduos, certa homogeneidade e uma comunhão de ideias e sentimentos, sem as quais a própria sociedade não poderia existir (idem, p. 53). Por isso, apesar de parecer a imposição de uma tirania sobre o indivíduo, ele mesmo teria, afinal, interesse nessa submissão, pois permitiria que vivesse em sociedade.

Além do mais, os elementos sociais incorporados nesse processo não são artificialmente criados pela ação deliberada de uma ou outra pessoa, mas são produto da vida em comum de cada sociedade, são formulações específicas de cada sociedade e refletem as necessidades dessa vida em comum (idem, p. 48). É por meio da educação que a criança aprende que existem realidades que ela “não pode nem criar, nem destruir, nem transformar à vontade. [Ela só poderá] influenciá-las na medida em que aprender a conhecê-las e souber qual é a sua natureza e as condições das quais elas dependem” (idem, p. 49). Por isso, longe de caracterizar uma submissão propriamente dita, o que a educação faz é conferir ao indivíduo sua própria condição de indivíduo e sua própria autonomia.

Nesse processo, os elementos da vida social “nos penetram, tornando-se assim parte de nós mesmos; por conseguinte, nos importam, ligamo-nos a eles como a nós mesmos” (Durkheim, 2013________. “O dualismo da natureza humana e suas condições sociais”. In: Botelho, André (org.). Essencial sociologia. São Paulo: Penguin Classics/Companhia das Letras, 2013., p. 293). Tal processo representa para o indivíduo o modo como a sociedade se torna parte de quem ele é, enquanto o indivíduo se torna, ao mesmo tempo, parte da sociedade. É nesse processo que se forma um indivíduo que integra uma comunhão de valores, que desenvolve uma relação afetiva com essa comunidade e deseja zelar por ela. De fato:

É a sociedade que nos faz sair de nós mesmos, que nos obriga a considerar interesses diferentes dos nossos, que nos ensinou a dominar os nossos ímpetos e instintos, a sujeitá-los a leis, a nos reprimir, privar, sacrificar, subordinar os nossos fins pessoais a fins mais elevados. Foi a sociedade que instituiu nas nossas consciências todo o sistema de representação que representa em nós a ideia e o sentimento da regra e da disciplina, tanto internas quanto externas. Foi assim que adquirimos o poder de resistir a nós mesmos, ou seja, o domínio sobre as nossas vontades, um dos traços mais marcantes da fisionomia humana, desenvolvido à medida que nos tornamos mais plenamente humanos. (Durkheim, 2014________. Educação e sociologia. Trad.de Stephania Matousek. Petrópolis: Vozes, 2014., p. 59)

Retornando à discussão da moral em si, podemos afirmar que é graças a esse processo de formação que, para Durkheim, o agir moral repousa sobre a obediência à regra, mas a obediência, por sua vez, repousa no amor à regra. Agir de modo condizente com o fato moral é agir de acordo com a própria inclinação, correspondente à natureza desse novo ser que é o ser social - a disciplina exigida pelas máximas morais não é uma violência contra a própria natureza, mas sua realização (Durkheim, 2008________. A educação moral. Trad. de Cláudia Vilarouca. Petrópolis: Vozes, 2008., p. 64). Destarte, o agir moral é não apenas um dever racional, mas uma satisfação sensível.

Para Durkheim, a moral deve ter a sua dimensão de desejabilidade. Sem que se leve isso em consideração, seria impossível tratar o fato moral de uma perspectiva científica, pois para isso se demanda, primeiro, explicar o sistema moral como ele de fato é, e não como acreditamos que ele deveria ser. Pois o ser real engendra de fato a sensibilidade:

Seria irrealista o critério kantiano segundo o qual a ação moral é aquela feita unicamente por respeito à lei, sem a intervenção de qualquer cálculo interessado. A tentativa de Kant acaba por mutilar nossa natureza, exigindo de nós uma vida “puramente racional”. A solução de Durkheim passa pela reintegração de motivações sensíveis na ação moral. (Massella, 2015Massella, Alexandre. “Apresentação”. In: Durkheim, Émile. Sociologia e filosofia. Trad. de Evelyn Tesche. São Paulo: Edipro , 2015., pp. 11-2)

Por outro lado, Durkheim elabora uma resposta à possível objeção de que a desejabilidade torna, necessariamente, sua teoria do individualismo moral uma expressão do egoísmo utilitarista. Para isso o autor recorre a um exame da consciência moral empírica contemporânea e demonstra que não houve jamais uma ação que tivesse como único objeto o interesse egoísta do indivíduo e tivesse sido classificada como moralmente boa por essa consciência (Durkheim, 2015________. “Determinação do fato moral”. In: Sociologia e filosofia. Trad. de Evelyn Tesche. São Paulo: Edipro, 2015., p. 53). Isso significa que “o indivíduo que sou não constitui um fim que tem por si mesmo um caráter moral” (idem, ibidem), sendo assim, a mesma lógica se aplica necessariamente aos outros indivíduos, do que Durkheim conclui:

Se há uma moral, esta só pode ter como objetivo o grupo formado por uma pluralidade de indivíduos associados, isto é, a sociedade, sob a condição, porém, de que a sociedade possa ser considerada uma personalidade qualitativamente diferente das personalidades individuais que a compõem. A moral começa, portanto, onde começa o apego a qualquer grupo que seja. (idem, ibidem)

Essa consciência moral a que Durkheim se refere segue a mesma lógica da própria ideia que Kant havia postulado como a base de uma possível expressão do imperativo categórico na forma de uma lei prática, que é a admissão da existência de alguma coisa que possa ter em si mesma um valor absoluto e representar um fim em si mesmo, logo, um fim incondicionado. Como vimos, para Kant essa coisa que existe como fim em si mesmo - e que por isso não pode ser apenas um meio - é o próprio homem (Kant, 2011________. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. de Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2011., pp. 71-2). Na teoria de Durkheim, ela não aparece como um valor imanente, mas como um valor que é produto das próprias formulações coletivas que são internalizadas pela criança por meio da educação moral. A dignidade que Kant confere à humanidade transcendental aparece em Durkheim como a dignidade do Outro abstrato que a criança aprende a amar e reverenciar e cujas normas ela passa a desejar obedecer (Fernandes, 1994Fernandes, Heloísa. Sintoma social dominante e moralização infantil. São Paulo: Escuta/Edusp, 1994., p. 75). É assim que a motivação última da moralidade, que Kant definia como a possibilidade de ingressar no reino dos fins, revela-se, na teoria de Durkheim, como a desejabilidade fundada no apego afetivo ao grupo.

CONCLUSÃO: O REINO DOS FINS COMO HORIZONTE NORMATIVO

Insistimos na ideia de que Durkheim propunha um procedimento científico para abordar a questão da moral composto por duas fases: 1) conhecer e compreender a realidade moral; 2) e julgar e apreciar o valor de determinada moral. Outrossim, podemos entender que a prioridade de Durkheim foi, como exposto, explicar o sistema moral como ele se dá na realidade: a ciência da moral permite, tal como a medicina, diagnosticar os problemas da opinião moral dominante para, daí, apresentar modos de retificá-la (Durkheim, 2015________. “Determinação do fato moral”. In: Sociologia e filosofia. Trad. de Evelyn Tesche. São Paulo: Edipro, 2015., p. 54). Mesmo que se tenha sempre em vista a necessidade das proposições normativas, é necessário que elas não sejam erguidas sobre uma base cientificamente deficiente. Por isso Durkheim ressalta em diversas ocasiões em que a consciência moral é proveniente da síntese sui generis do grupo ou da sociedade: “Querer outra moral que não aquela que está implicada na natureza da sociedade é negar tal sociedade e, por conseguinte, negar-se a si mesmo” (idem, ibidem). Podemos dizer, então, que o texto “Determinação do fato moral”, publicado originalmente em 1906, é dedicado exatamente ao que o próprio título expõe: definir cientificamente as características das regras morais. A parte de sua obra dedicada à pedagogia cumpre, nessa configuração, o papel de examinar de que modo essa consciência moral é socialmente produzida, buscando dar uma fundamentação empírica a essa tese e demonstrando que a criança não apenas internaliza, nesse processo, o quadro de regras morais específico da sociedade em que está inserida, mas também aprende a submetê-las ao escrutínio da razão, adquirindo não só um amor por elas na medida em que sejam cabíveis, mas também a capacidade de criticar e reformar seus elementos obsoletos para que a dinâmica das condições de existência seja acompanhada pela moralidade a ela correspondente (Fauconnet, 2014Fauconnet, Paul. “Introdução: a obra pedagógica de Durkheim”. In: Durkheim, Émile. Educação e sociologia. Trad. de Stephania Matousek. Petrópolis: Vozes , 2014., p. 28), articulando-se à formação de um espírito de autonomia que permite trazer, para a realidade concreta, uma adaptação pertinente do imperativo categórico.

Uma vez comprovada, na perspectiva durkheimiana, a fundamentação social do sistema moral, o autor entende que sua teoria normativa deve precisamente indicar proposições que estejam de acordo com suas “descobertas” no campo, ou seja, retificar, na sociedade tal qual se apresenta a si mesma, os erros da realização do ideal proposto em sua teoria moral: o do individualismo moral. Se há desvios na realização do que Durkheim acreditava ser os pilares da civilização - que é “a nossa melhor parte, pois o homem só é homem na medida em que é civilizado” (Durkheim, 2015________. “Determinação do fato moral”. In: Sociologia e filosofia. Trad. de Evelyn Tesche. São Paulo: Edipro, 2015., p. 68) -, a saber, os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, o individualismo moral deveria indicar os caminhos para remediá-los. Como ressaltou Miller (2009________. “Investigando o projeto de Durkheim para a constituição de uma Ciência Social”. In: Massella, Alexandre et al. (orgs.). Durkheim: 150 anos. Belo Horizonte: Argumentum, 2009., p. 42), essa reivindicação dos ideais da Revolução Francesa nos conduz diretamente “ao conceito de autonomia de Kant, que ele vincula explicitamente à sua visão de uma associação de pessoas livres e autônomas - um reino dos fins -, um ideal que ele formulou pela primeira vez às vésperas da revolução, em 1785”.

Sua sociologia da moral afirmava que as consciências morais eram impulsionadas na direção da sociedade, que é o único meio pelo qual esses indivíduos se tornam propriamente indivíduos, ou seja, o homem como um fim em si mesmo: “querer a sociedade é querer, por um lado, algo que nos extrapola, mas é também querer-se a si mesmo. Não podemos querer deixar a sociedade sem querer deixar de ser humanos” (Durkheim, 2015________. “Determinação do fato moral”. In: Sociologia e filosofia. Trad. de Evelyn Tesche. São Paulo: Edipro, 2015., p. 68). O sociólogo acreditava que a civilização era o desenvolvimento histórico dessa tendência: “quanto mais avançamos na história, mais enorme e complexa se torna a civilização humana; e quanto mais, por sua complexidade, ela transcende as consciências individuais, mais o indivíduo sente a sociedade como algo maior que ele” (idem, p. 67). Para o autor, “o que nos torna verdadeiramente humanos é o fato de conseguirmos nos integrar a esse conjunto de ideias, de sentimentos, de crenças, de preceitos de conduta a que chamamos civilização” (idem, p. 68), conjunto este que expressaria os mais altos valores humanos.4 4 Apesar de aludir com certa frequência à ideia de civilização, Durkheim a utiliza de forma bastante genérica e não chega a propor uma definição específica para o termo. Isso possivelmente significa que o autor tomava a civilização como uma ideia já tão consagrada na cultura francesa que prescindia de uma explicação mais aprofundada. Como demonstrou Norbert Elias (2011, pp. 49-61), na língua francesa o termo civilisation não expressava disputas socioculturais como ocorreu, por exemplo, na língua alemã. Ainda de acordo com Elias, a sociologia alemã confere papel central ao conceito de civilização — notadamente à antítese entre Kultur e Zivilisation — justamente em razão das disputas que expressavam idiossincrasias da história da Alemanha e, por isso, estavam no centro de seu processo histórico. Na França, ao contrário, o termo foi incorporado de forma bastante diluída na autoimagem dos franceses como um todo, de modo que não chegou a se tornar a expressão de disputas sociais nacionais (apesar de ter representado certa afirmação de superioridade diante de outros povos). Sendo assim, quando lemos o termo nos escritos de Durkheim, podemos tomá-lo em sua definição mais básica, que o próprio Durkheim define mais de uma vez como o conjunto de preceitos de conduta e valores que diferenciam o homem do animal (Durkheim, 2014, 2015). Como sabemos, esses valores humanos são justamente aqueles da chamada “religião da humanidade”, ou seja, o caráter sagrado do homem em geral. O agir moral, portanto, é aquele que trata cada ser humano como dotado de um valor em si, mas de forma generalizada. Nesse sentido, o que a sociologia da moral deve orientar as consciências a querer é a realização de um sistema moral em que todos são dotados da humanidade universal que permita a cada um ter concepção da própria dignidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • 1
    Também concorreu, para que o caso adquirisse tal importância em seu pensamento, a profunda influência de Charles Renouvier, que teria sido, de acordo com Susan Stedman Jones (2001Jones, Susan Stedman. Durkheim reconsidered. Cambridge: Polity, 2001., pp. 227-8), um pensador central para os dreyfusards e que teria inspirado grande parte das ideias kantianas presentes na obra de Durkheim.
  • 2
    A proposição de uma “religião da humanidade” foi concebida, primeiramente, por Auguste Comte, que propunha a substituição de uma moral teológico-metafísica por uma moral “positiva”, ou seja, com bases intelectuais e racionais (Comte, 1976Comte, Auguste. Discurso sobre o espírito positivo. Trad. de Renato Barboza Rodrigues Pereira. São Paulo: Edusp, 1976.). Porém, Durkheim se distanciou muito da concepção formulada por Comte, pois este não oferecia uma fundamentação sociológica para essa moral positiva, como fez Durkheim, e tomava a ideia de religião de forma mais literal, na medida em que propunha uma religião com culto, sacerdócio e dogmas, ainda que seculares — algo que, por si só, já representa a negação da fundamentação científica buscada por Durkheim.
  • 3
    A ideia de sagrado é a fundamentação elementar do caráter excepcional da religião para Durkheim. É apenas a operação psíquica que confere sacralidade a um determinado objeto que torna a religião uma religião propriamente dita (Durkheim, 1996Durkheim, Émile. Formas elementares da vida religiosa. Trad. de Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 1996.). A ligação afetiva com esse objeto sagrado torna-se, para o indivíduo, a inspiração de um sentimento de autoridade desse objeto, de modo que o indivíduo passa a desejar reverenciá-lo. Ora, a religião da humanidade nada mais é do que a versão laica dessa operação: nela, a própria sociedade, na figura de um Outro genérico, é internalizada como objeto de sacralidade. Assim, a violação à dignidade desse Outro teria a força de uma heresia religiosa. A internalização desse Outro é fruto do processo educacional que transforma o ser associal e egoísta num ser social (Fernandes, 1994Fernandes, Heloísa. Sintoma social dominante e moralização infantil. São Paulo: Escuta/Edusp, 1994.; Durkheim, 2014________. Educação e sociologia. Trad.de Stephania Matousek. Petrópolis: Vozes, 2014.).
  • 4
    Apesar de aludir com certa frequência à ideia de civilização, Durkheim a utiliza de forma bastante genérica e não chega a propor uma definição específica para o termo. Isso possivelmente significa que o autor tomava a civilização como uma ideia já tão consagrada na cultura francesa que prescindia de uma explicação mais aprofundada. Como demonstrou Norbert Elias (2011Elias, Norbert. O processo civilizador, v. 1: A civilização dos costumes. Trad. de Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Zahar, 2011., pp. 49-61), na língua francesa o termo civilisation não expressava disputas socioculturais como ocorreu, por exemplo, na língua alemã. Ainda de acordo com Elias, a sociologia alemã confere papel central ao conceito de civilização — notadamente à antítese entre Kultur e Zivilisation — justamente em razão das disputas que expressavam idiossincrasias da história da Alemanha e, por isso, estavam no centro de seu processo histórico. Na França, ao contrário, o termo foi incorporado de forma bastante diluída na autoimagem dos franceses como um todo, de modo que não chegou a se tornar a expressão de disputas sociais nacionais (apesar de ter representado certa afirmação de superioridade diante de outros povos). Sendo assim, quando lemos o termo nos escritos de Durkheim, podemos tomá-lo em sua definição mais básica, que o próprio Durkheim define mais de uma vez como o conjunto de preceitos de conduta e valores que diferenciam o homem do animal (Durkheim, 2014________. Educação e sociologia. Trad.de Stephania Matousek. Petrópolis: Vozes, 2014., 2015________. “Determinação do fato moral”. In: Sociologia e filosofia. Trad. de Evelyn Tesche. São Paulo: Edipro, 2015.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    12 Nov 2020
  • Aceito
    03 Dez 2021
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