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Dez cartas jesuíticas

CRÍTICA

Dez cartas jesuíticas

Iuri Pereira

Mestre em teoria literária pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), é professor de literatura do Colégio Equipe e editor

Primeiras cartas do Brasil 1551-1555, introdução e notas de Sheila Moura Hue. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006.

Veio a público há pouco uma coleção de cartas jesuíticas extraídas de duas edições espanholas publicadas em 1551 e em 1555, retraduzidas para o português e anotadas pela professora Sheila Moura Hue, da Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio). Das dez cartas coletadas, seis foram retiradas da edição de 1551 e quatro da de 1555. Seus autores são Manoel da Nóbrega, Juan de Azpilcueta Navarro e José de Anchieta, com duas cartas cada, e Antônio Pires, Afonso Brás, Leonardo Nunes e Pero Correia, com uma carta cada. Embora seja uma pequena amostra, a edição tem o mérito de pôr à disposição do leitor algumas cartas importantes que relatam a primeira etapa do trabalho de colonização e catequese realizado pelos jesuítas. A edição mais completa dessas cartas é ainda aquela feita por Serafim Leite e publicada em três volumes (1956-1958) sob o título geral de Cartas dos primeiros jesuítas do Brasil, abrangendo documentos que circularam entre 1538 e 1563.

Na primeira carta do volume, escrita por Nóbrega e datada de agosto de 1549, o jesuíta trata, de forma muito objetiva, da extensão, da povoação, do clima, das frutas, das carnes, dos povos e de seus hábitos ("fazem buracos nos beiços e nas ventas"), da ausência postulada de vida espiritual ("Esta gentilidade a nenhuma coisa adora, nem conhece a Deus"), de rituais conduzidos por feiticeiros, de comportamentos dos gentios como a comunhão de bens e a hospitalidade, do apego às coisas sensíveis ("perguntam se Deus tem cabeça, e corpo, e mulher, e se come, e de que se veste"). A outra carta de Nóbrega presente no volume, datada de 1551, é um papel muito breve e nele se destaca o relato de um milagre em que dois barcos de pesca que levavam índios cristianizados e gentios se perderam, resultando na morte de todos os gentios e na conservação de todos os cristãos. Além desse sinal da intervenção divina no trabalho missionário, destaca-se a intercessão de Nóbrega em favor de Nuno Garcia, condenado a onze anos de degredo por assassinato. Garcia, oficial pedreiro, tornou-se colaborador de Nóbrega e acertou com este que serviria a Companhia durante cinco anos em troca da tentativa de obter perdão de parte da pena.

Além da informação mais protocolar e diplomática, o leitor encontrará relatos bastante impressionantes sobre os obstáculos e dificuldades do trabalho, por exemplo, na carta de Azpilcueta Navarro datada de 1551: "No caminho [para as aldeias ao redor de Porto Seguro] passamos grande trabalho e perigo por nos ser necessário algumas vezes andar à noite e por matos, porque aqui não há os caminhos de Portugal, e há neles muitas onças e outras feras". Na mesma viagem, o padre ficara para trás em certa ocasião e salvou-se graças ao língua (os intérpretes que conheciam as línguas de povos nativos eram conhecidos como línguas) que acompanhava a entrada e retornou para resgatá-lo. Relata ainda sua visita a uma casa de certa aldeia em que encontra "pés, mãos e cabeças de homem no fumo". Em outra carta, o padre Leonardo Nunes escreve que, atacados por índios contrários em um rio, "foram tantas as flechas sobre nós que parecia que chovia". Duas pessoas foram feridas e uma delas morreu das flechadas, que "eram tais que atravessavam as tábuas do navio de um lado a outro". Refere-se também a carta escrita pelo irmão Pero Correia — de quem Anchieta faria o elogio fúnebre em carta de 1555 também recolhida pela professora Sheila Moura Hue —, com relatos de uma violência assustadora.

Atente-se também à carta de Anchieta datada de 15 de março de 1555. Nesse brevíssimo papel podemos surpreender o modelo epistolográfico medieval em pleno vigor, pois nele se distingue fácil e claramente a saudação, o exórdio (em que se busca a benevolência do destinatário), a narração e a conclusão em forma de pedido de novas graças.

A edição em questão não é científica, isto é, não é uma edição crítica ou filológica, dirigida a público acadêmico, mas uma edição de vulgarização, para ser lida por um leigo interessado em história ou antropologia. Esse tipo de edição tem seu lugar e reconhecemos sua importância. Entretanto, mesmo em edição vulgar, não devemos reiterar certas abordagens ingênuas. Não devemos ler esses papéis como sucedâneos do jornalismo, nem como documentos diretos de uma prática, mas através das várias categorias que os conformam, oriundas da prática letrada palaciana e eclesiástica, da implicação teológica e política desses discursos, de seu modos de circulação. O caráter da edição talvez não tenha permitido a discussão de uma questão filológica fundamental que se refere às apropriações e emendas que as cartas dos jesuítas sofreram em seu processo de difusão. Quando lemos uma carta publicada já no século XVI e achamos que ela parece exatamente adequada às prescrições de Loyola, devemos saber que não se trata de perfeita submissão do redator à norma, mas de correção e reescrita para que ela servisse exclusiva e inequivocamente à edificação. Há nas cartas passagens reescritas, atenuadas, excluídas e refundidas e seria muito importante discuti-las.

Na introdução, Sheila Moura Hue diz que essas cartas, "ao contrário das epístolas medievais, eram escritas num tom familiar, coloquial, procurando uma comunicação fácil e direta, sem artifícios de retórica ou citações eruditas, mais próximas do diálogo do que do discurso formal". Não parece plausível a afirmação se considerarmos a densidade dos preceitos franqueados pelas Constituições da Companhia de Jesus para controlar e adequar a produção de epístolas. Nada do que podemos ler ali é informalidade, até mesmo pelo controle de sua circulação, que, como vimos, era rigoroso. Em dado momento se afirma que o estilo das cartas é simples e objetivo, e que elas se concentram "sobretudo na transmissão de informações, evitando assuntos pessoais" (p. 16); em outro se diz que os relatos não seguem um "roteiro preestabelecido" e guiam-se "pela emoção e comoção do momento em que foram escritos" (p. 21), numa flagrante contradição. Para não mencionar a ingenuidade de confundir efeitos discursivos de estupefação narrativa com estados afetivos empíricos dos redatores. Embora a introdução seja informativa, perdeu-se uma oportunidade de aparelhar o leitor dos textos com apropriações mais complicadas, interessantes e plausíveis sobre as cartas, que só se deixam ler como documentos passivos ou relatos de viagem com grande prejuízo de sua compreensão histórica.

Em carta datada de 13 de agosto de 1553, o padre Inácio de Loyola escreve de Roma para Manoel da Nóbrega, que estava em São Vicente como provincial do Brasil, e reclama da má informação recebida, alegando que isso se deve ao fato de que cada um escreve sobre a região em que se encontra, esquecendo-se de dar notícias das outras. Para evitar esse desacerto, Loyola ordena que o provincial ou a pessoa que o substitua encarregue-se de enviar todas as cartas a Roma e providencie que elas sejam escritas com meses de antecedência para garantir a remessa. Além disso, declara os assuntos sobre os quais se deve escrever:

Nas cartas que se podem mostrar a outros, informar-se-á em quantos lugares há residência da Companhia, quantas pessoas em cada casa e em que se ocupam, tudo em vista da edificação. Igualmente como andam vestidos, qual é o seu comer e beber, em que camas dormem e o que gasta cada um deles. Também, quanto à região onde moram, qual o clima e graus geográficos, quais os vizinhos, como andam vestidos, que comem, como são suas casas e quantas, segundo se diz, e que costumes têm; quantos cristãos pode haver, quantos gentios ou mouros1 [1 ] Cardoso, Armando S.J. (org.). Cartas de Santo Inácio de Loyola. São Paulo: Loyola, 1993, p. 89. .

Além da solicitação de relatos pormenorizados da situação nas colônias e da atuação dos jesuítas, é de notar a declaração dos fins desses relatos, "tudo em vista da edificação", e a qualificação das cartas prescritas como aquelas "que se podem mostrar a outros". Uma e outra coisa estão relacionadas, porque só se pode mostrar aquilo que produz edificação.

A vigilância inaciana fica clara quando lembramos que a primeira missão jesuítica ao Brasil, aquela que traz Nóbrega, ocorreu em 1549. Para ter uma idéia da morosidade do trânsito da informação no século XVI, mencione-se que demorou quase três anos para a notícia da morte de Francisco Xavier, ocorrida em 1552 no Japão, chegar à Europa. A edificação era produzida pelos relatos de sucessos, como fundações de colégios, entradas e contatos em regiões inexpugnadas, conversões, martírios, que podiam ser mostrados aos outros para fins de revigoração dos ânimos daqueles diretamente envolvidos na catequese ultramarina e para fins de anúncio e propagação da ação catequética jesuítica. O mesmo episódio também mostra a prontidão com que os padres estavam dispostos a atender às demandas de Santo Inácio, porque, no ano seguinte, 1554, ele receberia não uma, mas duas cartas, uma escrita pelo padre Anchieta e outra pelo padre Luís da Grã.

Outra carta a ser lembrada é aquela datada de 13 de agosto de 1542, enviada de Roma ao padre Pedro Fabro. Nela, Loyola insiste principalmente na distinção entre "carta principal" e "folhas separadas". São diferentes com relação à matéria tratada e ao modo de tratá-la. A insistência se deve à grande desorganização com que vêm redigidas as cartas, o que obriga Loyola a produzir adaptações, às vezes no próprio momento em que as apresenta a terceiros. A distinção retoma modalidades da epístola presentes desde a Antigüidade, que diferenciava a carta particular ou familiar da carta diplomática, chamada também negocial. A insistência de Loyola decorre do caráter de sua Companhia, que, ao lado de uma organização objetiva marcadamente militarizada, ordeira, obreira e rigidamente dominada pela hierarquia, administrava também a espiritualidade de seus membros, por meio dos exercícios espirituais. Era necessário contemplar a vida espiritual, reduzida a assunto interno da Companhia, e os labores e sucessos da conquista, material e espiritual, do novo mundo, assunto que interessava a todos, religiosos e leigos, da Companhia ou de outras ordens2 [2 ] Conforme Arnaut, Cézar & Ruckstadter, Flávio Massami Martins. "Estrutura e organização das Constituições dos jesuítas (1539-1540)". Acta Scientiarum, Maringá, v. 24, n. 1, 2002, p. 109. . Na carta principal devia-se narrar "o que cada um faz em sermões, confissões, exercícios e outras obras espirituais", e nas folhas separadas podiam "vir as datas das cartas recebidas e o gozo espiritual e os sentimentos experimentados ao lê-las"3 [3 ] Cardoso, Armando S.J. (org.). Op. cit., pp. 28-29. . Outra distinção entre a carta principal e as folhas separadas diz respeito à sua organização, ou, na terminologia retórica, disposição . Dada a perenidade do testemunho da coisa escrita e o fato de que não se pode, após enviá-la, corrigir, emendar e esclarecer, como quando se fala, Loyola recomenda, exemplificando com a sua própria maneira de proceder, que a carta principal seja primeiro escrita e depois reescrita e emendada: "A carta principal, eu a escrevo uma vez, narrando fatos edificantes. Depois, olhando e corrigindo e ainda considerando todos os leitores dela, torno a escrever, atendendo melhor ao que se declara". Quanto às folhas separadas, podiam ser escritas "às pressas, da abundância do coração, ordenada ou desordenadamente"4 [4 ] Ibidem. . No mesmo papel dirigido a Pedro Fabro, Loyola, que escreveu cerca de 7 mil cartas, afirma que na noite em que enviava a dita carta, enviavam-se outras 250.

Como se percebe, Loyola, nas próprias cartas a seus confrades, produz um preceituário particular para a correspondência jesuítica. Obviamente, ele não busca um novo procedimento epistolográfico, mas a adequação da correspondência aos fins da Companhia. Compete ao leitores especificar o particular e o geral da correspondência entre os jesuítas, fundamental para a compreensão do que foi a colônia portuguesa do Brasil no século XVI.

A prática epistolográfica foi sistematizada no período medieval. Como se sabe, também se utilizou a carta na Antigüidade, mas ela não ganhou o estatuto de um gênero de discurso e não foi, por isso, tratada especificamente nas artes retóricas. Um costume genérico, entretanto, já se formava na Antigüidade, por meio do que sobre ele se dizia nos principais epistolários antigos (os de Sêneca e Cícero), que funcionariam, mais tarde, como modelos de imitação.

As primeiras artes de composição de cartas (conhecidas como artes dictandi) datam do século XII e uma das mais importantes é a do autor conhecido como Anônimo de Bolonha, cujas Regras para escrever cartas datam do ano de 11355 [5 ] Para as informações que seguem, utilizo A arte de escrever cartas (Editora da Unicamp, 2005), volume organizado e traduzido por Emerson Tin, que traz três tratados integrais, o do Anônimo de Bolonha ( Rationes dictandi, 1135), um de Erasmo de Roterdã ( Brevissima formula, 1520) e o de Justo Lípsio ( Epistolica institutio, 1590). . Nessa regras podemos ler a divisão mais comum de uma carta: saudação, captação da benevolência, narração, petição e conclusão. Para ter uma idéia do grau de formalização presente nesse gênero em sua forma medieval, basta mencionar que o Anônimo de Bolonha enumera dezessete tipos de saudação, determinadas pela relação estabelecida entre as pessoas do remetente e do destinatário. Há modelos de saudação adequada, por exemplo, entre senhores e súditos, súditos e senhores, eclesiásticos, senhores a subordinados culpáveis e filhos delinqüentes aos pais. Deve-se admitir que nesse pequeno tratado de cerca de trinta páginas é justamente a saudação que recebe o tratamento mais minudente. E essa preponderância mostra o valor das relações de subordinação sempre reiteradas pelos modos de saudar, o que transforma a carta em uma rígida estrutura discursiva.

No século XIV são reencontrados volumes de epístolas de Cícero que provocam uma nova floração da arte de escrever cartas, de que serão exemplos os trabalhos de Erasmo de Roterdã e Justo Lípsio. Uma nota dominante nessas novas artes é o abandono de certas formalidades exigidas na composição epistolar medieval, tidas por excessivas. Erasmo afirma:

Quão ridículos são aqueles que todas as cartas em saudação, exórdio, narração e conclusão dividem, e pensam que nelas consiste toda arte. Nem sempre é necessário usá-las todas juntamente, nem com freqüência inteiramente e, como nos discursos, muitos mudam, conforme o caso, os tempos, a necessidade, a ocasião6 [6 ] Erasmo de Roterdã. Brevíssima e muito resumida fórmula. In: Tin, Emerson (org.). Op. cit., pp. 118-119. .

Já para Justo Lípsio melhor é que a organização da matéria da carta seja negligenciada ou inexistente, como nas conversas.

Nesse ponto podemos voltar à correspondência dos jesuítas e sua formulação por Loyola. As determinações do Patriarca da Companhia definem uma carta eminentemente negocial, isto é, uma carta definida principalmente como instrumento administrativo, mas que, como já mencionei, precisava acolher também os movimentos da vida espiritual particular dos missionários. Dadas as condições da transmissão de papéis no século XVI e as condições da vida americana dos missionários, não havia ensejo de produzir uma carta principal, organizada, corrigida, narrando coisas edificantes, e outra, particular, desordenada, ao calor da experiência extraordinária da colônia. Daí a divisão entre carta principal e folhas separadas. A carta familiar torna-se um apêndice da carta principal. Também deve-se aludir ao fato de que os protocolos de subordinação ficam reduzidos em muitas cartas, de um lado pela urgência da narração, parte mais saliente nas cartas das missões, e de outro porque a subordinação já estava entre as principais características da ordem dos jesuítas, que deviam se dispor "como se fossem um corpo morto", como afirmam as Constituições . A carta jesuítica, desse modo, está mais próxima do modelo da rigidez da regra medieval do que da reprodução da displicência que caracteriza a conversação e que é admitida e recomendada pelos tratados do Renascimento, como vimos na afirmação de Justo Lípsio.

  • [1] Cardoso, Armando S.J. (org.). Cartas de Santo Inácio de Loyola São Paulo: Loyola, 1993, p. 89.
  • [2] Conforme Arnaut, Cézar & Ruckstadter, Flávio Massami Martins. "Estrutura e organização das Constituições dos jesuítas (1539-1540)". Acta Scientiarum, Maringá, v. 24, n. 1, 2002, p. 109.
  • [5] Para as informações que seguem, utilizo A arte de escrever cartas (Editora da Unicamp, 2005),
  • [6] Erasmo de Roterdã. Brevíssima e muito resumida fórmula. In: Tin, Emerson (org.). Op. cit., pp. 118-119.
  • [1
    ] Cardoso, Armando S.J. (org.).
    Cartas de Santo Inácio de Loyola. São Paulo: Loyola, 1993, p. 89.
  • [2
    ] Conforme Arnaut, Cézar & Ruckstadter, Flávio Massami Martins. "Estrutura e organização das Constituições dos jesuítas (1539-1540)".
    Acta Scientiarum, Maringá, v. 24, n. 1, 2002, p. 109.
  • [3
    ] Cardoso, Armando S.J. (org.). Op. cit., pp. 28-29.
  • [4
    ] Ibidem.
  • [5
    ] Para as informações que seguem, utilizo
    A arte de escrever cartas (Editora da Unicamp, 2005), volume organizado e traduzido por Emerson Tin, que traz três tratados integrais, o do Anônimo de Bolonha (
    Rationes dictandi, 1135), um de Erasmo de Roterdã (
    Brevissima formula, 1520) e o de Justo Lípsio (
    Epistolica institutio, 1590).
  • [6
    ] Erasmo de Roterdã.
    Brevíssima e muito resumida fórmula. In: Tin, Emerson (org.).
    Op. cit., pp. 118-119.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Jul 2008
    • Data do Fascículo
      Nov 2007
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