Resumos
O paradoxo entre o discurso da liberdade e a prática da escravidão marcou a ascensão de uma série de nações ocidentais no interior da nascente economia global moderna. O artigo explora o uso da metáfora da escravidão no iluminismo filosófico europeu, e sugere que a "dialética do senhor e do escravo" hegeliana tem raízes mais na história contemporânea - particularmente, nas notícias que chegavam à Europa da Revolução Haitiana de 1791 - do que na tradição herdada pelo filósofo alemão.
Iluminismo; Dialética do senhor e do escravo; Hegel; Revolução Haitiana; Hegel
The paradox between the discourse of freedom and the practice of slavery marked the ascendancy of a succession of Western nations within the Early Modern global economy. The article considers the use of slavery as a metaphor by 17th and 18th Century philosophers, and suggests that that Hegel's dialectic of master and slave has its roots not only on the philosophical tradition, but in contemporary events such as the 1791 Haitian Revolution.
Enlightenment; Dialectic of master and slave; Haitian Revolution
ARTIGOS
Hegel e Haiti*
Susan Buck-Morss
Tradução de Sebastião Nascimento
RESUMO
O paradoxo entre o discurso da liberdade e a prática da escravidão marcou a ascensão de uma série de nações ocidentais no interior da nascente economia global moderna. O artigo explora o uso da metáfora da escravidão no iluminismo filosófico europeu, e sugere que a "dialética do senhor e do escravo" hegeliana tem raízes mais na história contemporânea - particularmente, nas notícias que chegavam à Europa da Revolução Haitiana de 1791 - do que na tradição herdada pelo filósofo alemão.
Palavras-chave: Iluminismo; Dialética do senhor e do escravo; Hegel;Revolução Haitiana.
ABSTRACT
The paradox between the discourse of freedom and the practice of slavery marked the ascendancy of a succession of Western nations within the Early Modern global economy. The article considers the use of slavery as a metaphor by 17th and 18th Century philosophers, and suggests that that Hegel's dialectic of master and slave has its roots not only on the philosophical tradition, but in contemporary events such as the 1791 Haitian Revolution.
Keywords: Enlightenment; Dialectic of master and slave; Hegel; Haitian Revolution.
1.
No século XVIII, a escravidão havia se tornado a metáfora fundamental da filosofia política ocidental, conotando tudo o que havia de mau nas relações de poder.1 A liberdade, sua antítese conceitual, era considerada pelos pensadores iluministas o valor político supremo e universal. Mas essa metáfora política começou a deitar raízes justamente no momento em que a prática econômica da escravidão - a sistemática e altamente sofisticada escravização capitalista de não europeus como mão de obra nas colônias - se expandia quantitativamente e se intensificava qualitativamente, ao ponto de, em meados do século XVIII, ter chegado a sustentar o sistema econômico do Ocidente como um todo, facilitando, paradoxalmente, a expansão global dos próprios ideais do Iluminismo que tão frontalmente a contradiziam.
Essa discrepância gritante entre pensamento e prática marcou o período de transformação do capitalismo global de sua forma mercantil para sua modalidade proto-industrial. Seria de se esperar que nenhum pensador racional e "esclarecido" deixaria de percebê-la. Contudo, não era esse o caso.
A exploração de milhões de trabalhadores escravos coloniais era aceita com naturalidade pelos próprios pensadores que proclamavam a liberdade como o estado natural do homem e seu direito inalienável. Mesmo numa época em que proclamações teóricas de liberdade se convertiam em ação revolucionária na esfera política, era possível manter nas sombras a economia colonial escravista que funcionava nos bastidores.
Se esse paradoxo não parecia incomodar a consciência lógica dos contemporâneos, talvez seja mais surpreendente que alguns autores, ainda hoje, se disponham a construir histórias do Ocidente na forma de narrativas coerentes do avanço da liberdade humana. As razões não são necessariamente intencionais. Quando histórias nacionais são concebidas como autônomas ou quando aspectos distintos da história são tratados por disciplinas isoladas, as evidências contrárias são marginalizadas e consideradas irrelevantes. Quanto maior a especialização do conhecimento, quanto mais avançado o nível de pesquisa, quanto mais antiga e respeitável a tradição intelectual, tanto mais fácil se torna ignorar os fatos desviantes. Vale lembrar que a especialização e o isolamento representam um risco também para as novas disciplinas, tais como os estudos afro-americanos ou os estudos diaspóricos, que foram criadas precisamente para remediar essa situação. Fronteiras disciplinares fazem com que as evidências contrárias virem problema dos outros. Afinal de contas, um especialista não pode ser especialista em tudo. É razoável. Mas argumentos assim são uma forma de evitar a verdade incômoda segundo a qual se certas constelações de fatos forem capazes de penetrar fundo o bastante na consciência intelectual, ameaçarão não apenas as narrativas veneráveis, mas também as disciplinas acadêmicas entrincheiradas que as (re)produzem. Por exemplo, não há lugar na universidade em que a constelação de pesquisa específica "Hegel e Haiti" pudesse encontrar abrigo. Este é o tema que me interessa aqui, mas seguirei um caminho tortuoso para chegar até ele. Peço que me desculpem, mas esse aparente desvio é o próprio argumento.
2.
O paradoxo entre o discurso da liberdade e a prática da escravidão marcou a ascensão de uma série de nações ocidentais no interior da nascente economia global moderna. Os holandeses são o primeiro exemplo que deve ser considerado. Sua "era de ouro", de meados do século XVI a meados do século XVII, foi possibilitada pelo controle que exerciam sobre o tráfico mercantil global, incluindo, como um componente fundamental, o comércio de escravos. Mas se conferirmos o trabalho do mais formidável entre seus historiadores modernos, Simon Schama, cuja descrição densa da Era de Ouro da cultura holandesa se tornou um modelo no campo da história cultural desde sua publicação em 1987, haverá uma surpresa à nossa espera. É impressionante que os temas da escravidão, do trafico de escravos e da mão de obra escrava jamais sejam discutidos na obra de Schama, The embarrassment of riches [O desconforto da riqueza], um relato de mais de seiscentas páginas sobre como a nova república holandesa, ao desenvolver sua própria cultura nacional, aprendeu a ser ao mesmo tempo rica e benigna2. Seria difícil depreender dali que a hegemonia holandesa no tráfico de escravos (substituindo Espanha e Portugal no papel de potência escravista)3 contribuiu substancialmente para a imensa "sobrecarga" de riqueza que ele descreve como algo que se tornou social e moralmente problemático ao longo do século da "centralidade" holandesa para o "comércio mundial"4. Ainda assim, Schama descreve exaustivamente o fato de que a metáfora da escravidão, adaptada ao contexto moderno a partir da narrativa do Antigo Testamento sobre a fuga dos israelitas do Egito, havia sido crucial para a autocompreensão holandesa ao longo de sua luta pela independência (1570-1609) contra a "tirania" espanhola que os "escravizava" - e portanto para a autocompreensão das origens da moderna nação holandesa5. Schama claramente reconhece a contradição mais evidente: o fato de que à época os holandeses discriminavam os judeus6. Ele dedica um capítulo inteiro à discussão da estigmatização e da perseguição de uma longa lista de "forasteiros" que, em função da obsessão psicológica holandesa pela purificação, precisavam ser removidos, como se fossem uma mácula, do corpo social: homossexuais, judeus, ciganos, ociosos, andarilhos, prostitutas - mas não diz nada, porém, a respeito dos escravos africanos nesse contexto7.
Schama mostra-se francamente farto das histórias econômicas marxistas que tratam os holandeses apenas como uma potência capitalista mercantil8. Prefere dedicar seu projeto à reconstrução da causalidade cultural. Examina como as inquietações da afluência, decorrentes da "abundância de bens", despertaram no holandês moderno o temor de um tipo diferente de escravidão, a "escravização ao luxo" que ameaçava o "livre arbítrio", o medo de que a avareza do consumo pudesse "converter almas livres em vis escravos"9. Schama apresenta a família como o fulcro do "caráter nacional holandês", e não o comércio mundial, permitindo que seus leitores adentrem a vida privada, doméstica, vislumbrem casas e lares, mesas fartas e afetos íntimos, na época em que "ser holandês era ser local, paroquial, tradicional e costumeiro"10. Estaríamos quase dispostos a perdoá-lo, não fosse pelo fato de que os escravos tampouco eram estranhos ao ambiente doméstico holandês. Seria o silêncio de Schama um eco do silêncio de suas fontes? Eu não saberia dizer11. Mas a cultura visual holandesa oferece evidências claras de uma realidade distinta. Uma pintura de Franz Hals, de 1648, retrata exatamente no centro da tela a figura de um jovem negro, provavelmente um escravo, como parte da vida doméstica, visível no seio de uma abastada e afetuosa família holandesa em meio a uma paisagem holandesa local, paroquial (Figura 1). No livro de Schama, ricamente ilustrado, essa pintura de Hals não aparece (apesar de que outra pintura de Hals, representando marido e esposa holandeses sozinhos em meio a uma paisagem, ter sido incluída). Tampouco há quaisquer outras imagens de negros12. Obviamente, em vista da ausência de escravos no relato escrito de Schama, eles pareceriam deslocados se aparecessem nas ilustrações. A consequência desse tipo de trabalho acadêmico é uma cegueira parcial em meio a oceanos de perspicácia, e isso é típico da literatura acadêmica ocidental, como veremos.
3.
A partir de 1651, a Grã-Bretanha passou a desafiar os holandeses numa série de guerras navais que resultaram no domínio britânico não apenas da Europa, mas de toda a economia global, incluindo o tráfico de escravos13. Naquele momento, a revolução cromwelliana contra a monarquia absoluta e o privilégio feudal seguiram o precedente holandês, fazendo uso metafórico da história dos israelitas do Antigo Testamento sendo libertos da escravidão. Mas no campo da teoria política estava em curso o abandono das escrituras antigas. A figura central nesse caso é Thomas Hobbes. Apesar de Leviatã (1651) ser um híbrido de imaginação moderna e bíblica, a escravidão é discutida ali em termos bastante seculares14. Para ele, ela é uma consequência da guerra de todos contra todos no estado de natureza, fazendo parte, portanto, das às disposições naturais do homem15. Envolvido por meio de seu patrono, Lord Cavendish, com os negócios da Companhia da Virgínia, que administrava uma colônia na América, Hobbes aceitava a escravidão como "parte inalienável da lógica de poder"16. Mesmo os habitantes de "nações civilizadas e florescentes" poderiam retornar a esse estado17. Hobbes encarava a escravidão com honestidade e sem conflitos - John Locke, nem tanto. A sentença inicial do primeiro capítulo do livro primeiro de seu Dois tratados sobre o governo (1690) declara inequivocamente: "A escravidão é uma condição humana tão vil e miserável e tão diretamente oposta ao generoso temperamento e à coragem de nossa nação que seria difícil conceber que um inglês, menos ainda um cavalheiro, fosse capaz de a defender".
Mas o ultraje de Locke contra "as cadeias para toda a humanidade" não era um protesto contra a escravização de africanos negros em plantações do Novo Mundo, e muito menos em colônias que fossem britânicas18. Pelo contrário, a escravidão era nesse caso uma metáfora para a tirania legal, conforme o uso corrente nos debates parlamentares britânicos sobre teoria constitucional. Como acionista da Real Companhia Africana, envolvida na política colonial americana na Carolina, Locke "claramente considerava a escravidão negra como uma instituição justificável"19. O isolamento do discurso político do contrato social em relação à economia da produção doméstica (oikos) tornou possível essa visão dupla20. A liberdade britânica significava a proteção da propriedade privada, e os escravos eram propriedade privada. Enquanto os escravos se situassem no âmbito de autoridade doméstica, sua condição era protegida pela lei (Figuras 2 e 3)21.
Escravos estavam na moda na Inglaterra do final do século XVII, acompanhando damas da aristocracia como animais de estimação22. Retratos pintados pelo holandês Anthony van Dyck e Peter Lely eram os protótipos de um novo gênero de pintura, representando jovens negros que ofereciam frutas e outros símbolos de riqueza das colônias a seus proprietários23.
4.
Meio século depois, o entendimento clássico da economia - e, portanto, da propriedade escravista - como uma questão privada e doméstica foi frontalmente desmentido pelas novas circunstâncias globais. O açúcar transformou as plantações coloniais das Índias Ocidentais. Intensivas simultaneamente em capital e trabalho, a produção de açúcar era proto-industrial, gerando um aumento acentuado na importação de escravos africanos e uma intensificação brutal da exploração de sua mão de obra para fazer frente a uma nova e aparentemente insaciável demanda europeia pela doçura viciante do açúcar24. Na dianteira do boom do açúcar no Caribe estava a colônia francesa de Saint-Domingue, que em 1767 produziu 63 mil toneladas de açúcar25. A produção de açúcar levou igualmente a uma demanda aparentemente infinita por escravos, cujo número em Saint-Domingue aumentou dez vezes ao longo do século XVIII, para mais de 500 mil seres humanos. Na França, mais de 20% da burguesia dependia de atividades comerciais ligadas à exploração de mão de obra escrava26. Os pensadores do iluminismo francês escreviam em meio a essa transformação. Enquanto idealizavam populações coloniais com mitos do nobre selvagem (os "índios" do "Novo Mundo"), o sangue vital da economia escravista não lhes importava27. A despeito de existirem movimentos abolicionistas na época e, na França, os Amis des noirs [Amigos dos negros], que denunciavam os excessos da escravidão, uma defesa da liberdade com base na igualdade racial era algo de fato raro28.
"O homem nasce livre e por toda a parte vive acorrentado", escreveu Rousseau nas primeiras linhas de seu Contrato social, publicado pela primeira vez em 176229. Nenhuma condição humana lhe parece mais ofensiva ao coração ou à alma do que a escravidão. E mesmo Rousseau, santo padroeiro da Revolução Francesa, ao implacavelmente condenar a instituição, reprime da consciência os milhões de escravos realmente existentes sob o jugo de senhores europeus. A patente omissão de Rousseau foi cuidadosamente exposta pelos especialistas, mas apenas recentemente. O filósofo catalão Louis Sala-Molins escreveu uma história (1987) do Iluminismo através das lentes do Code Noir, o código legislativo francês que se aplicava aos escravos negros nas colônias, elaborado em 1685 e sancionado por Luís XIV, sendo erradicado definitivamente somente em 1848. Sala-Molins considera detalhadamente o Código, que legalizou não apenas a escravidão, o tratamento de seres humanos como propriedade móvel, mas também a marcação a ferro, a tortura, a mutilação física e o assassinato de escravos que procurassem questionar sua condição desumana. Ele justapõe esse código, que se aplicava a todos os escravos sob jurisdição francesa, aos textos dos filósofos iluministas franceses, documentando sua indignação em relação à escravidão na teoria, ao mesmo tempo em que ignoravam "formidavelmente" a escravidão na prática. Sala-Molins se escandaliza, e com razão. No Contrato social, Rousseau argumenta: "A legalidade da escravidão é nula, não apenas por ser ilegítima, mas por ser absurda e vazia de sentido. Tais palavras, escravidão e legalidade são contraditórias. São mutuamente excludentes"30. Sala-Molins nos faz ver as consequências dessas afirmações: "O Code Noir, o mais perfeito exemplo desse tipo de documento na época de Rousseau, não é um código legal. O direito de que trata não pode ser um direito, por pretender tornar legal algo que não pode ser legalizado, a escravidão"31. Ele considera, portanto, um despropósito que Rousseau jamais tenha mencionado em seus escritos o Code Noir. "O caso real e flagrante daquilo que ele declara ser categoricamente insustentável não recebe qualquer atenção de sua parte"32. Sala-Molins esmiúça os textos em busca de qualquer evidência que possa justificar o silêncio e constata inequivocamente que Rousseau conhecia os fatos. O filósofo iluminista citou relatos de viajantes da época - Kolben, sobre os hotentotes, e Du Tertre, sobre os indígenas das Antilhas -, mas evitava aquelas páginas desses mesmos relatos que descreviam explicitamente os horrores da escravidão europeia. Rousseau referia-se aos seres humanos de todas as partes, mas omitia os africanos; falava dos groenlandeses transportados à Dinamarca que morriam de tristeza, mas não da tristeza dos africanos transportados às Índias, que resultava em suicídios, motins e fugas. Declarava a igualdade entre os homens e via a propriedade privada como a origem da desigualdade, mas jamais somava dois e dois para discutir a lucrativa escravidão francesa como algo central para as discussões tanto sobre a igualdade como sobre a propriedade33. Como na República Holandesa e na Grã-Bretanha, escravos africanos estavam presentes e eram usados e abusados domesticamente na França34. Na verdade, era impossível que Rousseau não soubesse "que há alcovas em Paris onde é possível se divertir sem peias com um macaco e com um jovem garoto negro [négrillon]"35.
Sala-Molins considera o silêncio de Rousseau diante dessas evidências "racista" e "revoltante"36. Tal ultraje é incomum entre autores que, como profissionais, são treinados para evitar juízos passionais em seus escritos. Tal neutralidade moral é inerente aos métodos disciplinares, que, a despeito de se basearem numa variedade de premissas filosóficas, acabam resultando nas mesmas exclusões. O historiador intelectual de nossos dias que trate de Rousseau em seu contexto seguirá as boas regras do ofício e relativizará a situação, julgando (e perdoando) o racismo de Rousseau com base no espírito do tempo, com o intuito de evitar assim a falácia do anacronismo. Ou então o filósofo de nossos dias, treinado para analisar a teoria em total abstração do contexto histórico, atribuirá aos escritos de Rousseau uma universalidade que transcende a própria intenção ou as limitações do autor, no esforço de evitar assim a falácia da reductio ad hominem. Em ambos os casos, permite-se que os fatos incômodos despareçam furtivamente. Estão visíveis, contudo, nas histórias gerais da época, nas quais não podem deixar de ser mencionados, pois, toda vez que a teoria iluminista era colocada em prática, os promotores das revoluções políticas acabavam tropeçando no fato econômico da escravidão, de maneiras que tornavam impossível que deixassem eles próprios de reconhecer a contradição.
5.
Os revolucionários coloniais da América que lutavam pela independência contra a Grã-Bretanha mobilizaram o discurso político de Locke para seus fins. A metáfora da escravidão foi crucial para a luta, mas num novo sentido: "Os americanos realmente acreditavam que homens que fossem tributados sem seu consentimento eram literalmente escravos, uma vez que teriam perdido o poder de resistir à opressão, e porque a incapacidade de se defender invariavelmente conduz à tirania"37. Ao evocar as liberdades da teoria dos direitos naturais, os colonos americanos, enquanto senhores de escravos, eram levados a uma "monstruosa incoerência"38. Ainda assim, apesar de alguns, como Benjamin Rush, terem admitido sua má-fé39 e outros, como Thomas Jefferson, terem posto a culpa pela escravização dos negros nos britânicos40; apesar de os próprios escravos terem apresentado demandas públicas por sua libertação41 e de alguns estados isolados terem aprovado legislação antiescravagista42, a nova nação, concebida em liberdade, tolerava a "monstruosa incoerência", inscrevendo a escravidão na Constituição dos Estados Unidos da América.
O enciclopedista francês Denis Diderot falava com admiração dos revolucionários estadunidenses, como cidadãos que haviam "queimado" suas correntes" e "recusado a escravidão"43. Mas se a natureza colonial da luta pela liberdade nos Estados Unidos permitiu de algum modo sustentar a distinção entre o discurso político e as instituições sociais, no caso da Revolução Francesa, uma década mais tarde, os vários sentidos da escravidão tornaram-se inescapavelmente emaranhados ao serem confrontados às contradições fundamentais entre os eventos revolucionários na França e o que ocorria nas colônias francesas. Foram necessários anos de derramamento de sangue antes que a escravidão - não apenas sua metáfora, mas a escravidão real - fosse abolida nas colônias francesas, e mesmo então os ganhos foram apenas temporários. Apesar de a abolição da escravatura ser a única consequência logicamente possível da ideia de liberdade universal, ela não se realizou por meio das ideias ou mesmo das ações revolucionárias dos franceses; ela se realizou graças às ações dos próprios escravos. O epicentro dessa luta foi a colônia de Saint-Domingue. Em 1791, enquanto mesmo os mais ardentes opositores da escravidão na França esperavam passivamente por mudanças, o meio milhão de escravos em Saint-Domingue, a mais rica colônia não somente da França, mas de todo o mundo colonial, tomava nas próprias mãos as rédeas da luta pela liberdade, não através de petições, mas por meio de uma revolta violenta e organizada44. Em 1794, os negros armados de Saint-Domingue forçaram a República Francesa a aceitar o fait accompli da abolição da escravatura na ilha (declarada pelos comissários coloniais franceses Sonthonax e Polverel, que agiam por conta própria) e a universalizar a abolição em todas as colônias francesas45. De 1794 a 1800, como homens livres, esses antigos escravos envolveram-se numa luta contra forças invasoras britânicas, das quais muitos colonos proprietários de terras de Saint-Domingue, brancos e mulatos, esperavam o restabelecimento da escravidão46. O exército negro, sob o comando de Toussaint-Louverure, derrotou militarmente os britânicos, numa luta que fortaleceu o movimento abolicionista na Grã-Bretanha e preparou o terreno para a suspensão britânica do tráfico de escravos em 180747. Em 1801, Toussaint-Louverure, o antigo escravo que se tornou governador de Saint-Domingue, passou a suspeitar que o Diretório Francês poderia tentar rescindir a abolição48. Mesmo assim, ainda leal à República49, escreveu uma constituição para a colônia que se adiantou a qualquer outro documento dessa natureza no mundo - se não em suas bases democráticas, certamente com relação à inclusão racial pressuposta em sua definição de cidadania50. Em 1802, Napoleão de fato buscou restabelecer a escravidão e o Code Noir, ordenando a prisão e a deportação de Toussaint à França, onde morreu aprisionado em 1803. Quando Napoleão enviou tropas francesas sob o comando de Leclerc para subjugar a colônia, lançando uma guerra brutal contra a população negra "que chegou ao ponto de uma guerra genocida"51, os cidadãos negros de Saint-Domingue mais uma vez pegaram em armas, demonstrando, nas palavras do próprio Leclerc, que "não basta deportar Toussaint, há 2.000 outros líderes que também teriam de ser deportados"52. Em 1º de janeiro de 1804, o novo líder militar e escravo de nascimento Jean-Jacques Dessalines deu o passo final ao declarar independência da França, combinando, assim, o fim da escravidão com o fim da condição colonial. Sob a bandeira Liberdade ou Morte (tais palavras foram inscritas na bandeira vermelha e azul, da qual a faixa branca da tricolor francesa havia sido removida)53, derrotou as tropas francesas, eliminou a população branca e estabeleceu em 1805 uma nação independente e constitucional de cidadãos "negros", um "império" à imagem daquele do próprio Napoleão, ao qual deram o antigo nome Arawak da ilha, Haiti54. Esses eventos, culminando na completa liberdade dos escravos e da colônia, não tinham precedente. "Jamais uma sociedade escravista havia sido capaz de derrubar sua classe dirigente"55.
A autolibertação dos escravos africanos de Saint-Domingue lhes assegurou, à força, o reconhecimento dos brancos europeus e americanos - mesmo que tenha sido por medo. Entre aqueles que sustentavam simpatias igualitárias, também angariou respeito. Por quase uma década, antes que a eliminação violenta dos brancos sinalizasse seu recuo deliberado de princípios universalistas, os jacobinos negros de Saint-Domingue colocaram-se à frente da metrópole ao realizar ativamente o objetivo iluminista da liberdade humana, parecendo oferecer prova de que a Revolução Francesa não era simplesmente um fenômeno europeu, mas um evento com implicações históricas de alcance mundial56. Se nos acostumamos a diferentes narrativas, àquelas que situam os eventos coloniais nas margens da história europeia, então fomos seriamente enganados. Os eventos em Saint-Domingue foram cruciais para os esforços contemporâneos de extrair sentido da realidade criada pela Revolução Francesa e seus desdobramentos57. Devemos ter em mente os fatos segundo essa perspectiva.
6.
Consideremos a decorrência lógica da derrocada da escravidão na evolução da consciência dos europeus que a testemunharam. Os revolucionários franceses sempre se viram a si mesmos como um movimento de libertação que livraria as pessoas da "escravidão", das iniquidades feudais. Em 1789, os lemas "Liberdade ou morte" e "Antes a morte que a escravidão" eram correntes, e a "Marseillaise" denunciava l'esclavage antique ["a escravidão antiga"] nesse contexto58. Era uma revolução não apenas contra a tirania de um governante específico, mas contra todas as tradições antigas que violavam os princípios gerais da liberdade humana. Relatando os eventos em Paris, no verão de 1789, o publicista alemão Johann Wilhelm von Archenholz (ao qual ainda retornaremos) abandonou sua usual neutralidade jornalística para exclamar que o "povo" (Volk) francês, "acostumado a beijar as correntes que lhe prendia [...] havia, numa questão de horas, quebrado essas correntes gigantescas com um golpe arrebatador de coragem, tornando-se mais livres que os romanos e gregos em seu tempo e que os americanos e britânicos hoje"59.
Mas e as colônias, a fonte da riqueza de uma porção tão grande da população francesa? O significado da liberdade estava em jogo em sua reação aos eventos de 1789, e em lugar nenhum mais do que na joia da coroa, Saint-Domingue. Seguiriam os colonos o exemplo dos americanos e se revoltariam, como demandavam alguns dos fazendeiros crioulos de Saint-Domingue? Ou congregar-se-iam fraternalmente para proclamar sua "liberdade" como cidadãos franceses? Neste caso, quem seria reconhecido como cidadão? Os proprietários de terras, por certo60. Mas somente os brancos? Estima-se que os mulatos eram proprietários de cerca de um terço da terra cultivada de Saint-Domingue61. Não deveriam ser eles também incluídos, e não apenas eles, mas também os negros livres? Seria propriedade ou raça o teste decisivo para ser um cidadão da França? E ainda mais premente, se os africanos podiam em princípio ser incluídos como cidadãos - isto é, se os pressupostos racistas subjacentes ao Code Noir afinal não fossem válidos -, então como poderia ser justificada a continuidade da escravização legal dos negros?62. E se não pudesse ser justificada, como poderia ser mantido o sistema colonial? O desenrolar da lógica da liberdade nas colônias ameaçava decompor toda a estrutura institucional da economia escravagista que sustentava uma porção substancial da burguesia francesa, e essa revolução política era, por certo, sua63. Mesmo assim, somente a lógica da liberdade poderia oferecer à revolução a legitimidade nos termos universais nos quais os franceses se enxergavam a si mesmos.
A Revolução Haitiana era o cadinho, a prova de fogo para os ideais do Iluminismo francês. E cada europeu que fazia parte do público leitor burguês sabia disso64. "Os olhos do mundo estavam agora em Santo Domingo"65. Assim começa um artigo publicado em 1804 em Minerva, o periódico fundado por Archenholz, que vinha cobrindo a Revolução Francesa desde seu princípio e relatando sobre a revolução em Saint-Domingue desde 179266. Por um ano inteiro, do outono de 1804 ao fim de 1805, Minerva publicou uma série contínua, totalizando mais de cem páginas, incluindo fontes documentais, sumários de imprensa e relatos testemunhais, que informavam aos leitores não apenas sobre a luta final pela independência dessa colônia francesa - sob a bandeira de Liberdade ou Morte67! -, mas também dos eventos dos dez anos que a precederam. Archenholz era crítico da violência dessa revolução (como também o era do Terror Jacobino na metrópole), mas passou a estimar Toussaint-Louverture, publicando, como parte de sua série, a tradução alemã de um capítulo do manuscrito de Marcus Rainsford, capitão britânico, que celebrava de maneira superlativa o caráter de Toussaint, sua liderança e sua humanidade68.
A revista de Archenholz apropriava-se livremente de fontes em língua inglesa e francesa, de modo que seu relato refletia notícias amplamente veiculadas entre o público leitor europeu, e os artigos em Minerva foram aproveitados, por sua vez, por "incontáveis jornais" (um cenário de comunicação cosmopolita e aberta, a despeito das restrições de propriedade intelectual, que talvez somente encontrará seu paralelo na fase inicial da internet)69. Apesar de existir censura na imprensa francesa após 180370, jornais e revistas na Grã-Bretanha (assim como nos Estados Unidos e na Polônia)71 deram destaque aos eventos da batalha revolucionária final em Saint-Domingue - entre outros, a Edinburgh Review72. William Wordsworth escreveu um soneto intitulado "A Toussaint-Louverture", publicado no The Morning Post em fevereiro de 1803, no qual lamentava o restabelecimento do Code Noir nas colônias francesas73.
Na imprensa de língua alemã, a cobertura de Minerva era especial. Já em 1794, dois anos após sua fundação, havia estabelecido sua reputação como o melhor de seu gênero entre os periódicos políticos. Esforçava-se por manter-se apartidário, objetivo e factual, buscando uma "'verdade histórica'" capaz de "'instruir [...] nossos netos'"74. Seu objetivo, conforme explicitado em seu lema (em inglês!), era "apresentar à própria época e à sociedade de seu tempo sua forma e força"75. Em 1798, sua circulação chegava a três mil cópias (respeitável mesmo em nossa época para qualquer periódico intelectual sério), número que se estima haver dobrado em 1809. Nas palavras do biógrafo de Archenholz, Minerva era "o mais importante periódico político da virada do século", tanto em termos de qualidade do conteúdo, escrito por correspondentes regulares (que eram, por sua vez, figuras públicas importantes por mérito próprio), como pela qualidade dos leitores, entre os quais se encontravam algumas das pessoas mais influentes na Alemanha76. O rei Frederico Guilherme III da Prússia "lia Minerva constantemente"77. Tanto Goethe como Schiller a liam (sendo que este se correspondia regularmente com Archenholz)78, assim como Klopstock (que contribuía para o periódico), Schelling e Lafayette. Outro leitor regular de Minerva - faz sentido continuar com o suspense? -, como sabemos a partir de suas cartas publicadas, era o filósofo alemão Georg Wilhelm Fridrich Hegel79.
7.
"De onde surgiu a ideia de Hegel sobre a relação entre o senhorio e a servidão?", perguntam-se especialistas em Hegel, repetidamente, referindo-se à célebre metáfora da "luta de vida ou morte" entre senhor e escravo, que, para Hegel, oferecia a chave para o avanço da liberdade na história mundial e que foi elaborada pela primeira vez na Fenomenologia do espírito, escrita em Jena entre 1805 e 1806 (o primeiro ano de existência da nação haitiana) e publicada em 1807 (o ano da abolição britânica do tráfico de escravos). Vale a pena insistir: de onde? Os que se ocupam da história das ideias da filosofia alemã conhecem apenas um lugar onde procurar pela resposta: nos escritos de outros intelectuais. Talvez tenha sido Fichte, escreve George Armstrong Kelly, apesar de que "o problema do senhorio e da servidão é essencialmente platônico"80. Judith Shklar toma o caminho convencional de vincular a discussão hegeliana a Aristóteles. Otto Pöggeler - e dificilmente haverá nome mais sofisticado na literatura alemã sobre Hegel - diz que a metáfora sequer provem dos antigos, sendo na verdade um exemplo totalmente "abstrato"81. Apenas um estudioso, Pierre-Franklin Tavarès, chegou a realmente estabelecer a conexão entre Hegel e o Haiti, baseando seu argumento na evidência de que Hegel havia lido o abade francês abolicionista Grégoire82. (Seu trabalho, escrito no início da década de 1990, foi, até onde sei, retumbantemente ignorado pela comunidade hegeliana.) Mas mesmo Tavarès trata do Hegel tardio, após a concepção da dialética do senhor e do escravo83. Ninguém ousou sugerir que a ideia para a dialética do senhorio e da servidão tenha ocorrido a Hegel em Jena, entre os anos de 1803 e 1805, a partir da leitura da imprensa - revistas e jornais. Porém, esse mesmo Hegel, nesse mesmo período de Jena, durante o qual a dialética do senhor e do escravo foi concebida pela primeira vez, fez a seguinte anotação:
Ler o jornal no início da manhã é uma espécie de prece matinal realista. No primeiro caso, nos afastamos do mundo e nos dirigimos a Deus, ou [no segundo caso] nos dirigimos ao mundo, àquilo de que ele é feito. Ambas nos oferecem a mesma segurança, uma vez que deixam cientes de onde nos encontramos84.
Restam apenas duas alternativas. Ou Hegel era o mais cego de todos os filósofos da liberdade cegos da Europa iluminista, deixando Locke e Rousseau para trás em sua capacidade de negar a realidade debaixo do seu nariz (a realidade impressa debaixo de seu nariz sobre a mesa do café da manhã); ou Hegel sabia - sabia dos escravos reais que eram bem-sucedidos em sua revolta contra seus senhores reais - e elaborou sua dialética do senhorio e da servidão deliberadamente no quadro de seu contexto contemporâneo85.
Michel-Rolph Trouillot escreve em seu importante livro, Silencing the past [Silenciando o passado], que a Revolução Haitiana "entrou na história com a característica peculiar de continuar sendo impensável, mesmo enquanto acontecia". Ele certamente tem razão ao enfatizar a incapacidade da maioria dos contemporâneos da revolução, por conta de suas categorias pré-fabricadas de pensamento, "para entender a revolução em curso em seus próprios termos"86. Mas há um perigo em equiparar dois silêncios, o passado e o presente, quando se trata da história haitiana. Pois, se homens e mulheres no século XVIII não concebiam a "igualdade fundamental da humanidade" em termos não raciais, como "alguns de nós fazemos hoje", pelo menos eles sabiam o que estava acontecendo; hoje em dia, quando a revolução dos escravos haitianos pode parecer mais pensável, ela é mais invisível, devido à construção dos discursos disciplinares por meio dos quais herdamos o conhecimento sobre o passado87.
Os europeus do século XVIII estavam realmente pensando sobre a Revolução Haitiana precisamente porque ela desafiava o racismo de muitos de seus pressupostos. Não era necessário ter sido um defensor da revolução de escravos para reconhecer sua importância crucial para o discurso político88. "Mesmo na era das revoluções, seus contemporâneos reconheceram na criação do Haiti algo extraordinário"89. E mesmo seus oponentes consideraram esse "evento marcante" como algo "digno da contemplação dos filósofos"90. Marcus Rainsford escreveu em 1805 que a causa da Revolução Haitiana era o "espírito de liberdade"91. O fato de que esse espírito pudesse ser contagioso, atravessando a fronteira que separava não apenas as raças, mas também os escravos dos homens livres, foi o que tornou possível sustentar, sem recurso à ontologia abstrata da "natureza", que o desejo por liberdade era verdadeiramente universal, um evento da história mundial e, de fato, o exemplo que rompe o paradigma. Antes de escrever A fenomenologia do espírito, Hegel havia abordado o tema do reconhecimento mútuo em termos de Sittlichkeit [eticidade]: criminosos contra a sociedade ou as relações recíprocas na comunidade religiosa ou afeição pessoal. Agora, porém, esse jovem professor, ainda no início de seus 30 anos, teve a audácia de rejeitar essas versões anteriores (mais aceitáveis para o discurso filosófico estabelecido) e inaugurar, como a metáfora central de seu trabalho, não a escravidão oposta a algum estado mítico de natureza (como todos aqueles entre Hobbes e Rousseau haviam feito antes dele), mas escravos contra senhores, trazendo para dentro de seu texto a realidade presente, histórica, que o circundava como uma tinta invisível.
8.
Consideremos, em maior detalhe, a dialética de Hegel do senhor e do escravo, concentrando-nos sobre as características mais marcadas dessa relação. (Apoiar-me-ei não apenas nas passagens relevantes de A fenomenologia do espírito, mas também nos textos que a precedem imediatamente, escritos em Jena entre 1803 e 1806.)92.
Hegel compreende a posição do senhor tanto em termos político como econômico. No Sistema da eticidade (1803): "O senhor possui geralmente uma superabundância de necessidades físicas, enquanto o outro (o escravo) delas carece"93. À primeira vista, a situação do senhor é "independente, e sua natureza essencial é existir para si mesma"; enquanto, em contrapartida, "o outro", a posição do escravo, "é dependente e sua essência é viver ou existir para outrem"94. O escravo é caracterizado pela carência de reconhecimento alheio. É visto como "uma coisa"; "coisidade" é a essência da consciência escrava - como havia sido a essência de sua situação legal sob o Code Noir95. Contudo, à medida que a dialética se desenvolve, a dominação aparente do senhor se reverte, com sua consciência de que é na verdade totalmente dependente do escravo. Basta coletivizar a figura do senhor para ver a pertinência descritiva da análise de Hegel: a classe de proprietários de escravos depende totalmente da instituição da escravatura para prover a "superabundância" que constitui sua riqueza. Essa classe é, portanto, incapaz de ser o agente do progresso histórico sem aniquilar sua própria existência96. Mas então os escravos (novamente coletivizando a figura) chegam à autoconsciência ao demonstrar que não são coisas, nem objetos, mas sujeitos que transformam a natureza material97. O texto de Hegel torna-se obscuro e, por fim, silencia ao chegar a essa conclusão98. Considerando, porém, os eventos históricos que ofereceram o contexto para A fenomenologia do espírito, a inferência é bastante clara. Aqueles que chegaram a se submeter à escravidão demonstram sua humanidade quando preferem enfrentar a morte a permanecerem subjugados99. A lei (o Code Noir!) que os reconhece meramente como "uma coisa" já não pode ser considerada vinculante100, apesar de que, antes, de acordo com Hegel, era o próprio escravo o responsável por sua falta de liberdade, ao haver inicialmente optado pela vida em lugar da liberdade, pela mera autopreservação101. Em A fenomenologia do espírito, Hegel insiste que a liberdade não pode ser outorgada aos escravos de cima para baixo. É preciso que a autolibertação do escravo ocorra através de uma "prova de morte":
"E é somente arriscando a própria vida que a liberdade é obtida [...]. O indivíduo que não arriscou sua vida pode, sem dúvida, ser reconhecido como uma pessoa (a agenda dos abolicionistas!); mas ele não alcança a verdade desse reconhecimento como uma autoconsciência independente"102. O objetivo dessa libertação, da libertação da escravidão, não pode ser a sujeição, por sua vez, do senhor, o que simplesmente repetiria o "impasse existencial" do senhor103, e sim a eliminação completa da instituição da escravidão.
Dada a facilidade com que essa dialética do senhor e do escravo se oferece a uma tal leitura, é de se perguntar por que o tema Hegel e Haiti foi ignorado por tanto tempo. Os estudiosos de Hegel não apenas deixaram de responder a essa questão, como também deixaram até mesmo, ao longo dos últimos duzentos anos, de colocá-la104.
9.
Uma das principais razões para essa omissão é certamente a apropriação marxista de uma interpretação social da dialética hegeliana. Desde a década de 1840, com os escritos de juventude de Karl Marx, a luta entre o senhor e o escravo vem sendo abstraída da referência literal e lida novamente como uma metáfora - desta vez, para a luta de classes. No século XX, essa interpretação hegeliano-marxista teve poderosos proponentes, incluindo Geörg Lukács e Herbert Marcuse, assim como Alexandre Kojève, cujas conferências sobre A fenomenologia do espírito são uma brilhante releitura dos textos de Hegel através de uma lente marxiana105. O problema é que marxistas (brancos), dentre todos os leitores, eram os menos propensos a considerar a escravidão real como algo significante, uma vez que, em sua concepção etapista da história, a escravidão - não importando o quão contemporânea - era vista como uma instituição pré-moderna, banida da história e relegada ao passado106. Mas somente se presumirmos que Hegel estava contando uma história que se esgotava na Europa, na qual a "escravidão" era uma instituição mediterrânea vetusta, há muito abandonada, uma tal leitura se tornará remotamente plausível - remotamente, porque mesmo na própria Europa de 1806, a servidão por dívidas e a servidão fundiária ainda não haviam desaparecido, e as leis que consideravam a escravidão propriamente dita tolerável ainda estavam sendo contestadas107.
Há um elemento de racismo implícito no marxismo oficial, ao menos por conta da concepção da história como uma progressão teleológica. Esse elemento se tornava explícito, por exemplo, quando marxistas (brancos) resistiam à tese de inspiração marxista do historiador jamaicano Eric Williams em Capitalism and slavery (1944) - reforçada pelo historiador marxista trinidadiano C. L. R. James em The black jacobins - de que a escravidão do sistema de plantation era uma instituição quintessencialmente moderna de exploração capitalista108. No que se refere à literatura hegeliana especializada, Ludwig Siep e outros criticaram justificadamente a leitura marxista de Hegel sob a ótica da luta de classes como algo anacrônico. O resultado disso entre os filósofos, entretanto, tem sido uma tendência a se afastar completamente da contextualização social109. A interpretação de Hegel segundo a luta de classes é realmente anacrônica, mas isso deveria ter levado os intérpretes a olhar mais de perto os eventos históricos contemporâneos de Hegel, e não a abandonar inteiramente a interpretação social.
A literatura de orientação marxista lançou luz, porém, sobre uma área inteira de questões de Hegel que haviam permanecido completamente negligenciadas até o século XX. Isso se refere ao fato de que, em 1803, Hegel lera a Riqueza das nações de Adam Smith e que isso o levou a uma concepção da sociedade civil - die bürgerliche Gesellschaft - como economia moderna, a sociedade criada pelas ações de troca burguesas. Mas se os marxistas foram provocados pela citação de Hegel do exemplo de Smith da fábrica de alfinetes na discussão da divisão do trabalho (que de modo algum se encaixa no modelo da dialética do senhor e do escravo!), deixaram de comentar o fato de que Smith incluiu uma discussão econômica da escravidão moderna em A Riqueza das nações110.
Há muito que se reconhece que a concepção hegeliana da política era moderna, baseada numa interpretação dos eventos da Revolução Francesa como uma ruptura decisiva em relação ao passado, e que, mesmo sem a mencionar expressamente, ele se referia à Revolução Francesa em A fenomenologia do espírito111. Por que seriam apenas dois os sentidos em que Hegel teria sido um modernista: adotando a teoria econômica de Adam Smith e a Revolução Francesa como modelo para a política? E, mesmo assim, quando se tratava da escravidão, a mais candente questão social de seu tempo, com rebeliões escravas por todas as colônias e uma revolução escrava bem-sucedida na mais rica entre todas elas - por que deveria - como poderia Hegel se manter de tal modo fixado em Aristóteles?112.
Sem dúvida, Hegel sabia dos escravos reais e de suas lutas revolucionárias. Naquilo que talvez seja a mais política expressão de sua carreira, ele recorreu aos sensacionais eventos do Haiti como o pilar de sua argumentação em A fenomenologia do espírito113. A revolução real e bem-sucedida dos escravos caribenhos contra seus senhores é o momento em que a lógica dialética do reconhecimento se torna visível como a temática da história mundial, a história da realização universal da liberdade. Se o editor de Minerva, Archenholz, relatando a história à medida que acontecia, não chegou a ele mesmo sugerir isso nas páginas de sua revista, Hegel, leitor de longa data, foi capaz de ter essa visão. A teoria e a realidade convergiram nesse momento histórico. Ou, para colocar em termos hegelianos, o racional - liberdade -tornou-se real. Esse é o ponto crucial para a compreensão da originalidade da argumentação de Hegel, por meio da qual a filosofia explodiu os confinamentos da teoria acadêmica e se tornou um comentário sobre a história do mundo.
10.
Haveria muita pesquisa a ser feita. Outros textos de Hegel teriam de ser lidos com a conexão haitiana em mente114. Por exemplo, a seção de A fenomenologia do espírito em que Hegel critica a pseudociência da frenologia assume um sentido diverso se vista como uma crítica às teorias do racismo biológico já estabelecidas115. Assim como a referência, na Propedêutica filosófica (1803-1813), a Robinson Crusoé, que associa esse protótipo de homem no "estado de natureza" - o náufrago numa ilha caribenha - a Sexta-Feira, seu escravo, uma crítica implícita à versão individualista do estado de natureza de Hobbes116. As primeiras conferências de Hegel sobre a filosofia do direito (Heidelberg, 1817-188) contêm uma passagem que agora se torna legível. Começa com o tópico crucial da autolibertação do escravo:
Mesmo que eu tenha nascido escravo [Sklave], que eu tenha sido alimentado e criado por um senhor, que meus pais e antepassados tenham sido todos escravos, ainda assim sou livre no momento que eu desejar, quando me torno consciente de minha liberdade. Pois a personalidade e a liberdade de minha vontade são partes essenciais de mim, de minha personalidade117.
Hegel continua: mesmo que liberdade signifique ter direitos de propriedade, a posse de outra pessoa é excluída - "e se eu mandar açoitar alguém, isso não afeta sua liberdade"118. É claro que Hegel está falando nesse caso da escravidão moderna e é claro que a consciência da liberdade exige que o indivíduo se torne livre, não apenas em pensamento, mas no mundo. A nova versão dessas conferências proferidas por Hegel em seu primeiro ano em Berlim (1818-1919) conectaram explicitamente a libertação do escravo à realização histórica da liberdade: "Os humanos se tornarem livres é parte, portanto, de um mundo livre. Que não haja escravidão (Sklaverei) é a exigência ética (die sittliche Forderung). Essa exigência somente é satisfeita quando aquilo que um ser humano deve ser aparece como o mundo exterior que ele torna seu"119. Não teríamos por que compartilhar da perplexidade do editor dessas conferências, que reparou, em 1983, que Hegel "falava de escravos de modo surpreendentemente frequente"120. E consideraríamos uma confirmação (ainda que outros sequer chegaram a notar) de que Hegel, em sua obra tardia, A filosofia do espírito subjetivo, menciona expressamente a Revolução Haitiana121.
Seria também revelador reconsiderar o argumento do filósofo francês Jacques d'Hont, segundo o qual Hegel estava ligado à maçonaria radical durante esse anos, pois a maçonaria faz parte de nossa história a todo momento122. Não apenas Archenholz, o editor de Minerva, era maçom, assim como seus correspondentes regulares Konrad Engelbert Olsner (que se encontrou com Hegel em 1794) e Georg Foster (a cuja obra Hegel se refere), assim como muitos outros entre os contatos intelectuais de Hegel123; não só era maçom o capitão inglês Rainsford, autor do livro sobre a história da independência haitiana, um capítulo do qual fora publicado em Minerva em 1805124, como também a maçonaria foi (e aqui o relato de D'Hont silencia) um fator crucial no levante de Saint-Domingue.
Não era incomum filhos "mulatos" de fazendeiros coloniais brancos (não raro sendo suas mães legalmente casadas com os pais) serem levados à França para receberem ali sua formação. E é notável que as lojas maçônicas radicais francesas fossem espaços igualitários, nos quais a segregação racial, religiosa e mesmo sexual podia ser superada, ao menos temporariamente125. Polverel, o homem que dividiu com Sonthonax tanto o posto de comissário em Saint-Domingue como a responsabilidade por declarar a abolição da escravatura na colônia em 1793, havia sido maçom em Bordeaux na década de 1770126, um período em que um número surpreendente de jovens mulatos que posteriormente se tornaram líderes da revolta em Saint-Domingue também se encontravam nessa cidade portuária do circuito do comércio de escravos127. Dois desses jovens, Vincent Ogé e Julien Raimond, declararam-se, no primeiro ano da Revolução Francesa, favoráveis aos direitos dos mulatos. Sua falta de sucesso levou-os em direções bem diferentes. Contando com o apoio dos Amis des Noirs e com prováveis conexões maçônicas, assim como abolicionistas, tanto em Londres como na Filadélfia, Ogé voltou à colônia em 1790 para liderar uma revolta de mulatos livres por direitos civis; derrotado, foi torturado e executado pela corte colonial no ano seguinte128. Raimond foi nomeado comissário colonial pelo governo francês em 1796 e trabalhou em estreita proximidade primeiro com Sonthonax e em seguida com Toussaint, a quem ajudou a redigir a constituição de 1801. Um terceiro mulato bordelês, André Rigaud, lutou com o exército francês na Guerra de Independência Americana e foi, depois de Toussaint (que se tornou seu rival), provavelmente o mais importante general na luta dominguense contra os britânicos na década de 1790129. Um quarto foi Alexandre Pétion, que lutou com Dessalines contra os franceses, tornando-se presidente da república do Haiti, criada no sul da ilha após o assassinato de Dessalines em 1806. O presidente Pétion encorajou Simón Bolívar a exigir a abolição da escravidão na luta latino-americana pela independência, na qual a maçonaria também desempenhou um papel decisivo. O historiador Jacques de Cauna escreveu a respeito desse ilustre grupo de líderes dominguenses: "Seria interessante investigar se eles também teriam feito parte das lojas maçônicas de Bordeaux. Essa pesquisa ainda está por ser feita"130. Ademais, não podemos ficar cegos à possibilidade de influência recíproca: os próprios sinais secretos da maçonaria podem ter sido afetados pelas práticas rituais dos escravos revolucionários de Saint-Domingue. Existem referências intrigantes ao vodu - o culto secreto dos escravos dominguenses que gerou o maciço levante de 1791 - como "'uma espécie de maçonaria religiosa e cerimonial'"131. Sabemos muito pouco sobre a maçonaria no Atlântico negro/pardo/branco, um capítulo de relevo na história da hibridez e da transculturação.
11.
"A coruja de Minerva somente levanta voo quando o sol se põe". Essa muito citada máxima das conferências de Hegel sobre A filosofia da história (1822), que podia muito bem ser uma referência à revista Minerva, na verdade marca um recuo da política radical de A fenomenologia do espírito - a extensão desse recuo em relação à posição inicial de Hegel sobre a Revolução Francesa é, porém, objeto de debate há muitos anos133. Mas, ao menos no que diz respeito à abolição da escravidão, o recuo de Hegel em relação ao radicalismo revolucionário é evidente134.
Notoriamente condenando a cultura africana à pré-história e culpando os próprios africanos pela escravidão no Novo Mundo, Hegel repetia o argumento banal e apologético de que os escravos viviam em condições melhores nas colônias do que em suas pátrias africanas, onde a escravidão era "absoluta"135, e corroborava o gradualismo: "A escravidão é a injustiça em si e por si só, pois a essência da humanidade é Liberdade; mas, para tanto, o homem deve amadurecer. A abolição gradual da escravidão é, portanto, mais sábia e mais equitativa que sua súbita supressão"136. Essa postura não era, no entanto, a mais surpreendente em suas conferências. Pelo contrário, era o brutal esmero com que privava toda a África subsaariana, essa "terra de crianças", de "barbárie e selvageria", de qualquer relevância para a história mundial, devido ao que ele considerava serem as deficiências do "espírito" africano137.
Seria essa mudança simplesmente uma parte do conservadorismo mais geral de Hegel durante os anos em Berlim? Ou estaria ele, novamente, reagindo aos eventos correntes? O Haiti estava novamente nas manchetes durante as primeiras décadas do século XIX, febrilmente discutido por abolicionistas e seus oponentes na imprensa britânica, incluindo a Edinburgh Review, que temos certeza de que Hegel lia à época138.
No contexto da pressão contínua pela abolição da escravatura, os acontecimentos no Haiti, o "grande experimento", eram monitorados constantemente e evocavam censuras crescentes, mesmo de seus antigos defensores139. No centro da discussão, estava a suposta brutalidade do rei Henri Christophe140 e o declínio da produtividade na ilha sob o sistema de trabalho assalariado (aqui seria o momento adequado para uma crítica marxista)141. Não há registro de se esses debates levaram Hegel a reconsiderar o "grande experimento" do Haiti. O que está claro é que, num esforço para se tornar mais erudito nos estudos africanos durante a década de 1820, Hegel estava na verdade se tornando mais tolo.
Hegel repetiu suas conferências sobre a filosofia da história a cada dois anos entre 1822 e 1830, adicionando material empírico obtido de sua leitura dos especialistas europeus na história mundial142. É tristemente irônico que, quanto mais fielmente suas conferências refletiam a produção acadêmica convencional europeia sobre a sociedade africana, menos esclarecidas e mais preconceituosas elas se tornavam143.
12.
Por que é importante encerrar o silêncio sobre Hegel e o Haiti? Diante da aceitação final de Hegel da continuidade da escravidão - e mais, diante do fato de que a filosofia da história de Hegel ofereceu por dois séculos uma justificativa para as mais complacentes formas de eurocentrismo (talvez Hegel sempre tenha sido um racista cultural, se não um racista biológico) - por que a recuperação desse fragmento da história, cuja verdade conseguiu nos escapar, é de interesse mais do que hermético?
Há muitas respostas possíveis, mas uma certamente é o potencial de resgatar a ideia de história universal humana dos usos aos quais a dominação branca a condenou. Se os fatos históricos a respeito da liberdade podem ser extirpados das narrativas contadas pelos vencedores e recuperadas para a nossa própria época, então o projeto da liberdade universal não deve ser descartado, mas, pelo contrário, deve ser resgatado e reconstituído sobre novas bases. O momento de clareza de pensamento de Hegel teria de ser sobreposto ao de outros da época: Toussaint-Louverture, Wordsworth, abade Grégoire e mesmo Dessalines. Em que pese toda a brutalidade de sua vingança contra os brancos, Dessalines foi quem viu com maior clareza a realidade do racismo europeu. Ainda, o momento de Hegel deve ser sobreposto aos momentos de clareza ativa: os soldados franceses que, enviados à colônia por Napoleão, ao ouvirem esses ex-escravos cantando a "Marseillaise", perguntaram-se em voz alta se não estariam lutando do lado errado; o regimento polonês sob o comando de Leclerc que desobedeceu suas ordens e se recusou a afogar seiscentos dominguenses capturados144. Existem muitos exemplos dessa clareza e eles não pertencem com exclusividade a qualquer lado ou grupo. E se cada vez que a consciência dos indivíduos ultrapassasse as fronteiras das constelações atuais de poder e percebesse o significado concreto da liberdade, este fosse avaliado como um momento, ainda que transitório, da realização do espírito absoluto? Quais outros silêncios teriam ainda de ser quebrados? Quais histórias indisciplinares ainda teriam de ser contadas?145.
Recebido para publicação em 13 de maio de 2010.
SUSAN BUCK-MORSS é professora de filosofia política e teoria social da Universidade Cornell (EUA).
NOTAS
Referências bibliográficas
- [*] Publicado originalmente em Critical Inquiry, vol. 26, nº 4, 2000, pp. 821-65. Republicado em Buck-Morss, Susan. Hegel, Haiti and universal history University of Pittsburg Press, 2009.
- [1] "Para os pensadores do século XVIII que abordaram a questão, a escravidão era a metáfora central para todas as forças que aviltavam o espírito humano" (Davis, David Brion. The problem of slavery in the age of revolution, 1770-1823. Ithaca: Cornell University Press, 1975, p. 263).
- [2] Ver Schama, Simon. The embarrassment of riches: an interpretation of Dutch culture in the Golden Age. Nova York: Random House, 1987 (ed.
- [12] No entanto, ver Blakeley, Allison (Blacks in the Dutch world: the evolution of racial imagery in a modern society. Bloomington: Indiana University Press, 1993),
- [13] A Grã-Bretanha conseguiu à força da Espanha o asiento no Tratado de Utrecht (1713). "Muito da riqueza de Bristol e Liverpool nas décadas seguintes foi construída sobre a base do tráfico de escravos" (Palmer, R. R. e Colton, Joel. A history of the modern world. 3 ed. Nova York: Knopf, 1969, p. 171).
- [15] Hobbes considerava a "luta elementar entre dois inimigos" como "a condição natural que tornou a escravidão necessária como uma instituição social" (Davis. The problem of Slavery in Western culture. Ithaca, Cornell University Press, 1966, p. 120).
- [17] Hulme, Peter. "The Spontaneous Hand of Nature: Savagery, Colonialism, and the Enlightenment", in Peter Hulme e Ludmilla Jordanova (eds.), The Enlightenment and Its Shadows, Londres, 1990, p. 24.
- [18] Locke, John. Two treatises of government. Ed. Peter Laslett. Cambridge: Cambridge University Press, 1960, §1, p. 141.
- [20] "Na opinião de Locke, a origem da escravidão, assim como a origem da liberdade e da propriedade, encontrava-se inteiramente fora do âmbito do contrato social" (Ibidem, p. 119). O argumento filosófico de Locke temperava a universalidade da igualdade no estado de natureza com a necessidade do consentimento antes que o contrato social pudesse ser estabelecido, excluindo do contrato, portanto, explicitamente, crianças e idiotas e, por extensão interpretativa, outros que fossem incultos ou incultiváveis. Ver Mehta, Uday S. "Liberal strategies of exclusion". Politics and Society, nº 18, 1990, pp. 427-53.
- [22] "O London Advertiser de 1756 publicou um anúncio feito por Matthew Dyer, informando ao público que produzia 'cadeados de prata para negros ou cães, coleiras etc'. [...] Damas inglesas posavam para seus retratos ou bem com seu cordeiro de estimação, ou com seu cão de estimação, ou então com seu negro de estimação" (Dabydeen, David. Hoggarth's blacks: images of blacks in eighteenth-century English art. Athens: University of Georgia Press, 1987 [1985], pp. 21-3).
- [23] A respeito da presença de escravos na Grã-Bretanha do século XVIII, ver também Shylon, F. O. Black slaves in Britain. Nova York/Londres: Oxford University Press, 1974,
- e Limbaugh, Peter. The London hanged: crime and civil society in the eighteenth century, Nova York: Cambridge University Press, 1992.
- [24] Ver Mintz, Sidney W. Sweetness and power: the place of sugar in modern history. Nova York: Voking, 1985.
- [25] Ver Davis, Ralph. The rise of the atlantic economies. Ithaca: Cornell University Press, 1973, p. 257.
- [27] Foi Montesquieu quem introduziu a escravidão nos debates iluministas, definindo seu tom. Ao mesmo tempo em que condenava filosoficamente a instituição, justificava a escravidão "negra" em termos pragmáticos, climáticos e explicitamente racistas ("narizes achatados", "pretos da cabeça aos pés" e carentes de "bom senso"). Concluía: "Espíritos débeis exageram demasiado a injustiça feita aos africanos" pela escravidão colonial (Montesquieu. The spirit of the laws. In: Selected political writings. Trad. e ed. Melvin Richter. Indianapolis: Hackett, 1990, p. 204).
- [28] A exceção mais frequentemente citada é a obra de um sacerdote, o Abade Raynal, cujo livro Histoire philosophique et politique des établissements et du commerce des Européens dans les deux Indes, escrito em 1770 em colaboração com Diderot, prenunciava um Espártaco negro, que surgiria no Novo Mundo e vingaria as violações contra os direitos naturais. O livro foi lido amplamente, não apenas na Europa; o próprio Toussaint-Louverure foi inspirado por ele. Ver James, C. L. R. The black jacobins: Toussaint l'ouverture and the San Domingo revolution. 2 ed. Nova York: Vitage Books, 1963 [1938], pp. 24-5. Michel-Rolph Trouillot já advertiu, porém, contra uma leitura muito entusiasta dessa passagem, que deve ser vista antes como uma advertência dirigida aos europeus do que como uma conclamação voltada aos próprios escravos: "Não se tratava de uma clara predição sobre o surgimento de uma figura como Louverture, como muitos em retrospecto gostariam que fosse [...]. A postura mais radical encontra-se na inconfundível referência à unidade da espécie humana" (Trouillot, Michel-Rolph. Silencing the past: power and the production of history. Boston: Beacon Press, 1995, p. 85).
- [29] Rousseau, Jean-Jacques. On the social contract. In: The basic political writings. Trad. e ed. Donald A. Cress. Indianapolis: Hackett, 1988, livro I, cap. 1, p. 141.
- [34] Ver Cohen, William B. The French encounter with Africans: white response to blacks, 1530-1880. Bloomington: Indiana University Press, 1980.
- [36] Ibidem, p. 253. Autor também de L'Afrique aux Amériques: le Code Noir espagnol (Paris: Presses Universitaires de France, 1992),
- [38] Jordan, Winthrop D. White over black: American attitudes toward the negro, 1550-1812, Chapel Hill: University of North Carolina Press, 1968, p. 289.
- [43] Trouillot, op. cit., p. 85. A Encyclopédie, editada por Diderot e D'Alembert, incluía verbetes relativos à escravidão real. Apesar de o artigo intitulado "Nègres" ter simplesmente mencionado que seu trabalho era "indispensável para o cultivo do açúcar, do tabaco, do índigo etc.", uma série de verbetes escritos por Jaucourt foi mais incisiva: "Esclavage" declarava ser a escravidão contrária à natureza; "Liberté naturelle" acusava a religião de criar pretextos contra o direito natural por conta da demanda de escravos nas colônias, plantações e minas; "Traité des Nègres" afirmava que escravos traficados representavam uma "mercadoria ilícita - proibida por todas as leis da humanidade e da igualdade", de modo que a abolição era necessária, mesmo que arruinasse as colônias ("Sejam antes destruídas as colônias que a causa de tanto mal"). Mas o racismo seguia presente nesses textos (Sala-Molins, Le Code noir, ou le calvaire de Canaan, pp. 254-61) e a aboliç
- [44] Esse levante de escravos foi liderado por Boukman, um sacerdote do vodu (culto sincrético que não apenas congregou escravos de diferentes culturas africanas, mas também absorveu símbolos culturais ocidentais). Boukman se dirigia aos escravos: "Abandonem o símbolo do deus dos brancos, que tanto nos fez chorar, e ouçam a voz da liberdade, que nos fala a todos ao coração" (James, op. cit., p. 87). Apesar de rebeliões de escravos ocorrerem com bastante frequência em Saint-Domingue - 1679, 1713, 1720, 1730, 1758, 1777, 1782 e 1787, antes da ampla revolta de 1791 (ver Dupuy, Alex. Haiti in the world economy: class, race, and underdevelopment since 1700. Boulder: Westview Press, 1989, p. 34) -,
- o levante de Boukman provocou, no contexto da radicalização da Revolução Francesa, uma mudança na percepção europeia das revoltas de escravos, não mais vistas como uma sucessão de rebeliões escravas, mas como uma extensão da Revolução Europeia: "As notícias do verão de 1791 haviam se concentrado na fuga para Varènnes e na captura da família real francesa e na revolta dos escravos em Santo Domingo" (Paulson, Ronald. Representations of Revolution, 1789-1820 New Haven: Yale Unioversity Press, 1983, p. 93).
- [45] A escravidão foi abolida por Polverel e Sonthonax em agosto de 1793, agindo autonomamente em relação às ordens de Paris. O papel de ambos foi negligenciado pelos historiadores, outro caso de cegueira acadêmica que, para usar a feliz expressão de Trouillot (op. cit.), "silencia o passado". Ver o simpósio recente (Léger-Félicité Sonthonax: la première abolition de l'esclavage - la Révolution Française et la Révolution de Saint-Domingue Ed. Marcel Dorigny. Saint-Denis/Paris: Société Française d'Histoire d'Outre-Mer/Association pour l'Étude de la Colonisation Européenne, 1997),
- que apenas começa a remediar a situação; em especial, ver Roland Desné, "Sonthonax vu par les dictionnaires" (pp. 113-20),
- [46] Os britânicos foram pragmaticamente compelidos a garantir a liberdade aos escravos de Saint-Domingue que concordaram em lutar ao seu lado - como fizeram Sonthonax e Polverel no caso daqueles que lutaram pela República Francesa. O efeito dessas políticas foi comprometedor para a escravidão, contradizendo qualquer argumento ontológico sobre a incapacidade dos escravos para a liberdade; ver Geggus, David Patric. "The British occupation of Saint-Domingue, 1793-1798". Nova York: tese de doutorado, York University, 1978, p. 363.
- [47] Geggus destaca: "O papel desempenhado pelo Haiti no súbito ressurgimento do movimento antiescravagista em 1804 parece ter sido completamente ignorado pela literatura acadêmica. Porém, sua importância foi aparentemente considerável" (Geggus. "Haiti and the abolitionists: oppinion, propaganda, and international politics in Britain and France, 1804-1838". In: Richardson, David [ed.]. Abolition and its aftermath: the historical context, 1790-1916. Londres/Totowa: F. Cass, 1985, p. 116).
- [48] Em 1796, o general Laveaux nomeou Toussaint governador e o declarou salvador da República e redentor dos escravos prenunciado por Raynal; ver Blackburn, Robin. The overthrow of colonial slavery, 1776-1848. Londres/Nova York: Verso, 1988, p. 233.
- [49] Louverture havia-se aliado anteriormente ao rei de Espanha, realizando operações militares e operando a partir da porção oriental da ilha, que era uma colônia espanhola; mas tão logo soube que a Assembleia Francesa havia abolido a escravidão, juntou-se a Sonthonax contra os britânicos e foi leal à República Francesa até sua prisão. Essa mudança de alianças, que foi objeto de controvérsia, é analisada por Geggus. "'From his most catholic majesty to the godless république': the 'volte-face' of Toussaint-Louverure and the end of slavery in Saint-Domingue". Revue Française d'Histoire d'Outre Mer, vol. 65, nº 241, 1978, pp. 488-9.
- [51] Geggus. "Slavery, war, and revolution in the Greater Caribbean". In: Barry, David Gaspar e Geggus (eds.). A turbulent time: the French revolution and the Greater Caribbean. Bloomington: Indiana University Press, 1997, p. 22.
- [53] Ibidem, p. 345. Escrevendo sob pseudônimo em um jornal de Boston, defendendo a revolução em Saint-Domingue, Abraham Bishop "lembrou que os revolucionários americanos, que haviam ensinado o mundo a ecoar o grito de 'Liberdade ou Morte!' não diziam 'todos os brancos são livres, mas todos os homens são livres'" (Davis, D. B. Revolutions: reflections on American equality and foreign liberations. Cambridge: Cambridge University Press, 1990, p. 50).
- [59] Ruof, Friedrich. Johann Wilhelm von Archenholtz: Ein deutscher Schriftsteller zur Zeit der Französischen Revolution und Napoleons, 1741-1812. Vaduz: Kraus Reprint, 1965 [1915], p. 29.
- [64] Os Amis des Noirs (associação fundada em 1788) foram importantes ao preparar o terreno para essa discussão. Apesar de não serem numerosos, eram influentes como escritores e panfletários (Condorcet, Brissot, Mirabeau, Abade Grégoire), cujos trabalhos deploravam a condição dos escravos coloniais. Rainsford escrevia em 1805 que, como um resultado da circulação de seus escritos, os escravos negros "eram objeto de destaque em conversas e contrições em metade das cidades europeias"; uma vez que caracterizavam, com "infeliz eloquência", as "misérias da escravidão" e "eram certamente a causa do chamado à ação, com amplo alcance, daquele espírito de revolta dormente no africano escravizado ou em seus descendentes" (Rainsford, Marcus. An historical account of the black Empire of Hayti. Londres: J. Cundee, 1805, p. 107).
- A postura dos Amis des Noirs consistia na defesa unicamente da emancipação gradual até 1791, quando passaram a defender a concessão de direitos a negros livres e mulatos; à época da abolição efetiva da escravidão (1794), a associação já havia deixado de existir, vítima dos expurgos de Robespierre. A abolição passou a ser identificada com os girondinos, inimigos de Robespierre: "Os girondinos foram acusados de haverem secretamente fomentado os levantes coloniais em favor da Grã-Bretanha e de apoiarem a abolição com o objetivo de arruinar o império francês [...]. O próprio Robespierre manteve-se conspicuamente ausente da sessão de 4 de fevereiro (da Convenção, que votou unanimemente pela abolição da escravatura) e não assinou o decreto" (Fick, Carolyn E. "The French revolution in Saint-Domingue: a triumph or a failure?". In: A Turbulent Time, op. cit., p. 68; comparar com Bénot, Yves. "Comment la convention a-t-elle voté l'abolition de l'esclavage en l'an II?". Révolutions aux Colonies Paris, 1993, pp. 13-25).
- [65] Archenholz, Johann Wilhelm von. "Einleitung zur 'Zur neuesten Geschichte von St. Domingo'", Minerva, nº 4, 1804, p. 340.
- [66] Ver "Historische Nachrichten von den letzten Unruhen in Saint Domingo: Aus verschiedenen Quellen gezogen", Minerva, nº 1, fev. 1792, pp. 296-319.
- [71] A imprensa estadunidense estava repleta de histórias de Saint-Domingue. John Adams, ao mesmo tempo em que lamentava o desenrolar dos eventos, acreditava que fossem o resultado lógico daquilo que a rebelião nos Estados Unidos havia criado. Outros viam a revolução dos escravos como a prova de que a escravidão deveria ser abolida nos Estados Unidos - ou seja, ambos os lados liam-na como algo decisivo para a história mundial (ver Davis, D. B. Revolutions, op. cit., pp. 49-54). Correspondentes de guerra também enviavam relatos periódicos para os jornais poloneses, uma vez que um regimento polaco fazia parte da força militar sob o comando do general Leclerc enviado por Napoleão para restabelecer a escravidão em Saint-Domingue. Ver PachoŃski, Jan e Wilson, Reuel K. Poland's Caribbean tragedy: a study of polish legions in the Haitian war of independence, 1802-1803. Nova York: Columbia university Press, 1986.
- [73] O soneto foi "provavelmente escrito na França, em agosto de 1802" (Geggus. "British opinion and the emergence of Haiti, 1791-1805". In: Walvin, James [ed.]. Slavery and British society, 1776-1846. Baton Rouge: Louisiana State University Press, 1982, p. 140).
- [75] É digno de nota que os estudiosos de Minerva tenham de voltar ao original para descobrir o intenso interesse de Archenholz por Saint-Domingue e a Revolução Haitiana. As duas monografias que foram escritas sobre ele não mencionam esses artigos; ver Ruof, op. cit., e Rieger, Ute. Johann Wilhelm von Archenholz als "Zeitbürger": Eine historisch-analytische Untersuchung zur Aufklärung. Berlim: Duncker & Humblot, 1994.
- Ver, porém, Schüller, Karin (Die deutsche Rezeption haitianischer Geschichte in der ersten Hälfte des 19. Jahrhunderts: Ein Beitrag zum deutschen Bild vom Schwarzen Colônia: Böhlau, 1992, pp. 248-61),
- [79] Hegel escreveu de Berna a Schelling na véspera do Natal de 1794: "De modo um tanto acidental, falei há alguns dias com o autor das cartas assinadas por "O" na Minerva de Archenholz. Sem dúvida, você sabe de quais estou falando. O autor, supostamente inglês, é na verdade um silésio chamado Oeslner [...] ainda jovem, mas se percebe que se esforçou bastante" (G. W. F. Hegel, carta a Friedrich Wilhelm Joseph Schelling, 24 de dezembro de 1794; ver Hegel: the letters (traduzidas por Clark Butler e Christian Seiler), Bloomington: Indiana University Press, 1984, p. 28.
- Escrevendo em 1915, Ruof não menciona Hegel como um leitor de Minerva, mas ele não teve acesso à publicação alemã das cartas de Hegel; ver Hegel, Briefe von und an Hegel (editado por Johannes Hoffmeister), Hamburgo: Meiner, 1969-1981.
- Jacques d'Hont, porém, inicia seu livro com um capítulo sobre a influência de Minerva sobre Hegel (e Schelling), que descreve como "total" (globale) (D'Hont, Jacques. Hegel secret: recherches sur les sources cachées de la pensée de Hegel Paris: Presses Universitaire de France, 1968, pp. 7-45).
- [80] Kelly, George Armstrong. "Notes on Hegel's 'Lordship and Bondage'". In: Hegel's dialectic of desire and recognition: text and commentary (ed. John O'Neill). Albany: State University of New York, 1996, p. 260.
- Kelly insiste que os escritos de Hegel devem ser considerados no contexto "da época de Hegel", mesmo sendo uma época em que abunda pensamento (Ibidem, p. 272). Ele considera, portanto, as diferenças filosóficas entre Fichte, Schelling e Hegel: a temática de Fichte era mais geral, voltada ao reconhecimento mútuo (um tema que Hegel havia abordado anteriormente), enquanto na dialética do senhor e do escravo "Hegel defende uma doutrina de igualdade originária que é curiosa e perigosamente negada por Fichte" (Ibidem, p. 269). Muitos intérpretes escolhem discutir Hegel nesse ponto nos termos colocados por Fichte, reduzindo assim a importância do exemplo de reconhecimento específico a Hegel, introduzido pela primeira vez em 1803: a relação entre senhor e escravo. Ver, por exemplo, Williams, Robert R. "The story of recognition is a story about Fichte and Hegel". In: Hegel's ethics of recognition Berkeley: University of California Press, 1997, p. 26.
- [81] Ver Shklar, Judith N. "Self-sufficient man: dominion and bondage". In: Hegel's dialectic of desire and recognition, op. cit., pp. 289-303, e Pöggeler, Otto. Hegels Idee einer Phänomenologie des Geistes. 2 ed. Freiburg: Alber, 1993 [1973], p. 263-4.
- [82] Ver Tavarès, Pierre-Franklin. "Hegel et l'abbé Grégoire: question noire et révolution française". Révolutions aux Colonies, pp. 155-73.
- [83] Ainda não tive a oportunidade de ver o artigo original de Tavarès, "Hegel et Haiti, ou le silence de Hegel sur Saint-Domingue" na revista de Port-au-Prince Chemins Critiques, nº 2, maio de 1992, p. 113-31.
- [84] Rosenkranz, Karl. Georg Wilhelm Friedrich Hegels Leben. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1977 [1844], p. 543.
- Note-se que essa ainda é a biografia canônica de Hegel, daí sua republicação em 1977 (e novamente em 1998). Apesar de serem numerosos os trabalhos filosóficos sobre a evolução do pensamento de Hegel, assim como biografias do filósofo, é impressionante que Hegel não tenha encontrado um biógrafo moderno para tomar definitivamente o lugar de Rosenkranz. Ver, por exemplo, Althaus, Horst. Hegel und die heroischen Jahre der Philosophie: Eine Biographie Munique: Hanser, 1992.
- [92] Para fazer justiça às variações dos textos de Jena e, assim, à evolução da ideia de Hegel sobre a dialética do senhor e do escravo em meio ao contexto histórico da Revolução Haitiana, seria necessário um artigo à parte. Não será possível oferecer aqui uma descrição verdadeiramente apurada. Poderei somente oferecer uma hipótese, que considera a leitura de Adam Smith por Hegel em 1803 como um ponto de virada. Nos primeiros Systementwürfe de Jena (1803-1804), Hegel tematiza a "batalha por reconhecimento" de uma maneira que marca uma ruptura tanto com a concepção clássica de comunidade ética (Sittlichkeit) quanto com a concepção hobbesiana da autoproteção individual (o estado de natureza). O crucial e conclusivo "fragmento 22" (porções do qual foram borrados e reescritos pelo próprio autor, sendo que ao menos uma página se perdeu) começa com uma discussão sobre a "necessidade absoluta" do "reconhecimento mútuo": a violação da propriedade deve ser vingada "até a morte" (Hegel. Jenaer Systementwürfe. Ed. Klaus Düsing e Heinz Kimmerle. 3 vols. Hamburgo: F. Meiner, 1986, 1: 218n).
- [93] Hegel. System der Sittlichkeit. Ed. Georg Lasson. Hamburgo: F. Meiner, 1967 [1893], apud Harris, Henry S. "The concept of recognition in Hegel's Jena Manuscripts" [1990]. In: Hegel/Studien/Beiheft 20: Hegel in Jena. Ed. Dieter Heinrich e Klaus Düsing. Bonn: Bouvier, 1990, p. 234.
- [94] Hegel. The phenomenology of mind. Trad. J. B. Baillie. Nova York: Harper & Row, 1967 [1807], p. 234.
- [99] Estou sugerindo que os argumentos de alguns autores negros, que acreditavam estar em oposição a Hegel, estão na verdade próximos à intenção original do autor. Ver, por exemplo, Paul Gilroy, que lê Frederick Douglass (que foi embaixador dos Estados Unidos no Haiti em 1889) como alguém que oferecia uma alternativa ao que entendia ser a "alegoria" de Hegel do senhor e do escravo: "A versão de Douglass é muito diferente. Para ele, o escravo prefere ativamente a possibilidade da morte à continuidade da condição de desumanidade da qual depende a escravidão das plantações" (Gilroy, Paul. The black Atlantic: modernity and double consciousness. Cambridge: Harvard University Press, 1993, p. 63).
- Ver também Orlando Patterson, que defende que a "morte social" que caracterizava a escravidão pressupunha, como a negação da negação, não o trabalho (que acreditava ser o que pretendia dizer Hegel), mas a libertação, a despeito de ver isso (em última instância, como Hegel) como algo possível de ser obtido por um processo antes instituicional que revolucionário; ver Patterson, Orlando. Slavery and social death: a comparative study Cambridge: Harvard University Press, 1982, pp. 98-101.
- [100] Compare-se com a afirmação de Hegel em 1798: "Instituições, constituições e leis, que não mais se harmonizem com as opiniões da humanidade e das quais o espírito se tenha esvaído, não podem ser mantidas vivas artificialmente" (apud Gooch, G. P. Germany adn the French Revolution. Nova York: Green, 1920, p. 297).
- [101] Hegel apegou-se a essa insistência sobre a responsabilidade do escravo. Na Filosofia do direito (1821): "Se um homem é um escravo, sua própria vontade é responsável por sua escravidão, assim como é sua vontade a responsável pela sujeição de um povo. Portanto, a injúria da escravidão não se deve simplesmente a escravizadores ou conquistadores, mas também aos próprios escravizados e conquistados" (Hegel. Hegel's Philosophy of right. Trad. T. M. Knox. Londres: Oxford University Press, 1967, p. 239, adendo ao §57).
- [103] Esse termo é de Kojève, Alexandre. Introduction to the reading of Hegel: lectures on the Phenomenology of spirit. Trad. James H. Nichols. Ithaca: Cornell University Press, 1969.
- [104] Até onde sei, Tavarès é a única exceção, apesar de muitos autores que se debruçaram sobre a escravidão terem recorrido à dialética hegeliana do senhor e do escravo em suas argumentações. Ver, por exemplo, a conclusão de Davis (The problem of slavery in the Age of Revolution, op. cit., p. 560), que sugere que "arriscamos incorrer em fantasias" ao interpretar a dialética hegeliana do senhor e do escravo como um diálogo imaginário entre Napoleão e Toussaint-Louverture. Ver os inúmeros comentários de W. E. B. Dubois a respeito da escravidão que relacionam esses textos com os de Hegel; por exemplo, ver Williamson, Joel. The crucible of race: black-white relations in the American south since emancipation. Nova York: Oxford University Press, 1984;
- Zamir, Shamoon. Dark voices: W. E. B. Dubois and American thought, 1888-1903 Chicago: University fo Chicago Press, 1995;
- e Lewis, David Levering. "Introdução a W. E. B. Dubois". In: W. E. B. Dubois: a reader Nova York: John Macrae Book, 1995.
- Ver também Fanon, Frantz (The wretched of the earth Trad. Constance Farrington. Nova York: Grove, 1968) que utiliza a filosofia europeia como uma arma contra a hegemonia europeia (branca),
- [106] Ver os trabalhos do historiador Eugene Genovese (por exemplo, The political economy of slavery: studies in the economy and society of the slave south. Londres: Pantheon Books, 1965),
- [108] A segunda edição revista dos Jacobinos Negros de James, em 1962, sustenta explicitamente a tese de que a existência escrava nas colônias era, "em sua essência, uma vida moderna" (James, op. cit., p. 392). Essa posição havia sido defendida também por Dubois: "Os escravos negros na América experimentavam as piores e mais baixas condições entre todos os trabalhadores modernos" (Dubois, Black reconstruction in America: an essay toward a history of the part which black folk played in the attempt to reconstruct democracy in America, 1860-1880. Nova York: Russell & Russell, 1977 [1935], p. 9,
- [109] Alex Honneth é representativo nesse caso, quando conclui que a leitura marxiana de extração social do reconhecimento mútuo em Hegel é "altamente problemática" em seu acoplamento da antropologia expressiva dos românticos (trabalho) com o conceito feuerbachiano de amor e a economia nacional inglesa (Honneth, Axel. The struggle for recognition: the moral grammar of social conflicts. Trad. Joel Anderson. Cambridge: Mit Press, 1995, p. 147).
- Note-se que a interpretação de Ludwig Siep destaca o afastamento de Hegel em relação a Hobbes com o recurso à dialética do senhor e do escravo, uma leitura que na verdade favorece o argumento que apresento aqui. Ver Siep, Ludwig. Anerkennung als Prinzip der praktischen Philosophie: Untersuchungen zur Hegels Jenaer Philosophie des Geistes Freiburg: Alber, 1979;
- [110] Para discussões sobre a escravidão colonial e o tráfico de escravos, ver Smith, Adam. An inquiry into the nature and causes of the wealth of nations. 2 vols. Homewood: Irwin, 1979, livro 4, cap. 7, pp. 105-75.
- [111] Concordam quanto a isso mesmo especialistas que discordam em outros pontos (por exemplo, Hyppolite, Jean. Genesis and structure of Hegel's Phenomenology of spirit. Trad. Samuel Cherniak e John Heckman. Evanston: Northwestern, 1974,
- e Forster, Michael. Hegel's idea of a Phenomenology of spirit Chicago: University of Chicago Press, 1998).
- Ver também Riedel, Manfried. Between tradition and revolution: the hegelian transformation of political philosophy Trad. Walter Wright. Nova York: Cambridge University Press, 1984.
- [114] O escrúpulo filológico que se encontra, por exemplo, no trabalho de Norbert Waszek sobre a leitura de Hegel do iluminismo escocês oferece um modelo: estudo que lançou luz sobre a recepção de Smith por Hegel de um modo que mudou fundamentalmente nossa compreensão da filosofia hegeliana da sociedade civil; ver Waszek, Norbert. The scottish enlightenment and Hegel's account of Civil society. Boston: Kluwer Academic, 1988.
- [115] As seções que se seguem a "Senhorio e servidão", intituladas "Estoicismo", "Ceticismo" e "A consciência infeliz", podem ser concebidas como referências, não a diferentes estágios da história (como argumentou Rosenkranz, op. cit., p. 205), mas a diferentes modalidades de pensamento sobre a realidade efetiva da escravidão. No que se refere à longa seção de crítica à fisionomia e à frenologia (ver Hegel, The phenomenology of mind, op. cit., pp. 338-72),
- [116] Próximo ao sumário da relação senhor-escravo na Propedêutica filosófica, Hegel assinala entre parênteses: "História de Robinson Crusoé e Sexta-Feira" (Hegel, The philosophical propaedeutic. Trad. A. V. Miller; ed. Michael George e Andrew Vincent. Oxford: Blackwell, 1986, p. 62).
- Ver a glosa desse comentário em Guietti, Paolo. "A reading of Hegel's master/slave relationship: Robinson Crusoe and Friday". Owl of Minerva, nº 25, 1993, pp. 48-60.
- [117] Hegel, Die Philosophie des Rechts: Die Mitschriften Wannenmann (Heidelberg 1817/18) und Homeyer (Berlin 1818/19). Ed. Karl-Heinz Ilting. Frankfurt: Suhrkamp, 1983, p. 55.
- [121] A Filosofia do espírito subjetivo de Hegel (parte 3 da Encyclopedia [1830]) é um documento crucial, especialmente as seções "Antropologia" e "Fenomenologia"; contém as consequências das conferências de Hegel sobre a filosofia da história, com seu preconceito contra a cultura africana e mais afirmações racistas sobre negros; contém também uma descrição mais extensa sobre a dialética do senhor e do escravo do que aquela encontrada na Fenomenologia do espírito de 1807. Aqui, Sklave e Knecht ainda são utilizados de modo indiferente; aqui, a trajetória histórica é codificada, com a escravidão europeia se referido aos antigos; aqui, a luta até a morte ainda é necessária: "assim, é preciso lutar pela liberdade [...] colocar a própria vida, assim como a dos outros, em perigo", enquanto os negros "são vendidos e se permitem vender sem qualquer reflexão sobre se isso é certo ou errado". E ainda: "Não se pode dizer que sejam ineducáveis, pois não somente chegaram a aceitar ocasionalmente o cristianismo com a maior gratidão [...] como também chegaram a formar, no Haiti, um estado baseado em princípios cristãos" (Hegel, Hegel's philosophy of subjective spirit. Trad. e ed. M. J. Petry. Dordrecht: David Reidel, 1979, 3 vols., vol. 3, pp. 57, 431; vol. 2, pp. 53, 55, 393).
- [124] Ver Rainsford, "Toussaint-Louverture. Eine historische Schilderung für die Nachwelt". Minerva, nº 56, 1805, pp. 276-98, 392-48.
- [125] Era sabido que lojas maçônicas francesas locais incluíam negros, muçulmanos, judeus e mulheres, apesar de que a loge anglaise de Bordeaux excluía judeus e atores; ver J. M. Roberts, The mythology of the secret societies. Londres: Secker and Warburg, 1972, p. 51.
- Lojas (maçônicas) em toda a França eram os únicos lugares onde franceses, independentemente de classe, ocupação ou religião, encontravam-se em igualdade de posições, animados por um espírito de unidade. Em lugar do velho espirito de classe, que anteriormente havia mantido unidos todos os nobres da França, a maçonaria organizava uma confraria que incluía todas as classes e raças (Fay, Bernard. Revolution and freemasonry, 1680-1800 Boston: Little Brown, 1935, p. 224).
- [127] Justamente durantes esses anos (1802-1804), Bordeaux chegou a ultrapassar Nantes na liderança do comércio triangular de escravos e açúcar. Ver Saugera, Éric. Bordeaux, port négrier. Paris: Karthala, 1995.
- [131] Dayan, Joan. Haiti, history, and the gods. Berkeley: University of California Press, 1995, p. 151.
- [132] Sobre o trabalho de Barlow para esse livro, ver Honour, Hugh. From the American Revolution to World War I, 4º volume de Bugner, Ladislas (ed.). The image of the black in Western art. Cambridge: Cambridge University Press, 1989, p. 95.
- [133] Ver D'Hont, Hegel et les français. Hildesheim: G. Olms, 1998. No final de A filosofia da história, Hegel ainda era capaz de falar da Revolução Francesa como "um glorioso alvorecer mental". E mesmo assim criticava o Terror como "a mais temível tirania. Exerce o poder sem formalidades legais e a punição que inflige é igualmente simples - Morte. Essa tirania não poderia durar; por todas as inclinações, todos os interesses, a própria razão se revoltou contra esse Liberdade terrivelmente consistente, que, em sua intensidade concentrada, exibiu uma forma tão fanática" (Hegel, The philosophy of history. Trad. J. Sibree. Buffalo: Prometheus Books, 1991 [1858], pp. 447, 450-1).
- [134] Num esboço de A lógica de 1830, Hegel destacou sumariamente que a "razão genuína por que já não existem escravos na Europa cristã deve ser buscada senão no próprio princípio do cristianismo. A religião cristã é a religião da absoluta liberdade e somente para os cristãos o homem conta como tal, em sua infinitude e universalidade. O que falta ao escravo é o reconhecimento de sua personalidade; mas o princípio da personalidade é Universalidade" (Hegel, The Encyclopaedia Logic (with the Zusätze). Trad. e ed. T. F. Geraets, W. A. Suchting e H. S. Harris. Indianapolis: Hackett, 1991, pp. 240-1).
- [138] Hegel era um leitor assíduo da Edinburgh Review entre 1817 e 1819, como sabemos com base em seus excertos dessa revista; ver "Hegel's Exzerpte aus der 'Edinburgh Review' 1817-1819". Hegel-Studien, nº 1-2, 1979, pp. 78-116.
- E, na década de 1829, lia o britânico Morning chronicle; ver Petry, M. J. "Hegel and 'The morning chronicle'". Hegel-Studien, nº 11, 1976, pp. 14-5.
- [141] Os avanços no Haiti se adiantavam à Europa ao evidenciar a inadequação da igualdade política que não atacasse a desigualdade econômica. Os documentos que asseguravam a liberdade aos escravos em Saint-Domingue em 1794 foram criticados como algo oco, uma vez que não questionavam os direitos de propriedade dos grandes terratenentes, enquanto as pequenas roças que costumavam ser reservadas ao cultivo dos escravos já não eram consideradas necessárias: Mesmo que "'ninguém tenha o direito de exigir que você trabalhe um único dia contra sua vontade'", a terra pertence de direito àqueles que a herdaram ou compraram, de modo que os ex-escravos precisavam trabalhar, pois "'a única maneira de satisfazer (suas) necessidades é com o produto da terra'" (Fouchard, Jean. The Haitian maroons: liberty or death. Trad. A. Faulkner Watts. Nova York: E. W. Blyden Press, 1981, pp. 359-60).
- [142] As primeiras duas edições das conferências sobre a filosofia da história (1837 e 1840), editadas por E. Gans e Karl Hegel, não incluíam todo o material empírico sobre as culturas mundiais, no que era então, consequentemente, um volume mais delgado. Georg Lasson foi o primeiro a incluir de modo abrangente o material empírico em suas três edições, sempre mais completas (1917, 1920 e 1930). Lasson comentou em suas notas editoriais a respeito da incompetência e até mesmo da falta de escrúpulo dos editores anteriores: "É impressionante quanto material importante foi simplesmente deixado de lado pelos editores (Gans e Karl Hegel - tendo sido esta última a base para a tradução inglesa de Sibree)", em violação dos princípios rigorosos da filologia (Hegel, Die Vernunft in der Geschichte, op. cit., p. 274). Ainda assim, o próprio Lasson admite ter tido dúvidas sobre a inclusão de toda a informação etnológica que existe nos cadernos de conferência de Hegel, "quando tanto dela deve parecer obsoleto", particularmente "a essência espiritual dos habitantes da África" (Ibidem, p. 277). Note-se que o material sobre a África que aparece nas edições de Lasson (e Hoffmeister) está num apêndice ("Anhang: Die Alte West-Afrika"), enquanto fora incorporada à introdução na edição de Karl Hegel (e na tradução de Sibree), para o que fora reduzida de 21 para oito páginas. A edição mais recente das conferências de Hegel sobre a filosofia da história (1996) inclui três variantes distintas. Os editores concluíram que, a despeito de toda a controvérsia entre os editores, até o momento nenhum texto "completo" ou "principal" pode ser pretendido, "devendo restar cientificamente insatisfatória" a interpretação da filosofia da história de Hegel (Hegel, Vorlesungen über die Philosophie der Weltgeschichte. Ed. Ilting, Karl Brehmer e Hoo Nam Seelman. Hamburgo: Meiner, 1996, p. 530.
- [143] A dialética do senhor e do escravo se torna alegórica nos escritos de Hegel, uma metáfora para qualquer relação de dependência, não apenas a luta de vida e morte, mas, com a mesma frequência, aquelas que supostamente já teriam sido superadas. Alguns exemplos: Na Encyclopedia (1845), a sujeição do servo é "um momento necessário na educação (Bildung) de todo homem [...]. Sem essa disciplina extenuante, nenhum homem será capaz de se tornar livre e digno de comandar"; a respeito das nações: "Servidão e tirania são coisas necessárias na história dos povos"; da Filosofia da religião: "'Não sou um dos contendores envolvidos na batalha, mas ambos, sou a própria luta, sou fogo e água'" (Kelly, op. cit., p. 271). Foi no semestre de verão de 1825 sobre a fenomenologia do espírito que surgiu a versão do senhor e do escravo que ressalta o lado bom de ser um servo como o próprio momento de liberdade no trabalho; ver Noerr, Gunzelin Schmid. Sinnlichkeit und Herrschaft: Zur Konzeptualisierung der inneren Natur bei Hegel und Freud. Königstein/Taunus: Forum Academicum in der Verlagsgruppe Athenäum, 1980, pp. 46-7.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
22 Ago 2011 -
Data do Fascículo
Jul 2011